Terra, riqueza e linhagem na Islândia Medieval

October 14, 2017 | Autor: Santiago Barreiro | Categoria: Medieval History, Economic Anthropology, Icelandic Sagas
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Terra, riqueza e linhagem na Islândia Medieval Santiago Barreiro - CONICET Dentro do mundo medieval, a Islândia representa um caso de estudo muito interessante, a nosso ver, por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque dispõe de um corpus documental muito extenso em língua vernácula, especialmente fontes narrativas (tanto em verso como em prosa), mas também em forma de anais, códigos legais, obras eruditas e traduções de material religioso. Em segundo lugar, porque era uma sociedade relativamente pouco estratificada, na qual o poder e o “capital cultural” se encontravam, em boa medida, mais nas mãos de proprietários de terras enriquecidos do que sob jugo de uma “aristocracia” no sentido pleno da palavra. Isto teve um efeito profundo na produção literária islandesa e nos permite entrever a partir dos escritos a dinâmica de algumas das “sociedades de base campesina” da Idade Média, habitualmente mais acessíveis em termos arqueológicos que textuais. Neste trabalho, tentarei mostrar como a relação entre terra, riqueza e linhagem era um componente fundamental na dominação que uma elite de proprietários de terras exercia sobre o resto da população da ilha durante a primeira metade do século XIII. Em termos mais gerais, tentarei ilustrar a utilidade das sagas como fontes historiográficas, assim como suas limitações. Farei referência habitual a uma das mais conhecidas Íslendingasögur [Saga dos Islandeses, uma espécie de gênero literário islandês da Idade Média], a saber, a Saga de Egil, filho de Grímr, o

calvo, devido a enorme riqueza que proporciona o tema aqui tratado.

1. As sagas como fontes para o estudo histórico da sociedade islandesa medieval A situação das sagas como fontes para o trabalho do historiador tem sido um dos problemas mais debatidos ao longo dos dois séculos da historiografia moderna sobre o mundo nórdico medieval. Uma primeira aproximação ao problema, que caracterizou geralmente a escola de História do Direito alemã do século XIX e início do século XX, via as sagas como documentos geralmente confiáveis para a compreensão da vida social. As sagas eram notadas como o repositório de uma tradição oral de matriz popular, que se havia transmitido de geração em geração até ser redigida com a adoção do manuscrito e do alfabeto latino (como consequência da Cristianização). Tal posição, conhecida como a teoria da prosa livre (Freiprosa), foi criticada por certos autores, especialmente da escola islandesa, que considerava

as Íslendingasögur [Sagas dos Islandeses] como obras fundamentalmente literárias. Esta segunda escola se conhece geralmente como escola da prosa literária ( Buchprosa). A mudança de perspectiva impactou diretamente a concepção do que constituía uma fonte válida para a análise histórica. Por exemplo, a obra clássica de Jón Jóhanesson Íslandinga saga (“História

dos Islandeses”) apenas menciona as sagas dos islandeses, mas se apoia recorrentemente na Sturlunga saga. Como reação contra esta escola, a partir de 1970 se evidencia uma revalorização do gênero da Íslendingasögur [saga dos islandeses] a partir de uma nova aproximação, a antropologia histórica. Esta corrente tem sido dominante nas últimas três décadas, inscrevendo-se nela muitos dos principais historiadores atuais da Islândia Medieval, tanto anglo-saxões quanto nórdicos. Grosso modo, a escola antropológica sustenta que, conquanto que os eventos das sagas dos islandeses sejam provavelmente ficcionais (tal como sustentava a escola da prosa literária), as sagas sirvam como fonte histórica, pois revelam tanto a estrutura quanto a ideologia da sociedade que a produziu. Neste sentido, tal escola se aproxima ou das influências da escola francesa dos Annales ou da história cultural anglo-americana. Cabe perguntar se o fundamental dessas sagas é seu caráter reflexivo ou, por outro lado, seu caráter programático. Em outras palavras, se as fontes literárias principalmente refletem a realidade social ou se, por sua vez, promovem a mudança nesta mesma realidade com discursos instrumentais. Este problema é crucial para compreender a relação entre terra e homens apresentada nas sagas e mostra-se pertinente ilustrá-lo com um exemplo. Na redação mais antiga do Livro dos Assentamentos (Landnámabók), se conta que o fazendeiro Skalla-Grímr (Grímr, o Calvo) se assentou na zona de Borg, no Sudoeste da Islândia. Tal obra descreve em detalhes as terras que Grímr reclamou como próprias. A Saga

