Tese de doutorado: Tempo, Conhecimento, Deus

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DIOGO DOS SANTOS SILVA

TEMPO, CONHECIMENTO, DEUS

Tese de Doutorado em Poética apresentada ao Programa

de

Pós-Graduação

em

Ciência

da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro Orientador: Professor Doutor Antonio José Jardim e Castro .

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 2011

SILVA, Diogo dos Santos Tempo, Conhecimento, Deus 193 f. Orientador: Antonio Jardim Tese (Doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2011-10-07 Referências bibliográficas, p. 177 1. Filosofia 2.Mitologia 3. Religião I. Jardim, Antonio II. Universidade Federal do rio de janeiro, faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura III. Título                      

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Homenagem à Poética Por Anônimo (o autor com maior número de publicações na história)

Pensam ter entendido a Poética, entenderam sim, seu perigo, mas nada entenderam. Poética não é uma disciplina, Poética é possibilidade. Podem destruir isso e aquilo, fechar este ou aquele, expulsar um professor ou um escritor, mas, enquanto houver um João Ninguém que faça poesia, verdadeira poesia, aí estará a Poética. Querem que a arte pertença a único grupinho? Sim. Querem que a Letras estude de forma infantilizada aquilo que os grupinhos nem consideram arte? Sim. Querem que a filosofia e o pensamento sejam exegese de um único livro? Sim. Mas, enquanto o homem for na medida do homem a Poética sempre encontrará seu caminho. Por maior que seja a força de coerção, o menor de seus oponentes passa entre suas pernas. O maior inimigo do elefante é o rato. Sabemos de seus jogos de poder? Sim, mas não nos importamos, deixemos que se refestelem em seus lixos e seus excrementos. Aqueles que transitam nas articulações de poder também são sujeitos a ele. Na verdade, os mortos estão muito mais vivos que os vivos. Não existe dicotomia entre escravos e iniciados. Todos nós somos homens e transitamos na mesma terra e a terra oferece a todos suas possibilidades, indistintamente.

O homem é na Linguagem, não há outra possibilidade.

Ser ou não-ser: esta é a questão. (ou poderia haver outra? Não!) ŝŝ 

RESUMO SILVA, Diogo dos Santos. Tempo, Conhecimento, Deus. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura – Área Poética). Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Este percurso parte de dois eventos presentes no mito de Teseu e do Minotauro: a katábasis e a tauroctonia. Destes, três questões sobrevieram: O que é o Tempo? O que é o conhecimento? O que é Deus?

Palavras-chave: Filosofia – Mito - Religião            

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Diogo dos Santos Silva

TEMPO, CONHECIMENTO, DEUS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 2011

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................................................5

INTRODUÇÃO I: A SAGA DA SAGRADA SERPENTE..............................................6

TEMPO 1 O TEMPO DEVORADOR..........................................................................................16

2 POESIA E ASCETISMO.............................................................................................23 A origem do ascetismo no pensamento Árabe....................................................25 A Poesia ascética de Abu Al-‘AtƗhiya................................................................27

3 TEMPO É CRONOS, PAI CRONOS, SENHOR DO TEMPO (Uma leitura hebraica de uma sentença helênica)...........................................................32 O Senhor da Assembléia Divina..........................................................................35

INTERLÚDIO: HEIDEGGER E OS GREGOS: PARTE I............................................41

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CONHECIMENTO

1 O SENTIDO SAGRADO DO LABIRINTO DE CRETA...........................................49

2 A RODA DA VIDA.....................................................................................................60

3 A DOENÇA, A VELHICE E A MORTE....................................................................71

4 NO QUE CONSISTE A LITERATURA.....................................................................84

5 NO PRINCÍPIO... (Uma leitura helênica de uma sentença hebraica)...........................................................88

INTRODUÇÃO II : DE COMO VEIO A SER ESTE TRABALHO..............................96

INTERLÚDIO: HEIDEGGER E OS GREGOS: PARTE II.........................................103

6 DE DEUSES E DE HOMENS: ONDE SE SACIAM OS MORTOS (Uma leitura órfica de uma sentença hesiódica)............................................................104

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DEUS

1 O FARDO DA TERRA..............................................................................................116 A Condição da mulher.......................................................................................116 Vasumitra...........................................................................................................124 O Pensamento frente à religião..........................................................................131 O Bom Deus e o Princípio Opositor..................................................................136 Os Versículos Satânicos.....................................................................................141 O Fardo da Terra................................................................................................148 O poder do homem, o Poder..............................................................................151 A magia, o Nome...............................................................................................155

2 O CAMINHAR DOS DEUSES, O CAMINHAR DOS HOMENS, O CAMINHAR DO TEMPO, A PALAVRA..........................................................................................157

3 O DEUS TOURO, SENHOR DAS TEMPESTADES, SENHOR DO TEMPO, SENHOR DA PALAVRA.............................................................................................164 Dos arcos de antiga fortaleza bizantina.............................................................164 A longa via colunada.........................................................................................166

O DEUS QUE MORRE................................................................................................172

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................177 ϰ 

APRESENTAÇÃO

O mundo é por demais vasto para reduzirmos todas as suas possibilidades a uma única apenas. Igualmente vasto para transformarmos suas infinitas possibilidades em reflexos de uma apenas. A condição humana já nos limita em um tempo e em um espaço infinitamente restritos. Por mais que o homem se lance pelo mundo e por bibliotecas, seu tempo será amargo e insuficiente para compreender todas as línguas e todos os sistemas filosóficos.

Por mais que seja vasto o mundo, e por mais que sejam infinitas suas possibilidades, o homem é infinitamente limitado. O homem vaga em sua restrita limitação. Por mais que tente ludibriar suas limitações, o sempre presente tempo logo surge para esmagá-lo.

Além de um discurso coerente, o que diz a pergunta: o que é o pensamento? Seria a mesma pergunta: o que é a realidade? Além de um discurso que apenas alimenta a si próprio, o que há para ser perguntado?

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INTRODUÇÃO I: A SAGA DA SAGRADA SERPENTE

Assim nos colocamos mais uma vez na trajetória do mito, na pergunta pelo mito. Proveniente de um corpus que nos fora legado por diferentes culturas, dos mais diferentes períodos históricos, e todos estes textos chamamos disto: mito. Chamamos mitos narrativas polinesas, épicos gregos e cantos sumérios. Chamamos mito o épico de Gilgamesh, o ciclo do Rei Arthur, o primeiro livro da Torá. E assim buscamos uma presença, uma presença oculta na memória do passado.

Lembro-me de quando, nas ruínas de Ugarit, na Síria, virava o olhar ao norte e via, horizonte, o sagrado monte Saphon. O monte, que era a antiga morada do antigo deus Baal, para os antigos moradores desta cidade; Ugarit, que não é mais agora do que uma memória arqueológica. Mesmo assim, o sagrado Saphon persiste no horizonte. Um antigo lugar de procissões, um antigo lugar de louvor ao qual hinos eram dedicados; sua memória não mais permanece; e de seu mito, o que permanece? Do mito o que pode permanecer? Pois o que seria o mito senão palavras aladas, aladas palavras de um bardo? Uma sagrada palavra.

Ao contemplar o sol, esta esfera que pouco nos diz, que diz apenas de um tempo que pode ser medido, que nos diz se é manhã, se é tarde, se é verão ou o inverno, ao ϲ 

contemplar o sol, esta esfera que pouco nos diz, pergunto, o que é Snjrya, os olhos de VƗruna? Esta esfera, que pouco nos diz, diz: o que é Hélios? Ao percorrer uma via pública, atravessando casas e praças, prédios, pessoas e lojas, ainda percebemos quem é este que nos mastiga? Ao percorrer a via pública, percebemos ainda que este que nos mastiga lentamente é este a quem chamam morte?

Percorremos vilas e cidades, campos e montanhas e não vemos, não ouvimos, não percebemos o eixo sagrado, a memória do sagrado, a memória do mito, a memória da palavra. O que pode ser sagrado a homens de boa vontade? O que pode ser sagrado aos bem-aventurados? Pois nossa tradição percorre intimamente o percurso do total esquecimento. O esquecimento triunfado pelo renascimento de seu deus. Apenas um deus fraco pode renascer. Apenas um deus que não se dá na palavra; um deus que não se dá como mito necessita ressuscitar para ter seu vigor. O verdadeiro deus é o deus morto.

Não podemos, de qualquer maneira, afirmar quando ou em que momento o conhecimento humano passou a buscar a luz, o futuro, a esperança. Quando o guerreiro errante cessou sua busca pelas profundezas abissais dos infernos para dar ouvidos ao filósofo e ao profeta, para aqueles que anseiam pelo futuro.

Realmente a sagrada serpente cessou de sibilar. Se a tempestade sobreviesse incansável e furiosa, se suas nuvens, negras, dobrassem-se sobre nuvens, revirando e contorcendo-se sobre nuvens, novas nuvens, e velhas nuvens misturando-se e dobrandose em sucessivas ondas, ecoando em sinistros sons, eis a tempestade, eis Baal que se

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aproxima. Se o trovão incendiasse o carvalho, suas chamas, na escura noite, erguessem rubras labaredas sob um véu escuro, iluminando o vale e a vila; eis que o trovão diria: “vede, sou Thor”.

Pois o mito era presença, era memória sem esquecimento. Mito: palavras aladas em constante ecoar. De firme presença, de régia montanha. Assim acreditamos que por ter o texto grego de Hesíodo, conhecemos os antigos mitos gregos. Assim acreditamos que por ter o Rg Veda, conhecemos os mais antigos mitos dos antigos hindus. Mas o mito não é a palavra escrita. O mito se dizia na palavra falada, no canto, no ritual e na memória. Nada conhecemos dos antigos mitos, pois, se temos seus textos, eles não são mais, eles são apenas literatura. Através da história, da arqueologia e de todas as outras ciências, acreditamos poder resgatar a antiga vigência destes antigos mitos; no entanto, por não possuírem a consistência física de uma rocha, não conseguimos perceber estar diante de ruínas, antigos monumentos, memórias perdidas de uma milenar ampulheta, sem medida, uma milenar areia desmedida.

Qual a medida do mito, qual a medida da história e qual a medida da memória?

Mil mitos poderiam ser relatados agora, poderia dizer de como Ódin enforcou-se na árvore do mundo e assim recebeu o conhecimento das runas; poderia contar sobre os feitos de Gawain ou como, então, Percival não fez a pergunta que deveria ter feito diante da procissão do Graal; poderia contar como Ariadne fora abandonada em Naxos;

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como o Pégaso nasceu do sangue da Górgona,e como pelo touro fora concebido o Minotauro; como Gilgamesh conquistou o cedro do Líbano; como Rama resgatou Sita do harém de Ravana. Em um eterno dizer mitos se diriam, tão longa é a sucessão de dias sobre dias, tão longa é a memória de mitos sobre mitos, narrativa sobre narrativa em um eterno evocar, em um imenso e árduo trabalho de compilar quase infinita memória. Tão vasta é a biblioteca dos mitos, tão vasto é nosso desconhecimento sobre eles. Tão forte é crença na escrita, na história e na literatura, tão maior é nosso distanciamento dos mitos.

Vê o monte que se ergue ao horizonte, vês ali a morada de um deus? Vê teu deus, vê se ele é deus morto. Vê teus poetas, eles não cantam o canto de tua imemorial tradição. Como saber daquilo que não conhecemos, como ouvir aquilo que não é pronunciado, como poderá ler o iletrado?

A possibilidade de aproximação do mito se dá, pela nossa tradição, através de seu estudo como um objeto. Verifica-se seu contexto histórico-social, decodificam-se seus símbolos, compara-se com outros provenientes de diferentes culturas, verificam-se suas narrativas variantes, apanha-se cronologicamente a época de sua compilação, e, através de um detalhado estudo filológico, é possível datar a provável época de composição oral do mito. Em todo este percurso de aproximação do mito, de conhecimento do mito, o que o cientista, o pesquisador, apreendeu do mito? Pois em todo este percurso o pesquisador não pôde em momento algum escutar a memória do mito. O mito não se dá na escrita, na escultura ou na pintura, o mito se dá sempre na evocação e presentificação da memória.

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Então, como fazer o percurso de aproximação do mito? Como resgatar isto que reunia em seu dizer a moral, a filosofia, a religião, a memória e o épico de uma cultura? Temos seus vestígios, possuímos trilhas que nos indicam o caminho do percurso do mito. Como percorrer este caminho, como perguntar pela questão, a questão que se diz como pergunta, como percurso: o que é o mito? Como estar atento ao discurso do mito? Como não silenciar os discursos?

Todo discurso se diz em curso, em movimento, nunca como eidos. Só poderemos compreender o mito, se o virmos como eidos, como imagem, como um ponto, uma razão a ser decodificada. Quando o mito diz de símbolos, de uma historicidade, nós o compreendemos, da mesma maneira que compreendemos a morte, a arte, a palavra, a linguagem. Mas, se nos colocarmos na contemplação daquilo que diz como fluxo, como movimento, aí sim, talvez, poderemos perceber o mito, talvez poderemos escutar, mais uma vez, a voz silenciosa do antigo bardo. Talvez então, ao nos despirmos da incansável moral, ao abandonarmos as pretensões das ciências, ao silenciarmos todas as vozes que tagarelam em nosso esquecimento, aí ouviremos o mito, o mito que diz sempre no princípio, com o princípio. O mito é aquilo que diz: “tu és isto”.

Quando Orfeu, segundo Diodoro da Sicília, desce aos infernos, guiado por Hermes, e com seu canto encanta até mesmo a rainha do submundo, ele, somente ele, retorna para o mundo dos homens com a sagrada doutrina, o verdadeiro conhecimento, os mistérios de Dioniso. Ao retornar à superfície teve que deixar aos mortos aquela que o levou até eles - sua amada, Eurídice. Um pacto com Perséfone, da mesma forma como ϭϬ 

a suméria Inanna, por seu retorno, havia selado com a alma de Dumuzi. Orfeu fora aos infernos, não por Hermes, mas por Eurídice, para novamente retornar pelas mãos das mulheres.

O que diz o mito de Orfeu, o que diz o mito deste que foi o primeiro bardo dos gregos? Diz de um discurso, diz de um princípio, diz na constante fundação da cultura grega. O mito diz sempre de uma gênese, de curso circular que diz sempre de si mesma, fundando a si mesmo. Uma ruína circular, um rio circular, no Oceano circular, no girar constante, do criar, destruir e recriar. A guerra mitológica não é uma guerra de antigos tempos heróicos, o guerreiro mitológico não é aquele que sacrificou monstros e demônios em um passado histórico, o deus mitológico não foi aquele que apaziguou as forças caóticas nos tempos imemoriais. O fato mitológico é aquele que se dá ao momento, no momento de evocação da palavra, no instante mágico irredutível, evocando sempre a questão do homem, do homem em relação aos seus antepassados, a seus companheiros, à terra habitada.

Neste percurso de compreensão do mito, pelo que é próprio ao mito, em seu dizer mítico, haveria em nossa tradição, no caminhar de nossa civilização, o mesmo dizer disto que de alguma forma percebemos nos antigos mitos? De alguma forma persistiriam as narrativas nesse empenho memorialístico? Haveria ainda o canto sagrado? Haveria ainda a possibilidade de perguntar: “que é isto o mito?”

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Canta Ovídio em suas Metamorfoses que Perseu, antes de regatar Andrômeda da fúria das Nereidas, diz aos pais da donzela raptada:

“Longo tempo vos pode restar para as lágrimas. Para trazer ajuda há um só instante. Se eu, Perseu, filho de Júpiter e daquela que Júpiter engravidou em sua prisão com ouro fecundo, eu, Perseu, que venci a Górgona de cabelos de serpente e ousei ir cortar as brisas etéreas, batendo as asas, se eu vo-la pedisse, seria eu o genro preferido a todos? A tão altos títulos tentarei somar mais este serviço, assim os deuses me ajudem. Que seja minha aquela que for salva por meu valor!” (OVÍDIO, p. 211)

O herói de pernas aladas atravessara os céus do continente africano, para do mar retornar a acorrentada Andrômeda. O herói de pernas aladas, tal qual um deus, de mensageira presença. Não seria o mito sempre este retorno? O retorno destas abissais profundezas?

Pegando as asas, Perseu ata-as aos pés, cinge a espada recurva e, batendo as asas talares, corta o límpido ar. Deixando atrás, e em volta, incontáveis povos, avista o povo etíope e os campos de Cefeu. Ali ordenara Ámon a penalidade de Andrômeda. (OVÍDIO, p. 210)

Se o mais bem construído relativismo de um discurso pode ser facilmente quebrado com uma formulação de verdade: “mesmo assim, Deus existe”, e se, por sua vez, uma formulação de verdade pode ser facilmente invalidada por sua negação; “ainda assim, Deus não existe”, o discurso mítico é aquele que diz de um fluxo, de um percurso de vigor mágico, do êxtase de profunda concentração e da contemplação daquilo que realmente é: o sendo de um rio. A verdade que não comporta qualquer verdade, nem mesmo a verdade que diz: “tudo flui”. Pois assim como tudo flui, nada flui. Perseu

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cruzou os céus de um continente através de suas pernas aladas, sim, talvez seja isto o mito, vasto oceano de memória, aladas palavras.

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TEMPO “Até mesmo os deuses Devem morrer”

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Imagem 1: Yama e a roda da vida

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O TEMPO DEVORADOR

Assim como o Sol, que se levanta das profundezas da Terra para novamente mergulhar no Oceano, o homem é aquele que se encaminha para a morte. Assim como grandes reinos que se levantam para logo depois desaparecem junto com suas construções, seus templos e seus textos sagrados. Nem mesmo o palácio dos deuses é imune ao desfraldar do Tempo. A consciência da transitoriedade e a superação do Tempo é a questão do homem. Se prestarmos atenção, verificaremos que a busca do conhecimento humano é a superação do caráter destruidor do tempo. Isto é o que chamaremos de transitoriedade e é sobre esta questão que pensaremos no decorrer deste trabalho.

O grande épico da literatura persa, chamado Shahnameh, que relata desde as priscas eras da fundação do império iraniano até a sua destruição pela invasão Omíada, tem um tema recorrente, como neste poema cantado pelo príncipe Iraj a seu pai Faraydun, o Rei Dragão:

Nossas vidas passam como vento, e por que Deveriam os sábios lamentarem a chegada de sua morte O campo florido fenece, a amável fronte luminosa é escurecida, e a escuridão toma seu lugar o mundo é feito de prazeres, então dor, e aí abandonamos este mundo dos homens viventes nossas camas são de terra, para toda eternidade, por que deveríamos plantar a árvore que nuca veremos? Os céus luminosos giram, e giram novamente E tudo que trazem aos homens é sangue e dor A terra já viu muitos homem que vestiram Mantos e coroas reais, e verá ainda muitos. (FERDOWSI, 2006, p. 37, versão nossa) ϭϲ 

Conta-se que Firdusi, para compor a sua grande obra, recolheu diversos relatos e mitos cuja antigüidade traria ecos do tempo da composição dos Avestas. Seu poema estaria, portanto, impregnado do antigo conhecimento ditado pelo profeta dos mazdaístas: Zaratustra.

A religião zoroastrista é reconhecida como uma reestruturação dos antigos ritos e deidades iranianas, que, possivelmente, muito se assemelhariam aos ritos e deidades védicas. Zaratustra em sua reforma retirou da antiga religião persa seus elementos de êxtase transformando-a numa religião baseada em uma moral e em uma filosofia notadamente de cunho dialético. Um movimento muito semelhante ocorrerá na Índia com o Budismo, mais precisamente na escola Teraveda.

A dialética zoroastrista se baseia no equilíbrio entre os dois princípios antagônicos que regem o mundo - o princípio mantenedor, representado por Ahura Mazda; e o princípio destruidor: Angra Manyu. O mundo se movimenta no embate entre estas duas forças e o homem, através de sua moral, ora se movimenta impulsionado por uma, ora, pela outra força. O Ocidente compreendeu este pensamento através da lógica cristã, conferindo a Ahura Mazda o papel do deus superior, que encaminha-se ao deus único, que é todo perfeição e bem. E Manyu, por sua vez, representaria o mal sendo uma espécie de diabo.

Seria uma grande loucura discutir se Zaratustra quis dizer isto ou aquilo. Sabemos que os Avestas são alguns dos livros mais antigos da humanidade, tendo sido

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composto oralmente, muito antes de ter sido escrito. Seu texto é extremamente arcaico e dificilmente poderemos dizer que suas diferentes traduções modernas poderiam ter partido de um mesmo texto, tamanha é a obscuridade do livro sagrado dos antigos persas.

Como a preocupação deste trabalho não está em discutir termos filológicos, acertar traduções ou datações, mas, sim, em buscar de alguma forma a força primeira destes textos antigos, clamaremos, assim, as questões que perseguiam o homem antigo e que por descuido foram abandonadas pelo homem moderno.

Nada com certeza podemos dizer da proto-religião defendida por Zaratustra, suas datas, seus conceitos, mas algo podemos dizer da preocupação do zoroastrismo: a questão do massacre provocado pela roda do mundo. Toda a moral construída por este pensamento foi uma tentativa de minimizar o massacre provocado pelo homem. No que consistiria este massacre? Todos invariavelmente provocam um massacre para se manter vivos. Mesmo que o homem não se alimente da carne, para se manter vivo ele deve devorar outros seres viventes. Todo ser é ser e é também tempo, por isso carrega consigo o princípio devorador do tempo.

O pensamento de Zaratustra foi a tentativa da superação do tempo no ser, através do elogio de uma vida pacífica, vegetariana e campestre. O homem deveria sentir compaixão por todos os animais e seres viventes. Compaixão aqui não significa sentir pena ou condoer-se com a dor do outro, mas significa ter consciência de que todos os seres são seres assim como o homem, e que apenas o próprio juízo humano coloca-o como superior aos demais.

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Os sistemas filosóficos indianos também trouxeram a seu pensamento o fundamento do massacre do tempo. De uma forma ou de outra as escolas indianas buscaram ou o elogio da destruição e do êxtase, que tem em Shiva sua personificação religiosa ou a busca pela superação do tempo devorador, minimizando assim o girar da roda do mundo.

O sentido de permanência e manutenção tem como manifestação religiosa o deus Vishnu. Os dois grandes épicos hindus (o Mahabharata e o Ramayana) trazem sempre a questão vishnuísta da preocupação do estabelecimento do equilíbrio no mundo. Seus heróis estão sempre no empenho moral de discernir entre o que é dhármico e o que é adhármico. E sempre que estes fundadores da cultura hindu incorrem no adhármico o mundo gira mais rapidamente encaminhado-se a sua destruição.

No entanto, por mais que Vishnu envie seus avatares ao mundo para que estes restabeleçam a ordem, estes mesmos irão irromper a cólera de Shiva, o destruidor de mundos. Há um verso no segundo livro do Mahabharata que diz:

Nenhuma criatura é feita de ouro, mas Rama foi tentado por um cervo de ouro. Quando a ruína aproxima-se de um homem Toda sabedoria foge de sua mente.

Vishnu, Brahma e Shiva formam a tríade suprema das divindades hindus. Brahma é o criador do mundo e com suas quatro cabeças observa em direção a cada um dos pontos cardeais. Vishnu é o mantenedor do mundo que dorme nas profundezas do oceano protegido pelas nagas, sempre que o mundo incorre em grande risco de lançar-se ϭϵ 

ao caos, Narayan envia um avatar seu para restabelecer a ordem, adiando, assim a inevitável destruição. Shiva, por sua vez, é o irado deus destruidor, com sua dança extásica porá fim aos dias do mundo. Constituindo as três faces de um único ser, Vishnu, Brahma e Shiva apesar de terem consciências distintas e representarem papéis igualmente distintos, são o mesmo ser.

O Tempo é este ser. Não seria o Tempo aquilo que confere existência ao mundo, que o mantém, para, por fim, destruí-lo? Temporizando o mundo, este mundo é, e todos seus seres, carregam assim a essência do tempo temporizando também seus mundos. Todo ser é Tempo.

Se o homem é tempo, se o devorar do mundo pelo tempo reflete-se no homem, se o homem é também um cadáver devorador, se o tempo e o homem guardam em si a mesma essência destruidora, o caminho para a superação da inefável destruição poderia ser apenas um: o auto-conhecimento. A busca pelo conhecimento do ser próprio do homem seria a única chance de, conhecendo a essência do Tempo, reverter o incessante movimento do mundo.

Percebemos os ecos desta busca na máxima inscrita no templo de Apolo em Delfos: “conhece-te a ti mesmo”. Este princípio norteou todo o pensamento ocidental sendo ele mesmo nunca pensado, mas sempre reafirmado nas diferentes escolas filosóficas e científicas. O conhecimento do humano, daquilo que seria o próprio do homem, o verdadeiramente humano, seria aquilo, aquele ponto exato, a última migalha do conhecível que salvaria o homem de sua destruição final.

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O que é o humano e o que é o homem foram as perguntas feitas. Mas e se perguntássemos: há realmente o humano? O que faz de um ser um homem?

O mundo, em sua quase infinita vastidão, viu surgirem profetas e profetas, escolas e filósofos, civilizações, cidades e vastas bibliotecas. Invariavelmente todos foram consumidos pela insaciabilidade do Tempo. Religiões surgiram e morreram com suas derradeiras verdades. Livros e mais livros com as percepções mais perspicazes acerca da verdade foram escritos, destruídos ou esquecidos. Agarramo-nos a nossa cultura acreditando ser esta a verdade absoluta que nos salvará, cremos que esta cultura que carregamos seja fruto de nosso entendimento, de nossa sabedoria e iluminação. No entanto, esquecemos que esta cultura que carregamos, isto que acreditamos ser o eu, é apenas o fruto do condicionamento que esta pequena parcela do mundo pela qual passeamos nos oferece. Como diz Han-Shan em seu manual:

Quando você aspira a ir contra seu tempo e atingir transcendência, conhecimentos

é e

totalmente

necessário

compreensões

que

abandone

completamente.

seus

Nenhum

conhecimento ou técnica é aplicável – é apenas uma questão de perceber através de seu corpo, mente e mundo: todos são reflexos de luz efêmera manifestados em sua própria mente, como imagens em um espelho, como a lua refletida na água.

