Territórios e Identidades em Trânsito. Definições Emergentes

July 21, 2017 | Autor: Inês Alves | Categoria: Architecture, Urban Studies, Arquitectura, Antropología, Antrophology
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TERRITÓRIOS E IDENTIDADES EM TRÂNSITO. DEFINIÇÕES EMERGENTES

por

Inês Alves *

Resumo: Um particular interesse na identidade territorial e memória colectiva moveu-me desde o ingresso no curso de Arquitectura. Inicialmente, muito interessada pela análise etnográfica e quase ancestral dos povos isolados do mundo contemporâneo, desenvolvi uma primeira aproximação a esta temática, com um Trabalho de Projecto, de final de curso, com a reabilitação de uma aldeia no concelho de Amarante e que porém trazia adjacente toda uma carga identitária, de cariz altamente encerrado sobre si mesmo. No mestrado em Arte e Design para o Espaço Público, esta dimensão sofreu uma mutação que se traduziu num forte interesse pela dimensão ‘suburbana’ dos aglomerados populacionais, pela aparente extinção do conceito de cidade, bem como da dicotomia entre esta e o ‘campo’, e principalmente na forma como estas alterações se projectaram na dimensão humana, com o despoletar de novas identidades. Palavras-chave: Identidade; Subjectividade; Industrialização.

Resumo: The territorial identity and collective memory was the main interests since the beginning of my Architecture degree. Initially interested by the ethnographic analysis – almost ancestral – of the isolated populations in a contemporary world, I developed the first approach to this topic, with a Final Project, at the end of the degree, with the rehabilitation of a small village close to Amarante, that reveal an huge identity charge, highly closed on itself. At the Master of Art and Design to the Public Space, this dimension suffered a mutation that was translated by an huge interest on the ‘suburban’ dimension, on the apparent extinction of the concept of ‘city’, as well as the dichotomy between this one and the ‘field’, and mainly on the projection that those alterations made on the human dimension, with the beginning of new identities. Keywords : Identity; Subjectivity; Industrialization.

Territórios e Identidades em Trânsito: Definições Emergentes “Como que fazendo frente ao Marão, a meia encosta da Serra da Aboboreira, surgenos Carvalho de Rei, uma aldeia parada no tempo, como tantas outras, mas que se distingue pela sua solidez, disposta como se erguida do chão pelos socalcos da montanha. *

Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

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De uma incrível beleza, construída pelos seus recursos naturais e pela vontade humana, este lugar vive hoje tempos complexos, como se o progresso surgisse aqui apenas sob a forma de desertificação e abandono. A 1 hora da cidade do Porto encontramos o passado; encontramos o cheiro a terra molhada e a fumo. Encontramos ainda uma população envelhecida e pouco numerosa, descrente nos tempos que correm, de olhos postos na pobreza extrema em que vivem; na morte que já tarda. Ao encontrarmos o passado entendemos que tudo o é mas que já nada tem que ver com a realidade que vivemos. Entendemos que a sensação agradável que sentimos ao atingir aqueles 730m de altitude, existe por um saudosismo que apenas se fez sentir quando nos demos conta que lá não ouvimos barulhos mecânicos e que os nossos pulmões se enchem aí de um ar melhor. Damo-nos conta de que poderíamos viver aí, ou que então poderíamos encontrar neste sitio a paz e as nossas raízes, que esquecemos existir no quotidiano. Entendemos também que o saudosismo de que falo pode salvar aquele lugar, e tantos outros como este, parado no tempo, que vive hoje da agricultura e do trato do gado, hoje já raro, feito por pessoas idosas que mereceriam com certeza ter uma velhice melhor do que aquela que o clima rígido de montanha e a pobreza extrema em que vivem, têm para oferecer. Hoje busco soluções para trazer Carvalho de Rei ao presente, através de uma ponte imaginária entre a contemporaneidade e o passado, considerando esta como solução única para evitar uma morte de sentido eminente, pelas bandas daquela encosta verdejante.” Amarante, Janeiro 2007