de Egill também descreve o assentamento de Grímr, mas estende a mesma de modo considerável, de maneira que esta coincide geralmente com o domínio de Snorri Sturluson, homem forte na região durante um período considerável da primeira metade do século XIII. Ademais, é possível que o próprio Snorri fosse o autor da saga. Consequentemente, versões posteriores do Landnámabók [Livro dos Assentamentos], como a variante escrita por Sturla Þórðarson, presumivelmente foram influenciadas pela Saga de Egill, e apontam que Grímr dispunha de uma área de colonização maior. Essa redação obviamente realça o prestígio de Grímr e, presumivelmente, de seus descendentes...como Snorri e Sturla.

Pensemos neste caso em termos das opções historiográficas apontadas: que realidade histórica representam essas variantes? Uma primeira resposta é que nenhuma é representativa: todas são construções literárias e a realidade histórica do assentamento de Grímr está perdida irremediavelmente. Uma versão menos cética da mesma base diria que a versão mais valiosa é a fonte mais confiável (quer dizer, menos literária), que corresponde a um Landnámabók [Livro

dos Assentamentos] mais antigo: as versões da Saga de Egill e derivadas e posteriores seriam, antes de tudo, artifícios literários e não teriam lugar na investigação historiográfica. Sob a luz da antropología histórica, poderiamos, por sua vez, ter ao menos dois tipos de resposta ao problema. Numa primeira, a saga de Egill representaría um projeto ideológico pontual asociado ao autor da mesma e, por tanto, a descrição do assentamento de Grímr serve para explorar a ideologia do dito autor (no século XIII). Por exemplo, as ideias de Torfi Tulinius se assemelham a este ponto de vista. Uma segunda opção seria imaginar que a saga apresenta através destes casos aspectos da mentalidade islandesa medieval, e que, assim, a saga nos serve para indagar a relação entre homens, famílias e terras no período, sendo irrelevante se os eventos da colonização de Grímr são verídicos ou não. Esta linha pode ser acompanhada na obra de Aaron Gurevich. É importante notar que ambas as linhas são incompatíveis entre si: é possível que um texto por vez revele uma mentalidade geral e uma ideologia particular. Neste trabalho tentaremos mostrar ambos os níveis. Quer dizer, examinaremos a relação entre terra, riqueza e linhagem tanto como expoente de um programa ideológico orientado em benefício de um setor particular (a elite secular islandesa) e como forma geral da representação das relações sociais e econômicas.

2. O vocabulário Comecemos a considerar a terminologia. A língua antigo nórdica possui um extenso vocabulário sobre a terra. Entre os termos mais comuns que temos que considerar se encontram land, jǫrð, bær, bú, óðal, eign, eyrir, , fé, auð, kyn y ætt. Nos parece fundamental começar a análise precisando os campos semânticos por meio dos quais esta sociedade expressava sua compreensão do mundo e as relações sociais, especialmente porque isso nos permite evitar anacronismos.