Esta foi possivelmente a resposta oferecida pelo pensamento budista à sua tradição filosófica. Não há um eu e não há possibilidade de uma busca pelo conhecimento do próprio do homem. Tudo que acreditamos ser o eu é apenas o fruto de papéis oferecidos pela sociedade em que invariavelmente estamos inseridos.

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Não há um eu, portanto. Há, assim, o conhecimento deste não eu, que não pode ser chamado de não eu, nem tampouco eu, e assim, pela total incapacidade da linguagem humana, chama-se, segundo a tradição budista, de vazio.

Esta afirmação nasce justamente da mesma premissa do pensamento zoroastrista, como minimizar o massacre do tempo? Como superar a destruição provocada pelo tempo? E a resposta do budismo será: invariavelmente a Terra, abandonando seus filhos, não cessa de girar.

Segundo o budismo, por mais que nos isolemos do movimento do mundo, por mais que nos afastemos do movimento e busquemos a completa cessação, ainda assim tudo se movimenta. Por mais que o homem não se alimente de carne, deverá matar as plantas para se alimentar. Deverá escravizar outros seres para se vestir, para escrever, matará os insetos que rastejam ao chão ao andar. É, portanto, impossível minimizar a matança do viver. Apenas o juízo humano poderá dizer quais dos seres viventes são mais ou menos dignos de viver. E mais uma vez não será a compaixão do eu do homem que decidirá, mas, na verdade, o conjunto de juízos e morais que sua sociedade lhe impõe.

Viver é matar, e apenas vive aquele que mata. Cada ser inaugura consigo o Tempo e carrega, portanto, os aspectos temporais. O homem é todo tempo e é impossível para este ser perceber o não Tempo. O Tempo confere a existência e o ser de tudo aquilo que é e tende à possibilidade de existir.

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POESIA E ASCETISMO

Durante a era Abássida (750- 1250 d.C) diversas antologias de poesia beduína pré-islâmica foram compiladas e circularam por toda a extensão do Império Islâmico. Estas antologias foram estudas por gramáticos e por poetas, algumas foram tachadas de farsas outras foram enriquecidas com diversos mitos que se construíram a partir de sua origem.

Uma destas várias antologias foi a de UsƗmah Ibn Munqidh, chamada de Acampamentos e Moradas ( Al-Manázil wa ad-dyár). Ibn Munqidh foi um galante e rico cavaleiro, além de um dos maiores poetas de seu tempo. No entanto, sua terra-natal, a Síria, fora devastada por um grande terremoto em 1157 d.C. A perda de seus familiares e de sua propriedade angustiou-o durante anos, de tal forma que, na introdução de sua antologia em 1172, escrevera:

O que me moveu a compilar este livro foi a ruína que visitou meu país e minha casa. O Tempo, em toda asua arrogância, parece ter executado seus desígnios de todas as maneiras possíveis. Tudo se tornou de tal forma que parece nunca ter existido. Aquelas praças tão cheias de vida, agora estão desoladas. Quando cheguei em casa, a fúria do terremoto já havia passado. Então eu vi a extensão do que acontecera com aquela terra que fora a primeira coisa a tocar-me em minha vida. Não reconheci minha própria casa, nem a de meu pai ou a de meus irmãos... Minha única consolação foi a que encontrei na compilação desta antologia, pois a fiz a partir das lágrimas por minha casa e daqueles que amava. ( Stetkevych, 1993, p. 51, versão nossa)

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Quando Ibn Munqidh fala que a compilação da antologia o consolou, se refere mais precisamente à nasƯb, primeira parte das odes beduínas. A ode beduína, a qasƯda, é composta por cinco partes canônicas, divididas de acordo com o tema a ser tratado pelo poeta. A primeira parte da ode consiste no relato da chegada do poeta, após ter partido para o deserto, ao local onde outrora estava o acampamento de sua tribo. Neste momento, lamenta pela dor de seus antigos amores nesta tribo, observando os vestígios deixados no local.

Os versos da nasƯb são invariavelmente comoventes e dotados de uma grande força poética e filosófica. São os versos de abertura das grandes odes e devem, portanto, arrebatar o público que escuta a recitação da poesia. É a partir da estrutura da nasƯb que os grandes poetas árabes da Era Abássida irão construir seus monumentos poéticos, seja na poesia do vinho de Abu Nuwas, seja na poesia sufi de Ibn Al-FƗrid.

Os poetas sufis utilizarão o prelúdio erótico da nasƯb como uma metáfora da busca pelo divino e pelo sagrado. O poeta beduíno Majnnjn será frequentemente revisitado e servirá, ele mesmo, como símbolo daquele que busca a Deus, e sua amada, Laila, será o próprio Deus.

Já Abnj Al-‘atƗhya e os poetas ascéticos verão na nasƯb a irredutibilidade do tempo e a irremediabilidade da morte. Ibn Munqidh diz em um de seus poemas: Tu não és o primeiro cujo lar está distante Então por que este fogo no coração? Esquecer, morrer, Não haverá uma terceira escolha.

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Teu foi um dia, não esperes por mais. Assim como a noite e o dia, ninguém se encontra por muito. Então aqui estás, um gesto de adeus: Estas são os palanquins carregando teu amor, o lar vazio. Contém tuas lágrimas, pois assim como vertem, Elas te esquecerão, quando a separação verdadeiramente vier. (tradução nossa)

Se na poesia Sufi a amada é a metáfora de Deus, e a busca por seu amor é a busca do homem pelo sagrado, na poesia ascética a amada é o próprio mundo em sua configuração ilusória, passageira e enganadora.

A origem do ascetismo no pensamento Árabe

Durante os primeiros séculos da Era Abássida, surgiu um gênero literário conhecido como poesia ascética. A língua árabe chama ascetismo com a palavra “zuhd”, que provém do verbo “zahada”, ou seja, “abster-se”, “abandonar”, “recusar os méritos”.

Historicamente, o ascetismo árabe tem origem no período pré-islâmico e alguns poemas, principalmente peças gnômicas, fazem alusão ou o elogio à vida e às práticas ascéticas. Por sua vez o Profeta e vários de seus companheiros são descritos nas tradições como praticantes de uma vida severa e desprendida.

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De certa forma, o misticismo islâmico assume-se como um retorno ao real significado do Corão, já que em diversas passagens o Livro assume o mundo como algo passageiro e enganador, como na sura IX:

Aqueles antes de ti, que foram mais poderosos e mais ricos em posses e em rebentos, tiveram seu quinhão e tu terás o teu. (9: 69, tradução nossa)

Segundo o pensamento islâmico, todos os passos de cada homem são anotados por dois anjos durante o percurso de sua vida. Diz-se que todo homem é acompanhado por dois anjos, um em seu ombro esquerdo, outro em seu ombro direito: são os anjos escritores. O anjo à direita anota os bons atos, e o à esquerda, os maus atos. Eles observam constantemente e estão sempre presentes. Ao final da vida, os atos humanos são pesados e calculados - se as boas ações pesarem mais, o morto é louvado, se as más ações forem mais pesadas, ele é execrado e torturado pelos dois anjos.

Um dos fundamentos do pensamento islâmico é a crença no julgamento final, momento no qual todo ato será pesado e julgado por Deus, e o resultado deste julgamento será a benção ou a punição eternas.

O mundo é por demais vasto e várias são suas ofertas. O que será digno ou indigno? O que será passível ou não de reprovação? O julgamento humano é por demais falho, nem sempre a mente humana consegue agir com clareza e objetividade? Quais atos serão reprovados e quais serão louvados? Toda a existência, que é apenas um único trajeto, penderá para um lado ou outro da balança, e quem será aquele que julgará os atos da humanidade senão aquele a que tudo observa.

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A Poesia ascética de Abnj Al-‘atƗhiya

Quais serão as recompensas deste mundo, se o que nos resta é a espera pelo julgamento? Ou o homem deixa-se levar pelo mundo, alijando-se da correta conduta e do correto pensar, ou entrega-se à contemplação da verdade, que é a palavra divina. Ou ainda, retira-se do mundo, de seus movimentos, de sua instabilidade, pois se é o mundo que oferece as possibilidades dos bons atos é ele também que oferece a razão das iniqüidades.

E qual seria a maior das iniqüidades senão o tempo? O senhor das ansiedades coroado pela morte? Abnj Al-‘atƗhya diz em seus versos mais famosos: Tenha filhos para a morte, construa para a destruição, Pois tudo se encaminha para a ruína Para quem construímos, se ao solo caminhamos, Assim como do solo fomos criados. (tradução nossa)

A morte ronda a todos os instantes as alegrias da vida e por mais que o homem construa, e por mais que tenha uma vida e filhos vigorosos, a morte e a destruição se lançarão a tudo.

Conta-se que o poeta Abnj Al-‘atƗhya nem sempre compôs unicamente poesias de cunho ascético. Diz-se que era um poeta que freqüentava a corte de Bagdá e que compunha poemas corteses de amor e de vinho. Certa vez, apaixonou-se por uma

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escrava do califa e a cortejava com diversos poemas de amor. No entanto, tudo que recebia em troca era o desdém da escrava. O poeta percebe assim o caráter ilusório do mundo, abandona seus companheiros e sua vida na corte para vestir o manto do asceta. Não se vincula a nenhuma ordem mística, pois que seria a religião senão mais um dos elementos enganadores sobre os quais este mundo é construído:

Toda vida à morte se encaminha Toda vida, de sua vida, está iludida Nem a menor das coisas permanece frente às tragédias do tempo E não há rei ou poderoso que permaneça Como desejamos o eterno ou ansiamos a vida Se a morada de nossos antepassados são sepulcros Muitos dias passam deliberadamente sobre nós O vento sopra, confundindo-se e parte. (tradução nossa)

Fazer parte daquilo que vive é marchar para a morte. Por maiores que sejam os méritos do homem, a parte que cabe a todos é a mesma. Se olharmos para os monumentos do passado, sejam eles castelos ou poemas, vemos que seus construtores estão onde todos estarão. Nada permanece, diz o poeta, e o homem é como o vento, que chega, confunde-se e parte. Se nada pode permanecer, se a eternidade é só um desejo, e aquilo que chamamos vida, um anseio, que resta ao homem senão vestir o manto do asceta?

Oh divertida submissão e opinião errada Não há entre nós em nossa ignorância um iludido O mundo que nos produz e despacha Verdadeiramente se faz uma ilusão (tradução nossa)

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O homem cerca-se de toda opinião e submissão para em sua ignorância dizer: não estou iludido. Mas, por mais que o homem construa e se fundamente, ele é apenas um sopro que o mundo produz e logo se desfaz. Não há alternativa para o homem, não há escolha, não há fuga, tudo o que pode fazer é marchar para o seu sepulcro.

O homem é aquele que não possui um lar, pois não há abrigo nesta terra. O homem é como vento que sopra para logo se desfazer. O lar do homem é apenas uma ilusão, pois tudo é assim como o vento que logo se desfaz pela irredutibilidade do tempo, como nos diz os versos de Abnj Al-‘atƗhya:

Vejo-te,e és buscado desde o princípio Como o sonho do sono, a sombra da nuvem Ou o ontem que fugidio partiu E não retorna, pois é o brilho da miragem. (tradução nossa)

Não há muito que se dizer do mundo, que com todos seus encantos é apenas uma ilusão, apenas “o brilho de uma miragem”, e o abrigo que oferece é apenas “ a sombra de uma nuvem”. Compreendendo os versos de Abnj Al-‘atƗhya podemos mais uma vez escutar os versos cifrados de Ibn Munqidh e perceber o seu sentido oculto sob um prelúdio amoroso: Tu não és o primeiro cujo lar está distante Então por que este fogo no coração? Esquecer, morrer, Não haverá uma terceira escolha. (tradução nossa)

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“Não haverá uma terceira escolha”, diz o cavaleiro. A percepção daquilo que é, do modo como se dá o mundo, oferece apenas duas escolhas, que são, na verdade, nenhuma: esquecer ou morrer.

A amada que o cavaleiro errante busca é apenas uma ilusão, pois assim como as noites se sucedem aos dias rapidamente, ao encontro sucederá o desencontro. Se o deserto traz os vestígios da amada, também os faz desaparecer. O mundo é ilusório assim como o amor:

Teu foi um dia, não esperes por mais. Assim como a noite e o dia, ninguém se encontra por muito. (tradução nossa)

Ilusório, pois a medida de todas as coisas reside na transitoriedade. Nada se sustenta, nada se equilibra, o tempo corrói as bases de qualquer existência e nada pode esperar o homem além da máxima duração que qualquer coisa pode ter: o instante. Por isso surge a dor, a dor é o anseio pela permanência do instante.

Então aqui estás, um gesto de adeus: Estas são as liteiras carregando teu amor, o lar vazio. Contenha tuas lágrimas, pois assim como elas vertem, Elas te esquecerão, quando a separação verdadeiramente vier. (tradução nossa)

O gesto de adeus é assim o único gesto possível na contemplação. Pois sempre o que há para ser visto na contemplação é a liteira partindo e o lar vazio. Contemplar é

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contemplar o fluir do Tempo e assim surge a vontade pela busca, pela busca da amada, a busca pelo permanente em meio as areias do deserto que ora ocultam, ora desocultam os vestígios do passado.

Com a consciência da dor, com a observação da transitoriedade, o poeta diz: há apenas duas escolhas: esquecer, morrer. Ou o homem esquece sua busca pela amada, que é uma busca sem resultados, pois as lágrimas se não contidas, nunca deixarão de verter. Ou a segunda opção: a morte. Sabemos pela tradição hindu que a morte são duas, a morte física e a vida mendicante, a vida do asceta. E as lágrimas só poderão esquecer aquele que as verte quando a verdadeira separação vier, a morte.

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TEMPO É CRONOS, PAI CRONOS, SENHOR DO TEMPO (Uma leitura hebraica de uma sentença helênica)

Seria possível dizer o que é Tempo? Seria possível dizer do Tempo? O que é o Tempo? Algo que não percebemos, algo que não podemos dizer, eis o Tempo, mas dizemos, eis sua ação, eis sua força. Tempo não é duração, assim como o Tempo não é a medida do tempo. A sucessão de horas, dias e noites não constitui o Tempo, assim como o percurso do Sol sobre a Terra não é apenas duração. Seria possível dizer do Tempo, do Tempo como Cronos, Pai Cronos, sem dizer o mito, sem percebê-lo na roda zodiacal?

De que maneira se pode dizer do Tempo, no percurso do mito? Diz Platão em seu Timeu (37d): O Tempo é “a imagem móvel da eternidade”. De que maneira, na medida do mito podemos pensar deste Tempo? Em nosso percurso, em uma imperceptível herança, percebemos facilmente que nesta citação há o apontar de duas instâncias temporais: a primeira, humana e regida por uma duração, ou seja, móvel. A outra instância, divina e imóvel, ou seja, eterna. Mais que um pensamento sobre o Tempo, uma asserção sobre Deus e o transcendental. Mas poderia isto dizer do mito, no discurso do mito?

A imagem móvel da eternidade, isto é o Tempo. Isto é Cronos. O que é a imagem móvel e o que é eternidade? Qual a medida, qual a identidade e qual a diferença

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entre o caminhar dos homens e o caminhar dos deuses?

O que é a duração e a

eternidade enquanto mito, em um percurso mítico?

No mito, na palavra, nada é eterno. O que há é permanência. A permanência enquanto memória em curso. Cronos é o pai, provedor do mito e da palavra, o eterno progenitor e devorador. Eterno, pois é no seu ser que se dá todo o sendo dos homens e dos deuses. Cronos, um deus ciumento, pai de Zeus, todo justo. Tempo é Cronos, Pai Cronos, que, doando, retira; concebendo, devora; possibilitando, extingue. Este é o ser do Tempo, senhor de todo sendo, de toda senda. Pois a imagem móvel da eternidade é o Tempo. No Tempo vemos, em movimento, a eterna duração. Imagem da imóvel eternidade.

Cronos é assim como KƗla, o tempo hindu, KƗla que é Yama, senhor dos mortos, senhor da roda do mundo, girando e girando, sempre na iminência de devorá-la. Ser Tempo é girar e devorar.

Se Yama é apresentado como senhor da roda do mundo, a roda das realizações, projeções e anseios do homem, Cronos é o senhor da roda do Zodíaco. Vemos em diversas representações antigas a figura de Cronos que gira, como em um dever constante, o círculo zodiacal, em seus doze símbolos. A completude do sistema duodecimal refletindo a eternidade móvel do Tempo em doze entidades, doze divindades, doze manifestações que formam, em sua duração, o ano, o ciclo completo, a eternidade móvel.

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Cronos é a possibilidade cósmica primeira. Em Cronos reside a ordem e a justiça primeira, a lei primeira da duração, sucessão e destruição. Ao instaurar a primeira justiça, a primeira lei, instaura a medida dos seres, o princípio, toda possibilidade e impossibilidade. Ao pôr em movimento a roda do zodíaco, coloca em movimento o jogo de potências criadoras e destruidoras no cosmo. Ao criar e devorar seus filhos impõe-se como o justo mantenedor, o rei vigoroso, o pai punidor, impõe-se como senhor das eras, senhor de toda duração. Ao ser deposto por Zeus, o filho tomando o lugar do pai, torna-se, ele próprio, o pai: Zeus é Cronos.

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O Senhor da Assembléia Divina

Ao tomar o lugar de seu pai, Zeus torna-se o grande senhor, pai de uma nova raça de homens, torna-se o legislador, senhor da nova assembléia divina. Quem é este Zeus Cronida, deus legislador, rei usurpador, senhor dos mortais e imortais? O que é o Tempo e o que é a Justiça na medida do mito? O que é a assembléia divina? Escutemos mais uma vez nos épicos homéricos sobre esta assembléia e do papel de Zeus como seu senhor:

A Aurora ergueu-se do leito de Títono para trazer Luz aos imortais e aos mortais. Os deuses tomaram Assento no conselho divino, presidido por Zeus Dos brados bravios, de penetrante poder. FalouLhes Atena, lembrada dos confins de Odisseu. Doiam-lhes as dores ardentes que o herói sofreu na Gruta da ninfa: “Zeus Pai e vós senhores celestes, Cessem doravante dos soberanos cetrados sensatez, Serenidade e compreensão, cessem cultores de Retos desígnios, reinem tirânicos reis, pratiquem Prepotências.” (Odisséia, V: 1 – 11)

Athena lança seu apelo à divina assembléia, clama por justiça, clama pela chegada de Odisseu à sua amada Ítaca. Athena clama pela justiça divina, pelos atos de Zeus, pois de Zeus provém tudo e toda possibilidade:

Zeus, Senhor do Olimpo, retribui a bons e maus, conforme sua soberana vontade. (Odisséia, VI: 188 – 189)

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A Zeus pertencem os destinos dos homens, à sua vontade sucumbem guerreiros, à sua vontade rainhas tornam-se escravas, à sua vontade cantam e dançam os mortais, pois de Zeus provém tudo:

Culpado é Zeus, é ele quem determina a seu bel-prazer o destino dos homens. (Odisséia, I: 349 – 350)

Zeus observa os homens e seus atos, Zeus é a Justiça, sem clemência e inquebrantável, pura força e pura potência, regendo os atos e suas conseqüências:

De fato, Zeus enxerga longe, castiga impiedoso. (Odisséia, XI: 435)

Sendo pura força e pura potência em desmedida justiça, o que seria opor-se a Zeus? O que seria tentar fugir dos domínios de Zeus? O que seria buscar o trono de Zeus? Que é Zeus senão toda possibilidade, toda ação e toda palavra?

É desastroso opor-se a Zeus. (Ilíada, I: 589)

Este Zeus é um deus, que talvez pela nossa tradição que nos impulsiona a percebê-lo assim, que muito nos lembrará o deus zeloso do Antigo Testamento, o deus que usurpador o trono de Elohim ( também chamado El – “Deus” - , Elyon ϯϲ 

“Altíssimo” - ou El Elyon - “Deus Altíssimo”), o antigo deus pai, o deus criador da Genesis. Este novo deus, cujo nome não pode ser pronunciado, YHWH, é um jovem deus guerreiro, que depõe o antigo senhor, um rei idoso, impotente diante da assembléia dos seres divinos. YHWH escutará o clamor daqueles que anseiam pela reinstauração da justiça, comum nos antigos tempos patriarcais, a era dos homens de ouro:

1 Deus (Elohim) levantou-se na assembléia divina (de El), no meio dos deuses (Elohim), Ele abre o julgamento: 2 “Até quando dareis sentenças injustas, favorecendo os ímpios? 3 Sede juízes para o fraco e o órfão, fazei justiça ao necessitado e indigente; 4 Libertai o fraco e o pobre, livrai-os da mão dos ímpios! 5 Eles não sabem, nem percebem que caminham nas trevas e que todos os fundamentos da terra estão destruídos. 6 Sois deuses, sois todos filhos do altíssimo (Elyon). 7 No entanto, como seres humanos, morrereis, e como qualquer dos príncipes caireis.” 8 Levanta-te ó Deus! Sê o juiz da terra, pois a ti pertencem todas as nações!” (Salmo 82)

Assim como Zeus, YHWH é o jovem guerreiro, que, provindo de uma distante montanha, rejuvenescerá a terra, trazendo uma nova era de justiça e sensatez aos homens, aos homens pertencentes à sua aliança:

Disse [Moisés]: “YHWH veio do monte Sinai, E se levantou para eles de Seir. Resplandeceu no monte Farã E chegou a Meriba de Cades, Com centelhas de fogo em sua mão direita” (Deut. 33:2)

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Ao colocar-se como o novo regente, torna-se o provedor da terra, senhor das tempestades, senhor dos raios, o cavalgador das nuvens. Torna-se senhor da Terra:

3 [YHWH ] fixa as vigas de sua morada acima das águas; Das nuvens faz sua carruagem, Anda sobre as asas do vento 4 dos ventos faz seus mensageiros E do fogo flamejante seus ministros ... 13 É ele que de sua morada rega as montanhas, E a terra se sacia do fruto de tuas obras (Salmo 104)

Ao domar a terra, as forças titânicas e caóticas oceânicas, torna-se também o senhor da sabedoria. Seu é o único caminho. Pois tudo, se não for pela sua vontade, tombará. Poder, possibilidade, destino e necessidade são sua vontade, sua própria mão imperativa movendo o mundo. Assim como a inevitabilidade, a correta retribuição, as fúrias e a pestilência são sua ação sobre o mundo. A vitória, a justiça, a sabedoria são sua régia sombra recaindo sobre os homens. Consolidando seu poder na assembléia divina, vai absorvendo em seu próprio ser todas as manifestações do mundo. Absorve os seres divinos, deuses, potestades, heróis, semi-deuses e titãs, todos tornam-se apenas manifestações de seu próprio ser único:

Derrubareis os altares, quebrareis as colunas sagradas e cortareis os bosques sagrados. Porque não deverás adorar nenhum outro deus, pois o Senhor se chama Zeloso: ele é um Deus Zeloso. (Êxodo, 34: 10 - 14)

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YWHW converge para si todo o culto, toda a vontade dos homens, toda memória humana. Este é deus um zeloso, um deus ciumento, um deus que conferiu ao esquecimento a memória mítica das antigas divindades. Ao invocar o total esquecimento sobre os homens, fez o mito sucumbir, pois só vivem os deuses que são lembrados pelos homens:

Os deuses não perdoam, querem ser lembrados sempre. (Odisséia, IV: 353- 354)

Toda possibilidade do mito enquanto mito reside unicamente na força da memória. Enquanto lembrados, deuses são deuses, heróis são heróis. Mas, quando esquecidos, tornam-se escrita, literatura, história, objeto de estudo, ou seja, sucumbiram ao poder da monolatria de YHWH. Quando o mito é abandonado pela memória, haverá apenas uma razão, o uno, transcendental e inefável. O mito deixa de ser palavra, e a palavra se torna Logos:

Lembra-te dos tempos antigos, Considera os anos de cada geração! Pergunta a teu pai e ele te ensinará, A teus avós e eles te dirão. Quando o altíssimo (Elyon) distribuiu A herança entre as nações, Quando espalhou o gênero humano, Fixou os limites dos povos Segundo o número dos filhos de Deus. Pois, a propriedade de YHWH é o seu povo. (Deut. 32: 7 – 9)

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No entanto, mesmo neste percurso de instauração do poder único na assembléia divina, mesmo ao ensinar seu clamor monoteístico, este novo senhor ainda se lembra das demais divindades, ele sabe que há outros poderes imperando sobre o mundo:

Não terás outro deus além de mim. (O primeiro mandamento, Êxodo 20: 3) Ouça, oh Israel! YWHW é seu deus, o único deus! (A Shema, Deut. 6: 4)

A caminhada monoteística, mesmo em sua jornada de aniquilação da memória divina, conserva ainda de alguma forma a memória dos antigos deuses ou a memória de que em algum tempo houve os antigos deuses. Ao dizer: “este é teu deus” ou “qual o teu deus”, este deus ainda não se tornou efetivamente a razão suprema, ele reconhece a pluralidade de divindades, a verdade configura-se como adequação a um valor, em uma terra de múltiplos valores. Mas, ao dizer: “Zeus é o princípio, Zeus o meio, de Zeus emana tudo” (Ésquilo, frag. 70), tudo se tornar a manifestação de uma única razão, possivelmente a mais verdadeira das asserções monoteísticas.

Qual a diferença entre o Zeus homérico e YHWH? Deuses guerreiros, deuses estrangeiros, deuses do porvir, deuses usurpadores, o deus entronizado, senhor da justiça, senhor das ações. Senhor da Tempestade.