A experiência de partilhar de uma comunidade é algo que se alterou por completo nas últimas décadas. A nossa identidade vê-se interrompida em pontos distintos, desfasados e complexos, ao possuirmos uma realidade física, de características fisionómicas, outras psicológicas – que nos caracteriza com traços de personalidade –, e ainda uma final, que veio alterar por completo todo o ideal anterior, de constituirmos uma realidade tão mais exacta e rígida. Uma certa desfragmentação instalou-se e trouxe consigo um agravar de uma condição anterior de subjectividade, na qual ser humano protagonizou um movimento interior descendente, a par de um desenvolvimento tecnológico e consequente crescimento dos núcleos industriais, nos quais as condições de habitabilidade foram consecutivamente ignoradas. As cidades iam crescendo, a par de um sentimento de auto-insegurança e desconfiança no futuro. Os desastres que o homem foi presenciando ao longo da sua estadia nestes territórios densos populacionalmente mas vazios na sua dimensão humana, foram sendo recebidos como avisos constantes da potencia da tecnologia e da ciência, que facilmente se traduziam no receio de um ‘esmagar’ da condição individual e sociológica da raça humana. Instala-se uma dicotomia devastadora entre homem e máquina, aquela que representava a força e a potencia, mas que trazia consigo uma dimensão capitalista à sociedade onde o homem, frágil e doente, se tinha de adaptar. Esta insegurança, levada ao extremo com um recusar total da Modernidade, aquela responsável pela ideia de zonning e da proclamação da máquina, vai traduzir-se numa atitude antagónica, em relação às premissas anteriormente impostas.

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O movimento Pós-Moderno veio romper com a ideia de ordem, que na realidade já se tinha imposto, com um recusar completo do pensamento humanista, ultrapassando a premissa de que o homem seria medida de todas as coisas e a mulher emerge com “um papel central na cidade desordenada, na qual a própria ideia de desordem não pode mais ser expressa, desde que não existe ordem prévia para confluir”(1). Artisticamente muito criticada, a corrente Pós-Moderna imponha, também ela, um romper com o passado, recusando os ideais clássicos e as grandes superfícies brancas, ou materiais sóbrios que os arquitectos e artistas modernos proclamavam. O resultado seria uma amalgama de cores e formas que resultavam numa combinação atractiva aos sentidos, e que envergava no seu propósito a sua mais valia, representando uma “forma de desorientação, sem significado e de fragmentação” (Wilson, 1991), intensificada ainda com a exploração de novos estudos que visaram explorar a subjectividade humana, como a Teoria da Psicanálise Freudiana. É imposta a ‘lei das ruas’, que é como quem diz, dos subúrbios. O movimento Moderno, altamente proclamado entre as classes mais enriquecidas da população, vem estabelecer uma vontade de criar o oposto. A confusão, o caos, a amálgama, materializada sob forma de arte e que representava a antítese daquilo que havia sido antes proclamado por aqueles que levavam a cabo um capitalismo responsável pelo zonning e a industrialização, e portanto, pelo caos a que os protagonistas do Pós-Modernismo haviam sido condenados. Mumford, já em 1922, apontava os subúrbios como “dormitórios onde a vida era levada sem disciplina de ocupação rural e sem recursos culturais que as ‘centrais de distrito’ retinham” (2), e definia deste modo um território ‘estranho’, sem normas tipológicas de cidade ou de campo, considerando-o desordenado em relação aos meios ruralizados, mas demasiado periférico relativamente aos núcleos urbanos. Podemos dizer que com a industrialização são arrastadas grandes consequências, reflectidas pela fragmentação humana, pelo crescimento não planeado das cidades e total alteração na dicotomia entre cidade e campo. São dadas as premissas para uma sociedade de consumo, uma ‘cultura-mundo’ gerida pelas premissas capitalistas na qual “a mulher urbana contemporânea é” ainda hoje “ao mesmo tempo consumidora e produto de consumo” (3), e portanto, uma ‘pós-modernidade extremada’, que Lipovetzky (2008) nomeou recentemente de Hipermodernismo.

Dicotomia Cidade e Campo A temática do subúrbio, já muito explorada por investigadores de várias áreas de conhecimento, representam ainda hoje uma ferida em aberto, composta por resíduos de um passado difícil, que se confundem porém por territórios comuns que apesar de ‘resultantes’, necessitam hoje ser trabalhados. Uma das constantes observadas é a subjectividade deste território, constituindo como que um passo dado com alguma irreversibilidade, na qual a partir do momento em que destacamos a subjectividade do homem não mais possamos encarar a vida e o nosso espaço do mesmo modo. Constitui quase como que estados antagónicos, de familiaridades e globalidades, “não um espaço onde possamos entrar (...) mas um espaço de imagens saturadas, que é ao mesmo tempo intensamente pessoal (dentro das casas das pessoas e cabeças) e amplamente abstracto”. (4)