Em primeiro lugar, observemos o vocabulário sobre a terra. Os termos básicos são jǫrð e

land, etimologicamente idênticos ao inglês Earth e land, e a outros termos presentes nas demais línguas germânicas. Jǫrð refere-se a terra no sentido material. O interessante é que em islandês, o sentido mais estrito de “pasto, pastagem” também é frequente, o que é congruente com uma sociedade de base pastoril. Land, por outro lado, tem um sentido abstrato: apresenta sentidos como “pais”, “campo” e “fazenda”. Neste sentido, se sobrepõe ao sentido de bú, “unidade doméstica, lar”, e de bær, “edifício(s) da granja”. Ambos os termos derivam de uma raiz verbal búa, cujo sentido é “assentar-se, habitar” que apresenta paralelos claros nas demais línguas germânicas, como o alemão Bau/Bauer (“construção” e “granjeiro”) e o inglês build. O universido de sentidos é semelhante ao de edificar, que significa tanto “construir” como “crescer, fazer crescer”. O fazendeiro, bóndi (pl. bændr) é quem se apropria e transforma a terra em seu estad natural e a convertem em um bú, um lugar de assentamento humano. A relação entre o trabalho e a terra torna-se fundamental: da naturalmente natural jǫrð passamos para uma forma de terra profundamente inserida nas relações sociais, especialmente porque os bændr constituem o núcleo de político e economicamente dominante na sociedade islandesa medieval. Outro texto interessante neste sentido é óðal. O sentido básico é “patrimônio, alódio, terra familiar”. Etimologicamente se relaciona com a ideia de nobreza e proeminência (como no alemão Adel ou no antigo inglês Ethel, visível em muitos nomes, como Alberto/Adalberto e Etelvina). Ambas as ideias se distinguem claramente em todas as línguas germânicas, pelo qual é provável que a partição semântica seja anterior ao período medieval. A ideia de óðal era conhecida pelos islandeses, mas não se aplicava na ilha: o mais parecido é a ideia de höfuðból e

aðalból (“granja principal”), que funcionavam como centros de poder de líderes de pretensões aristocráticas. A ideia básica é que determinadas terras estavam ligadas de modo inalienável aos membros de uma família. È possível que esto tivesse ecos simbólicos: a possessão do óðal pode estar associada a certa noção de liberdade inata ou inclusive de nobreza, ainda que isto seja discutível. O que parece claro é que um possuidor de terras inalienáveis pudesse ter, na prática, uma margem de manobra muito mais garantida que um tenente ou um peão diante dos homens ambiciosos, porque era materialmente muito menos dependente da boa vontade do outro. Assim, o poema édico Hávamál indica:

Bú er betra, þótt lítit sé, / halr er heima hverr; / þótt tvær geitr eigi oc taugreptan sal, / þat er þó betra en bonn. // Bú er betra, þótt lítit sé, / halr er heima hverr; / blóðuct er hiarta, þeim er biðia scal / sér í mál hvert matar. (Hávamál 36-37)

“Uma granja é melhor, ainda que seja pequena / cada qual é amo em seu lugar / ainda que só seja dono de duas cabras e uma cabana com telhado de casca // Uma granja é melhor, ainda que seja pequena / Cada qual é amo de seu lugar / Sangrento é o coração daquele que deve mendigar / para obter comida”. A propriedade se designava como eign, aparentado com os verbos eiga e eigna (comparáveis etmológica, mas não semanticamente aos verbos ingleses owe e own). É interessante que eignir, no plural, só pode indicar a propriedade de imóveis, para além da propriedade em geral. Os bens móveis se nomeans como lausafé (“riqueza solta”) o lausaanar (“dinheiro solto”). Este vocabulário é fundamentalmente jurídico, mas certamente podemos encontra-lo em algumas sagas: Egils saga e Óláfs saga helga utilizam ambos, ainda que lausafé apareça em numerosos textos, entre eles a Njáls saga, Morkinskinna, Heiðarvíga saga,