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INTERLÚDIO: HEIDEGGER E OS GREGOS PARTE I

O título deste texto pode ser transformado em uma pergunta. Seu teor seria: como apresenta Heidegger, no horizonte de sua filosofia, a filosofia dos gregos? Podemos responder a esta questão considerando a filosofia de Heidegger de um ponto de vista contemporâneo, historiograficamente, analisando assim a situação em que Heidegger, por sua vez, representa a filosofia grega historiograficamente. De tal procedimento resulta uma análise sobre conexões históricas. Tal projeto tem suas próprias justificativas e suas vantagens.

Outra coisa, entretanto, está aqui em jogo. Ao dizermos “os gregos” pensamos no começo da filosofia, e ao nome “Heidegger” associamos sua consumação.

Retirando e retraindo-se da possibilidade de qualquer jogo de palavras ou argumentos arbitrariamente filológicos, a relação “Heidegger e o pensamento grego” permanece impensada. Retirando-se e retraindo das possibilidades de um texto truncado e construído na troca de referentes e de verbos substantivados, a questão “Heidegger e o pensamento grego” permanece impensada.

Ao pensarmos a filosofia grega à luz do pensamento heideggeriano destituímos as possibilidades que possam ser sugeridas pelos fragmentos de um passado dito préfilosófico. Se munido de sua lança penetradora onde o pensador fincará o surgimento da filosofia? Em Tales, em Heráclito, Platão, Aristóteles, nos neo-platônicos? Onde o

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pensador detectará sua fragrância favorita, num passado edêmico ou numa Atenas vigorosa em sabedoria e em conceitos?

Será a tarefa do pensador diferente do empenho do profeta? O profeta não seria aquele que vê além do mero aparente? O profeta não seria aquele que conduz o homem para a verdade que lhe foi outorgada? Com muito desdém insultam: “o mítico profeta dos persas”, mas a sombra dos bustos da filosofia ocidental é rocha aos gloriosos jardins. A origem do pensamento não está em sua origem. E a aproximação de contrários não é suficiente para superar a tentativa de superação.

Como superar um pensamento? A mais tola tentativa seria com certeza alcunhálo de abstrato demais ou de concreto demais, chamá-lo nazista ou sionista, hermético ou minimalista. Com certeza este sabor não cabe a certos paladares. Podemos contrapô-lo a um novo sistema, mais uns adjetivos, menos outros adjetivos, e ainda assim não seria superada a tentativa de superação.

O diálogo do pensamento é sempre um duelo. Um desafiante põe-se à frente de seu inimigo. Este poderá insultá-lo, poderá demonstrar a complexidade de sua técnica, mas o vencedor será aquele que, percebendo o erro do adversário, decepa-lhe um membro, largando-o ao chão e aos cuidados de seus seguidores mais fiéis.

Contemplar o todo e tentar construir um sistema a partir de seus movimentos, eis o verdadeiro encantamento. Mas detectar a falha e nesta falha fulminar o inimigo num único e potente golpe, talvez seja esta a única possibilidade de vitória. Este erro não

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poderá ser apenas um mal emprego do sistema, uma inaptidão momentânea, mas a própria fraqueza da técnica.

Musashi lutava com apenas um galho de árvore. Com apenas um galho poderia derrotar qualquer espadachim. Apenas conhecendo o caminho da espada pode-se abandonar a espada, tornando-se assim o grande guerreiro.

Um discípulo tem sempre um mestre. O erro de um discípulo é sempre o erro de seu próprio mestre. O mestre é discípulo e o discípulo é também o mestre. O mestre não é mestre, mas sim, seus ensinamentos, e seus ensinamentos não são seus ensinamentos, mas sim seu aprendizado. Na infinita rede de mestres e discípulos, o discípulo torna-se sempre seu mestre.

Mas neste caminho o que diria a questão “Heidegger e os gregos”, de que forma perguntam os gregos de Heidegger e de que forma esta pergunta acena para a questão não pensada da superação da tentativa de superação?

Uma única coleção de umas poucas dezenas de frases e dois pensadores em lados opostos reservam para si o entendimento destas obscuras citações. Hegel diz: “Não há proposição alguma de Heráclito que eu não tenha incluído em minha lógica”. Enquanto Heidegger dirá: “No horizonte do idealismo especulativo, a filosofia dos gregos permanece no “ainda não” da plenitude”.

Retirando e retraindo-se das possibilidades, Heráclito ainda permanece como a bebida que oferece o sabor que aquele que bebe deseja degustar. Aparentemente.

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Se há um sentido que ainda possa ser pensado, se há ainda qualquer inferência a ser feita, pois retirando e retraindo-se das possibilidades, confiar no que apontam as palavras é acreditar que é possível ainda um texto apontar o mesmo em diferentes eras, em diferentes línguas e em diferentes tempos.

A Heráclito fora outorgado o primeiro lugar no trono dos filósofos a leste do Bósforo. Se todos são devedores de seu livrinho dedicado à Ártemis, não seria inútil pensar algo além dos restos que nos cabem de sua oferenda? E alguém sobre esta Terra ainda saberá o grego de Heráclito?

Sopram os ventos sobre os restos de Persépolis, e nem o discípulo do grande mestre, e nem a dinastia de Damasco hesitou em lançar seus archotes ou a tinta ao Eufrates do grande passado condenado. E será que este passado, para alguns tão distante, para outros tão próximo, não fora já condenado pelos próprios persas? Se uma espada é capaz de construir o maior dos impérios, a palavra é capaz de destruir a mais completa das bibliotecas.

Retirando e retraindo-se do encantamento que provoca a aproximação dos contrários, restará algo do pensamento do príncipe dos pensadores? Retiram-se e isolam-se os fragmentos mais profundos, e aqueles mais tolos? Que dirá o mais tolo dos fragmentos sobre a mais sublime das assertivas?

Diz Heráclito, através de Heidegger ou de seus discípulos: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio concordar que tudo é um.” Se mil traduções fizerem, mil

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traduções haverá. Uma tradução não é uma tradução. Uma tradução é uma reinvindicação, e, assim, outros dirão: o logos é apenas o dizer, o logos é a doutrina do logos, e mais e mais, quanto mais falarem, mais logos haverá para se distinguir. Porém o que há no fragmento é: “tudo é um”. Tudo e um reduzem e ampliam todas as possibilidades

de

aproximação

de

opostos,

compreendendo

a

impossível

indissolubilidade de toda a unidade em um único e genérico um. Enquanto o tudo resume toda impossível universalidade e reunião de toda particularidade e especificidade em um único um, que compreende todo um, o todo.

Se em uma única frase está exposta toda e a única possibilidade dialética, todas as demais tornam-se tolas, pois, percebendo a aproximação dos opostos, se perceberá o jogo em que se constitui a articulação do pensamento dito ocidental. Se não dissermos “tudo é um”, toda aproximação de oposto será apenas uma construção de troca de referentes ou a ocultação destes.

Se Heidegger diz em certo momento de seu seminário: “ e os homens morrem a vida dos deuses”, vários ouvintes que antes se recusavam a aceitar as estranhas palavras do pensador, agora emitirão um extenso suspiro, “quão bela são as palavras do filósofo, e quão sábio e obscuro é seu sentido”. O jogo com os referentes é realmente impressionante e mais impressionante ainda se percebemos que toda a poesia e pensamento do ocidente são sublimes na medida em que manipulam este jogo. O filho que é o pai, o Deus que é o homem, e o homem que é o Deus. Consertaríamos facilmente a sábia frase de Heidegger, reorganizando sua estrutura, retomando a posição do verbo que fora substantivado: “os homens morrem e os deuses vivem”. O mistério se

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desfez, na simples reorganização de uma frase, como se faz na redação das crianças ou nas monografias dos estudantes universitários.

Diz-se que a fama de Buddha espalhou-se de tal maneira pela Índia que até mesmo os deuses sentavam-se em torno de sua assembléia para escutar os ensinamentos do desperto. Ao fim de seu discurso, os deuses retornavam a sua morada e então Kashyapa perguntava: “Será, Tathagata, que os deuses compreenderam suas palavras?” E Buddha, após uma gargalhada, respondia: “Nunca, Kashyapa, compreenderão”. E assim são os sábios, que riem daqueles que escutam suas palavras, pois o discurso não está na palavra, mas sim na não palavra.

O discurso é um mero sabor, e deste sabor sentiremos o gosto que melhor nos aprouver. Se eliminam de uma listagem de pré-socráticos Pitágoras, se movimentam o tetha de “o Deus”, para formar “o mistério” no fragmento 67 de Heráclito, qual a dose e qual a medida da verdade, se a verdade é isto que se atribui aos filósofos? Se há uma aparente arbitrariedade, o que se oculta nas decisões do pensador?

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CONHECIMENTO

‘Nam sub axe legimus Hecubam reginam’

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Imagem 2: O sacrifício do Touro primordial por Angra Manyu

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O SENTIDO DO SAGRADO NO LABIRINTO DE CRETA

Quando, no final do século XIX, Arthur Evans iniciou suas escavações na Ilha de Creta, no sítio de Cnossos, revelou aos homens modernos uma civilização até então desconhecida. O famoso arqueólogo, em seus trabalhos acadêmicos, tentou de diversas maneiras resgatar, nas peças que desvelara, o fundamento mítico que não pôde ser desencavado, pois a escrita minóica legara-lhe apenas cifras e registros comerciais. Aquelas misteriosas e únicas peças, que a todo instante traziam à presença da memória os mitos helênicos, em sua mudez faziam mais misterioso e profundo aquilo que se acreditava serem apenas histórias pitorescas de um povo rudimentar. A descoberta das inúmeras cabeças de touro, dos inúmeros machados duplos e das estátuas representando a deusa das serpentes, fazia ecoar, a todo instante que uma nova peça era desencavada, a questão: que é o Minotauro? Que é Ariadne? Estes mitos não seriam apenas lendas em que os antigos gregos acreditavam como afirmara George Grote, autor dos doze volumes de “History of the Greece”. Mas peças, descobertas por Evans e sua equipe, desvelaram novamente a questão do que é o sagrado e o que é o pensamento mítico.

Tentaremos a seguir, através de diferentes fontes literárias, resgatar o sentido sagrado para os gregos dos eventos míticos que se sucederam na Ilha de Creta. Para iniciar nosso caminho ouçamos, portanto, mais uma vez a história, legada a nós, do Minotauro, de Ariadne e de Teseu.

O rei de Creta, Asterion, morrera e não deixara herdeiros. Minos, seu filho adotivo, clama então o direito na sucessão do trono, dizendo que ele fôra o eleito dos

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deuses e que qualquer coisa que pedisse lhe confiariam. Posídon envia-lhe então um touro das profundezas do Oceano para que fosse sacrificado por Minos. No entanto, o animal era de maravilhoso porte e de tão rara beleza que Minos hesita em matá-lo, sacrificando outro no lugar. Minos conquista, com este artifício, o trono da Ilha de Creta, porém, a hesitação em sacrificar o touro acende a cólera de Posídon. O Deus Oceânico faz do touro um animal selvagem e furioso que devasta os campos de Creta. Afrodite, em algumas fontes devido a um ressentimento, em outras, a pedido de Posídon, faz com que a esposa de Minos, Pasífae desenvolva uma incontrolável luxúria pelo esplêndido animal.

A rainha de Creta pede então, em segredo, ao arquiteto de Minos, Dédalo, para que ele lhe construa uma vaca de madeira oca por dentro. Assim adentrando no falso animal, enganaria o Touro de Creta, satisfazendo sua própria luxúria. Do fruto desta cópula nasce um ser, metade homem, metade touro, chamado Asterion, mas conhecido como o Minotauro. Minos, por instrução oracular, pede a Dédalo para que seja construído o Labirinto e lá ele encerra o terrível monstro.

Minos teve diversos filhos com Pasífae, e um destes filhos, Androgeos é morto numa emboscada na cidade de Atenas, durante os jogos das Panatenéias. Ao saber da morte de filho, Minos com sua frota invencível - ele era conhecido como o senhor dos mares - e com a ajuda de seu divino pai, Zeus, ataca e quase conquista Atenas. Os atenienses consultam o Oráculo para saber como poderiam saciar a fúria de Minos e das pragas enviadas por Zeus. O Oráculo diz que os atenienses deviam aceitar a penalidade que Minos desejar. O rei, então, impõe o tributo que em certo período de tempo sejam

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enviados sete moças e sete rapazes virgens para o labirinto de Creta, para serem devorados pelo Minotauro.

O jovem Teseu, filho de Aegeus, rei de Atenas, retorna à sua cidade e fica sabendo do tributo que era prestado a Creta. Oferece-se então como um dos jovens a serem sacrificados. Ariadne, filha de Minos, pergunta a Dédalo como o Labirinto poderia ser vencido, esta construção era de tal maneira que aqueles que a adentrassem não poderiam sair, pois não encontravam a saída. O hábil arquiteto oferece-lhe então uma meada que ao ser desfeita indicaria àquele que entrasse, o caminho para a saída do Labirinto.

Ariadne enamorada por Teseu, lhe confia o segredo do Labirinto. O herói adentra assim os domínios do Minotauro e mata o monstro, libertando os atenienses do nefasto tributo. Foge com Ariadne de volta para Atenas, prometendo-lhe seu amor, no entanto, a meio caminho, na Ilha de Naxos, abandona a princesa durante seu sono e parte para o encontro de seu pai. Dioniso, que passava pelo loca,l encontra-se com Ariadne e faz dela sua esposa.

Posteriormente, a captura do Touro de Creta será um dos Doze Trabalhos de Héracles, que também hesita em sacrificá-lo, soltando-o nas imediações de Maratona. O feito do sacrifício do animal, agora chamado de Touro de Maratona, é apenas alcançado por Teseu.

Apesar do encanto que proporciona a audição destas histórias, nunca as ouviremos assim como um grego as ouvii. Todo seu ritual e seu sentido sagrado já

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foram perdidos no momento em que foram escritas. Algumas das principais fontes destes mitos são já bem tardias, são tentativas de racionalização do mito por mitógrafos helênicos, como a Biblioteca de Apolodoro, ou de historiadores já do período romano, como Plutarco, por exemplo. Muitos eventos e diferentes versões foram unificados e adaptados por estes estudiosos para melhor agradar o apetite de homens científicos e racionais. Ou seja, diferentemente das fontes celtas e germânicas que são, em sua maioria, compilações feitas por monges da obra dos bardos. Estas compilações pouco ou nenhuma influência cristã ou científica sofreram, sendo mais um apanhado de histórias pitorescas de um passado pagão. Já as compilações dos mitos gregos foram uma revisão de um passado mítico que não mais atendia às necessidades de um novo pensamento científico.

Tentaremos, contudo, resgatar o sentido sagrado dos eventos envolvendo o mito do Minotauro, principalmente no que concerne a dois importantes eventos: a katábasis e a tauroctonia.

A katábasis, do grego, “ida para baixo”, é o movimento dentro das narrativas mitológicas de descida às zonas ínferas, seu mais famoso exemplo é a descida de Orfeu em busca de sua amada Eurídice. Nos afastaremos, no entanto, das comparações com os mistérios órficos.

A descida às zonas ínferas é uma epifania recorrente nas religiões originárias, seja na conquista de Nifelheim por Sigurd ou na conquista do Santo Graal por Percival. O conhecimento do outro mundo, seus portais, seus mistérios e perigos, era para os antigos o mais valioso dos conhecimentos, pois era o conhecimento da morada dos

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deuses. Nas religiões originárias estes não habitavam os céus, mas sim as profundezas do mundo. O deus Sol, o deus primeiro, não é aquele que está fincado nas alturas como pensamos, mas sim aquele que nasce das profundezas do oceano, atravessa a abóbada celeste para depois retornar à sua morada, as profundezas. Portanto, mesmo em uma tradição em que os deuses habitam as alturas do Monte Olimpo, ainda persiste a memória das profundezas sagradas.

A katábasis constitui-se, no mito que analisamos, pela invasão dos territórios do Minotauro. O Labirinto é o Outro Mundo, ou como chamam os galeses, o Annwn. O monstro que o habita é o rei deste mundo, o Zeus Ínfero. Portanto, a conquista do Labirinto fará de Teseu o maior dos heróis, e lhe garantirá a mão da rainha do submundo, Ariadne.

O percurso de Sigurd, o grande herói germânico, é exatamente o mesmo de Teseu. O jovem guerreiro, imbuído de sua grandiosidade, desce à Nifelheim, mata o dragão Fafnir, conquista seu tesouro e se torna rei dos anões. É agraciado com a mão de Brünhild, a Valquíria, a preferida de Ódin, para posteriormente rejeitá-la, assim como Teseu rejeita Ariadne.

A entrada ao outro mundo é sempre feita pelos jovens e normalmente esta invasão acarretará em um insulto aos seus habitantes. Ao adentrar os domínios do Rei Pescador, Percival faz com que todo o reino de Logres se transforme na Terra Arrasada, a terra improdutiva onde tudo fenece. Apenas com a conquista do tesouro máximo, o Santo Graal, ele poderá fertilizá-la novamente. O conhecimento das zonas ínferas está sempre relacionado a um saber mágico de fertilidade, por isso são enviados moças e

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jovens virgens para o Labirinto, pois são eles os mais próximos aos rituais primevos de fertilização da terra.

Entre os símbolos que indicam a presença das forças ínferas, a serpente é provavelmente o ser mais intimamente ligado às profundezas, carregando consigo os princípios femininos de mistério, magia e fertilidade. Lembremos, assim, da deusa das serpentes cretense e do dragão (lingwurm) morto por Sigurd. Indra é aquele que, matando o dragão, vivifica a terra e a fertiliza. A serpente é também um dos símbolos de Shiva, o perfeito yogi, o deus do equilíbrio, da destruição e da criação. Aquela que submerge o jovem Krishna nos mistério de maya, fazendo-o aperceber-se de sua essência divina. O mesmo movimento é feito por Hades quando, viperiforme, abduz Perséfone fazendo-a aperceber-se de sua divindade como rainha do submundo.

O símbolo da serpente não está presente no rei do Labirinto, o Minotauro, ela, neste mito, é um dos atributos de Ariadne; a serpente é o fio de Ariadne. Possivelmente, em suas fontes mais antigas, o fio não apenas teria retirado Teseu do Labirinto, como também o teria levado à presença do Deus Touro. Para compreendermos a simbologia do fio, devemos levar em conta de, a corda é um dos princípios originários da magia. Lembremo-nos de Ódin, e de que o deus viking é o senhor dos enforcados, do anel dos Nibelungos, que faz o tesouro dos anões multiplicar-se, e do deus urânico do Rg-Veda, Varuna, senhor das amarras. A palavra em sânscrito para amarra, nó, é sina, que no vocabulário latino é a palavra para destino, a maya suprema.

Quem seria o touro, e qual o sentido sagrado da tauroctonia?

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O sacrifício do touro celestial é um episódio mítico recorrente em diversas mitologias. Possivelmente a religião da antiga Pérsia foi a que nos legou os motivos mais impressionantes da tauroctonia.

Curiosamente, não encontramos este episódio nos textos sagrados do Zoroastrismo, os Avestas, encontramo-lo já tardiamente na religião mitraica nas províncias e na capital do Império Romano. Nos hinos de Zaratustra quem assassina o touro celestial é o grande deus do sub-mundo. Os Gathas nos contam que Angra Mainyu mata o animal primordial, e as sementes da vida terrena provenientes de seu sangue são salvas por Mah, a Lua, Rainha da Noite, que as espalha, fecundando a terra.

Na tardia religião mitraica, o Yazata Mitra - o justo, o invencível, aquele que fora nascido da pedra, o avatar de Ahura-Mazda - nos primórdios do tempo vagava pela terra vivendo aventuras e desafios, até que o Sol envia seu arauto, o corvo, ordenando que Mitra capturasse o Touro Primaveral, o primeiro ser vivo criado por Ormazd, e o sacrificasse. Com muita dor e hesitação, Mitra realiza este terrível feito, captura o Touro, erguendo a cabeça do animal primordial pelas narinas e, resignado, encrava-lhe a espada, desviando seu olhar. E do sangue do sacrifício purificado por Mah a terra é fertilizada, nascendo assim os animais e as plantas. O desvelamento da representação da cena da tauroctonia de Mitra era o momento maior dos rituais da religião mitraica.

Nas fontes persas o sacrifício do Touro Primaveral é feito pelo deus das zonas ínferas e na religião mitraica, da qual existem insignificantes registros escritos, o sacrifício é feito pelo grande deus solar persa, intercessor dos homens, padroeiro da

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justiça e do equilíbrio. É estranha para nós a compreensão deste movimento. Seria isto estranho para um homem da Antigüidade?

Lembremos do Zurvanismo, ramo extinto do Zoroastrismo, que tinha como Zurvan, o princípio primordial e criador. Esta seita que foi introduzida no Império Persa, possivelmente, durante o período Aquemênida e oficializada durante a Dinastia Sassânida, baseia suas reflexões do trigésimo Yasna dos Avestas, canto este pertencente ao conjunto de hinos que teriam sido compostos pelo próprio profeta:

2. Ouvi ao mais nobre dos ensinamentos Com o ouvido atento Discriminai com a luz de vossa mente Entre as gêmeas mentalidades Homem por homem, Despertai, para proclamar esta verdade Antes que o final dos dias vos arrebate. 3. No princípio Estas duas mentalidades, os gêmeos, revelaram-se, Em eterno conflito como o melhor e o pior Em pensamento, palavra e ação. O sábio e o generoso escolhem corretamente. (tradução nossa) Segundo a interpretação dos Magi, este canto diria que Ahura-Mazda, o Zeus persa, e Angra Mainyu, Hades, seriam duas entidades que co-existem harmonicamente durante toda existência, criados pelo princípio universal. No pensamento zurvanista, o grande deus celestial e o deus ínfero teriam a mesma essência, seriam gêmeos, não havendo, portanto, uma dualidade entre a esfera celestial e a ínfera, pois seriam a mesma, conjugadas no princípio universal do equilíbrio.

O deus ínfero e o deus celestial são o mesmo. Por isso Mitra é aquele que mata o touro, pois ele é o avatar de Mazda, ele é parte do deus e é também, portanto, parte de Angra Mainyu, assim como na religião dos gregos podemos ver que Zeus, Hades e ϱϲ 

Dioniso são o mesmo, cada um ocupando uma das três esferas que compõem o mundo. E nas religiões cristãs verificamos o mesmo princípio, mesmo que insistentemente velado. Deus, Cristo e Lúcifer são o mesmo. Deus é o antigo deus urânico, o criador, que, assim como Vishnu, após criar o mundo recolhe-se em seu sono divino, enviando apenas em momentos extremos um de seus avatares para a terra. Seu avatar é Cristo, que assim como Krishna, traz o conhecimento derradeiro e divino aos homens. Lúcifer é o antigo princípio solar, que nasce das profundezas, atinge o ápice da abóbada celeste para novamente mergulhar nos infernos. Se Deus é aquele que traz a si Seus seguidores, Lúcifer é aquele que pune Seus perpetradores. Basta lembrarmo-nos da Divina Comédia, e veremos que Lúcifer mastiga eternamente a alma de Judas, ele não o faz um de seus asseclas, pois o Demônio e Deus são um e o mesmo. O deus germânico Ódin foi um deus que conseguiu conservar sob um único atributo as três características; a celestial, a terrena e a ínfera.

O touro é, portanto, o princípio divino da fertilidade e o seu sacrifício é o sacrifício do próprio deus, que derrama seu sangue sobre a terra agraciando, assim, todos os seres terrenos, as plantas, os animais e o homem, com a força divina do florescimento.

Percebemos assim o sentido sagrado da katábasis e da tauroctonia no mito do Labirinto de Creta. Pensemos, então, os personagens nele envolvidos.

Quem é Minos, o grande rei da Ilha de Creta? Sua figura está de diversas maneiras associada à imagem do touro. Seu pai é Zeus, que o concebera quando,

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metamorfoseado em touro, raptara Europa, levando-a para Creta e lá copulara com ela. Minos é, portanto filho do touro, e sua esposa Pasífae, fôra aquela que, em sua luxuria, entregou-se ao touro vindo das profundezas.

Após a morte, Minos e seus irmãos, Rhadamanthys e Aiakos, foram agraciados por Zeus como juízes dos mortos. Esta posição foi-lhes confiada em recompensa pela primeira constituição feita sobre a terra pelos três sábios irmãos.

Pasífae, cujo nome significa “brilhante pra todos”, é a esposa de Minos e mãe do Minotauro. É uma das filhas do grande deus Sol, Hélios, e, assim como sua sobrinha Medeia, conhece os artifícios da feitiçaria. Já que Cinaethon, em sua genealogia, identifica o gigante de bronze, Talos, como o antigo deus sol cretense, Pasífae seria filha do protetor de Creta. Sua união com o touro cretense repete mais uma vez o tema do casal primordial, Terra e Céu, que, em sua luxúria incessante, cria as forças primaverais do cosmos. Possivelmente o animal enviado por Posídon à Ilha de Creta seria nas fontes mais antigas o próprio Rei Minos, tauriforme, pois eis que seu filho e seu pai de criação têm o mesmo nome, e, sobretudo, por ele ser o filho de Zeus metamorfoseado em touro. Minos é o juiz do sub-mundo e seu filho, o Minotauro, o rei deste mundo. Este princípio do pai e filho, reis do inferno, repete-se também no ramo mitológico do Mabinogion, Pwyll, rei de Annwn, e seu filho Pryderi, são vítimas de um ardil, traídos pelos guerreiros de Math. Pryderi, na tentativa de resgatar a honra de seu pai, é morto pelo guerreiro Gwydion em um combate singular que decidiria a vitória da disputa entre o Annwn e o reino de Gwynedd.