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Continuamos no entanto a assistir a alguns discursos que descredibilizam a imagem e tipologia do subúrbio, tida muitas das vezes como a “ugly sister” (Hartley, 1996) da cidade histórica e desenvolvendo uma leitura marginal destes territórios descaracterizados, junto aos principais eixos de distribuição de tráfego automóvel, algumas vezes (re)conhecidos pelos piores motivos. Uma das prioridades para a reconfiguração do subúrbio prende-se necessariamente com a sua associação a determinados comportamentos sociais de exclusão, que terão sido fomentados com fenómenos de segregação num período inicial de zonamento periférico. “Pode-se prosseguir, considerando a auto-estrada intrusa na paisagem e na vida bucólica do campo, ou na geometria e vida do meio urbano. (...)”, no entanto será um jogo de forças inútil e ingénuo, nomeadamente se considerarmos o esquema infra-estrutural como constante movimento de forças. O mero esquema formal promove uma estrutura estável que, assumido exclusivamente nos dias de hoje, representa vertente altamente volátil e obsoleta. “Se interagirmos com a sua força, aproveitamos as suas potencialidades e somos capazes de ver de forma oblíqua esse acto linear de ritmos e forças em movimento que configuram a lógica dinâmica da mobilidade, os resultados podem ser uma amálgama mais orgânica de forças similar à dos rios que delinearam estrias na paisagem.” (Martin Price 1994-1996). Se considerarmos as mais valias de uma sociedade de informação, fluxo e mobilidade, consideraremos principalmente as vias de comunicação; não só o telemóvel ou o computador – numa dimensão virtualizada e imaterial, que no entanto constitui a mais rápida difusão, sem grandes obstáculos ao nível das suas fronteiras, e com um notável espalmar da relação espaço/tempo – mas também as vias asfaltadas que atravessam os territórios lésa-lés, aeroportos, portos e caminhos de ferro, dotaremos os nossos territórios; elementos estruturantes, ou pólos de atracção para a fixação populacional. E se as barreiras se esbatem quando consideramos a dimensão virtual das nossas relações e comportamentos e se, aceder ou não, depende não do tempo dispensado, ou da linearidade do caminho a percorrer, mas de um terminal que permite a chegada de determinada informação, o acesso motor a determinada realidade, mantém a relação espácio-temporal que, apesar de em constante mutação, conhece fronteiras físicas, variando contudo no dispositivo utilizado, sendo que este representa uma relação de maior acessibilidade, não dependendo inteiramente de um pórtico de passagem para uma realidade imaterial. No Plano de Desenvolvimento para Almería, de 2004, o colectivo de arquitectos MVRDV referiam “É surpreendente que apenas se tenha explorado as possibilidades derivadas dos acessos às auto-estradas urbanas. Os vários nós tendem efectivamente a converter-se em obstáculos para o desenvolvimento do território circundante: Quais seriam as estratégias a adoptar a fim de impulsionar o uso intensivo das ditas zonas em torno das auto-estradas?” (5) Parece-me que nos últimos anos temos assistido uma inversão desta tendência, quando observamos uma crescente fixação ao longo destes nós viários, no qual se conclui um provável entendimento de habitar próximo de um ‘pórtico’ de entrada de rápido acesso aos centros empresariais, serviços e emprego.

Dicotomia Homem e Máquina Tal como inicialmente referi, a industrialização provocou um reconhecimento da potencialidade imposta pela máquina, e portanto um estabelecer de uma dicotomia entre