Bandamanna saga, Hungrvaka, etc. A ideia de riqueza se expressava principalmente através dos substantivos fé e auðr. Auðr (provém de uma raiz germânica comum nos nomes pessoais, presente por exemplo em Eduardo) e se encontra provavelmente no segundo termo “alódio” (termo de origem franca que significa “toda riqueza, patrimônio”). Fé, por outro lado, designava tanto a riqueza quanto o gado. O termo se relaciona com o inglês fee (anglo-saxão feoh, de significado idêntico) e o latim pecus, que apresentava a mesma dualidade, que se observa na dupla de adjetivos pecuária e pecuniária em castelhano e português. Isto indica que originalmente a riqueza se associava ao gado. A similitude semântica entre dois ramos distantes da família indo sugere que esta associação é muito antiga. De todos os modos, é lógico que se tenha mantinho na Islândia uma sociedade eminentemente pastoril. A centralidade dos animais de criação para a vida econômica foi ressaltada frequentemente nas sagas. Do mesmo modo, é frequente encontrar o termo kúgildi (“preço de uma vaca”) como medida de valor. Outro vocábulo interessante, o adjetivo ríkr semelhante ao inglês rich ou a rico) indicava especialmente poder político (se aparentava, em última instância, com o latim rex ou o celta ríg), ainda que ocasionalmente também denotasse a riqueza, pois ambas as noções se encontravam intimamente ligadas na sociedade islandesa medieva. Quanto ao vocabulário extenso de parentesco, vamos nos focar em dois termos, ǽtt e kyn. O primeiro significa "família, parentela", mas seus cognatos em outras línguas germânicas tendem a indicar "propriedade, patrimônio". A família é "o próprio". Kyn é, como fé, uma palavra comum em seu significado para as línguas germânicas (como em Inglês moderno, kin) e para o latim, como corresponde diretamente ao genus e gens, que é "nascimento" e "grupo de

parentesco" a partir do qual a nossa palavra "gente". Kyn pode ser usado para indicar uma linhagem descendente de um ancestral comum (ou seja, uma gens), dando-lhe um nome específico: por exemplo, os descendentes de Kveld-Úlfr, Skalla-Grímr e Egill (protagonistas da Saga de Egill) são nomeados como Mýramannakyn "A linhagem dos homens do pântano", já que os seus antepassados se instalaram na região conhecida como Mýrar ("pântano"). Isso geralmente indica proeminência. Outro mecanismo foram comumente usados para indicar linhagens, como –ingar, ou sufixos também, -ungar ("descendentes"), como Sturlungar, Vǫlsungar ou Ásbirningar. Este mecanismo é comum nas línguas germânicas e é equivalente ao sufixo ing em, por exemplo, carolíngios. Em geral, somente as famílias proeminentes adquirem esses nomes, pois o sistema de parentesco islandês era, como o nosso, bilateral: quer dizer que cada pessoa considerava parentes tanto do lado materno quanto paterno. Mas existe uma clara distinção entre possuir parentes de renome e parentes sem ele, que as sagas frequentemente apontam de várias maneiras. A mais frequente é listar os nomes dos ancestrais significativos de um personagem. Um excelente exemplo é a Saga de Þórir, o das galinhas (Hænsa- Þóris saga), que introduz assim seus dois personagens centrais:

Blund-Ketill hét maðr, son Geirs hins auðga úr Geirshlíð, Ketilssonar blunds er Blundsvatn er við kennt. Hann bjó í Ǫrnólfsdal. Þat var nokkuru ofar en nú stendr bærinn. Var þar mart bæja upp í frá. Hersteinn hét son hans. Blund-Ketill var manna auðgastr og best at sér í fornum sið. Hann átti þrjá tigu leigulanda. Hann var hinn vinsælasti maðr í héraðinu. (…) Þórir hét maðr. Hann var snauðr að fé ok eigi mjǫk vinsæll af alþýðu manna. Hann lagði þat í vanda sinn at hann fór með sumarkaup sitt héraða í milli ok seldi þat í ǫðru er hann keypti í ǫðru og græddisk honum brátt fé af kaupum sínum. Ok eitt sinn er Þórir fór sunnan um heiði hafði hann með sér hœns í fǫr norðr um land ok seldi þau með ǫðrum kaupskap ok því var hann kallaðr Hœnsa-Þórir. (H-Þ saga, 1) “Blund-Ketill se chamava un homem, o filho de Geirr, o rico, de Geirshlíð, filho de Ketill Blundr, graças a quem (o lago) Blundsvatn é conhecido. Ele vivia em Ǫrnólfsdalr, que estava pouco acima de onde agora está a granja. Havia ali muitas granjas até acima. Hersteinn se chamava seu filho. Blund-Ketill era o mais rico dos homens e o melhor posto de homens durante o velho costume (o período pré-cristão). Ele tinha trinta arrendatários. Era o homem mais popular do distrito (...) Um homem se chamava Þórir. Ele estava escasso de riqueza e não era muito popular no conjunto de homens. Tomou o costume de viajar com suas compras de verão em meio ao distrito, e vendia num lugar o