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Talvez a demanda de Teseu não teria sido simplesmente a destruição do monstro devorador de jovens que habitava o labirinto, mas, na verdade, a conquista do submundo, pois matara o seu rei e casara com sua irmã. A conquista do mundo ínfero é a maior aventura, a aventura que provaria o valor do rei ou do guerreiro que a completasse. Arthur e seus cavaleiros conquistaram e refertilizaram o reino do Annwn roubando o maior de seus tesouros, o Graal. Sigurd conquistou Nifelheim e seu tesouro, recebendo assim a mão da preferida de Ódin. Gilgamesh, quando já havia conquistado tudo que poderia conquistar, quando já havia se aventurado em todos os perigos, parte junto com Enkidu para a Floresta do Líbano, matando seu guardião Humbaba e conquistando seu grande tesouro, o Cedro Libanês, a melhor e a mais bela das madeiras. Com esta conquista Gilgamesh cai em desgraça perante Enlil e, é, assim, amaldiçoado pelo grande deus.

E Ariadne, quem seria Ariadne? Ariadne foi a filha que traiu seu pai e seu irmão pelo amor de um estranho, para logo depois ser abandonada durante seu sono na Ilha de Naxos. O sono de Ariadne foi um motivo extensivamente celebrado pelos artífices gregos, pois o sono induzido por Hypnós, não só era a chance de Hermes, ou de Atenas, de impelir Teseu a partir sem Ariadne, como também indicava a aproximação de Dioniso, com o surgimento das vinhas.

Dioniso é o avatar de Zeus entre os homens, assim como Krishna é o avatar de Vishnu. O casamento e a apoteose de Ariadne simbolizam, não a deificação de uma mortal que caíra nas graças de um deus embriagado, mas sim, o resgate pelo deus ofendido de sua esposa raptada.

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A RODA DA VIDA

Pensar no conhecimento das filosofias de origem indiana é pensar a palavra Maya. Maya é o conceito fundamentador que inaugura tanto o vaishismo, o shaivismo, o yoga, o vedanta, o tantra, o budismo. Maya é normalmente traduzida para as línguas ocidentais como “ilusão”, algumas vezes até como “magia’. No entanto, esta palavra seria mais bem traduzida como “mundo”, pois se a mente ocidental recusa-se a dar esta concepção ao conceito, atenuando sua força, e aproximando-a do sistema platônico, as escolas filosóficas orientais vêem a Maya como o próprio mundo em si.

Dizem os antigos puranas que Yama e sua irmã Yamuna foram o primeiro casal humano criado por Vivaswat, o Sol. Certa vez, Yamuna implorou a seu irmão para que eles dormissem juntos, ansiosa por continuar a raça humana. Yama foi o primeiro homem e também o primeiro a morrer. Encontrou assim o caminho para o lugar sem retorno, tornando-se o rei da terra dos mortos. Desempenhando o papel de julgador dos passos dos homens, do justo retribuidor, o correto legislador. É Yama quem vigia a Roda do Mundo, o conjunto de realizações e irrealizações do homem. Ele é o Pitri-Pati, Senhor dos Mortos, Preta-Raja, Rei dos Fantasmas Famintos, Kâla, o Tempo, e Dharma-Raja, Rei do Dharma. O Atharva-Veda diz: Kâla é o senhor, a fonte e o regente de todas as coisas, é ele quem movimenta o mundo e o contém. Sendo seu pai, ele é também seu filho. Não há outro poder superior a ele.

O homem levado pelo poder de Maya gira em um ciclo incessante de realizações e não realizações. Acreditando sempre no amanhã, nas possibilidades não realizadas, é

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arremessado sempre para o mesmo dia, o único dia que vive em sua vida, o hoje, pois o amanhã é a projeção do hoje e o ontem é a memória do hoje. Iludido pelas realizações e seus méritos o homem não percebe este movimento da Maya, e, levado pelas volições e pelos sentimentos, não consegue libertar-se deste ciclo que é a origem do sofrimento. Todos os seres que habitam o mundo estão envoltos e encantados pela Maya, desde os animais até os deuses.

A escola hindu ortodoxa por excelência é o vaishismo, que coloca Vishnu como a cabeça divina, a entidade superior, sendo todas as demais entidades emanações de seu próprio ser. Vishnu dorme seu sono inabalável no fundo do oceano, deitando-se e sendo protegido pela serpente Shesha, de mil cabeças. Tem seu pé massageado por sua consorte, sua shakti, Lakshmi.

De seu umbigo nasceu Brahma, o criador demiurgo. E juntamente com Shiva, o deus furioso, o destruidor do mundo, Vishnu faz parte da tríade superior, que, em verdade, são emanações de uma única entidade. Se Brahma é o criador, Shiva o destruidor, Vishnu é o mantenedor do mundo. Seu sono é interrompido apenas pelos pedidos dos deuses ou dos sábios, pois quando o mundo é abalado e o adharma se sobrepõe ao dharma é função de Narayan enviar ao mundo um avatar. Através de seus avatares, o dhármico é novamente implantado no mundo. O mais reverenciado de seus avatares é Krishna. As escolas vaishistas costumam não apenas reverenciar Krishna como avatar de Vishnu, como também, afirmar que Krishna é o próprio Deus, sendo Vishnu uma emanação sua. Krishna seria o próprio universo, seria o todo e o um. Todas as coisas, todos os seres e toda a realidade seriam parte de seu ser, imutável e absoluto. Krishna é Deus que vive com os homens, para brincar, se divertir na existência humana.

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Seus feitos e sua vida junto aos gopa, os camponeses, e seus amores com as gopi, são um dos temas mais retratados pelos poetas hindus e é a seção mais representada pictoricamente do Bhagavata Purana, o livro sagrado do vaishismo.

Diz o Bhavagata que certa vez as crianças acusaram o jovem Krishna de ter comido lama, Yashodá preocupada com seu bem estar, pegou-o pelas mãos e lhe disse:

"por que comeu lama, seu menino malcriado? Seus amiguinhos dizem que sim, assim como seu irmão mais velho." "Mãe, não comi lama. Eles estão fazendo falsas acusações. Se acha que estão falando a verdade veja você mesma dentro de minha boca". "Neste caso, abra bem a boca", ela disse. O senhor Krishna, cuja supremacia não pode ser reprimida, mas é Deus que assumiu a forma de um menino humano para brincar, abriu a boca. Yashodá viu ali o universo de coisas moventes e não moventes; o espaço; os pontos cardeais; a esfera da Terra com seus oceanos, ilhas e montanhas; ar e fogo; e a lua e as estrelas. Ela viu o ciclo das constelações, água, luz o vento, o céu, os sentidos, a mente, os elementos, e as três qualidades gunas. Ela viu este universo com toda sua variedade diferenciada em corpos, que são os repositórios das almas. Ela viu o fator do tempo, natureza e Karma. Vendo Krishna e assim como ela mesma na boca aberta de seu filho, ela paralisou em admiração: "será isto, na verdade, um sonho? É isto uma ilusão, ou apenas uma confusão de minha própria inteligência? Ou será isto, de fato, algum poder divino herdado por esta minha criança? Assim rendo homenagem a seus pés, que são o suporte deste mundo. Deles, e através de suas manifestações, este mundo se manifesta. Sua verdadeira natureza não pode ser conhecida pelos sentidos nem pela razão. Eles são impossíveis de perceber pelo pensamento, palavras, feitos e intelecto. Ele é meu refúgio. Através de seu poder ilusório surgem noções ignorantes como: "Eu sou; ele é meu marido; e este é meu filho. Eu sou uma mulher virtuosa, protetora de toda riqueza do governante de Vraj; e todas as gopis e todos os gopas, assim como as riquezas derivadas do gado são minhas". Então o onipotente Senhor supremo lançou sua yogamaya na forma de afeição maternal sobre a gopi, que havia percebido a verdade. Imediatamente, a memória da gopi foi apagada. Ela sentou seu filho em seu colo e retornou a seu estado de mente anterior, com o coração repleto de intenso amor. Ela considerou Krishna, cujas glórias são cantadas pelos três Vedas, as Upanishads, Sankhya yoga e pelos sábios sávata, como seu próprio filho. (versão nossa) ϲϮ 

Estas são as palavras do décimo livro do Bhagavata Purana. Krishna é o deus entre os homens, a entidade superior, criadora, mantenedora e destruidora, de onde tudo provém e para onde tudo aflui. Krishna é tanto a montanha, como o oceano, assim como o rio que os une e a terra que sustenta este rio. Todos os demais deuses, demônios, homens, plantas e animais são emanações suas, todos os seres são sonhados por Vishnu, em seu leito oceânico. Krishna é adhideva, deus supremo entre os deuses. Através de seu poder, sua yogamaya, impede os homens de perceberem que tudo que os cerca é maya e que sua própria consciência é maya. Yogamaya é o poder criador do sonho de Narayan. Através de sua lila, Krishna revela-se e oculta-se às gopis. Ora iludindo-as com sua maya, ora revelando-se através de sua maya.

Se tudo é Vishnu, se tudo são suas emanações, se sua maya é também ele, se Brahma e Shiva são também Vishnu e se mesmo Brahma, o criador, não compreende a real natureza de Krishna, se até mesmo Kamsa, que tendo perseguido seu sobrinho Krishna, por seu tamanho ódio e pensamento direcionado em Krishna, obteve um dos mais raros níveis de iluminação que é o de assumir a forma de Vishnu; enfim, se, cultuando qualquer entidade, o homem estará sempre cultuando Vishnu, o que é deus, o que é o conhecimento e o que é a verdade?

Dificilmente ao contemplarmos as narrativas míticas da Antiguidade pensamos que são obras de uma escola filosófica, com suas próprias tradições, conceitos e fundamentos. Acredita-se que ao lidar com mitos, lida-se com questões do humano que são próprias a toda a humanidade, que o mito diria daquilo que é anterior a qualquer distinção étnica, cultural ou temporal. E é este aspecto do mito que causa a repulsa que muitos pesquisadores sentem pelo gênero e o encanto que outros sentem. Para certos

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ciclos míticos dificilmente poderíamos encontrar um texto que constituiria seu fundamento filosófico ou seus comentários. Mas de alguns outros realmente encontramos. Nada seria infundado, portanto, na arte da declamação mítica. O mito não provém de um fabulator, cujo canto encanta assim como o canto dos pássaros e por isso canta sem parar em um lindo palavrear sem fim, formando sagas, ciclos, épicos e lendas - uma Branca de Neve que é seguida por todos os animais da floresta ou uma Bruxa que em seu espelho reflete toda a essência humana. Mito seria para o ocidente aquilo que diz de tudo sem dizer de nada.

Se não temos qualquer comentário ou fundamento que justifiquem filosoficamente os mitos celtas ou gregos, por sua vez, temos uma ampla literatura, de comentários de discursos, hinos e outras classificações que não temos nas línguas ocidentais, que discorrem, fundamentam e prescrevem aquilo que chamamos de mito. Por mais que não percebamos, os mitos refletem sempre uma escola de pensamento. E pensamento é dharma, o propulsor da roda de Yama.

O que impulsiona a roda do mundo é o dharma. O pensamento de Buddha é chamado pelo próprio Buddha de dharma. Se o ocidente diz que o dharma é a balsa que leva o homem da margem do Samsara para a margem do Nirvana, o Buddha diz: "Samsara e Nirvana são o mesmo".

Sabedoria é não fazer a distinção entre os opostos. Por isso nas representações shaivistas, Shiva possui o terceiro olho. A presença dos dois olhos na fronte marca a condição humana da constante distinção dos opostos. Shiva, o supremo yogi, é aquele que supera a dialética, marca representada pelo terceiro olho, o olho do meio.

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Para o pensamento indiano a distinção não se resume apenas a categorização lógica, distinguir é emitir qualquer formulação. O pensamento humano parte da distinção, se dissermos linguagem não é língua, estamos distinguindo, estamos no campo da dialética, se dizemos isto é Deus, dizemos aquilo não é Deus. O discurso é, em sua essência, dialética.

Se o pensamento indiano parte da tentativa da superação da roda da vida, se a roda da vida é manifestação da maya, a divina ilusão, se a vida é maya, se tudo é ilusório por ser o mundo um fluxo contínuo e inconstante, o que é a sabedoria e o que é o conhecimento? Pode alguma sabedoria ser superior ao fluxo do mundo, pode estar algum pensamento não condenado ao girar constante da roda da vida?

De certa forma, toda escola de pensamento dirá: “eis a salvação. Se há uma verdade eu sou a verdade”. De certa forma, portanto, estão corretos os pesquisadores de religiões que dizem que, em sua essência, todas as religiões dizem o mesmo. Retirando seus cultos, seus dogmas e seus mitos, todas as religiões e filosofias dizem o mesmo, sim, mas apenas enquanto encontrarmos o absoluto.

Encontrando o absoluto em Chuang Tzu, podemos transformá-lo em um pensador heideggeriano, encontrando o absoluto em Zarathustra podemos transformá-lo em um platônico avant la lettre.

O que une qualquer escola de pensamento é o

absoluto. Mesmo que esta escola não assuma para si o conceito de absoluto, uma tradução ou uma interpretação dará conta de qualquer conceito ausente. Se pensássemos rigorosamente perceberíamos que nenhum comentário ou reflexão diz a respeito da obra

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que tratam. Musashi diz no final de seu manual de combate e filosofia intitulado “O Livro dos Cinco Anéis”:

Tentei registrar aqui um esboço da estratégia das outras escolas, em nove seções de texto. Eu poderia prosseguir agora fazendo um relato específico de cada uma delas, do portal ao interior, mas intencionalmente deixei de dar nome a essas escolas ou identificar seus principais aspectos. O motivo está em que ramificações diferentes destas mesmas escolas dão interpretações diferentes das doutrinas a que obedecem. Assim como as opiniões dos homens diferem, o mesmo assunto permite pontos de vista diferentes. Por isso a concepção de homem algum é válida para representar uma escola. (Versão nossa)

O pensamento humano nunca está comprometido com o pensamento, mas sim com questões outras. Pois se há um absoluto que une qualquer pensamento, ele sempre se manifestará de forma relativa, pois ao homem é vedada a percepção do absoluto. E se este manifesta-se relativamente, não há, portanto, o absoluto que une os pensamentos, há apenas o relativo.

Assim, pela impossibilidade de conhecer a universalidade de uma proposição, torna-se impossível estabelecer qualquer inferência. (MUSASHI, O Livro dos Cinco Anéis, versão nossa) A contemplação da verdade é legítima apenas à cabeça divina. Apenas um ser superior criador e auto criado poderia contemplar a verdade. Apenas a ele a verdade pode ser, pois ele partilha de todas as essências de todos os seres e não-seres. Apenas ele distingue sem distinguir e realiza sem realizar, compreendendo todas as categorias sem pertencer a nenhuma categoria. E se podemos dizer com clareza o que é participar

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do mundo do criador, por que não podemos dizer minimamente o que é participar do mundo dos homens?

Conta-se que o jovem Lin-chi, o fundador de uma das “Cinco Casas” do budismo zen, sentia um forte anseio pela iluminação. Mesmo tendo permanecido durante três anos no monastério de Huang-po, nunca havia tido uma conversação com seu mestre. Encorajado por Mu-chou, o mais proeminente dos discípulos de Huang-po, Lin-chi finalmente aventurou-se a adentrar a sala de seu mestre e perguntar qual era a essencial verdade do budismo. Ao fazer a pergunta recebeu de seu mestre vinte golpes de cajado. Triste, retornou a Mu-chou para relatar sua experiência com Huang-po. Através dos conselhos do amigo retornou ainda duas vezes para o mestre, apenas para receber mais vinte golpes da segunda e mais vinte da terceira vez. Acreditando que seu fracasso era decorrente de algum karma ruim, decidiu abandonar o monastério e buscar um outro mestre. Mu-chou, concordando com seu projeto, direcionou-o à sala do mestre Huang-po que o indicou ao mestre zen Ta-yü.

Assim, Lin-chi, partiu para o monastério de Ta-yü e perguntou a seu novo mestre que erros o fizeram sofrer as surras que havia levado. Ta-yü explicou que na verdade Huang-po o havia tratado com grande gentileza, e reprovou Lin-chi por sua ignorância. Então, subitamente, Lin-chi alcançou a iluminação, e, desta forma, afirmou que o dharma de Huang-po nada tinha de especial. Ao ouvir isto Ta-yü bateu forte em seu discípulo, dizendo: “ há um momento atrás este rapaz queria saber quais eram seus erros, e agora faz pouco do dharma de Huang-po. Que imprudência!” Mas , sem hesitar, Lin-chi o socou três vezes nas costelas. Ta-yü reconheceu a natureza de sua iluminação , a qual creditou a Huang-po.

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Ta-yü enviou o jovem Lin-chi a seu mestre, a quem ele relatou suas experiências. Ocultando a alegria no resultado que preverá, Huang-po fingiu censurar suas atitudes. Se Lin-chi desejasse retornar ao monastério ele deveria receber vinte golpes de cajado. Lin-chi falou: “não precisa esperar por isto, aqui estão!” e deu um vigoroso tapa no rosto do mestre. “Está louco!” gritou Huang-po. E Lin-chi, em uma voz de trovão, gritou: “Katsu!” Ele obteve a iluminação e recebeu o selo do dharma, a sucessão do patriarcado do mestre Huang-po.

A violência súbita foi muito utilizada pelo mestre Lin-chi para seus discípulos alcançarem a iluminação. Através de golpes e de gritos o jovem monge poderia perceber com facilidade a essência ilusória do mundo e dos ensinamentos de Buddha. Tudo se caracteriza como ilusão, tudo que se apresenta como realidade e irrealidade são manifestações da mente humana. A constituição deste mundo é puramente ilusória.

Diz-se que o budismo mahayana guardaria o verdadeiro ensinamento de Buddha que fora guardado pelas nagas, as serpentes, no fundo do oceano até surgir uma geração capaz de compreender e não corromper os sutras. O conhecimento das Nagas fora confiado ao sábio Nagarjuna, que recebeu seu nome por ter sido criado sob uma árvore Arjuna e por ter recebido o conhecimento secreto das Nagas em seu palácio no fundo do oceano. Se o budismo mahayana acredita ser um resgate dos verdadeiros ensinamentos de Buddha, uma de suas escolas, a escola zen, fundada por Bodhidharma desconsidera os ensinamentos de Buddha, rasgando os sutras e queimando as imagens de Buddha. Tudo pertence à roda do dharma, tudo se configura em seu caráter ilusório, até mesmo

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os ensinamentos de Buddha e o próprio Buddha. Nada tem existência, nem o mais mundano, nem o mais elevado, tanto o jarro, o sutra e o Buddha são categorias da mente humana, não são, portanto, reais nem irreais, pois real e irreal são categorias igualmente humanas.

Diz o Shitou, mestre da escola zen chinesa:

Nosso ensinamento foi passado pelos antigos buddhas, nós não falamos de meditação ou progresso espiritual, apenas na chegada ao conhecimento e à visão búdica. Mente é em si buddha, mente, buddha, seres, iluminação, aflição, são diferentes nomes para o mesmo. Você deve saber que a essência desperta de sua própria mente não é finita nem eterna, por natureza nem corrompida, nem pura. É imóvel e completa, é a mesma nas pessoas ordinárias e nos sábios, respondendo efetivamente sem padrões, além da mente, intelecto, ou da consciência discriminativa. Os três reinos – volitivo, material e imaterial – e os seis estados dos seres – animais, seres infernais, fantasmas famintos, humanos, deuses inferiores e deuses – são apenas manifestações de sua própria mente; a lua e a água, imagens em um espelho – como pode haver algum nascimento ou morte? Se pode perceber isto, estará completo em todos os caminhos.

Aparentemente, a meta do budismo não é muito diferente da meta pregada pelas demais escolas de pensamento indianas. A iluminação consiste na percepção do caráter ilusório do mundo através da não distinção. A distinção parte do não dizer, do não mover, do não agir. Dizer e agir são o princípio da distinção. O dizer é distinguir, o agir é distinguir, portanto, o caminho para a superação do ciclo incessante de vida e morte, que é a própria vida, consiste na busca pela cessação completa. Pela não criação e pela não destruição. Pois a causa primeira do girar da roda da vida está no agir e no não agir, agindo e não agindo o homem gira a roda da vida, a causa de todo sofrimento, a origem do ciclo de vida e morte.

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O eterno retorno é a vida de todos os seres. O homem iludido pelo amanhã, anseia por um novo dia, por uma nova vida, mas o que ocorre é a repetição incessante do mesmo dia. O homem vive sempre o mesmo dia, iludido pela esperança no futuro, e iludido pela memória no passado. Como parar a roda que não cessa de girar, causadora de todo sofrimento e toda ilusão que leva o homem ao agir?

A única resposta seria: através do não agir e do não dizer. Mas o budismo dirá, mesmo que em toda não-ação não existisse qualquer movimento, mesmo que em todo não-dizer não houvesse qualquer dizer, ainda assim aquele que não age e não diz, ele age e diz. Mesmo percebendo o caráter ilusório do mundo, tendo total consciência da efemeridade das coisas, o homem não deixará de agir; mesmo que morra, ainda assim há ação e sua morte movimentará a roda do mundo. Não há como se libertar da maya, da ilusão, pois a maya é o próprio mundo. Mesmo que fuja do mundo, o homem terá que habitar um novo mundo. A esperança da salvação, da iluminação, é a crença no amanhã, na outra margem que um dia chegará. Mas não existe o amanhã. Existe apenas o hoje em um girar incessante. Por isso Buddha diz no Sutra do Diamante: “Não há nirvana, nem samsara”, “não há iluminação, nem ignorância”, “todos os seres são buddha”.

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A DOENÇA, A VELHICE A MORTE

O que é o conhecimento? É a busca pela verdade. “Conhecei a verdade e ela vos libertará”. Diante deste mundo em que tudo é mutável, o pensador diz: “tudo é mutável”, e diante da impossibilidade da permanência ele pergunta: “é possível algo permanecer?”. A vida humana traz apenas dor e miséria, olhamos ao nosso redor e vemos apenas indigência, e, finalmente, o pensador diz: “sou também um indigente e junto com esta torrente imensa de mortos que devoram, também devoro incessantemente meus semelhantes, devoro meu próprio corpo e sou devorado, busco um sentido, mas vejo apenas dor e indigência, vejo a doença, a velhice e a morte, nada permanece frente aos meus olhos, e, assim como tudo, devo, por fim, ser devorado até minha última parte de medula, nada permanece e, assim como tudo, devo perecer. Se este mundo não oferece abrigo, se a mãe terra não oferece abrigo, se a própria mãe não oferece um seio acolhedor, a que devo recorrer? Se tudo é mutável, se nada permanece, a que devo prender-me? Se tudo é passível de destruição, o que devo construir? Se tão magnífica foi Persépolis, os rudes archotes de Alexandre não a destruíram? Se tão majestosa foi a Biblioteca, o ronco da Terra não a engoliu? Se tão belas eram as linhas de ouro dos Avestas, o Eufrates não a dissolveu? Se Maniqueu não reuniu em seu monumento todos os grandes profetas, se não trouxe em um só pensamento profetas do ocidente ao oriente, não haveria de ser esta a verdade? A única justiça que há no mundo não é o acaso? Se o mais tolo dos historiadores permanece, o mais sábio dos profetas também desaparece da Terra.”

E, diante da solidão, contemplando a solidão o pensador diz: “Por mais que acumulemos poder, sabedoria e entes queridos, sabemos um dia, que toda criatura sobre

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a Terra morre sozinha.” Contemplando assim a solidão, ele diz: “Se podemos dizer: sim, há o imutável, assim o imutável se cria. Pois tudo que pronunciarmos assim se cria, tornando-se isto memória dentro de uma cultura, este isto que foi criado torna-se tal qual o pão, uma coisa. E se podemos dizer, há o imutável, assim o imutável passará a ser. E como deverá ser o imutável? Para ser imutável não deverá ter nenhuma característica, ou nenhuma característica pronunciável ao homem, pois, assim como algo é justo, poderá ser injusto, se é bom, poderá ser mal. É através das característica que percebemos a mutabilidade de tudo aquilo que é devorado pelo Tempo. O conhecimento do imutável é a maior verdade, é portanto, a Verdade, a essência de tudo aquilo que é temporizado: o ser, o originário, aquilo que a tudo permeia, o absoluto, o oculto , o velado, o eterno, a idéia, o não esquecimento, o perene, o imutável, o infinito, o onipotente, o onisciente, onipresente, a verdade. Conhecendo a verdade alcançaremos a salvação, pois superaremos a indigência da criatura, o Tempo.”

Mesmo tendo conhecimento de que o tempo devorará a tudo, mesmo tendo conhecimento de que ao leito final o homem abandonará tudo, mesmo tendo conhecimento de que por mais grandiosos que sejam seus monumentos e muitos são estes monumentos, e diversos são seus tipos, e longos são os empenhos para serem erguidos, em um átimo, em um único e fatídico golpe ruirão. E nenhum monumento é mais caro e mais valoroso ao homem que o conhecimento.

O homem não crê que o conhecimento possa ser consumido.

No início do século XIX houve uma série de descobertas de tabuinhas cuneiformes. Várias escavações foram feitas em todo o Iraque e talvez a maior

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descoberta feita tenha sido a das tabuinhas das ruínas da biblioteca de Assurbanipal. Nem sempre a escrita cuneiforme fora conhecida dos europeus, sua decifração começou no século XVIII quando Grotefend, através de seus conhecimentos de avéstico, decifrou as inscrições cuneiformes de Persépolis.

Quando uma destas inscrições cuneiformes extraídas de Níneveh fora traduzida por um pesquisador, George Smith, do Museu de Londres, diz-se que eleem seu entusiasmo despiu-se inteiramente e correu nu pelos corredores. O que havia naquelas inscrições era um dos cantos do épico de Gilgamesh, episódio conhecido como o Dilúvio.

A partir de então, a partir da decifração de uma antiga obra literária, um grande conjunto de crenças se desfez. A Bíblia não poderia mais ser a palavra de Deus, o conhecimento judaico não mais era a Verdade, o mundo não poderia ter apenas a idade que se acreditava ter.