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esta e o Homem que se tornou devastadora no entendimento do homem, perante si mesmo e perante o outro. Hoje protagonizamos uma era ‘híbrida’, na qual também o homem deixa de se considerar apenas na sua dimensão, mas ainda naquelas a que pertence virtualmente. Recentemente pudemos observar um casamento entre o Homem e a Máquina, na qual o indivíduo já reconhece comummente a técnica como sua aliada. O processo atingiu um pico de aceleração nos últimos 30 anos e mais que nunca necessitamos de ‘próteses’ para desempenharmos as tarefas mais básicas. A televisão, por exemplo, veio fornecer ao cidadão mais comum a acessibilidade ao poder da imagem, que anteriormente circulava apenas entre determinados meios muito restritos, e com o avançar desta sociedade de informação foram avançando também os meios a partir dos quais esta informação era difundida. Ao habitarmos realidades múltiplas somos também objecto de desmultiplicação, e inevitavelmente assumimos uma condição de subjectividade crescente, ao mesmo tempo que, toda a nossa realidade é numérica, a começar pela linguagem ‘virtual’ , que facilmente nos reduz a ‘x’ números de identificação. A ideia de dispositivo, aprofundada por Agamben – seguindo o legado de Foucault – pode aqui ser resgatada e reflectida, já que segundo este, os dispositivos existem desde sempre, sendo estes “tudo o que tem, de uma maneira ou de outra, a capacidade de capturar, de orientar, de determinar, de interceptar, de modelar, de controlar e de assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos” (Agamben, 2007). A própria máquina computacional é dispositivo que nos altera as acções e pensamentos. A textualidade do espaço cibernético, vêm acentuar a desmaterialidade e fragmentação do ‘eu’, provocando uma crescente subjectividade, a partir de um ‘cyberdispositivo’, sob a forma de ‘network’ . A matéria dilui-se; o corpo “entra neste ‘espaço’ sob a forma de escrita, (e) torna-se literalmente um corpo ‘cybertextual’. Porque a linguagem envolve a Internet, todo o ambiente se torna numa projecção textual.” (6) “O espaço do possível está a encolher. Isto não só quanto à identidade e retorno religioso mas ainda da perda crescente do espaço politico. (...) Pode a cidade ser espaço de articulação politica e reestruturação social? Ou estamos a entrar numa fase da história em que o homem recusa ser carne e sangue e a Internet rapidamente toma conta do imaginário e a economia do desejo se torna o único espaço possível para pensar a politica do futuro?” (7). Ramoneda ao colocar esta questão, anuncia a eminência da extinção da função politica e social na civitas, o que me leva a reflectir que no dia em que estas condições deixarem de se observar, deixaremos de ter cidade e passaremos a habitar um outro organismo. Talvez uma ‘grande megalopolis descentrada’(8), tal como Chistine Boyer recorda o ‘cyberespaço’ ser vulgarmente nomeado, uma vez que ao alcançar patamar anunciado por Ramoneda, todas as tipologias espaciais sofreriam fenómenos de esbatimento de fronteiras; um estado levado ao extremo daquilo que hoje o mundo ocidental vai fruindo e vivenciando. Boyer desenvolve ainda um paralelismo invertido entre o indivíduo Pós-Moderno e o indivíduo ‘cyberespacial’, referindo que aqui os ‘espaços de clausura’ de Foucault se invertem. “Os marginais (...) são deixados fora da zona protegida. (...) O marginal tornouse o nosso ‘Monstro Pós-Moderno’, fora da norma e de invisibilidade crescente”(9). A autora refere ainda que existe um “suporte digital que divide quem está conectado e quem está desconectado” (10), factor indiscutível para uma reflexão à cerca da ideia de demo-

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cratização da informação. Se a informação hoje se encontra disponível ao virar de cada esquina, – ou mesmo na frente urbana, como referia Venturi – a diferença entre quem se confronta com esta e a quem esta não se encontra acessível, torna-se como grande parede divisória entre duas realidades antagónicas, muitas vezes, fisicamente próximas. A ideia de que “as telecomunicações substituirão o contacto faca-a-face e a cidade enquanto espaço urbano fixo tornar-se-à eventualmente redundante”(11), talvez se tenha vindo a cumprir, porém parece-me importante considerar a inconstância dos tempos, a evolução humana e entendimento das suas conquistas e seus pensares. A evolução é um conceito que, antes de definido teoricamente, já na prática existia, e assim ia demarcando diferenças entre o dia de hoje e o de ontem. E será importante ter presente que a postura à cerca dos meios de informação actuais constituem sintoma de quem tem sofrido duros golpes com o avançar da tecnologia. Uma constante nostálgica que nos tem cravado o quotidiano – já aprofundada neste trabalho – leva-nos a uma persistência no que toca a permitir que esta realidade virtual invada as nossas casas e cidades. Quase que um “choro nostálgico por contacto real no mesmo tempo que a simulação gerada por computador confundiu o nosso sentido de autenticidade”. (12) Talvez a ambiguidade da autenticidade nos retire a capacidade de assegurar um futuro concreto, já que o passado tem um sabor romântico e o presente permanece incerto. Arika Suzuki define o território contemporâneo como representador de uma “convergência de toda uma série de redes possíveis”, desde o transporte, à informação, no qual a mestiçagem de forças, culturas e constante cruzar de fluxos exista “ uma tendência para introduzir nos espaços reais a pureza sintética do ‘cyberespaço’”(13), permitindo uma maior fluidez e deste modo ultrapassando barreiras e esbatendo as fronteiras. Existe no entanto “(uma) analogia entre a rede virtual e as cidades regionais (...)” que nos pede “para dar um salto qualitativo do virtual para o espaço físico, erradamente supondo que as fronteiras entre esses espaços podem ser cruzados com facilidade” (14), aspecto que na realidade nos leva a considerar que apesar das barreiras que destruímos, o espaço físico e vitual persistem como aspecto representador de uma aguda diferença, muitas das vezes com realidades inversas. Manuel Gausa, defende “um sistema ‘multicapa’ progressivamente diversificado produzido por informações e realidades diversas, descontínuas e sobrepostas – em coabitação – que continuamente mutariam, perverteriam, alterariam, transformariam e interpretariam assim os próprios esquemas elementares de desenvolvimento que as definiriam, e cuja força radicaria, precisamente, na capacidade constante de renovação e de modernização. De construção e reciclagem.” (15)

Dicotomias à Parte “Nunca como antes, o planeamento é necessário para que as cidades sobrevivam”(16). Um planeamento estratégico e experimental, que de olhos postos no presente e num futuro próximo, aspire a uma franca relação entre individuo, sociedades, territórios e globalidades. Um programa de articulação entre diversas escalas que em alguns pontos partilhem um lugar comum, permitindo estruturar uma plataforma contínua de reflexão e abordagem, de questões cognitivas, materiais e programáticas.