que havia comprado em outro, e [assim] acumulou muita riqueza de seu comércio. E, uma certa vez, Þórir viajou desde o Sul através da charneca, tinha consigo umas galinhas para levar ao Norte do país, e as vendeu ali com outras mercadorias; e, por isso, Þórir foi chamado de “o das galinhas”. Como pode ser visto, Ketill é um terratenente, rico e de prestígio, e sabemos que o nome de seu pai e avô, cujo apelido é o nome de um lago na área. Por sua vez, Þórir é miserável e impopular, mas enriqueceu através do comércio. No entanto, o seu nome não está associado com a paisagem ou tem qualquer antepassado evocado. Esta saga, cujo estilo é exemplar indica claramente quem é uma boa pessoa e quem não é, o que não é muito comum nas sagas clássicas. O que é comum é demarcar, pela lista de parentes e lugares, o status social de cada personagem e, neste sentido, a saga é típica. Um segundo mecanismo para designar o peso de uma dada família liga-se ao uso do vocabulário. Há adjetivos compostos, como ǽttstórr / kynstórr / kynríkr ("família proeminente") e ǽttsmár / kynsmár ("de pequena família"), indicando a posição dos parentes de um indivíduo. Um adjetivo interessante neste sentido é kynsæll, literalmente "família abençoada", indicando um homem que desceu muitas pessoas proeminentes. A linhagem pode ser chamada kynþáttr: þáttr significa "fio", mas também "seção, episódio, conto". O termo ilumina a relação entre a família e a produção literária: a saga pode ser composta de vários

þættir, frequentemente ordenados genealogicamente. Ao mesmo tempo, a linhagem da família também segue esta "linha" de ancestral e descendente. O antigo nórdico chama cada elo da cadeia com uma palavra específica, feðgar, que nomeia o grupo de um pai e um filho. Com este breve panorama, percebemos alguns dos termos mais importantes utilizados para descrever os problemas discutidos aqui: como é possível notar, algumas ideias mostram uma diferença radical se comparadas as atuais. Isso tem duas consequências imediatas: em primeiro lugar, torna absolutamente obrigatório o bom conhecimento da língua das fontes para o trabalho historiográfico, para evitar anacronismos. Em segundo lugar, reafirma a ideia de uma historicidade de formas mentais (noções, conceitos e representações) que impulsiona o historiador a pensar em dois níveis quando fenômenos econômicos são discutidos: em primeiro lugar, a realidade material concreta, institucionalizada ou escondida pela dinâmica do sistema. Além disso, a representação que os homens daquele tempo faziam desta realidade através de suas categorias de pensamento, expressa, por exemplo, na literatura. Vamos agora tentar ver, através do segundo, o primeiro nível.