Mais e mais tabuinhas cuneiformes foram desencavadas de seu sono ancestral no solo do Iraque. Mais e mais línguas semíticas foram descobertas, mais e mais tradições e civilizações foram encontradas e o mundo continuou a girar com suas novas convicções.

Tantas e tantas línguas correm por este mundo, várias e vastas tradições literárias e filosóficas percorrem as planícies e montanhas desta terra. E do que poderemos saber disto? Se nos lançarmos pelas centenas de etnias que habitam a Ásia, quanto tempo nos

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levará para que conheçamos aos menos algumas de suas línguas e de suas obras? Nem toda uma vida.

Pois o campo de movimento do homem em sua vida é como o de um burro amarrado a uma árvore.

Por mais vasto que seja o mundo, o homem, ainda assim, será mínimo. Por mais errante que seja o homem, sempre se refugiará na casa de seu profeta, que sempre, sempre, será seu vizinho. A busca é, portanto ,vazia. A vacuidade da busca é apenas pelo fato de ser o próprio conhecimento vazio.

Diz-se na China (e isto está no nono capítulo da Jornada para o Oeste) que, assim que um jovem termina seus estudos, deverá partir em viagem. O Ocidente perdeu este sentido da viagem, da conquista do desconhecido. Acredita-se que, ao terminar seus estudos, o homem que adquire a sabedoria deverá superar seu mestre. E o maior intelectual é aquele que consegue suplantar a imagem de seu antecessor pela sua.

O jogo do conhecimento exige que haja a superação ou pelo menos a tentativa da superação. Mesmo que com toda ressalva, questiona-se Platão ou Nietzsche. Os frutos do conhecimento são méritos de certificados e o poder sobre discípulos.

Se o homem quiser minimamente compreender a roda do conhecimento, não deverá girar junto com ela, mas perceber seu movimento. Todo aquele que tentar superar uma estrutura de pensamento deverá criar todos os armamentos para conseguir

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vencê-la, e aí, então, no embate do conhecimento, perceberá que vencerá, ou aquele que estiver no nível hierárquico superior, ou aquele que com mais verborragia se colocar.

O embate do conhecimento é como um jogo de xadrez. Se joga com o rei, é prudente deixá-lo ganhar. Se joga com um igual talvez seja possível competir. Acreditar no jogo só é possível pela crença na Verdade, por qualquer que seja o sentido que se atribua a esta palavra. Acreditar é acreditar que a fala humana é o próprio pronunciar de um deus único e superior.

Se um pensador, um poeta, um profeta, pronunciam seu discurso e dizem “verdade” ou “isto é verdadeiro”, suas palavras só poderão ser verdadeiras se forem verdadeiras para a toda extensão da Terra e para todas as eras da Terra. Sua verdade deverá ser verdade para um elamita, para um mongol, para um cretense e um pigmeu. Para um homem poder dizer “este pensamento é verdadeiro” ou “isto é a verdade”, deverá habitar a essência de todos os homens que habitam, habitarão, dos que não habitaram e a dos que já habitaram esta Terra em todo seu tempo e em toda sua extensão.

“É uma pena ouvir isto!”. “Quantas almas já não se empenharam para compreender ou divulgar as palavras de uma grande pensador!”. Mas uma flor que floresce nos Himalaias não floresce no Atacama. Não há grande pensador neste mundo, pois tudo que ele fez foi colher aquilo que já todos colhiam. O que faz grande um pensador é o mesmo que faz grande um profeta, a fé que atribuem a ele. O homem sempre encontrará algo sobre o qual dirá: “isto não é como o de antes”, “esta é a

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filosofia que reina sobre as filosofias”, “a religião que supera toda religião”, “o pensamento que não é um simples sistema”.

Cada pensamento estipula suas próprias regras e seus próprios movimentos. É impossível tentar vencer um jogo com suas próprias regras. E quem poderá dizer com total firmeza e veracidade qual dos jogos é mais sublime: o xadrez ou o gamão? Mas é tolice imaginar que não percebem isto. O que devemos perceber é que por trás de toda essa rede de jogos o que realmente movimenta o homem é o jogo pelo poder. O incessante jogo do devorar.

Não raro um discípulo percebe o ritual que é a estruturação do pensamento e quão vazio e arbitrário é este movimento. Muitas vezes ingenuamente e com seus parcos armamentos (impostos por seu mestre) tenta alertar sobre a vacuidade do jogo. Mas o mestre com uma das mãos o ameaça e com a outra o oferece-lhe benesses. E o que ele fará? Tentará não apanhar e receber os amendoins ou insistirá em suas convicções para subir ao cadafalso? Tolo do rebelde, pois não percebe que o conhecimento e o pensamento são apenas exercícios de poder. Tudo parte do anseio de permanência. Na ânsia de sobreviver ao incessante mastigar do Tempo, o homem devora todos ao seu redor.

Por mais que um assirólogo ou um pesquisador do budismo tente traduzir para uma língua ocidental os textos que o encantam, irremediavelmente, irá utilizar palavras que sua própria língua oferece, e, assim, seu texto não será mais um texto assírio ou budista, mas, sim, um texto judaico ou cristão.

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O homem carregará por toda sua vida o fardo de sua cultura, pois sua cultura é aquilo que o faz ser aquilo que acredita ser em sua alma. Não há um próprio, tudo que o homem acredita ser é aquilo que sua cultura lhe oferece. Suas paixões, seus gostos, sua ética. Porém alguém dirá “não, sou chileno, mas minha paixão é a caligrafia chinesa. A cultura que me foi oferecida foi a chilena, mas meu ser sente a paixão apenas pela caligrafia da china”. Confundimos cultura por delimitações geográficas, pois foi o que a cultura pela qual este homem se movimentava ofereceu-lhe, a caligrafia, e este acreditou ter sido seu íntimo mais profundo que o impulsionou para esta arte que, no entanto, acredita ser desconhecida por seus semelhantes. Mas será talvez que o íntimo de um habitante de uma tribo das mais recôndidas do Amazonas o impulsionará para a estonteante beleza da filosofia de Bachelard?

Julga-se ser possível superar qualquer tabu imposto pela sociedade. Julga-se que a sociedade impõe normas que sufocam o homem e por isso este deverá lutar pela sua liberdade, conquistando cada vez mais direitos e diretos. As mulheres lutaram e conseguiram sua liberdade, os homossexuais lutam e talvez consigam também sua liberdade. Mas não sabiam que sua liberdade já estava presente, seus anseios já eram legitimados pela sua sociedade. O homem acredita, que se há uma lei que o impeça de vestir rosa, deverá lutar até que lhe seja permitido usá-lo, terá conquistado, então, liberdade e alegria. Entretanto, as leis que regem a conduta do homem são muito mais fortes do que a escolha de copular com isto ou aquilo, ser escravo de seus filhos ou ser escravo de uma empresa. As verdadeiras leis são de tal forma condutoras da persona humana que não percebem que são elas que o impulsionam para o agir e para o nãoagir.

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É legítimo um homem lutar para se deitar com outro homem. Alguns aceitarão, outros não e, por fim, em determinados momentos e lugares se permitirá, em outros não. Mas seria legítimo um homem devorar seus filhos? Copular com um morto? Não vemos necrófilos lutando por sua liberdade, mesmo que este tabu social o impeça de ser feliz, que o ridicularize e que lhe deixe constrangido.

O homem é aquele regido pelas dualidades. Acredita-se em algumas escolas de pensamento ser possível resgatar um momento anterior às dualidades. Mas isto não é possível, todo pensamento surge da dialética. Quando o homem distingue-se da natureza e formula “eu sou o homem, organizo-me em um círculo e diante de mim está a natureza”, eis a dialética e a partir desta formulação erguem-se todos os monumentos humanos. Eis a Terra e eis o Céu, eis a Morte e eis a Vida, eis o Pai e eis o Filho. Eis o belo e eis o feio, eis o amor e eis o ódio, eis o verdadeiro e eis o falso.

Mesmo que digamos “tudo é um”, ainda assim estamos na dialética, pois dizemos também “tudo não é um”, toda proposição traz também a afirmação de seu contrário. A nomeação é sempre classificatória. O que faz de um cão um cão e não um lobo? Quando um cão deixa de ser cão e passa a ser um lobo? Quando morre um homem, quando sua vida passa a não pertencer a seu corpo?

Acredita-se que o êxtase consiga superar o processo dialético da linguagem. Acredita-se que no estado extásico os sentidos de verdadeiro e falso se dissipem, o correto e o errado se percam.

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Mas, tendo consciência da mutabilidade, percebemos que o mesmo que certa vez elege a moral, em outra elege facilmente o êxtase. Ondas de homens são movimentas para lá e para cá, movimentam-se gerações e nações de homens, a sudoeste e a sudeste, e vão como vagas, destruindo e arremessando, ora a sudoeste ora sudeste, massacrando e constituindo, dilacerando e dilapidando. E incapazes não percebem que aquilo que acreditam ser seus mais íntimos desejos, suas mais íntimas crenças, seus mais íntimos amores, são palavras de ordem que os comandam como vagas ora a sudoeste ora a sudeste.

Diz-se que Brahma ao criar os homens percebeu, tarde demais, quem as hostes dos mortos eram de número muito superior a dos vivos. Assim somos condenados a viver na cidade dos mortos. Quando jovens acreditamos ser possível sobreviver às vagas que comandam os movimentos das hostes dos mortos. Acreditamos ser possível mantermo-nos vivos e conscientes, mas as volições, os anseios, as dúvidas e necessidades impostas pelos entes queridos, obrigam-nos, em alguns meses ou alguns anos, a aderir à marcha claudicante daqueles que dormem o sono sem vida. Lutamos por viver, mas estamos fadados à derrota, como lutar contra um inimigo que já está morto? Acreditamos que a sabedoria nos salvará, mas não foi o conhecimento também criado pelos mortos? O que nos salvará? O ato mais terrível ou impensável, o canibalismo, também pertence aos mortos, o ato mais sutil e sublime, a poesia, também pertence aos mortos.

Cedo ou tarde, estamos fadados a pertencer à torrente dos mortos. Enfim, será que há sobre esta terra algum homem desperto de seu sono mortuário? Nada o salva de

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sua destruição. Quem habita a cidade dos homens são os mortos. Quem será o tolo que crê não habitá-la também?

O pensamento anterior a todo pensamento. Só assim poderemos perceber a dimensão do homem. Assim como tudo é mutável, a verdade pronunciada também é suscetível ao saborear do Tempo. À verdade também é possível apontar: “Isto é falso”. Acreditar na verdade é acreditar na justiça do mundo. Mas a única justiça que há no mundo é o acaso. Quando o homem acredita que encontrou os escritos que dizem o que é a verdade, acredita que a Fortuna o presenteou, o elegeu entre toda a humanidade para o recebimento das escrituras. Mas a única justiça que há no mundo é o acaso. Quando o grande favorecido foi aquele que encontrou os escritos de Marx, fortunado pelas intempéries da Fortuna, e esquecidos foram todos aqueles que seguiam Buddha. Mas a única justiça que há no mundo é o acaso. Pois, se certa vez o Tempo elege um pensador, um filósofo ou profeta, logo e rapidamente ele o destrói.

Buscar o erro dentro da estrutura de pensamento que a inviabilize. Descobrir no desconhecido a afirmação de uma estrutura de pensamento tornando-a universal. Estas são as buscas dos grandes pensadores. Se o homem busca o poder, buscará a afirmação de seus métodos e de suas doutrinas em tudo que vir. Se for verdadeiro consigo mesmo, buscará a verdade. Mas acreditar na verdade é acreditar em uma justiça que rege o mundo. A única justiça que há é o acaso. Pois tudo está no fluxo, até mesmo a verdade. Todos os caminhos que o homem poderá traçar, originar-se-ão sempre na busca pela superação do tempo, seja através do esquecimento, do poder, da construção de

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monumentos ou da piedade. Nesta incessante busca, o homem deixa-se consumir mais facilmente pela fome insaciável da roda do mundo. Devorando e sendo devorado.

“Mas negarei tudo e me recolherei da humanidade na floresta, longe da flagelação dos homens!”. No entanto, é próprio do homem acreditar, pois ele sempre acredita que é um homem. Certa vez Confúcio encontrou-se com um caçador vestido de coelho, e disse: “Por que não retiras este fantasia de coelho” e o homem lhe respondeu: “Por que não retiras esta fantasia de homem?”.

Mesmo que abandone a fantasia de sua profissão, que o faz acreditar no trabalho; mesmo que abandone a fantasia de sua família, que o faz acreditar na bondade humana; mesmo que abandone a fantasia de sua língua, que o faz acreditar na linguagem; mesmo que abandone a fantasia de sua educação, que o faz acreditar que é um homem; mesmo que assim, completamente descrente, descrente do solo em que pisa, descrente da árvore que o cobre, descrente do fruto que o alimenta, o homem, ainda assim, completamente só, acreditará em sua total descrença. Mesmo completamente só, o homem carrega o fardo total de sua humanidade.

É impossível superar o Tempo, pois é o Tempo que confere existência ao homem. Conferindo esta existência, o tempo também a esgota, lentamente.

Se tudo é movimento neste mundo; se algo que hoje é verdadeiro amanhã será falso para novamente em seguida tornar-se verdadeiro; se tudo que cremos, cremos

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unicamente pela nossa própria crença - o que seria isto que o mundo nos oferece? Não há algo que vemos e que sentimos? Não há algo que nos faz perceber humanos no mundo?

O mundo não é mais do que a projeção do homem. Se Vishnu sonha o sonho do mundo, o homem também sonha o sonho de Vishnu. Sonhando e construindo seus amores, seus filhos, suas paixões, seus temores e seus deuses. Sonhando, sonha suas vidas até dormir o sono sem sonho.

Não seria o mais sábio aquele capaz de nomear mais, aquele capaz de manipular um maior número de palavras e discorrer com procedência em diferentes campos de conhecimento? A linguagem encanta, principalmente a fala, pois ela é capaz de criar qualquer coisa. Basta pronunciarmos e eis a coisa. Se a linguagem tem este poder de criação inesgotável, ela se apresenta como uma suave ilusão, que, tão logo a pronunciemos ela se cria, imediatamente ao pronunciarmos sua negação, ela se desfaz. A dificuldade está em se manipular com maestria as capacidades da linguagem.

Dizer é criar e destruir, simultaneamente. O dizer e o não dizer impulsionam o mover da roda do mundo em suas realizações e irrealizações. E, dizendo e não dizendo, o homem inaugura o mundo, constituindo, destruindo e manipulando. Mesmo que seja suprimido todo o dizer de um homem, seu não-dizer continua a girar o mundo. Continuamente pronunciando e nomeando, conserva seu poder e sua hegemonia sobre a Terra, acreditando ser o próprio Tempo e a medida do Tempo. Mesmo que não tente assegurar sua supremacia sobre o mundo, mesmo que se ponha como total criatura e

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nunca como criador, o mundo exige que o homem se ponha como o criador da Terra. É o destino do homem criar e devorar para ser, enfim, e constantemente devorado.

Apenas tendo consciência da inexistência do mundo, apenas tendo consciência da inexistência do homem e de suas criações, e tendo a consciência de que não há um eu e nem tampouco, essência de um eu ou de qualquer coisa; abstendo-se totalmente de suas características e de quaisquer características, o homem poderia salvar-se de suas características destruidoras e destrutíveis. No entanto, ao anular toda característica o homem tornar-se-ia o absoluto, o imutável, Deus: que nada mais é do que uma categoria humana e que, portanto, não existe.

Será que toda tentativa de pensamento, em sua tentativa de resgatar Deus, o absoluto, a verdade ou o ser, não seria uma tentativa de resgate de um tempo préhumano? A busca pelo autoconhecimento, a busca pelo próprio, pelo singular, não seria uma tentativa de encontrar o imutável dentro se si? Será que a mutabilidade do mundo não teria poder de mudar algo denominado de essência do eu?

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NO QUE CONSISTE A LITERATURA?

De todos os livros que sobreviveram da Antiguidade, quais conservaram para nós o conhecimento de seus antigos povos? De todos os livros que sobreviveram da Antiguidade, haveria algum do qual poderíamos resgatar algo mais do que isto a que chamamos literatura? Não, pois isto a que chamamos literatura nada é. E do nada resgatamos apenas nada, o reflexo do mesmo.

Acreditar na possibilidade da Ilíada é acreditar na literatura, que é apenas a degenerescência de algo que não pôde ser criado, pois não há tal possibilidade. A literatura é projeto que não se consolidou, pois criar da Ilíada a poesia é como criar apenas do papel o desenho.

Pois o homem acredita que, conservando-se o suporte, conserva-se a obra. A obra não é composta pelas letras que a registraram, talvez seja isto até o menos importante. Palavras mudam de sentido, de séculos em séculos, de cidades em cidades e de homens para homens. O que foi perdido e o que nunca pode ser resgatado é o ritual da Ilíada, o texto é o menos importante. Para a realização do ritual, para que este se consolide como tal, tanto aquele que executa como aquele que o observa devem conhecê-lo por completo.

Apenas o projeto da literatura permite a existência de um expectador da obra que não conhece aquele que a executa, como também não conhece seu contexto, seus fundamentos e seus mitos. O projeto da literatura é confiante por demais na

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legitimidade de seu suporte, de forma que permite a fuga de qualquer possibilidade da criação de ritual. Seus textos são de tal forma relaxadas que não permitem que possam ser recitadas, declamadas, decoradas ou recontadas. A literatura fracassa, não pela incapacidade de seus continuadores, mas na sua própria constituição, que não permite sua concretização. Os textos literários pairam como fantasmas agrilhoados pela vontade intelectual de seus cultuadores.

Apenas quando percebemos que já estamos mortos, podemos abandonar a ilusão da vida.

Curiosamente os textos literárias que mais evidenciam sua incapacidade em constituir um ritual são aquelas festejadas nas flâmulas dos cânones. O que poderá constituir nossa maior tiunfo senão aquela que é construída em um diálogo? Esquece-se do que se trata isto a que chamamos arte, que não é diferente daquilo que chamamos magia.

A magia é executada através de um ritual. É realizada por uma necessidade que transcende capacidades comuns e meios comuns. A magia visa sempre um objetivo. Do ritual, da necessidade e do objetivo, podemos apenas identificar, nestes dias, a necessidade.

A necessidade, a fome insaciável é a única das características humanas que não pode ser superada. E daí surge a impossibilidade de qualquer superação, pois é da necessidade que surge toda característica humana. E, assim, quando o homem desejou abandonar seus mitos, quando não quis mais Arthur para ter Quixote, sua fome nem por

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breves instantes foi saciada. e no momento da necessidade o homem comerá até mesmo seus excrementos, rosa.

Toda a impossibilidade do resgate do ritual mágico primordial é selada pela ignorância tanto dos magos que realizam o ritual como do público que o observa. Por mais que haja o mago, não há mais o pacto com seu público, não há mais a técnica que o autorize e o possibilite, nem o conhecimento a ser moldado por sua técnica outrora precisa e atenta.

O artifício mais poderoso da magia é a palavra. Com um único gesto verbal qualquer coisa pode ser invocada rapidamente. Dizei e eis o que dissestes. Mas para a concretização do ritual mágico há muito mais do que a vocalização da palavra. E a literatura nem ao menos vocaliza a palavra, pois palavra escrita não é palavra. Assim como o desenho da árvore não é a palavra árvore.

Para o bardo evocar Arthur, ele não precisa apenas dizer Arthur. Para evocar Arthur, o bardo precisa evocar sua esposa Guenevere, seu reino Camelot, com todas suas propriedades, ele precisa evocar sua espada Excalibur, e toda sua história desde seu nascimento, e todo seu percurso de ensinamento junto a Merlin. O bardo precisará evocar todas as guerras na qual o rei lutou, todas as demandas e todas as donzelas que seus cavaleiros resgataram. Pois todo pequeno mito deve carregar consigo todos os mitos que o cercam e que um dia o cercarão. Tudo isto na palavra.

Emitir palavra é criar o universo. Resistir à palavra é criar o universo. A questão reside em com que propriedade diremos: eis isto.

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Durante o percurso da curta história disto que chamamos literatura, vários foram aqueles que de diferentes modos tentaram resgatar algo que já está perdido. Não era de forma alguma difícil perceber que um rastro de pobreza atravessava as intenções rasteiras da literatura. E assim inicia-se vez ou outra uma luta pela busca deste isto perdido. Mas toda luta e toda busca são apenas quando tudo já está perdido. Nenhuma luta pode ser ganha e nenhuma busca pode ser terminada. A vitória impossibilita a luta, o encontro impossibilita a busca.

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NO PRINCÍPIO... (Uma leitura helênica de uma sentença hebraica)

No princípio, com o princípio pensamos o mito. Provavelmente o mito seria justamente este retorno ao princípio, com o princípio. Provavelmente o mito diria sempre deste princípio, e assim, talvez, na audição do mito, ouviríamos mais uma vez o som do princípio, a possibilidade de todo princípio, o princípio da palavra.

Se no Livro da Gênesis, em seu primeiro verso não escutamos, não percebemos a presença do mito, isso se dá pelo distanciado da palavra primeira, da palavra que diz como memória, não da palavra que diz como significado. Ao não permitir a rememoração da palavra, ao escutar do princípio, ouvimos de uma pregação, de um postulado moral. Ao ouvir o primeiro verso da Gênesis, escutamos: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”. Palavras esvaziadas de qualquer possibilidade, palavras que dizem apenas da formulação monoteística, de afirmação da unidade e da afirmação do princípio primeiro e único criador do universo. Este Deus, que é o Deus da razão, o Deus da moral, o Deus distante, o Deus que é, na absoluta totalidade do não-ser.

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Nesta proposição não se diz do céu ou da terra, nem do princípio, diz de uma deidade superior a qualquer outra força, que criou, não o céu ou a terra, mas todo o cosmo. A memória da palavra não é evocada, não pela possível postulação levantada neste verso, mas pela nossa própria tradição que caminha pelo esquecimento. Ao escutar, ouvimos: há um deus, este deus é único e a ϴϴ 

tudo criou. Mas se nos colocarmos no empenho do mito, na pergunta pelo mito, na evocação da palavra, o que escutaremos; o que escutaremos ao ser pronunciados o céu e a terra? Ouviremos da medida do homem, ou escutaremos de um enunciado proveniente de um sistema? É possível escutar o mito nisto que acreditamos ser a formulação do esquecimento do mito? Assim, qual a medida do mito, como pode o mito dizer, na palavra, do princípio? De que maneira a palavra deixa de dizer no mito, de um fluxo, para dizer de um postulado, de uma verdade, de um sistema?

Não houve nem haverá jamais homem algum que tenha um conhecimento certo sobre os deuses e sobre todas as coisas de que falo. Porque, se acaso alguém dissesse a mais perfeita verdade, não teria ele mesmo consciência disso, pois sobre todas as coisas não há senão opiniões. (Xenófanes, circa 540 a.C., fr. 34)

Xenófanes, pensador pré-socrático, já nos diz desta verdade que se coloca como a postulação da inefável divindade. Pois inefável será apenas a divindade que se coloca como a razão, a divindade do ser absoluto, a divindade que se diz como o não-ser. Ao se colocar na tentativa de aproximação da razão, da verdade postulada, o pensador colocarse-á na inevitabilidade do fluxo, da palavra. Ao dizer Deus é um, mesmo assim o homem falha em sua tentativa, pois, ainda, persevera o mito em suas palavras, em qualquer palavra, mesmo havendo um Deus único, de pura idéia, de puro absoluto, a palavra Deus permanece ainda como palavra, como memória, como um mito, mesmo débil, ainda assim, mito.

Nesta medida da palavra, que vigora sempre como mito, dá-se a total incapacidade do discurso efetuar qualquer elaboração de verdade. Qualquer discurso ϴϵ 

não-mítico torna-se, portanto, opinião, formulação ou afirmação de uma moral. Pois o mesmo seria dizer: “tudo flui” ou “nada flui”, “Deus existe” ou “Deus não existe”. O que se fundamenta no postulado da verdade não é a negação ou afirmação de uma verdade, mas o que está fundamentado é a própria ação da postulação, o movimento de se firmar um pacto, uma aliança. A aliança é a perseverança na inefável verdade. Inamovível inefabilidade.

Mas se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e com elas pudessem desenhar e realizar obras como os homens, os cavalos desenhariam figuras de deuses semelhantes aos cavalos, e os bois aos bois, e formariam os seus corpos à imitação do próprio. (Xenófanes, fr. 15)

Toda afirmação de um princípio através de um mito seria a afirmação do próprio humano, do próprio homem. Ao perguntar pelo mito, o homem não diria de uma deidade ou de uma transcendência, não diria de uma razão ou de uma verdade inefável, não diria de um conhecimento atemporal, nem de um princípio cósmico; ao perguntar pelo mito, o homem perguntaria por si mesmo, o homem faria a questão da esfinge, o enigma insuperável. Mas se o homem cessa o percurso pelo mito, para perguntar pela verdade, pela superação da condição humana, como pensar aquilo que não é humano? Como transcender aquilo que o faz ser aquilo que é? Como superar o sendo do próprio homem, se tudo que vê, tudo que toca, sente, pensa, mata e cria é humano? Todo sistema que se dispuser a superar o fluxo do mito, a inverdade mítica, será, inevitavelmente, opinião, doxa, uma oferenda aos deuses, uma libação a Agni, o senhor do fogo, devorador de libações.

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Toda afirmação dóxica possibilita a sua afirmação contrária, e toda afirmação de uma proposição é tão verdadeira quanto a afirmação de seu contrário. Todo sistema, por mais complexo que possa parecer, por mais amplas que sejam suas folhagens e tão mais diversas sejam as direções para as quais seus galhos apontem, enraíza-se, fundamenta-se em umas poucas asserções, quiçá em apenas uma. Sendo assim, todo sistema pressupõe seu anti-sistema, todo cristo, seu anticristo; todo Deus, seu anti-Deus, toda verdade, sua anti-verdade.