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Koolhaas refere que “a cidade já não existe”, proclamando a “morte do urbanismo”, reflectindo que “fomos deixados com um mundo sem urbanismo, só arquitectura (...)”. O autor defende uma nova forma de urbanismo, que não consista apenas numa “profissão, mas (n)uma forma de pensar, (n)uma ideologia”, que possibilite desenvolver um exercício no qual deixe de ser “à cerca do ‘novo’, mas sobre ‘adição’ e ‘modificação’” voltando-se para as questões urgentes dos territórios nos quais nos movemos, alterando prioridades, não sendo mais “sobre o cidadão mas sobre o subdesenvolvimento.” Refere ainda que “nossa ‘sofisticação’ esconde grandes sintomas de cobardice centradas na simples questão do posicionamento que tomamos – talvez a mais básica acção de fazer cidade”. Colmatando a reflexão, proclama que, “mais do que nunca, a cidade é tudo aquilo que temos”. (17) Para entendermos o discurso de Koolhaas – que por alguns poderá ser considerado contraditório –, teremos primeiro de entender que a cidade que ele refere inicialmente não existir, não é a mesma na qual acaba por colocar toda a sua esperança, necessitando para isto, estabelecer mais que uma disciplina, uma doutrina, que deixe de se centrar na arquitectura e no constante posicionamento da mesma, mas que se volte, sem desvios, para a crueza das questões contemporâneas. Jean Michel Léger afirmava há já mais de 20 anos que “uma Arquitectura forte é uma Arquitectura arriscada”, recordando, no entanto que “do mesmo modo que o exercício da cidadania não é suficiente para garantir a felicidade do cidadão, o da participação não garante por si só a satisfação do habitante” (LÉGER, 1990), pelo que estará certamente do lado daqueles que, num posicionamento político e decisor, poderão promover uma articulação de interesses públicos e privados, porém conscientes das heterogeneidades sociais e territoriais. A forma ‘intersubjectivada’ que fomos assumindo ao longo das ultimas décadas, torna-nos permeáveis à envolvente material, cognitiva ou virtual. Os espaços que fazemos hoje, ‘fazem-nos’ amanhã, molda-nos à sua medida, sendo que aquilo que materializamos num determinado momento, nos consome de seguida, sob forma inesperada e distinta da definida à priori. “A condição humana é hoje condição urbana”,(18) que nos torna mais que cidadãos, ou participantes – tal como Léger referia –, mas elementos participativos, como que células de um organismo em constante redefinição, não atingindo, em ocasião alguma designação estável. “As disciplinas clássicas da arquitectura e do urbanismo já não são suficientes para entender, planificar e controlar a paisagem urbana, nem a conduta dos seus habitantes”(19). A confinação de determinada profissião à sua própria disciplina não faz mais sentido; o técnico terá de lidar com as ciências exactas, bem como com as humanas e sociais, e o entendido no estudo do homem e sociedade terá de levar em conta todas as dimensões formais e descritivas de um processo. “O projecto urbano pode agora ser mais estratégico e plástico, com intenções acunpuncturais sobre a pele humana para afectar o organismo inteiro”(20). Um indicio deste conceito surge através da ideia de “Sistema Linear Contínuo” (Hansen e Hansen, 1967), no qual se entendia o mundo como instável e imprevisível e que, na sua aplicação à arquitectura, este pressuposto deveria ser tido em conta, produzindo “formas abertas” e espaços “inacabados” , ao “pensar o espaço relacionalmente” (Hansen, 2005), permitindo uma apropriação e consequente identificação por parte do utilizador. Será importante, nos dias que atravessamos, resgatarmos pensamentos e formulações teóricas que coloque ênfase nas preocupações que, na génese, lhes esteve associadas. “Crises