3. A estrutura social e a relação entre terra, riqueza e linhagem A estrutura social na Islândia medieval é relativamente simple, especialmente se compararmos com as complexas sociedades estatais do mundo árabe e bizantino, mas inclusive quando comparada com as demais sociedades da Europa Ocidental e nórdica. As razões para esta relativa simplicidade são várias. Em primeiro lugar, a ilha foi somente colonizada na segunda metade do séc.IX e se encontrava praticamente desabitada anteriormente, exceto por alguns eremitas irlandeses que apenas deixaram rastros e, por razões óbvias, não podiam constituir uma base social muito estável. Os imigrantes que povoaram a ilha atlântica provinham, em sua maioria, do que hoje é a Noruega, ainda que uma quantidade significativa, talvez uma quinta parte, migrou das Ilhas Britânicas. Culturamente, sem dúvidas, o caráter da civilização islandesa medieval é decididamente escandinavo e as influências “célticas” são bastante escassas, tanto no vocabulário quanto na cultura material ou na organização social. Porém, diferente dos demais territórios escandinavos, a organização social não se embasava numa complexa gradação de níveis de status, refletida em listas de compensações judiciais, mas que era relativamente simples. Juridicamente havia somente dois grupos: escravos e livres. Entre os libres podemos distinguir certos níveis de poder econômico: temos trabalhadores braçais, tenentes e fazendeiros proprietários. Este último grupo, os bændr, constituía o núcleo da elite política e social islandesa. Entre eles se encontrava um grupo de chefes seculares, os goðar (singular goði), que em muitos casos, mas não em todos, foram fazendeiros muito ricos. O rol destes chefes não era, a princípio, nada semelhante ao dos senhores da Europa continental, nem dos hersir / lendmenn noruegueses. Os goðar foram, a be dizer, uma espécie de mediadores dos conflitos e seu poder baseava-se, fundamentalmente, na capacidade de conseguir apoio político. São figuras muito distintivas a das elites guerreiras ou de funcionários que caracterizam as sociedades medievais (e muitas sociedades pré-industriais). O mais surpreendente parece ser a ausência dessas elites numa sociedade constituída por imigrantes provenientes de uma sociedade mais complexa e estratificada. Jesse Byock tem tentado explicar essa “evolução às avessas” principalmente como o efeito do isolamento da ilha, que fazia desnecessária a presença de especialistas militares. Tal explicação não é de todo convincente, pois nada havia impedido o surgimento de elites armadas que operaram somente em nível local, como, por exemplo, saqueando uns aos outros (como no caso irlandês).

Talvez o problema-chave não sejam os guerreiros, mas a terra: a abrupta paisagem islandesa não facilita a rápida movimentação de pessoas e, além disso, a terra é geralmente muito pobre, o que não promove precisamente a aparição de especialistas de nenhum tipo. Logicamente, uma economia predatória interna teria sido possivelmente catastrófica, por todos os constantes danos as pessoas e a riqueza. De fato, inclusive em condições de paz e prosperidade, o sistema apenas produzia o suficiente como para renovar-se, num caso clássico de “bad year economics”: tudo funcionava bem somente se nada funcionava mal. Porém, o impulso da produção não tardaria a aparecer. Ainda que a data de sua aparição exata seja muito debatida, surgiram claramente, a partir do século XII, setores que controlavam com maior eficiência as pessoas e o território, podendo assim concentrar e transmitir o poder público e um status diferenciado. Os mecanismos para o ascenso social já estavam culturalmente presentes nas sociedades nórdicas do período viking e não há razão para supor que, neste sentido, a Islândia era diferente. Um grupo de famílias adquiriu o controle de várias chefaturas locais, criando assim zonas de influência muito claras, de onde não existia oposição a seu poder. Apareceu então o domínio (ríki), uma forma de poder territorializado, de certo modo semelhante ao poder senhorial do continente. Os chefes dessas famílias dominantes rapidamente adquiriram gostos e ambições aristocráticas, e se rodearam de séquitos permanentes de homens armados. Obviamente, a manutenção dessa nova forma de vida era custosa, e os novos “grandes chefes” (stórgoðar, ainda que o termo seja moderno) pressionavam os fazendeiros subordinados para que lhes cedessem bens e tributos. É difícil afirmar que fatores foram determinantes na aparição dessa nova elite. O controle do aparato eclesiástico, que se desenvolveu na ilha desde fins do século XI (a conversão nominal foi em 999 ou 1000) proporcionava a alguns chefes fortes ingressos extras. Ademais, é possível que a aparição da Igreja, que atraía muitos filhos de famílias acomodadas para ocupar postos em sua hierarquia, limitara a competência interna no setor mais alto da sociedade, o que pode ajudar a cimentar e estabilizar o poder secular, posto que era proibido ser clérigo e goði. O controle de determinadas rotas e do comércio, assim como a habilidade na corte puderam, outrossim, serem outros fatores de peso. Porém, queremos aqui clarificar que as fontes deixam a impressão de que, inclusive na relativamente sociedade igualitária dos primeiros tempos, o jogo político elevado não estava aberto a qualquer um. Em primeiro lugar, porque a riqueza não era necessariamente uma indicação de habilidade política. Como ilustram várias sagas, como as mencionadas Sagas de