A terra, movendo-se como um dos astros em torno do centro, produz o dia e a noite, segundo a posição em que se acha em relação ao sol. A anti-terra, movendo-se em torno do centro e tendo atrás a terra, não é vista por nós devido à constante interposição do corpo da terra..(Aristóteles, fr. 204, Sobre os Pitagóricos)

O centro cósmico, o centro em potência que uniria estas duas verdades, estes dois sistemas opositores, a terra e a anti-terra, o cristo e o anticristo, seria a inefável verdade, a instância que superaria toda dialética humana, que uniria a bicefalia dos homens, fazendo-os perceber, verdadeiramente, o uno supremo.

E dizem que o fogo central é a potência demiurga, que do centro vivifica toda a terra e aquece a sua frialdade. Por isso, alguns chamam-no a cidadela de Zeus..., outros, o trono de Zeus. (Idem, fr.204)

Pensar a verdade, a verdade transcendente e imutável, seria então pensar este centro imperativo, irradiador das duas terras. O pensamento que não estaria sujeito ao

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jogar das dialéticas, que não estaria apenas circundando este centro irradiador, que não fosse o verso nem o reverso, poderia apenas pensar o trono de Zeus. No entanto, o homem da terra pensa apenas como o homem da terra pode pensar, enquanto o homem da anti-terra pensará sempre como o homem da anti- terra. Vendo sempre a si mesmo e o reflexo torto de si, pois “tendes todas estas por opiniões, que têm a aparência de verdade” (Xenófanes, fr. 35).

Diz-se na Ilíada (VII, 99): “nós não somos senão terra e água”. Terra e água, isto é do que são feitos os homens. Isto não é a busca pela substância primitiva, pelo princípio originário. Esta é a questão do próprio humano, do homem que observa seus deuses, o homem contemplativo. O homem que observa e diz: “terra e água, não somos senão terra e água”.

Ao dizer da terra e da água, ao dizer de seus deuses, ao dizer de Cronos, o pai devorador, e de seu filho vingador, ao dizer de Perseu e Andrômeda, ao dizer do mito, o homem anula a anti-terra. A anti-terra que surge da dúvida, do anseio pela transcendência, na esperança do futuro, na tentativa de superação de Cronos, o pai devorador.

Ouçamos, portanto, mais uma vez, a sentença hebraica: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”.

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Seria possível escutar, na hegemonia do pensamento monoteístico, o eco do mito, na primeva sentença hebraica? De que maneira diz a palavra, a presença do mito; qual a medida do mito, qual a medida da palavra na memória da língua? Que segredos e que memórias diriam gastas palavras; que diriam, ainda, o céu e a terra, além de uma criação, de um todo que se dá a partir de um Uno, de uma potência primeira? Seria possível à memória, ainda, o mito? Assim como pode o verso da Ilíada não dizer da pergunta pela substância primordial, poderia o primeiro verso da Gênesis não dizer de uma assertiva?

Poderia o verso não dizer da criação do mundo dialético, de um princípio originário criador do dois humano, da bicefalia humana? Ou seria a matéria do mito e da filosofia a mesma? Seria o dado dialético algo presente apenas em discurso ou seria esta a própria condição humana? Toda criação, todo ato, todo percurso dar-se-ia originariamente no jogo constante e ininterrupto de forças contrárias?

Duplas (coisas) direi: ... Dúplice é o nascimento, dúplice a morte das coisas mortais. A reunião de todas as coisas gera e destrói uma; a outra, em compensação, produz e desaparece quando de novo se desagregam. (Empédocles, fr. 17, v. 1, 3 – 5)

Duplo é o jogo do dizer. Na possibilidade e na impossibilidade de criar e destruir, de nascer e morrer, de negar ou afirmar, no ato de criar, da luz que se dá, eis que há, aí, já desde o dizer, toda possibilidade, em dupla via, de um dizer: dois.

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O mito de criação babilônico (o Enuma Elish) já diz de uma criação, do vigor da existência que se dá unicamente no duplo, no confronto dos opostos que face a face se chocam, criando e destruindo: Quando nas alturas nenhum nome fora dado aos Céus, Nem abaixo as Profundezas foram chamadas por nome, Apenas Primaveral Apsu seu progenitor. E Mummu - Tiamat a quem todos pariu. (v. 1 – 4)

Mesmo na anterioridade de qualquer invocação numinosa o princípio já se dava como o superior e o inferior, e a potência das possibilidades, na deflagração do princípio masculino, Apsu, com o feminino, Tiamat. Tanto a esfera humana, quanto a esfera transcendental do eidos divino se constitui, no Épico da Criação Babilônica, no dois. A razão primeira permaneceria inexistente, oculta, ou ainda mais distante, na total inefabilidade. Seria a não pronunciação da unidade, o seu conhecimento? Pois se ao dizer o um, dizemos sempre do dois, ao compreender a incapacidade humana de dizer da unidade, em seu não-dizer, residiria seu mais verdadeiro dizer. Ainda assim, não ouvimos, não escutamos, não percebemos a presença do mito nestas gêneses.

Meso ao escutarmos Tiamat e Apsu, que memória e que presença nos são evocadas? Mito é evocação de palavra, não de um sistema, nem de uma razão. Mito é palavra e toda palavra enquanto palavra ascende na possibilidade de mito. Mito: possibilidade de ver, não um reflexo, a abissal anti-terra, mas a milenar quimera.

No princípio, Deus criou o céu e a terra. O que seria isto, o céu, que ,de uma gênese primordial, projeta-se recurvo sobre a terra, vigilante, suportando, astros, deuses

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e ígnea esfera? E que seria isto, a terra? Que das profundezas abissais ergue-se, sustentando o mundo dos homens? Que é o céu, senão Urano, que é a terra senão Gea?

Pois se o céu não é mais Uranos, nem a terra, Gea, isso se dá pela palavra não mais evocar o mito, a memória da própria palavra. Mas tentemos ouvir, tentemos perceber esta memória, que se dá em discurso, no curso do rio, no dizer que diz de uma total inverdade, nem verdadeira, nem não-verdadeira, apenas palavra e memória, mito. Pois, ao ouvir a Gênesis da Septuaginta, que presença e que memória não nos dizem palavras antigas, palavras em memória, pois no princípio era a palavra. E no idioma grego assim podermos ouvir, ouvir na tradução dos sábios judeus para a Biblioteca de Alexandria o primeiro verso; o primeiro verso de um cânone, que, apesar de lembrado, resiste como ruína, ruína de palavras sem memória:

En arche epoíesen ho theòs tòn ouranòn kaì tén gên. No princípio, Deus criou Urano e Gea.

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INTRODUÇÃO II: DE COMO VEIO A SER ESTE TRABALHO

Creio não ser possível, para um trabalho que pretenda fazer um percurso, iniciar-se com uma introdução, muito menos, uma apresentação. Apresentar um texto que ainda está por vir seria, no mínimo, uma tentativa de minimizar seus efeitos, preparar o leitor, prepará-lo com as armas para melhor destruí-lo. Possivelmente uma apresentação bem encaixada seria aquela que se coloque no meio do caminho, que necessariamente não necessita estar no meio. Construí este trabalho de maneira que seus textos pudessem ser lidos na ordem que aprouvesse ao leitor. Na há, acredito, um fluxo contínuo que o construa, pelo contrário, procurei criar textos que se interrelacionassem, em diversas linhas de contextos. Assim, um fio imaginário, que guiasse o leitor, da primeira à ultima página não é, de forma alguma, necessária – a qualquer obra.

Busquei neste trabalho um verdadeiro percurso, um percurso que em seu maior empenho não tentasse submeter-se a uma determinada escola ou ideologia. É possível que um mesmo objeto, um mesmo animal, uma mesma pessoa, um mesmo lugar seja visto de diferentes maneiras. Então, por que nos limitar em longo percurso a fazer uma análise, uma aproximação, um pensamento fundamentado em uma única teoria, um único sistema? Se os anos de estudo me ensinaram algo, foi que o discurso teórico de qualquer escola não serve a um pensamento, a uma busca, qualquer que seja, mas, exclusivamente, ao exercício de poder. Nunca em um texto teórico o que se fala é aquilo do que se está falando, há, na verdade, um discurso velado, no qual outros temas são tratados, outros valores são postos em questão, que não podem ser tratados abertamente,

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e que, tampouco, posso apresentar nestas páginas. Há um vasto mundo que se oculta bem diante dos olhos de várias pessoas, mas não de todas.

Assim, durante todo este percurso tentei, mesmo sendo uma tentativa que anseia o impossível, não deixar o texto ser conduzido pelas diversas forças que circulam pelos conjuntos de sistemas. Tentei não deixar este percurso ser levado por forças muito mais poderosas que qualquer percurso, forças impossíveis de serem controladas.

Wellek, em sua formulação de uma história da Teoria Literária, diz-nos, em um de seus grandes momentos, que certa escola ultrapassou os domínios da academia e alcançou a periferia do mundo acadêmico: Espanha e Itália. Se o mínimo de atenção tivéssemos nesta leitura, uma óbvia pergunta faríamos. Por que, então, seguir um cânone que muito pouco nos diz e que nos vê como algo muito aquém de uma periferia? Mas se voltarmos para aquilo que acreditamos ser o nosso próprio o que vemos é nada mais, nada menos, que a repetição deste mesmo cânone.

Busquei assim outros caminhos. Sempre na tentativa da busca, nunca procurando o encontro, um lar seguro, mas sempre e somente a longa viagem em meio a tempestades. Por que sempre e insistentemente repetir o mesmo? O verdadeiro mestre é aquele que tenta adequar o discurso de seus discípulos ao seu próprio? O verdadeiro discípulo é aquele que adequa seu pensamento e seus trabalhos à vontade de seu mestre apenas em troca de uns chocolates? Pensamento não é adequação. O percurso não é seguir uma trilha já percorrida. Por isso o pensamento disto que chamamos de nosso país pouca ou nenhuma validade tem, pois segue trilhas já seguidas, tentando alcançar, mesmo distante da periferia, um centro, que não existe. O centro só existirá enquanto

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aqueles à sua volta lhe garantirem seu lugar central, mas o mundo é muito mais vasto que duas ou três franças e alemanhas.

Desta forma, tendo consciência deste fazer a que me propus, decidi por estruturar este percurso em alguns pressupostos: Primeiro, não citar, como fundamentação teórica, qualquer pensador, filósofo ou teórico, entre aqueles que em uma classificação própria, chamaria de ocidentais e modernos. Segundo, não fazer qualquer discurso de autoridade, o que seria praticamente impossível sem se valer do pressuposto anterior. Dessa forma, pude, sem qualquer medo de ofender a escola a qual me teria filiado para validar o trabalho, ser contraditório. Não contraditório por não saber utilizar as ferramentas de um sistema, mas, contraditório na medida em que tentei me aproximar de um mesmo objeto de diferentes maneiras e por diferentes ângulos. Pensar é percorrer, é pôr-se em movimento pelas sendas do mundo.

Mas todo percurso possui um ponto de partida, toda viagem inicia-se de algum lugar. Esta viagem iniciou-se a partir de uma questão: o mito. Talvez a única questão da literatura e da filosofia. O mito: quão distantes estamos, como nos distanciamos e se é possível retornar a ele. Se alguma vez existiu, ou se ainda existe, o que é o mito. Faz parte da condição humana ou de certa forma repete o paraíso perdido.

Parto do princípio: a literatura não é mítica. O mito não é literatura. Há no mito uma presença que não se dá nas literaturas, de qualquer país, de qualquer era que seja. A literatura é um projeto hegemônico e homogeneizante. Qualquer pessoa que busque pelo mundo, nas mais diferentes regiões perceberá que a literatura produzida é sempre a mesma, a repetição constante do mesmo. Isso se dá pelo fato de ela não ser mítica, mas

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um projeto. A literatura não diz de um próprio de uma língua, naquilo que só pode ser dito naquela língua e naquela cultura. A literatura pode ser traduzida, a literatura ganha prêmios, a literatura não diz nada. Já o mito diz apenas no momento, depois já não é mais mito, é apenas o suporte que o conservou, torna-se literatura. Mito é palavra dita, é magia, evocação de memória, moral, ensinamento, mistério e transcendência. Mito é inaudível a ouvidos despreparados. O mito é para poucos, a literatura, para todos, indistintamente.

Para prover esta aproximação ao percurso do mito, foi necessário que certas restrições ao academicismo fossem feitas. Primeiro, o enciclopedismo não comporta o mito; para trazer o mito é necessário fazer um trabalho de constante evocação e de vivificação da memória. Não poderíamos, nem mesmo, resgatar todas as suas variantes. Algumas culturas legaram-nos uma grande variedade de diferentes versões de um mito, espalhados por diversas obras, de diferentes gêneros. Assim optamos pelo trabalho do pensador e não o do colecionador.

Neste mesmo percurso, tentamos não aproximar mitos de diferentes culturas, tentamos não compará-los, mas percorrê-los. Percorrer cada cultura em seu próprio dizer, aproximar de suas questões como questões próprias. Encontrar a semelhança entre um mito chinês e um mito celta, por exemplo, é, na verdade, um exercício de pura aplicação conceitual. Criamos uma idéia absoluta, em um trajeto simples de triangulação, retiramos o objeto de seu contexto e colocamos junto a outro contexto. O que foi feito? Nada. Apenas o exercício de utilização de um conceito ou sistema criados muito depois destes objetos, numa tentativa de submetê-los e utilizá-los para provar uma teoria. O movimento pendular pode ser interessante para alguns, claro.

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Assim partimos, partimos de Cnossos, de seu labirinto, de seu monstro devorador. Partimos a partir de dois eventos: a katábasis e a tauroctonia. Nestas questões três perguntas sobrevieram: o que é o Tempo? O que é o conhecimento? O que é Deus? Três questões que na verdade são uma apenas, o mesmo isto do homem, o mesmo percurso. O percurso que se destina à morte, a morte que nada mais é que o devorar do Tempo, sendo o conhecimento e o desconhecimento a busca pela tentativa de sua superação.

Não sei, efetivamente, se há outra questão senão o Tempo, não sei em que medida uma sociedade é efetivamente diferente de qualquer outra, não sei se há, verdadeiramente, uma opressão maior sofrida pelo homem do que aquela que é exercida pelo Tempo.

Será que há efetivamente uma diferença entre aquilo que chamamos e conhecemos como religiões monoteístas e as politeístas? De todas as religiões que percorri, sejam elas de revelação ou não, pagãs ou monoteístas, semíticas ou indoeuropéias, vi que todas apresentavam seus mitos, seus ritos, sua moral e seus próprios conceitos de justiça e salvação. Se nossa cultura possui um conflito com as religiões, isso acontece em seu aspecto moral. Para sabermos o que é a moral, precisamos saber primeiro o que é uma religião.

A religião é um conjunto de diversas manifestações de uma sociedade. Mesmo quando acreditamos não professar uma fé, inevitavelmente partilhamos da religião da sociedade ou do grupo no qual estamos inseridos. O que nos assusta na religião são seus

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aspectos morais, e, assim, por não segui-los estritamente, acreditamos não professar esta fé. Mas a moral é o que há de mais baixo em uma religião, mais simples e rasteiro. Ao se converter a uma nova religião, o fiel dificilmente ultrapassará os domínios da moral, o ensinamento primeiro de qualquer sistema. Nem sempre foi assim. Em uma instância primeira, a moral era o fator decisivo para a sobrevivência de uma comunidade. Ela ditava as normas para que o homem não perecesse e levasse sua tribo para a ruína, em seus confrontos com a natureza, com os estrangeiros, com as mulheres, com seus iguais. Mas, quando um sistema religioso ultrapassa seus limites temporais e geográficos, levando sua moral para outros tempos, outras regiões, ou seja, para outras sociedades, a questão moral, antes uma norma de conduta e de honra, torna-se instrumento de poder, de dominação e de afastamento e velamento das questões internas daquele sistema de pensamento. Este mesmo afastamento é o afastamento dos mitos. Se não vemos os mitos judaicos, cristãos e mulçumanos é por que só nos é permitido ver sua moral.

Tendo consciência do que seria a moral, não seria absurdo aproximar mito, filosofia e religião, já que a filosofia seria um aspecto da religião sem os ditames da moral do afastamento; e o mito, o ritual mágico de evocação memorialística do conhecimento.

Um ritual de memória, evocação do conhecimento do círculo mais interno de uma cultura. Talvez seja isto o mito. E se for isto o mito, o percurso de nossa civilização é o percurso do afastamento do mito. E se do mito nos afastamos, aquilo que desejamos carregar com nossa literatura, nossa filosofia, nossas artes, nossas religiões é apenas isto: moral.

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Todos nós conhecemos as façanhas de Marco Polo, e seus relatos são tão surpreendentes quanto verossímeis. Conta-se, entre as várias anedotas que circulam sobre sua vida, que seu livro alcançou uma grande fama entre seus contemporâneos. Mas muitos foram aqueles que não acreditaram nas maravilhas ali relatadas, e, certo bispo, temendo grande repercussão, pediu ao famoso viajante que fizesse uma declaração pública, para revelar que muitas das maravilhas não passavam de mentiras, meras invenções suas. Dizem que Polo respondeu da seguinte forma ao apelo: “não escrevi metade daquilo que vi”.

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INTERLÚDIO: HEIDEGGER E OS GREGOS: PARTE II

De que maneira pode a mântica efetivar seu poder? Conta Deodoro Siculus que quando Tebas fora conquistada pelas tropas de Alcmeno e por sua vez os Cadmeus deixaram sua cidade, os Epigonis, de acordo com um antigo voto, capturaram Daphne, a filha de Tirésias, dedicando a ela os serviços de sacerdotisa do oráculo de Delfos. Conta Deodoro que as habilidades de Daphne não só rivalizavam com as de seu pai, como em pouco tempo a jovem já o superava. A virtude de sua técnica era de tal maneira que até mesmo Homero apropriou-se de diversos versos da sacerdotisa para ornar os seus próprios.

Uma formulação estritamente pragmática conserva sua vitalidade no campo de sua necessidade e possibilidade de uso. Uma formulação obscura mantém sua forma enquanto sua obscuridade não for quebrada.

Se a ingenuidade nos permite o encantamento com os versos de Homero, se a ingenuidade nos permite escutar os versos da sibila como ornamento aos versos do poeta, que acusarão as palavras no leito de morte do filósofo que escutou a pitonisa?

- Críton, devemos um galo a Asclépio; não esqueças de pagar esta dívida.

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DE DEUSES E DE HOMENS: ONDE SE SACIAM OS MORTOS (Uma leitura órfica de uma sentença hesiódica)

Dentre os seres que caminham sobre a Terra, dos seres que habitam sob a abóbada de Urano, há deuses e há homens, imortais e mortais; e, sendo tão distintas suas potências, de que maneira se originam suas instâncias? O que são homens e o que são deuses, mortais e imortais? Qual origem e qual a medida de suas diferenças? E, assim, no centésimo oitavo verso dos Trabalhos e os dias, de Hesíodo lemos:

Da mesma origem, os deuses e os mortais humanos.

Assim são: deuses e homens, de mesmo nascimento, de mesma origem, e talvez, poderíamos dizer, de mesma medida? Qual o caminhar dos homens e qual o caminhar dos deuses? Qual a medida da imortal imortalidade dos deuses, e da mortal mortalidade dos homens?

De mesmo encantamento, em memória hesiódica, dizem os versos iniciais da sexta ode nemediana de Píndaro: Única é a raça, única De deuses e de homens De única mãe retiramos nosso espírito (pneuma)

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Assim são homens e deuses, filhos de uma grande Deusa, filhos da Terra. Esta mesma Terra que está presente nos versos de abertura da Gênesis, esta mesma Terra, dá a vida e nutre homens e deuses. Deuses e homens, mortais e imortais, o que é a vida, e o que é o Tempo, o que é perecer, e o que é permanecer, o que é a eternidade em que vivem os deuses, e o que é o instante no qual insistem os homens?

Qual a fugacidade da sabedoria e do conhecimento dos homens frente àqueles que são eternos? Se deuses e homens provêm do mesmo, o que é a sabedoria dos que permanecem e o que é o tempo dos que partem? Sendo deuses e homens aqueles que nascem de uma mesma mãe, o que é aquilo que transcende a homens e a deuses? Se há transcendência além do divino, até mesmo os deuses devem, então, perecer.

A morte provém da necessidade, do anseio, do poder, da ação, pois até mesmo Zeus anseia por poder. Até mesmo Zeus, Zeus pai, o Todo, é assolado pela necessidade. Diz o mito órfico que Zeus apenas descobriu que os Titãs haviam estraçalhado seu filho, Dioniso, pois o assaram como a um animal sacrificial. Assim, Zeus aproxima-se da cena atraído pelo odor daquilo que pensava ser uma libação.

Assim agem os homens, e assim agem os deuses, necessitados daquele que os alimenta, necessitados daquilo que os alimenta. Anseiam pela permanêciam. Necessitam da memória, a potência primeira, deuses e homens necessitam da permanência.

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Os deuses não perdoam, querem ser lembrados sempre. (Odisséia, IV: 353- 354)

Tanto os deuses, como os homens, vivem na iminência de serem consumidos como um carneiro sacrificial. Devorados e ofertados a uma deidade maior, consumidos pelo esquecimento. A medida dos homens é a morte, mas até mesmo os deuses devem perecer. Pois, mesmo Aquele que é o todo, mesmo Aquele que a tudo possibilita, necessita da fala dos homens a lembrar, a recolocar e reinstaurar o todo e o um. Quantos deuses e quantas revelações não foram esquecidos por esta Terra? Mesmo assim homem e deus insistem em persistência, na insistência da permanência.

Na morte, assim como na vida, o homem opta, sedento, entre dois caminhos um caminho imposto pela necessidade no qual são ofertados dois rios, o rio Lethe, o esquecimento, e o rio Mnemosine, memória. Assim dizem as lâminas de ouro órficas, pequenas instruções, rememorações àquele que acabara de morrer:

Este é o trabalho de Mnemosine, quando estiveres a morrer Abaixo, à bem erguida casa de Hades, há uma fonte à direita E de pé, a teu lado, um alvo cipreste Descendo a ela, se saciam os mortos Não te aproximes desta fonte. À frente encontrarás do lago de Mnemosine Água fresca a verter, há guardas diante dela Te perguntarão, de astuta sabedoria O que procuras na escuridão do negro Hades Dize: “Sou filho da Terra e do Céu estrelado, Estou ressecado pela sede e morro, mas rápido dai-me, Do Lago de Mnemosine, água fresca para beber” (1ª Lâmina órfica, versos.1 – 12)

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Na busca pela permanência, na busca pela possibilidade de mais uma vez encontrar-se na duração, o homem escuta, daqueles que guardam a memória, a pergunta: “o que procuras na escuridão do negro Hades?”. A pergunta das profundezas é, na mesma medida, a pergunta da superfície; esta pergunta, que é a mesma que fora feita pela Esfinge a Édipo. A questão da insistência do homem em sua duração, em seu percurso humano. Uma pergunta que é já em si, sua própria resposta; a pergunta que oferece o beber da memória, já é o próprio beber do rio: “Sou filho da Terra e do Céu estrelado”, a resposta que lembra o homem, aquilo que ele é, aquilo que são os deuses. A pergunta que diz de toda necessidade do homem, de todo anseio, de toda busca, que é a busca pela permanência que se dá somente na memória, que é palavra, mito.

Quando o morto que vaga pelo Hades responde: “Sou filho da Terra e do Céu estrelado”, diz: “isto sou eu, o homem”, um dizer que diz de toda possibilidade humana, dizendo em memória do mito primeiro, dos versos primeiros da criação:

Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto, Gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos, Os que nasceram da Terra e do céu estrelado. (Hesíodo, Teogonia, versos 104 - 106)

Cantar da memória é lembrar a pergunta dos guardiões, a pergunta que diz da lembrança de que deuses e homens são o mesmo, ou seja, vivem na iminência do encontro com o esquecimento, do mortal perecimento, do encontro com a rainha dos mortos, Perséfone.

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Venho pura das puras, Rainha dos Infernos Eucles e Eubuleu, deuses e demônios Pois clamo ser de sua feliz raça Paguei a pena das injustas obras Abateu-me a Moira ou o lançador de raios Agora venho, venho suplicante à Perséfone Enviai-me, benigna, à morada dos puros. (6ª lâmina órfica)

O que seria esta morada dos puros? O que seria a pureza dos puros, sendo a pura das puras, Perséfone, a rainha dos mortos? Não seria a pureza a morada daqueles que bebem da memória? Não seria a memória final, o repouso no esquecimento, o sono no regaço dos deuses? Não seria o esquecimento final, a percepção, não de que o homem provém de uma natureza divina, mas de que homens e deuses são o mesmo; homens e deuses devem morrer. A morada de mortos e vivos, mortais e imortais, é o Hades. O Hades é a medida de todos os seres, o Hades é o canto e o saber, o invisível e o que torna visível, Hades é a própria vida de eternos e de mortais.

Mas o mesmo é Hades e Dioniso. (Heráclito, frg. B15)

O Hades é a possibilidade de toda vida, a própria vinha que se lança na terra, em vinho rubro, entorpecendo os vivos, na memória do esquecimento do que é a vida. Viver é esquecer e morrer é, finalmente, esquecer. Viver é esquecer que o Tempo não é duração, e morrer é esquecer toda duração. O poeta Teógonis, em uma de suas elegias nos diz: “Perséfone confere esquecimento (Lethe) aos mortais”. Pois:

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Morte é tudo que vemos despertos, e tudo que vemos dormindo é sono. (Heráclito, fr. 21)

Lembrar é compreender o Tempo como duração. A memória é a presença fulgurante do Tempo, que em seu poder faz o homem esquecer-se do instante, de que não há duração, apenas instante. Instante sobre instante. A presença do Tempo em duração faz dos homens e deuses seres impulsionados pela necessidade, que buscando alimento, poder, conhecimento, tentam superar a própria condição que impõe a necessidade: a duração. Percorrer é esquecer, viver e morrer é beber do Lethe, rio do esquecimento, rio da memória. A única possibilidade de superação da condição de mortais e imortais seria a superação das forças impostas pela duração, a memória e o esquecimento, uma impossível possibilidade. A morte é toda possibilidade que há na vida, pois a morte é o Tempo que não se faz como duração, mas como instante, a morte é própria vida. A morte é a mais desperta das vigílias, morrer é rememorar completamente o esquecimento provocado pela memória. Deuses e homens, em tão longo percurso de esquecimento, nunca se esquecerão de, finalmente, perecer.