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como a presente depressão económica são bons momentos para fazer um balanço das cidades” (21), será portanto útil enfrentar esta como uma oportunidade para uma alteração conceptual e processual, procurando que as “visões para iniciativas arquitecturais e estratégias de projectos de investigação não podem continuar a ser completamente controladas pelo designer ou investigador, mas adoptando uma qualidade recíproca entre a teia social e as relações ambientais”(22). Será pacífico considerar o ambiente territorial descentrado e fragmentado, como meio de maior urgência de alteração das abordagens e práticas, que necessariamente passará pelo respeito pela pré-existência, e portanto consideração pelas tipologias formais, comportamentais, e relacionais pré-estabelecidas. “Assim, não só se pouparão recursos, naturais e construídos pelo homem, mas as nossas energias estarão focadas para criar novas e inesperadas intervenções híbridas.”(23) É pacifico afirmar que a cidade, tal como se estruturou no início do processo de sedentarização do homem, deixou de se inscrever na actual estruturação urbana e territorial. Manuel Gausa nomeava esta de dimensão ‘metaurbana’, uma “estrutura definitivamente aberta (...) uma tripla combinação entre ‘arquipélagos edificados’, ‘suportes arteriais’ e ‘espaços livres intersticiais’”, o que nos permite chegar a um léxico mais franco dos elementos compositores do território, ou seja, “edificações (volumetrias), ‘infra-estruturas’ (linhas) e ‘paisagens’ (superfícies)”(24). O autor refere ainda que já a ideia de ‘metapolis’ na sua origem não remeteria já apenas para “a capacidade de crescimento, mas sobretudo para a capacidade de ‘combinação’: de interconexão e interacção. Com o território e com outros territórios; com o lugar e outros lugares. Com identidades... e entre identidades.” (25)

E a identidade? O homem, ao atingir este estado complexo e de multi-camadas, a par de toda uma sociedade que parece estar a sofrer o mesmo processo, coloca-se numa posição de possível conversão para um estado comum e de homogénea apatia. O próprio conceito de identidade encontra-se em mutação. O que é hoje considerado como identidade, noutros tempos não o era, apenas porque os avanços foram surgindo e constituem ainda hoje novidade. Possuímos identidades múltiplas que vamos construindo online e outras que desenvolvemos nas nossas relações e interacções com o outro e connosco. Seja como for, entendo identidade como dimensão construída, camada atrás de camada que vamos sobrepondo, com cada traço de personalidade, seja esta demonstrada ou configurada de que forma for. Ao nascermos, a nossa matéria é apenas ela mesmo. Matéria. Ao vivermos, respirarmos o ar que respiramos, com a educação a que vamos sendo postos à prova, costumes e desafios, tudo se vai densificando, até um momento em que é densificação constante. Não existe identidade construída e estanque. Aquilo que vamos estruturando como identidade está sempre, constantemente em mutação, crescimento e densificação. O que outrora sentíamos como identidade, como símbolo inquestionável da nossa génese, do nosso passado e cultura foi sendo substituída por necessidades infra-estruturais – numa perspectiva pragmática –, de consciente ruptura com passado – personificada na imersão de um pensar pós-moderno – ou através de uma simples falta de planeamento

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territorial. “A criação da identidade – individual ou social – é central para a nossa capacidade de nos orientarmos no mundo. (...) Qualquer cidade ou território serve um propósito, seja quando oferece abrigo, segurança. ou serve necessidades económicas, politicas ou sociais.” (26) O rápido crescimento e reinvenção dos nossos núcleos urbanos foi, a longo prazo, reflectir-se numa nova consciência de nós próprios e por conseguinte do património herdado. O percurso foi assim sendo traçado entre estados antagónicos, indo desde um momento de total desconhecimento e negligência histórica, a uma tendência “musificadora” dos traços de antiguidade das nossas cidades, que passam como que a constituir “dispositivo de segurança. O monumento assegura, sossega, tranquiliza (…) procura apaziguar a angústia da morte e da aniquilação.” (27) A falta de adaptação dos centros históricos e dos antigos edifícios às necessidades e comodidades que surgiram – a escala e o fluxo automóvel, ou a infra-estrutura de saneamento base – é numa primeira instancia geradora de repulsa pelo passado, com adaptação descontrolada, progressivamente surgindo movimentos de consciência cívica e histórica. Vai-se impondo a ideia de que “as coisas antigas eram melhores num momento original e que desde então têm vindo gradualmente a degradar-se. (…) A história parou num período dourado; a mudança é uma estranheza.” Estabelece-se, deste modo, uma clara relevância nas frentes urbanas e num exibir patrimonial, no qual “o exterior dos edifícios é restaurado, apesar de o seu interior ser irrelevante.” (28) Assistimos ainda a resquícios deixados pela imagem suburbana e desqualificada, às problemáticas socioeconómicas, à marginalidade ou às minorias, que protagonizaram o movimento Pós-moderno. Somos levados a de algum modo efabular os territórios históricos de uma cidade em detrimento daqueles materializados através de um crescimento sem planeamento e sem história. Este olhar ingénuo, gerador de avaliação estética e juízos de valor limitadores ocultam a lógica de que “… a nova paisagem não é pior, é diferente; não pode ser julgada nem deve ser apreciada segundo regras tradicionais, e sim segundo suas próprias regras.” (29) O passado é e será uma constante, e a carga idílica da história, será sempre responsável pelo estímulo do imaginário colectivo e individual, mas entendem-se como ultrapassadas questões de exacerbada ingenuidade. Uma perda da inocência necessária para usufruir dos benefícios tecnológicos, encarar a alteração das necessidades e usos, e permitir uma valorização contida e justa dos sinais da história.