Egill e Saga de Þórir, assim como outros textos (como a Saga de Hrafnkell), a mentalidade da

época considerava que as pessoas de família proeminente eram as únicas que poderiam triunfas no jogo político. A intenção dos nobres menores, ainda que fossem ricos, como Þórir, Sam na saga de Hrafnkell ou Steinar na saga de Egill, conquanto fossem figuras politicamente importantes, seu desejo estava indefectivelmente destinado ao fracasso. Dito de outro modo, a linhagem é mais importante que a riqueza no momento de ascender socialmente, ao menos na representação literária da mobilidade social. Textos mais realistas, como a Sturlunga saga, enfatizam ainda a capacidade de exercer a violência política, que devia ser muito real durante o séc.XIII (época descrita nesta compilação de sagas de grande valor histórico). A violência nas Íslendingasögur, por outro lado, é muito menos sistemática e a menor escala: é um mundo de rixas, sangue e assassinatos, não de incursões e escaramuças. Mas, o que determinava a linhagem, ou ainda, que fatores incidem para que um homem ou mulher sejam considerados “de família proeminente”? Em primeiro lugar, a própria linhagem, se reproduz a si mesma. Um homem considerado de reputação proeminente por causa de seus ancestrais normalmente passará a mesma aos seus descendentes, numa sociedade que acreditava no caráter hereditário de determinados aspectos da personalidade. Em segundo lugar, a cultura. Em terceiro lugar, e isso é que o interessa mais, a terra. A propriedade de terras é um elemento determinante para a questão do status social. Na última parte da Saga de Egill, um fazendeiro chamado Steinarr entra em conflito com Þorsteinn, filho do ancião Egill. O conflito vai crescendo até chegar ao seu ponto máximo na assembleia ( þing). Inesperadamente, o velho Egill se faz presente. O pai de Steinarr, que confia no fazendeiro ancião, cedeu-lhe o direito de emitir o veredicto no conflito entre os filhos de ambos. Egill então declama (Egils saga 82: 287)

...hef ek þar upp þat mál, er Grímr, faðir minn, kom hingat til lands ok nam hér ǫll lǫnd um Mýrar ok viða herað ok tók sér bústað at Borg ok ætlaði þar landeign til, en gaf vinum sínum landakosti þar út í frá, svá sem þeir byggðu síðan Começarei meu discurso falando de quando Grímr, meu pai, veio a este país e reclamou para si toda terra em Mýrar e ao redor do distrito, e se assentou em Borg, e teve a intenção de ter a propriedade da terra ali, mas deu a seus amigos terras disponíveis que estavam ao redor, que eles então habitaram. Usando este fundamento, Egill ataca Steinarr e seu pai, declarando que são homens menores quando comparados com ele e seu filho, enquanto herdeiros de Grímr. A concessão