Se vivemos e sonhamos, se na vigília esquecemos de rostos e eventos e no sono sonhamos com rostos que na vigília não conhecemos, se vivemos e vemos o improvável e o impossível, para, no sono, escutarmos a mais verdadeira asserção, se na vigília vivemos e percorremos para no sono esquecer, e se no sono percorremos e sonhamos para, na vigília, novamente esquecer, se vivemos e construímos, o Tempo não consumirá? Se sonhamos e construímos, o Tempo não consumirá? Qual a diferença daqueles que habitam nossos sonhos e aqueles que habitam em nossa vigília?

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Deuses e homens, uma impossível superação. Impossibilidade que confere a totalidade das possibilidades de mortais e imortais. No jogo constante da memória e do esquecimento, da vigília e do sono, do instante e da duração, qual a vigência e a possibilidade do conhecimento? O que é a busca do homem?

Uns não respeitam nem templos nem altares, nem nada do que é divino, outros reverenciam as pedras e as primeiras árvores e animais que lhe aparecem pela frente. Quanto aos que se preocupam com a natureza do universo, estes afirmam a unidade do ser; aqueles, sua multiplicidade infinita. Uns crêem os corpos em perpétuo movimento, outros, em inércia absoluta. Aqui se pretende que tudo nasce e tudo morre, ali que nada se criou e nada deve ser destruído. (Xenofonte, Feitos memoráveis de Sócrates, I, 14)

Sabendo serem homens e deuses filhos da Terra e do Céu, sabendo ser Perséfone a doadora do esquecimento humano, poderá a busca do homem, o conhecimento humano, ser algo além de uma libação à Rainha dos Mortos?

Um dos mais obscuros diálogos platônicos, chamado Parmênides, narra o diálogo que se deu com o encontro entre o jovem Sócrates e o já velho Parmênides. É Parmênides quem o conduz, demonstrando o exercício de tirar conseqüências de hipóteses. Levanta nove hipóteses acerca do ser, versando sobre cada uma delas, para ao final concluir:

Diríamos corretamente se disséssemos, em suma: se um não é, coisa nenhuma é. (...) Sendo assim, fique dito tanto isso quanto que, segundo parece, quer um seja, quer não seja, tanto ele mesmo quanto as outras coisas, tanto em relação a si mesmos quanto em relação uns aos outros, todos totalmente tanto são quanto não são, e tanto parecem quanto não parecem ser. (Platão, Parmênides, 166c) ϭϭϬ 

Ser e não-ser são o mesmo. Mortais e imortais, e todos os pares que afastados se apresentam sempre como mesmo, assim coloca o Parmênides do diálogo platônico e o Parmênides pensador pré-socrático:

Todavia, desde que tudo foi nomeado Luz e Noite Em face disto e daquilo segundo suas forças, Tudo está cheio ao mesmo tempo de Luz e de Noite escura Ambos iguais pois que nada leva a nenhum dos dois. (Parmênides, frg b9)

O caminho pelo qual os homens percorrem suas vidas não poderá levar, nem a seu destino, nem a sua origem, pois destino e origem a tudo permeiam, a tudo possibilitam e em tudo se apresentam. No caminhar apresentam-se em igual medida as forças de vida e de morte, do saber e do não saber. Mesmo que haja o um, mesmo que haja o todo, tudo se dá na caminhada humana, de modo humano, em percepção humana, na medida e nas possibilidades oferecidas aos homens:

... Pois que a Moira já o prendeu Para ser todo imóvel; assim será nome (ónom) tudo Quanto os mortais instituíram persuadidos de ser verdadeiro (alethé) Surgir e também sucumbir, ser e também não, Mudar de lugar e variar pela superfície aparente. (Parmênides, frg b9, versos 37 - 41)

Persuadidos pela verdade, instituem o nome, esquecendo-se da Moira, o destino, de sua prisão, de seu círculo de possibilidades oferecido pela deusa. Pelo nome

ϭϭϭ 

instituem os pares de opostos por onde transitam e no nome acreditam residir a verdade. Sendo o nome a tecnologia máxima de tentativa de dominação da linguagem, através do nome tenta-se superar a infinita distância entre o eu e outro, buscando a impossível aproximação, a impossível comparação. Assim diz Platão (Crátilo, 388b) o nome é “o instrumento apto a ensinar e fazer discernir a essência, do mesmo modo como a lançadeira está apta a tecer a tela”. Como instrumento, o nome diferencia tudo, diferencia uma mosca de outra mosca, uma cor da outra, uma folha da outra. Mas na tentativa de identificar os iguais e distinguir os diferentes, não percebe, ou não quer perceber - a palavra divina e humana - a Moira possibilitadora.

Talvez seja isto então que diga a formulação do Tempo cíclico, do Tempo como a circular repetição do mesmo, da roda a que estão presos homens e animais, deuses eternos, vegetais e estrelas e planetas, deuses cósmicos e o caos. A Moira como o Tempo, prisão circular, como um rio circular em que nada o peixe, acreditando avançar percorre infinitamente o mesmo percurso. A Moira, água nutriz deste rio, um rio de Tempo circular.

Já com efeito eu outrora fui menino, menina, Arbusto, passarinho e, do mar saltando, peixe. (Empédocles, frg. 117)

A Moira concede todo outrora a homens e deuses, todo Tempo em memória da duração, como favorecidos pela Moira no mundo circundante. Filho de uma mesma mãe são todos os seres, na circular oposição de um mesmo: Hades e Dioniso. Como dizem as inscrições nas tabuinhas órficas de Olbia:

ϭϭϮ 

Tabuinha a: Bíos Thánatos Bíos Alétheia Diónisos Orphikoí Vida Morte Vida Verdade Dioniso Órficos Tabuinha b: Eiréne Pólemos Alétheia Pseudos Diónisos Paz Guerra Verdade Mentira Dioniso

Da mesma origem, os deuses e os mortais humanos. Da mesma medida, a morte e a vida, da mesma medida toda possibilidade, de uma mesma instância, sono e vigília, de um mesmo abraço o Céu e a Terra. Na inefabilidade de todos os seres e do único ser, na infinita distância entre os entes, e na indistinta diferença de suas qualidades, que restará dizer, tudo é um, ou nada dizer no dizer que toda memória presentifica, o dizer da palavra, o mito. Que restará dizer, a nós, deuses e homens, que somos seres bicéfalos?

ϭϭϯ 

DEUS

“Quer eu viva, quer eu morra, eu sou Osíris.”

ϭϭϰ 

Imagem 3: El, o senhor dos deuses, entronizado

ϭϭϱ 

O FARDO DA TERRA

A Condição da mulher Haveria uma terceira via para a pergunta: o que é Deus?

Análoga à compreensão do conhecimento é a busca pela compreensão da condição da mulher, sua maldição e seu fardo. Sabemos que a cabeça divina não possui uma consorte e se se apresenta sempre como uma divindade masculina, isso se deve ao fato de sua contraparte permanecer sempre oculta.

O conhecimento pertencia em uma primeira instância à mulher, pois ela é a primeira a executar a caminhada para as forças infernais. Diversos são os mitos que relatam a descida das mulheres às zonas ínferas e sua coabitação com seres lá residentes. Um homem, normalmente um guerreiro, resgata-la-á, restituindo seu reinado e sua honra, e, consequentemente, rompendo o laço dos homens com o outro mundo.

Lembremos que alguns guerreiros do ciclo arturiano foram treinados pelas Damas do Lago. Lembremos também que os aesires não eram os portadores de conhecimento; Ódin, em suas buscas, recorria ao vanires, deuses de essência feminina.

No entanto, no decorrer da história, o homem coloca-se sobre a Terra, não desejando mais submeter-se aos desígnios das forças femininas. Legitimiza seu reinado de saber, fazendo-o superior ao conhecimento transcendental feminino e desautoriza, assim, a mulher como dotada de sabedoria.

O fardo da mulher é não possuir

conhecimento; para buscar a sabedoria deve introduzir-se no mundo masculino. ϭϭϲ 

Ao serem expulsos do Éden, Adão e Eva são amaldiçoados por Deus:

“Parte agora do Paraíso”, disse Deus a Eva. “Faço-te deficiente na mente, religião e habilidade de levantar testemunho e herança. Faço tua moralidade torta, faço-te prisioneira por todos os teus dias das melhores coisas da vida (...). Destino-te à menstruação e às dores da gravidez e parto, e tu darás à vida apenas sentindo a dor da morte. A mulher sentirá mais dor, mais lágrimas derramará, terá menos paciência, e Deus nunca fará dentre elas um profeta ou um sábio.” ( al-Kisa’i, 1997, p.44, tradução nossa)

Quando a mulher recebe esta maldição, a cabeça divina é destituída de sua metade feminina. E, assim como é expulsa da comunidade, é expulsa também do convívio com os homens. Passa ser vista como uma intrusa, uma destruidora do idílio homossexual em que vivem os homens. Destituída de poder, a mulher exigirá do homem seu sacrifício frente a sua comunidade idílica, abandonando o verdadeiro prazer, a verdadeira vida, para constituir com ela a única coisa que lhe restou, a família. O mais pesado dos fardos foi o que coube a ela.

Assim surgirá a Virgem. A Virgem é a que se submete, não podendo exercer o papel da ligação feminina com o conhecimento transcendental. Ao exigir da mulher a virgindade para outorgar seu filho aos homens, Deus renega o papel da ascese extásica. A mulher deverá ser pura, ou seja, dirigir-se ao divino apenas através de sua aceitação do conhecimento único.

Diferentemente da virgem guerreira, da amazona, a nova virgem conserva seu corpo inviolado para entregá-lo a seu macho procriador. O novo homem não percebe no corpo da mulher a possibilidade da união para o sagrado êxtase. Nem ela percebe em seu próprio corpo a possibilidade da divina prostituição. O caminho do prazer e da ϭϭϳ 

ascese masculina estará apenas junto aos homens; o da mulher, apenas no desempenho do papel da Virgem, que não quebrará seu voto com a violação pelo homem que lhe fora destinado a garantir descendentes. Surge assim o amor sagrado e puro, que através da união dos opostos alcançará a superação da profana dialética. O casal divino é aquele unido pelo amor - sentimento autorizado pelo Deus Zeloso - que possibilita a perpetuação da humanidade e desqualifica a ascese extásica e ritual.

O corpo altamente sensualizado da mulher torna-se, então, um interdito. Ela é aquela que retira o homem de sua estreita senda. Não há estreita senda junto à mulher antiga, apenas junto à virgem. Por isso, Sócrates institui o amor pelo efebo como o único amor possível para aqueles que buscam. O desejo pela mulher é um instinto primitivamente animal, somente os animais anseiam pela sua contraparte feminina. O efebo, com uma beleza semelhante à feminina, não trairia o homem racional, não o faria confundir-se em seu caminho em busca do conhecimento. Lembremos que na Grécia Clássica a mulher ainda conservava muito de seu antigo poder, e na consolidação do sistema socrático havia a clara necessidade de romper a relação do homem com a busca pelas profundezas, com o obscuro, a relação de Apolo com Píton. O conhecimento masculino passará a ser aquele que busca a saída da caverna, a luz, a idéia, o absoluto, Deus. A aniquilação da mulher é o primeiro momento para a busca da unidade.

“Não deixarás com vida uma feiticeira.” (Êxodo, 22: 17)

Por isso a relação da mulher com a serpente precisava ser cortada. A serpente é a fonte do conhecimento feminino. Por isso o herói deve matar o dragão, pois, assim, se

ϭϭϴ 

apossa do conhecimento das zonas ínferas, do tesouro e da mulher, da antiga mulher guerreira que perde seu cinturão, fonte de toda a sua força.

Apolo torna-se senhor de Delfos, pois mata Píton, a serpente, tornando-se senhor de suas riquezas, da profecia e da pitonisa. O dragão e a serpente eram o fio de Ariadne que levavam a mulher às profundezas da Terra. Todo herói e todo sábio que negava a unidade fazia um pacto com a serpente ou sacrificavam-na.

Quando o Deus abramânico amaldiçoa a serpente, Ele cria a cisão que nunca mais poderá ser reparada:

“Colocarei inimizade entre ti e a mulher e entre teus descendentes e os dela; ela atacará tua cabeça, e tu atacarás seu tornozelo”. (Gênesis, 15)

Este Deus não proíbe o encontro entre a mulher e a serpente. Através de todo Seu poder e de toda Sua sabedoria, para romper definitivamente a relação entre as duas, Ele cria a inimizade. Para pôr um fim de fato à mulher, soprará Sua própria alma na Virgem.

O Deus Zeloso, o Deus masculino, é aquele que em sua Aliança oferece um abrigo ao homem. A deusa da Terra, a Deusa Mãe, por sua vez, é uma deusa inconstante, furiosa, que não se sente obrigada a agraciar seus crentes. E, se o Deus Zeloso é aquele que agracia quem se coloca na busca de seus mistérios, a Terra pune aqueles que a buscam. Cansada da caça, ali costumava a deusa das florestas banhar Seu virginal corpo com a límpida água. Depois de ali entrar, ϭϭϵ 

Entregou à ninfa escudeira o dardo, a aljava e o arco distendido. Outra recebeu em seus braços as vestes que a deusa despia. Duas outras descalçam-lhe os pés. Mais hábil que elas, Ismene Crócale apanha-lhe num nó os cabelos soltos Sobre os ombros, embora soltos estivessem os seus. Néfele, Híale, Rânide, Psécade e Fíala colhem água E derramam-na de volumosas urnas. Enquanto a neta do Titã aí se banha com as costumadas águas, Tendo interrompido os trabalhos E vagando ao acaso pelo bosque desconhecido, Eis que o neto de Cadmo [Actéon] se abeira do recanto sagrado. Assim conduz o destino. Logo que entrou na gruta, que manava água, tal como estavam, as ninfas, ao verem um homem, começaram a bater o peito nu, enchendo todo o bosque com seus repentinos gritos e, em círculo, velam Diana com os próprios corpos. Mas a deusa é mais alta do que elas e sobrepassa-as todas Do pescoço para cima. A cor que costumavam ter as nuvens Atingidas por um golpe de sol frontal, ou a cor da Aurora Revestida de púrpura, era a cor do rosto de Diana ao ser vista Sem roupa. Rodeada embora pelo grupo das suas acompanhantes, A deusa, contudo, pôs-se de lado, rodou a cabeça para trás E, como se quisesse ter à mão as setas, assim colheu da água Que tinha, atirou-a ao rosto do jovem e, enquanto a água vingadora Lhe molhava os cabelos, acrescentou estas palavras, prenúncio De tragédia próxima: “Agora poderás contar, se contar puderes, Que me viste nua.” (Ovídio, Metamorfoses, Livro III: 163- 193)

A visão extásica da Deusa desvelada é interdita, enquanto o Deus que é mostrase e não se mostra ao mesmo tempo; por ser, ele se faz presente sem interditos, para contemplar sua magnitude basta a fé irrestrita. Para que buscar a fúria feminina, que, mesmo nutrindo com o leite de seu seio, pune, atormenta, e enlouquece seus seguidores com a sua sagrada inconstância? O Deus Zeloso confere segurança, confere uma serena sabedoria. O conhecimento perde, assim, seu caráter extásico, o sábio é aquele que possui a fé cega, é aquele que acredita nos fundamentos, é aquele que é claro, racional, o que se utiliza de conceitos, o que crê na ciência, nas artes e na filologia. O sábio só poderá ser o filósofo, pois o este, mesmo negando, é aquele que crê no Deus de Abraão. O homem que busca a serpente é o que sacrifica seu mais precioso bem para banhar-se em seu sangue. ϭϮϬ 

Nietzsche percebera que a filosofia ocidental nasce do Judaísmo. O possível anti-semitismo do filósofo era sua busca por um pensamento anterior à presença abramânica, por isso buscou na Pérsia e na Índia uma presença outra, anterior à influência cristã na Europa. Se alguns estudiosos gostam de criticar as religiões semíticas, principalmente o Islã e o Judaísmo, por não serem religiões transcendentais, sem um pensamento místico, Nietzsche acusa a filosofia ocidental de ser Judaísmo.

Heidegger, por sua vez, chamou a presença do Judaísmo de “esquecimento do ser”. Um estudioso que se coloque no aprendizado do árabe ou do hebraico logo perceberá que nessas línguas o verbo “ser” não pode ser utilizado no presente afirmativo. Este não poder não é de prescrição gramatical. É justamente pela total impossibilidade dessa utilização que o presente afirmativo é o tempo que assinalaria a permanência do ser. Ao dizer o “ser” no passado, no presente negativo ou no futuro assinala-se a transitoriedade do ser da oração. O ser que foi, o ser que não é, o ser que há de ser. O ser que é, só poderá ser aquele que não é sujeito à transitoriedade, às qualidades, ao tempo; o ser que é, ou seja, o único ser, é o absoluto, Deus.

Moisés disse a Deus: “Mas, se eu for aos israelitas e lhes disser: ‘O Deus de vossos pais enviou-me a vós’, e eles me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’, o que devo responder?” Deus disse a Moisés: “Eu sou aquele que sou. Assim responderás aos israelitas: ‘Eu sou’, envia-me a vós”. ( Êxodo 3, 13-14.)

A pergunta pelo ser, na tradição semítica, é a pergunta por Deus. O ser que apenas é, o Deus é. O ser que não é regido pelo sendo. Ao assumir o ser como o sendo, o pôr-se no mundo, Heidegger tenta retirar o ser de sua instância divina, para colocá-lo junto ao homem, esta é a tentativa de resgate do ser. ϭϮϭ 

Ao tentar resgatar o ser, Heidegger, na verdade, tenta resgatar um conhecimento não-judaico. Se Schopenhauer buscou a Índia e Nietzsche, a Pérsia, Heidegger buscou os gregos. Mas, dos semitas, os gregos não pegaram emprestado apenas a escrita, como também a filosofia. É óbvio que todo um sistema de notação do Verbo, não poderia ser instituído sem o pensamento que o autorizasse, justificasse e viabilizasse.

Se a filosofia grega é realmente algo destituído deste esquecimento do ser, sua principal formulação não correrá o risco de se assemelhar à principal formulação de uma religião semítica.

Segundo o pensamento islâmico, todas as teses, crenças, formulações e conceitos dos apostolados são resumidos no “Testemunho”. Este diz:

Não há deus senão Deus, e Maomé é seu profeta.

Duas afirmativas integram o Testemunho: 1) a unidade de Deus; 2) o apostolado de Maomé. Ao pronunciar o Testemunho, o fiel afirma que toda a multiplicidade, na verdade, é o aparecer do Um, que tudo é o mesmo; o fiel afirma também que não crê no palavrear dos homens, apenas no próprio dizer desta unidade que foi transmitida por aquele que a soube escutar e retransmitir o dizer da unidade, ou seja, o Profeta Maomé.

Por sua vez, diz o fragmento de Heráclito:

Ouvindo não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer: tudo é um.

ϭϮϮ 

Duas afirmativas integram o fragmento: 1) a sabedoria em se escutar o Logos; 2) a Unidade. Tanto o testemunho de fé islâmico, como o fragmento, dizem o mesmo em suas duas proposições, apesar de na ordem inversa. Sobre a afirmação da unidade não há muitas dificuldades em se perceber tal proximidade, a dificuldade está realmente na percepção da semelhança entre o apostolado de Maomé e o de Heráclito.

Apesar de Heráclito dizer para não escutá-lo, mas ao Logos, é o filósofo que fará a asserção, não o Logos. Heráclito coloca-se como aquele que dirá pelo Logos, o filósofo escutou ao Logos e com sabedoria disse: tudo é um. Heráclito é assim como Maomé, o profeta do Logos.

Ao instituir a fé cega do filósofo, Deus nomeia a multiplicidade e o uno, o Eu divino e os demais que fazem parte deste mesmo Eu, único. Antes de existir o Deus Único, não existia a multiplicidade. Antes de existir a igualdade, não existia a diferença. Aí reside o erro da tentativa de recuperação deste pensamento anterior, pois este pensamento é anterior à escrita, e só poderá vigorar enquando for anterior à escrita. Onde há a escrita nada fundam os poetas, pois nada permanece, senão o ser, senão Deus.

ϭϮϯ 

Vasumitra

Conta-se que, em um primeiro momento, Buddha não aceitou mulheres entre seus companheiros. Isso pelo fato de terem um corpo extremamente sensualizado e uma grande fraqueza por tudo aquilo que participa das volições. No budismo mais antigo uma mulher nunca poderia alcançar a iluminação. No entanto, diz-se que, pela insistência de Subhuti, um de seus discípulos, Buddha acaba por aceitar a primeira mulher em seu grupo de mendicantes.

Assim, temos a história de Vasumitra que compõe o grande ciclo conhecido como o Avatamsaka Sutra, grande cânone de diferentes escolas budistas:

Sudhana partira em busca de seres iluminados que o instruíssem. Neste caminhar encontra-se isoladamente com cada sábio, que lhe concede um ensinamento e no final, encaminha-o para um outro ser iluminado. Assim foi seu encontro com a monja Sinhavijurmbhita, que termina com a bodhisatva dizendo-lhe: “Ao sul, na terra de Durga, há uma cidade chamada Ratnavyuha, onde Vasumitra (lit. “amiga dos homens”), uma devota do deus da luz, vive. Vá e pergunte a ela como aprender e praticar o caminho dos seres iluminados.” Prestando seus respeitos à Sinhavijurmbhita, Sudhana partiu em seu caminho para a cidade de Ratnavyuha, no país de Durga, onde procurou por Vasumitra. Todos aqueles que não conheciam a amplitude do conhecimento de Vasumitra ou sua virtude diziam a Sudhana: “O que deseja alguém como você, com sentidos calmos e contidos, tão consciente, calmo, sem confusão ou distração, sua mente não sobrepujada pelas sensações, não apegado ao aparente, seus olhos avessos ao envolvimento com qualquer forma, sua ϭϮϰ 

mente tranqüila e atenta, seu modo de vida profundo, sábio, oceânico, sua mente livre da agitação – o que você poderia ter com Vasumitra? Não deveria ter nenhuma luxúria com ela, sua cabeça não deveria voltar-se a ela, não deveria ter nenhum pensamento impuro, não deveria ser levado por tais desejos, não deveria estar sob o poder de uma mulher, não deveria estar enfeitiçado, não deveria entrar no reino da tentação, não deveria afundar na ilusão da sensualidade, não deveria fazer o que não deve ser feito.” Ouvindo isto, Sudhana alegrou-se e dirigiu-se à casa de Vasumitra, e lá ele a viu, belíssima, com a pele dourada e cabelos negros, seus membros e tórax proporcionais, mais bela em forma que qualquer ser celestial ou humano no reino dos desejos, sua voz mais doce que a do próprio Brahma. Ela conhecia a língua de todos os seres, possuía uma voz agradável que poderia pronunciar qualquer som, e era habilidosa na organização fonética. Era versada nas artes e ciências, havia aprendido a usar a mágica do verdadeiro conhecimento, e havia se tornado mestre de todos os aspectos do expediente dos meios dos seres iluminados. Seu belo corpo era decorado com diferentes jóias, vestia uma tiara de grandes gemas, sua cintura adornada com diamantes e usava um colar de lápis-lazúli. Sudhana dirigiu-se à Vasumitra, prestou reverência e disse: “Eu direcionei minha mente na suprema iluminação perfeita, mas não sei como aprender e praticar o caminho dos seres iluminados. Ouvi que você concede instruções aos seres em busca de iluminação, espero que me diga como um ser em busca de iluminação deve aprender e praticar o caminho dos seres iluminados”. Ela

disse:

“Alcancei

uma

libertação

iluminada

chamada

‘impassível’. Todos aqueles que vêm a mim com a mente repleta de paixões, ensino-os de tal forma que se tornam livres das paixões. Aqueles que ouviram meus ensinamentos e alcançaram a cessação, obtiveram uma concentração chamada ‘reino do não-apego’”. “Alguns alcançam a cessação tão logo me vêem, e obtêm uma concentração iluminada chamada ‘deliciado na alegria’. Alguns alcançam a concentração iluminada meramente por conversarem comigo, e obtêm uma concentração iluminada chamada ‘tesouro na alma sem interditos’. Alguns ϭϮϱ 

alcançam a concentração iluminada meramente por segurarem minha mão, e obtêm uma concentração chamada ‘fundamento da partida para as Terras Búdicas’. Alguns alcançam a concentração iluminada apenas por ficarem comigo, e obtêm uma concentração chamada ‘luz da liberdade das amarras’. Alguns alcançam a concentração iluminada apenas por me observarem, e obtêm uma concentração chamada ‘expressão tranqüila’. Alguns alcançam a concentração iluminada apenas por me abraçarem, e obtêm uma concentração chamada ‘ventre recebedor de todos os seres viventes sem distinção’. Alguns alcançam a concentração iluminada apenas por me beijarem, e obtêm uma concentração chamada ‘contato com o tesouro da virtude de todos os seres’. Todos que vêm a mim, eu os estabeleço nesta iluminação da liberação da derradeira impassibilidade, às margens do estágio da onisciência sem interditos.” (Avatamsaka Sutra, p. 1270 – 1272, versão nossa)

A comunhão com a sacerdotisa prostituta era o caminho para o despertar do homem. O homem recebe a instrução “conhece-te a ti mesmo” de Píton, a serpente. O ato de comunhão com a mulher volúvel e inconstante repete o ato do mergulho nas águas primordiais, no mistério primordial, o transcendental conhecimento, que é a superação consciente da consciência humana.