?????????????????????? (1) Tradução do original “Women take a central place in this disordered city, in which the idea of disorder can no longer be expressed, since there is no prior order from which to deviate.”, in “The Sphinx in the City – Urban life, the control of disorder and women”, (p.136); Wilson, Elisabeth; University of California Press, 1991 (2) Tradução do original “dormitories where… life is carried on without the discipline of rural occupations and without the cultural resources that the Central District of the city still retains”, in “The Story of Utopias”; Mumford, Lewis; Boni and Liveright; New York, 1922 (3) Tradução do original “The contemporary urban woman is both consumer and consumed.” Ibid., (p.139) (4) Tradução do original “… not as a place you can walk into (…) but as an image-saturated space which is both intensely personal (inside people’s homes and heads) and extensively abstract”, in “Sexualization of the Suburbia – The diffusion of knowledge in the postmodern public

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sphere” (p. 181); Hartley, John; in “Visions of Suburbia: Symptoms and Metaphors of Modernity”; Roger Silverstone (ed); Routledge; London & New York 1996 (5) Tradução do original “Es sorprendente que apenas se hayan explotado las posibilidades derivadas de los accesos a las autopistas urbanas. Los nudos viarios tienden a convertirse, de hecho, en obstáculos para el desarrollo del territorio circundante: Cuáles serian las estrategias a adoptar a fin de impulsar un uso intensivo de dichas zonas alrededor de las autopistas?”, in Plan de desarrollo para Almere, MVRDV, 2004 (6) Traduzido do original “We are on the threshold of a new era in which telecommunications will replace face to face contact and the city as a fixed urban space will eventually become redundant.”, in “The Sphinx in the City – Urban life, the control of disorder and women”, p.140, Wilson, Elisabeth, University of California Press, 1991 (7) Tradução do original “The space of the possible is shrinking. This is not so much about the identity storm and the return of the religious as about an increasing loss of political space(…). Could the city be the place of political articulation and social restructuring? Or are we entering a phase of history in which man renounces being of flesh and blood and Internet apace takes over the imaginary and the economy of desire until becoming the only possible space in which to think about the politics of the future?”, in “The City and the Human Condition”, Ramoneda, Josep;, in “In Favour of Public Space. Ten years of the European prize for urban public space”, Actar, Barcelona 2010 (8) “Crossing Cibercities – Boundary problems separating the regional space of the city from the matrix of cyberspace” (p.214), Boyer, M. Christine; in Global City Regions: Their Emerging Forms by Hack,Gary; 2001 Routledge (9) Tradução do original “The marginal’s (…) are left outside the protected zone (…).The marginal has become our postmodern Monster, beyond the norm and increasingly invisible.”, Ibid., p. 218 (10) … p. 221 (11) Tradução do original “ … body enters this ‘space’ as a form of writing, it literally becomes a cybertextual body. Because language wraps the Internet, the entire environment becomes a textual projection.” Ibid., p. 223 (12) Tradução do original “nostalgic cry for contact with the real thing at the very moment when computer-generated simulation has confused our sense of authenticity”, Ibid., p. 219 (13) Tradução do original “(…) la convergencia de toda una serie de redes posibles”, in “Can invisible communities save the city?”, (p. 54) Suzuki, Akira; Congresso “UIA – Barcelona 96”, in Quaderns nº 213, 1996. (14) Tradução do original “The analogy between the computer matrix and regional cities – or spatial orderings that cybercities erect – asks us to make a qualitative leap from virtual to physical space, erroneously assuming that the boundaries separating these spaces can be crossed with ease.”, Ibid., p. 226 (15) Tradução do original “Un sistema ‘multicapa’ progresivamente diversificado producido por informaciones y realidades diversas, acontinuas, nofilas y superpuestas – en cohabitación – que continuamente mutarían, pervertirían, alterarían, transformarían e ‘interpretarían’ así los propios esquemas elementales de desarrollo que las definirían, y cuya fuerza radicaría, precisamente, en esa capacidad constante de renovación y de modernización. De construcción y de reciclaje.”, in “OPEN – Espacio Tempo Información – Arquitectura, Vivenda e Ciudad Contemporánea – Teoría e Historia de un cambio”, (p. 191), Gausa, Manuel; Actar, Barcelona, 2010 (16) Tradução do Original “Nevertheless, planning is necessary if cities are to survive.”, in “The Sphinx in the City – Urban life, the control of disorder and women”, p.156, Elisabeth Wilson, University of California Press, 1991 (17) Tradução do original “The’ city no longer exists”; “The death of urbanism”; “Now we are left with a world without urbanism, only architecture, ever more architecture”; “a profession, but a way of thinking, an ideology…”; “urbanism will never again be about the ‘new’, only about the ‘more’ and the ‘modified’. It will not be about the civilized, but about underdevelopment”; “Our ‘sophistication’ hides major symptoms of cowardice centred on the simple questions of