de terras de Skalla-Grímr para Áni, o avô de Steinarr, é revertida. O que parecia ser um dom convertesse agora em causa de superioridade política de Egill sobre os demais fazendeiros da zona. Mais ainda: é efetiva, pois Steinarr deve exilar-se da área. A efetividade pode atribuir-se, em certa medida, para a ideologia do dom, que percebe os presentes como perpetuamente relacionados ao doador. Desde já, o impacto de um homem apresentando-se ante uma assembleia de fazendeiros com um séquito armado e ostentando sua riqueza não deve ser desdenhado. Egill, de fato, combina o poderio derivado de seu papel como herdeiro de um granjeiro rico, e seu prestígio e riqueza derivados de suas aventuras como viking. Mas o fundamental segue sendo seu rol de proprietários de terras. De fato, os vikings nas sagas dispõem de má reputação, pois são indivíduos que rompem com a ordem social. Um bom exemplo é o teimoso Þórólfr, o coxo, pai de Arnkell na Eyrbyggja saga. Incapaz de aceitar sua idade e a vida sedentária, o ancião se dedica a mudar a vida dos vizinhos e de seu próprio filho maliciosamente. Inclusive, figuras mais positivas de caráter guerreiro ou heroico, como Gunnar na Saga de Njáll, são os melhores casos, vistos como relíquias de um tempo passado. O exemplo mais extremo são os proscritos Gísli Súrsson e Grettir, o forte, figuras de grande valor pessoal mas inadaptadas a seu tempo; ademais, seus atos violentos lançam os personagens para as margens da ordem social. Por outro lado, figuras pouco violentas como Snorri goði (da Eyrbyggja saga) ou Njáll (da

Saga de Njáll) tem como um de seus elementos de poder característico possuir tanto terras como uma linhagem de boa reputação. O fato de ambos terem se esquivado do combate não é uma crítica, mas uma virtude, pois forma considerados homens capaz de trazer a paz. Isso não significa, obviamente, que não pudessem recorrer ao expediente violento. Snorri foi muito próximo de subterfúgios para eliminar seus inimigos, enquanto que os filhos de Njáll (em particular Skarpheðinn), são muito capazes de exercer a violência que seu pai evita. Poderíamos continuar com os exemplos indefinidamente. Entretanto, é mais produtivo perguntar: a ausência de terra e família proeminente é um impedimento absoluto para o ascenso social? A resposta é categoricamente não, ao menos se utilizarmos como base as fontes literárias. A satírica Bandamanna saga nos mostra como um homem pode enriquecer-se mediante o comércio de pescado; ademais, ela proveu uma ácida crítica ao poder dos goðar, seguramente um reflexo das condições da época de produção da saga (c.1300). Auðunar þáttr (e o mui semelhante Gjafa-Refs þáttr) exemplifica como um homem de meios e linhagem escassos, mas com inteligência e bom olho comercial, logra em converter-se num homem respeitável. A margem das fontes eminentemente literárias, a Sturlunga saga apresenta muitos

exemplos de pessoais de meios escassos e famílias não proeminentes que logram ascender socialmente de um modo ou de outro. Isto é um reflexo na aparição de um setor de fazendeiros enriquecidos, chamados algumas vezes de stórbændr, que podiam resistir aos impulsos dos chefes ou servir como seus agentes locais. Todavia, é importante notar que, em todos esses casos, o que confirma o ascenso é o ato de adquirir terrar ou a continuidade no controle da terra previamente obtida. Dito de outro modo, a linhagem resulta menos determinante para lograr certa mobilidade social do que a propriedade, ainda que fosse fundamental para as pretensões de pertencimento a elite. 4. Conclusões Temos tratado, de modo mais ilustrativo que sistemático, refletir sobre a relação entre terra, riqueza e linhagem no medievo islandês. Não estamos diante de uma sociedade igualitária, mas tampouco ante uma sociedade estratificada e imóvel. É uma sociedade dinâmica com canais de ascenso social, na qual os meios de legitimação do adquirido foram, todavia, maleáveis. Quiçá isto foi uma das razões que impulsionou a enorme produção literária da ilha, mas notável se a compara com sua pobreza material. A memorização é um veículo importante de legitimação do passado, seja ela verídica ou fictícia. Recordar os ancestrais numa sociedade campesina sem estruturas estatais, memorizar suas fazendas e façanhas (políticas, aventureiras ou religiosas) pode ser pensado como o equivalente da monumentalidade que caracteriza as elites dos estados antigos (e muitas vezes modernos): como uma estratégia de visibilidade e afirmação, por sua vez histórica e permanente, de uma posição social dominante.

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