Territórios e Identidades em Trânsito. Definições Emergentes

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taking positions – maybe the most basic action in making the city”; “More than ever, the city is all we have”, in “Whatever happened to urbanism”, Rem Koolhaas; in “S, M, L, XL” , Koolhaas, Rem; Mau, Bruce; 1995 (18) Tradução do original “Today, the human condition is the urban condition”, in “The City and the Human Condition”, in “The City and the Human Condition”, Ramoneda, Josep;, in “In Favour of Public Space. Ten years of the European prize for urban public space”, Actar, Barcelona 2010 (19) Traduzido do original “Las disciplinas clásicas de la arquitectura y el urbanismo ya no son suficientes para entender, planificar y controlar este paisaje urbano, ni la conducta de sus habitantes.” , in “El Nuevo Paisaje”, Bart Lootsma; in Mutaciones , Rem Koolhaas et al,; Actar, Barcelona 2000 (20) Tradução do original “El proyecto urbano ahora puede estar más en lo estratégico y lo material, en intenciones acunpunturales sobre la piel urbana para afectar al organismo entero”; in “De Cosas Urbanas” (p.153), Manuel Solá-Morales; Editorial Gustavo Gilli, Barcelona 2008 (21) Tradução do original “Crises like the present economic depression are a good time to take stock of cities”, in “Space and Symbols in an Age of Decline”, Sharon Zukin, in “Re-presenting the City”, ed. By Anthony King, 1996 (22) Tradução do original “visions for architectural initiatives and strategies for research projects cannot remain fully controlled by a designer or researcher, but adopt a reciprocal quality within an entire web of social and environmental relations.”, in “Field/work and site”; Chris Speed; in Architecture and Field/Work, ed. By Suzanne Ewing, Jérémie Michael McGowan, Chris Speed, Victoria Clare Bernie; Routledge, London 2011 (23) Tradução do original “Not only will we save resources, natural and man-made, but our energies will be focused on creating new and unexpected hybrid interventions”, in “Suburban Transformations” (pag. 11) ; Paul Lukez; Princeton Architectural Press, Nova Iorque 2007 (24) Tradução do original “… dimension ‘metaurbana’ seria la de una estructura definitivamente abierta (…) referida a una triple combinación entre ‘archipiélagos edificados’, ‘soportes arteriales’ y ‘espacios libres intersticiales’, es decir, más sintéticamente, entre ‘edificaciones’ (volumetrias), ‘infraestructuras’ (lineas) y ‘paisajes’ (superficies)”, in “OPEN – Espacio Tempo Información – Arquitectura, Vivenda e Ciudad Contemporánea – Teoría e Historia de un cambio”, (p.167,169), Manuel Gausa; Actar, Barcelona, 2010 (25) Tradução do original “La idea de ‘metápolis’ no remitiría ya, tan solo, a la capacidad de ‘crecimiento’ sino, sobre todo, a la capacidad de ‘combinación’: de interconexión e interacción. Con el territorio y con otros territorios; con el lugar y con otros lugares. Com identidades… y entre identidades.” Ibid., p.195 (26) Traduzido do original “The creation of identity (as individuals and as a society) is central to our ability to orient ourselves in the world. (...) Every city or settlement pattern serves a purpose, whether it provides a shelter, security, or economic, political, or social needs.”, in “Suburban Transformations” (pag. 10) ; Lukez, Paul, Princeton Architectural Press, Nova Iorque 2007 (27) Choay, Françoise; “A Alegoria do Património” (pag. 18), Edições 70, 2008 (28) Lynch, Kevin; “A Boa Forma da Cidade”(pag. 247), Edições 70, 2010 (29) Hall, Peter, “Cidades do Amanhã”(pag. 354), Edições Perspectiva; São Paulo 1995.

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