Para comungar com as forças e obter sua quase imortalidade, Sigurd deve banhar-se no sangue sacrificial de Fafnir, o dragão. Os pássaros, seres transmissores das mensagens divinas, instruem-no neste ritual. Conquistando sua semi-imortalidade, obtém o tesouro de Nifelheim, e também o amor da valquíria, mas ao rejeitá-la comete seu grande pecado, que o levará à ruína, ruína esta que lhe fôra profetizada por Fafnir.

Se o homem antigo deveria buscar a sabedoria na mulher volúvel, o cristão deve buscar no homem. E a mulher apenas tornando-se homem poderá iniciar sua busca pelo conhecimento. Assim diz o Evangelho de Tomé: ϭϮϲ 

114. Simão Pedro disse: seja Maria afastada de nós, porque mulheres não são dignas da vida. Respondeu Jesus: Eis que eu a atrairei, para que ela se torne homem, de modo que também ela venha a ser um espírito vivente, semelhante a vós homens. Porque toda mulher que se fizer homem entrará no Reino dos Céus.

Não há mais qualquer possibilidade junto à mulher ou para ela.

Há, no entanto, nos evangelhos estranhas menções a um ritual de comunhão com a entidade divina de Jesus. E qualquer inferência mais profunda a estas passagens seria imprudente, pois negaria, por um lado, toda a exegese cristã, e, por outro, o discurso quase sempre metafórico próprio a estes textos. Diz o Evangelho de João:

Na verdade eu vos digo, se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia. Porque minha carne é verdadeiramente comida e meu sangue é verdadeiramente bebida. Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim, e eu nele. (João 6, 53-56)

À parte as exegeses e o significado cristão, o que diria esta passagem? Há no Evangelho de Tomé a seguinte:

108- Disse Jesus: Quem beber da minha boca se tornará como eu. E eu serei o que ele é. E as coisas ocultas lhe serão reveladas.

O caminho do homem é tornar-se, não só como Cristo, mas tornar-se ele o próprio Cristo. Não é simplesmente a imitação do Deus que anda na terra, não é o imitar os atos de Cristo, mas é, alimentando-se de sua própria boca, tornar-se Ele próprio. Ora, um homem não pode contemplar o divino em sua essência, mas pode em sua humanidade tornar-se como o Deus-homem.

ϭϮϳ 

A contida comunhão erótica com o Deus-homem necessita do esquecimento do duplo do homem. A sagrada trindade, para se firmar como trindade, teve que esquecer do duplo do homem. O três triangular é a reafirmação do Um, e no Um não pode existir uma contraparte, um duplo, um reflexo, por isso todos os três serão repetição do mesmo, da imagem divina. Deus é Cristo que é o Espírito Santo que é Deus.

A vida na dialética é a condição da humanidade: o homem e a mulher, a morte e a vida, a ignorância e a sabedoria. A existência da mulher irá sempre e constantemente mostrar ao homem sua fraqueza, sua ignorância e sua infinita distância do Um. A mulher zomba do homem e o atrai através da zombaria para o seu reino de instabilidade e suscetibilidade ao Tempo Devorador. A mulher é o macaco de Deus. A mulher é a própria serpente oferecendo sempre ao homem o fruto da dialética. A mulher é o próprio demônio do Evangelho de São João, as trevas que se opõem à Luz. A mulher seduz através de sua dança e pede a cabeça do profeta ao rei hesitante. A mulher impede a comunhão do homem com o próprio homem. A mulher impede a contemplação da unidade. Ao aproximar-se do feminino, o homem afasta-se de Deus. Ao perceber-se como criatura soprada pelo espírito de Deus, o homem perceberá o sopro de Deus em si; com a mulher, o homem vê apenas o duplo, o reflexo torto de si, o macaco de Deus.

Mesmo a busca não sendo mais através da imersão no disforme, no volúvel e no feminino, Cristo assume para a busca do homem dois elementos extásicos, mesmo que metaforicamente: o canibalismo e o vinho. Devorar Cristo é tornar-se como ele. Beber de seu sangue é tornar-se como ele. O sacrifício de Deus é a única possibilidade de torná-lo divino e a única possibilidade de conhecer sua divindade.

ϭϮϴ 

Cristo não diz que todos os homens são cristos. Ele diz: “Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim, e eu nele.” Comei minha carne! Bebei meu sangue! E sede um deus! Pois esta é a única possibilidade de ressuscitar assim como Cristo ressuscitou no Terceiro Dia.

Nem todos morreremos, mas seremos transformados num momento, num piscar de olhos, ao som da última trombeta! (Coríntios 15, 51-52)

A superação da condição humana através do canibalismo de Cristo, do tornar-se Cristo, é a superação de toda distinção, mas a não-distinção não pode ser feita pela união dos opostos. O oposto não pode existir, o demônio não pode ser o oposto de Deus, o demônio é aquele que cai, não aquele que se equilibra em forças com o celestial. O caminho para a união não pode partir do equilíbrio, ele deve partir da extinção do outro, do duplo. A cabeça da serpente será esmagada na anulação dos opostos. O um surge com a cessação do outro. Pois o outro é apenas o macaco de Deus.

A heresia maniqueísta está na formulação da dualidade da divindade. Ao colocar a dialética própria ao homem na divindade, Mane, o profeta do maniqueísmo, inviabiliza a Justiça, temporizando Deus, fazendo-o suscetível ao Tempo e a uma entidade superior, que pode ser facilmente interpretada como o próprio Tempo. Pois, se o que rege o homem está em constante disputa com seu oposto, assim como o homem, o que poderá ser superior a esta disputa e não ser suscetível a ela senão o próprio Tempo? E se o Tempo é superior a Deus, o Tempo fatalmente O consumirá.

ϭϮϵ 

Ao enviar seu filho para a terra, Deus poderia estar criando seu duplo, seu macaco. Haveria então um Deus para reinar sobre os Céus e um Deus para reinar sobre a terra, por isso houve a necessidade de se criar a Sagrada Trindade, fechando assim o triângulo e retomando a função do um.

ϭϯϬ 

O Pensamento frente à religião

Ao pensarmos um movimento pertencente ao âmbito da religião inevitavelmente deve ser feito o movimento de distanciamento desta religião e da fé. Ao abandonarmos os fundamentos dogmáticos e mágicos para pensá-los, deveremos incorrer no pecado de qualquer fé que é a dúvida. A religião exige de seu seguidor a aceitação irrestrita dos elementos de seu sistema ou, pelo menos, de seus fundamentos. Ao perguntar sobre estes fundamentos, quebramos a força primeira da religião que é a fé irrestrita. Perguntar pelo significado de um símbolo é destruir o símbolo; perguntar pela veracidade de um dogma é negar o dogma. A fé exige o ritual, e o ritual, pela sua característica essencial, tende a suprimir o ego, aproximando assim o devoto de sua origem próxima ao divino, ao caos primordial.

Pensar a religião é inevitavelmente destruí-la. Para analisar um inseto devemos matá-lo. O pensamento exige que aquilo que é estudado esteja imóvel ou imobilizado. O homem religioso que pensa sua religião é sempre um apóstata. Como então aproximarse de uma religião sem ofendê-la? O ritual religioso exige a supressão intelectual.

Assim, para destruir um mito bastava escrevê-lo. Com a escrita do mito, seus elementos rituais se perdem, e o que surge então é uma narrativa fantástica, e dificilmente surgirá algo além do tolo, infantil ou cruento, primitivo.

Por mais que façamos o movimento de abandonar as premissas de nossa cultura nunca sentiremos o sagrado na leitura de um antigo mito. Sentimos, talvez, uma perplexidade, mas nunca o sagrado possibilitado pelo ritual. A escrita impossibilita o

ϭϯϭ 

ritual, mas louva o pensamento. A escrita identifica seu receptor, fazendo-o diferente de toda a humanidade, a escrita cria o ser pensante, o cientista. Por isso para, o ritual se refundar sobre uma base escrita, necessita da oralização desta escrita.

A filosofia era anterior a qualquer formulação mítica, mas quando ela se torna posterior ao mito, quando o questiona, torna-se superior a ele e o destrói estudando-o, comparando-o e compreendendo-o, tornando-o risível. Enfim, transforma-o em uma obra de arte, poesia.

Mesmo que o sábio retorne de sua montanha para fundar uma nova escola ou para seguir os fundamentos de seus antigos mestres, ele teve, para buscar a montanha, que negar seu aprendizado.

A religião em seu momento primeiro é aceitação, assim como a criança que deve aceitar, resoluta e humildemente, o código de sua língua. Aquele que experiencia o mito ou ritual religioso deve abandonar todo questionamento, toda ação do ego, e apenas aceitar o movimento da experienciação.

Inevitavelmente aquele que pensa a religião deve, no momento em que a pensa, abandonar sua fé. A religião é sempre a Aliança. E para existir não pode ser relativizada, o sábio de uma religião é mais sábio na medida em que não questiona e não permite o questionamento. Por isso o filósofo é o sábio, pois ele aceita humildemente os dogmas de sua filosofia, o filósofo nunca poderá ser um asceta, pois o asceta é aquele que rompe todas as alianças, todos os méritos, todo ensinamento. O asceta é o morto, por isso pode recusar, pois só o morto recusa.

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Qual o caminho então daquele que pensa a religião? Ele não poderá ser um filósofo, brincando laudatoriamente com as matemáticas de um sistema, nem um cientista que, repudiando os demais sistemas, louva sua religião, a ciência. Há uma terceira via para o pensamento?

Haveria uma terceira via para a pergunta: o que é Deus?

Ao perguntamos “o que é Deus” há ao menos dois caminhos dentro das sendas do pensamento crítico. Vagando pelas diferentes religiões do mundo, o estudioso rapidamente perceberá uma similitude estarrecedora entre rituais, símbolos, conceitos e ensinamentos nos diferentes sistemas do mundo. Com o desenvolvimento das diferentes ciências que se voltam para o movimento religioso surgem inevitavelmente as teorias dos “arquétipos” e do “inconsciente coletivo”. Nesta perspectiva o ser humano ofereceria para o real, mesmo que com suas respectivas dessemelhanças, as mesmas respostas e questões indiferentemente ao lugar, tempo ou cultura.

Por outro lado, estas vastas e assustadoras semelhanças poderiam provir de um centro de dispersão. Os símbolos idênticos que surgem nas diferentes culturas teriam origem em um ou alguns núcleos. Estes núcleos seriam identificados com o antigo Egito, com os sumérios ou com os semitas, com os dravídicos ou com civilizações ainda desconhecidas.

ϭϯϯ 

Ambos os caminhos apresentam seus respectivos fundamentos e justificativas. Em qualquer um dos dois caminhos que o pensador trilhe, encontrará uma ampla discussão, encontrará questionamentos, respostas e a Pergunta.

A Pergunta que fôra respondida pela sarça ardente, mas que aos ouvidos humanos permanece inaudível. A Pergunta que é a pergunta de todas as questões: o que é o Tempo, o que é o Conhecimento, o que é Deus. A Pergunta que só pôde ser respondida por mais uma pergunta, o Tetragrama.

Mas qual o porquê de não se navegarem os rios que correm margeando à direita e à esquerda a estreita senda? Ao ver de um lado o arquétipo e do outro, a difusão, vemos, na verdade, nós mesmos. O entendimento de um símbolo é sempre a sua decodificação através de nossa própria cultura. Ao presenciar um símbolo ele será sempre reinterpretado. Quando um viajante traz um mito, ele não o transpõe virginal para seu país, é inevitável sua violação, sua transformação.

Não podemos compreender o mito de uma cultura com um diferente caminhar, por isso, ao tentar olhar para uma outra constituição mítica vemos apenas nós mesmos, ou um reflexo torto e feio.

Portanto, para nossa cultura é impossível compreender qualquer instância politeísta. Não há a menor possibilidade de se perceber o que é uma perspectiva politeísta, se tal coisa há ou houve alguma vez. Ao se escutar e compreender a proposição: “Deus é um”, encerra-se qualquer possibilidade de se compreender o

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mundo como uma pluralidade. A asserção da proposição “Deus é um” é fortíssima, a mais forte das proposições.

No entanto, ao pronunciar “Deus é um”, o homem não compreende a unidade, a compreensão da unidade é vedada ao homem. Apenas Deus percebe a unidade. Ao abandonar o caminho politeísta o homem não adentra o mundo monoteísta, o homem é invariavelmente dualista. O homem pode ansiar a unidade, mas percebe e vive apenas no dois, na eterna dialética, no confronto das duas forças constituidoras de sua realidade, a vida e a morte.

A dualidade primeira e o conflito: vida e morte. As duas únicas trilhas pelas quais o homem caminha, ou ele vive ou ele morre. Haveria, entre os dois rios, a estreita senda? Haveria a possibilidade da anulação ou a compreensão da anulação da dialética do homem? Há alguma possibilidade de haver um entre-caminho? Há alguma possibilidade de haver uma terceira via? A poderosa magia da palavra é capaz de unificar os dois rios? A palavra é capaz de criar Deus? Há a possibilidade unificadora?

Haveria uma terceira via para a pergunta: o que é Deus?

ϭϯϱ 

O Bom Deus e o Princípio Opositor

A tradição cristã coloca no princípio criador e onipotente a origem de tudo que é benéfico. O mal, a destruição, seriam, por sua vez, provenientes do afastamento deste princípio ou teria origem no princípio opositor, na força antagônica que se lançaria contra o princípio benéfico e criador.

Já no pensamento judaico e islâmico, para o verdadeiro monoteísta compreender a unidade divina como o um, deve perceber que desta força primeira são provenientes tanto o mal quanto o bem. Deus seria pura potência criadora e destruidora, cabendo à moral e ao juízo humano a classificação dos trabalhos divinos em atos benéficos ou maléficos. Ao assumir a cabeça divina como o dado beneficente do mundo, inaugurase, desta maneira, a força ou princípio opositor de Deus, de igual potência, no entanto, de caráter maléfico. Ao dizer: “Deus é bom” diz-se igualmente: “há um Deus mau”, ou seja, seria a formulação de asserção dualista e não monoteísta. Na tradição judaica verificamos claramente o caráter maléfico e destruidor de Deus no Livro de Jó, e, no Islã, verificamo-lo, em igual medida no Alcorão:

Se um bem lhes recai, dizem: “de Deus isto provém”. Se o mal lhes recai dizem: “de ti isto provém”. Dize: “de Deus tudo provém.” (Alcorão, IV: 78, tradução nossa)

Nas tradições religiosas gregas, o caráter dúbio do homem parte possivelmente dos mistérios órficos que dizem ser o homem, desde sua criação, constituído por duas instâncias, uma divina e outra titânica. A versão mais antiga do mito órfico

ϭϯϲ 

antropogônico estaria no comentário ao diálogo platônico Fédon, de Olimpiodoro (1.3) que diz:

De acordo com Orfeu havia quatro reinos cósmicos. O primeiro foi o de Urano, em seguida, Cronus recebeu a soberania, tendo cortado as genitálias de seu pai; Zeus governou depois de Cronus, lançando seu pai ao Tártaro. Dioniso sucedeu a Zeus, e dizem, que, pelas maquinações de Hera, os Titãs, que estavam próximos a Dioniso, o arrebentaram em pedaços e comeram sua carne. E, Zeus, furioso por este ato, fulmonou os Titãs com seus raios, e do aroma que se ergueu dos vapores, veio à existência a matéria pela qual são feitos os homens.

Mais à frente (8.7), Olimpiodoro, conclui que:

Por ter sido a humanidade criada do material de natureza predominantemente titânica, cada homem é nascido com a mancha do crime cometido pelos Titãs, mas os resíduos de Dioniso compuseram a mistura.

A parcela corrupta dos homens seria proveniente da matéria titânica, enquanto que a essência elevada e próxima à salvação seria originária da essência divina e dionisíaca presente em toda humanidade. Assim, os homens oscilariam em sua caminhada entre estas duas forças imperativas de seu próprio ser, e caberia a estes, através de sua moral, ansiar pela natureza divina. No entanto, Zeus ainda seria o Um, a força primeva e possibilitadora de tudo que há, como no hino órfico que diz: “Zeus é o princípio, Zeus o meio, de Zeus emana tudo”. No fragmento 70 de Ésquilo, também encontramos a formulação da totalidade da unidade divina: “Zeus é o Éter, Zeus a terra, Zeus o céu, Zeus é o todo, e tudo quanto há além disto”.

ϭϯϳ 

Da mesma forma, a acepção dialética da natureza divina está presente na doutrina zoroastrista. Na teologia persa o cosmo seria composto por duas potências, duas forças antagônicas, uma de natureza criadora e mantenedora, Ahura Mazda, e outra de caráter destruidor e degenerativo, Angra Manyu. Estes dois espíritos equivalentes, mas opositores, constituiriam os dois princípios imperativos e possibilitadores que regem a todos os seres.

Mas de que forma se constituiria o bem? Ao contrário do que se apresenta em nossas tradições, o bem não se relacionava, em um caráter primeiro, a uma moral abstrata. O código de conduta, a honra dos antigos guerreiros, de antigos pastores ou reis não dizia de normas provenientes de um sistema transcendental. A moral abstrata surge quando uma religião, um mito, deixa de dizer do homem e de sua cultura para se tornar uma verdade racional e inviolada pelo tempo. Mas quando a religião diz do homem e do mundo que o cerca, sua moral dirá do próprio meio pelo qual este homem necessita atuar e empreender seus atos e seus rituais de maneira que sua tribo, sua família, seus animais não pereçam frente às constantes ameaças do mundo. O bem seria esta força de permanência no mundo; suas regras e sua moral mostrariam ao homem de que maneira ele poderia conservar o princípio mantenedor vigente entre seus iguais.

O Yasna 29 dos Avestas, o texto sagrado do zoroastrismo, nos fala do lamento de Gaush Urva - a vaca primordial - a Gaush Tash, seu criador, para em ambos seguida apelarem a Ahura-Mazda, o princípio benéfico:

Então, seu criador, Gaush Tash, falou: “Quem será o guia protetor destes gados? Quando ireis, oh, Mazda, apontar um bom e amável guia à Gaush Urva? Quem irá criá-los com zelo? Quem será seu esperado senhor, que irá sobrepujar a fúria dos mairyas?” (Yasna 29: 2)” ϭϯϴ 

Em resposta aos lamentos, Ahura Mazda envia aos homens Zarathustra, seu profeta. Quem são este por quem grita a vaca? São os mairyas. Zarathustra combaterá o mal que se dá pelos mairyas, que não são um mal abstrato, uma força transcendental demoníaca, mas, como Mary Boyce provou, são tribos de saqueadores que desciam das montanhas durante o outono para saquear vilarejos pacíficos, matando seus homens, abduzindo mulheres e crianças como escravos, e gado para servir de suprimento para os invernos gelados. Quando o zoroastrismo abandona seu caráter tribal, os mairyas deixam de dizer de um mal presente, efetivamente destruidor, para dizer de uma mal abstrato, condicionável; ou seja, o mal torna-se um conceito, uma moral.

A essência benéfica de Deus, opositora a uma instância ou força maléfica, assim como compreendiam os persas, e assim como a tradição cristã irá compreender, é fundamentada e descrita, na tradição helênica, por Platão. - Então, Deus é realmente bom e isso deve afirmar-se? - E então? - Mas nenhuma das coisas humanas é prejudicial. Ou não? - Não me parece. - Portanto, o Bem não é a causa de todas as coisas, mas das coisas boas; das más, não. - Perfeitamente. -Logo, Deus, enquanto é bom, não seria de todas as coisas, como se diz, mas é causa de poucas coisas que acontecem aos homens e não de muitas, pois temos muito menos bens do que males; e dos bens nenhum outro deve considerar-se causa, porém dos males deve procurar-se outra causa, não Deus. (Rep., II, XVIII, 379)

No Timeu, esta causa opositora seria a matéria, de onde provém a necessidade e o movimento desordenado, resistente à ação ordenadora de Deus. Já nas Leis (X, 896), aproximando-se mais ainda do pensamento zoroastrista, percebemos que Platão declara ϭϯϵ 

que há uma alma cósmica benéfica que se opõe a uma alma maléfica, causa dos males alma esta que será facilmente identificada com o opositor judaico e o satã cristão, refletindo mais uma vez a dialética e a bicefalia humana na esfera divina.

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Os Versículos Satânicos

Toda a vasta exegese islâmica segundo Al-Ghazali pode ser resumida na fórmula do testemunho de fé: “Não há deus senão Deus, e Maomé é seu profeta”. Nesta fórmula estariam condensadas as doutrinas da essência de Deus, dos atributos de Deus, dos trabalhos de Deus e da verdade de seus apóstolos.

A doutrina da essência de Deus possui clara influência judaica e reside principalmente na verdade fundamental da unidade da cabeça divina. Deus é único. Aparentemente, a afirmação da unidade divina é algo simples, no entanto, uma árdua trilha de pensamento deve ser seguida para a compreensão da unidade divina.

A afirmação e a compreensão da unidade divina é a busca do um, do imutável, da cessação da dialética. E se esta é busca de toda religião semítica e das filosofias de influência semítica, segundo o Islã, esta foi a única religião a conseguir este intento. Os cristãos teriam falhado ao afirmar a divindade de Jesus e ao assumir a Trindade.

Islã significa submissão. Por isso, para uma pessoa ser islâmica, ela não necessita ter travado contato com a mensagem corânica, bastando que seja submissa ao Deus Único. O Alcorão é, por sua vez, a única mensagem apostólica que não foi deturpada pela geração dos homens e sua negação é um crime sem precedentes. O Alcorão é a palavra de Deus presente nas tábuas preservadas ao lado do trono de Deus. Durante a vida de Maomé, o anjo Gabriel lhe recitou o texto destas tábuas que o profeta as decorou com perfeição. O Alcorão é este texto que guarda o mais profundo ϭϰϭ 

conhecimento transcendental, e seu sentido profundo é assim, desconhecido dos homens; apenas os arcanjos, o Profeta e Deus o compreendem. Ao homem cabe apenas o entendimento das cláusulas morais, enquanto os artigos de fé devem ser conhecidos apenas de maneira geral.

O Alcorão é normalmente dividido em duas partes. As Suras (cantos) de Meca e as Suras de Medina. As Suras de Meca possuem uma forte familiaridade com as poesias proféticas dos videntes beduínos, e, em sua maioria, tratam da unificação e da afirmação da superioridade da divindade beduína Allah (O Deus) e da descrição do Dia do Juízo Final. Já as Suras de Medina pertencem ao apostolado posterior ao evento da Hégira, refletindo assim uma preocupação com a constituição e fortalecimento da comunidade.

A principal Sura de Meca, que, segundos alguns exegetas, valeria metade de todo Alcorão é a Sura do Terremoto: O Terremoto Quando a Terra em seu tremor fender Quando a Terra seus fardos abandonar Os homens dirão: “O que há com ela?” Neste dia ela anunciará suas novas Assim teu Senhor a inspirou Neste dia os homens erguer-se-ão um a um para mostrar seus trabalhos Pois quem trabalhou o bem com o peso de um átomo, o verá E quem trabalhou o mal com o peso de um átomo, o verá. (ALCORÃO, 99: 1 – 8, (tradução nossa)

No Dia do Julgamento Final a visão não será celeste, mas sim, telúrica. A Terra irá se abrir em um vasto tremor, e ela, através de uma inspiração divina irá se dirigir aos homens. Neste dia a presença de Deus se colocará diante dos homens que, pelas convulsões da Terra, serão retirados de seus túmulos para serem julgados. Um a um os

ϭϰϮ 

homens se colocarão frente à derradeira presença para apresentarem até mesmo seu mais ínfimo ato. Mas, ao contrário do que ocorre na exegese cristã, o mulçumano desconhece de que maneira será julgado.

Mesmo havendo um julgamento do menor dos atos, mesmo estando à mercê da justiça divina, o homem desconhece Seus critérios. O mulçumano não tem conhecimento da inteligência divina, nem poderia atribuir qualquer característica a esta divindade, pois no empenho de dizer até mesmo da unidade divina, estaria humanizando o uno, transformando- o em uma projeção humana. O mundo não poderia ser um o sítio de deflagrações de princípios opostos. Quando a justiça divina pertence a uma esfera além das realizações humanas, as possibilidades de mundo tornam-se mais que ofertas; o desconhecido, realmente, desconhecido; o transcendente, intranscendente e Deus, o conhecimento inefável:

Pois Deus fizera-te a Terra qual um tapete Para que a percorras em vastos caminhos (Alcorão, 71: 19 – 20, tradução nossa)

O termo “versos satânicos” foi usado pela primeira vez pelo orientalista William Muir e referem-se a versos na Sura da Estrela que, segundo antigos comentaristas, teriam sido inspirados pelo Iblis, o demônio na religião islâmica. Segundo Al-Tabari, em sua obra A História, tentando recuperar o apoio de sua tribo, os coraixitas, Maomé, em um momento de fraqueza, deixa-se iludir pelo Iblis, que disfarçado de anjo Gabriel,

ϭϰϯ 

sopra-lhe versos em elogio às três grandes deusas pagãs dos beduínos. Os versos que teriam sido inspirados por Iblis teriam sido os seguintes:

Acaso considerastes AllƗt e Al-‘Uzza e ManƗt, a terceira? Estas são as exaltadas garças, cujas intercessões são ansiadas

Tendo proferido estes versos Maomé conquistou o apoio temporário de sua tribo e seus companheiros que fugiram para a Abissínia puderam retornar para Meca. Porém, Gabriel revela que o profeta fora iludido e ordena que os versos sejam corrigidos, pois, além de ignorarem a unidade da cabeça divina, diminuiriam o poder do Julgamento Final, pois possibilitaria que outras divindades intercedessem pelos homens.

Após a intervenção do anjo Gabriel, os versos ficaram da seguinte maneira, já na versão canônica do Alcorão:

Acaso haveis pensado em AllƗt e Al-‘Uzza e ManƗt, a terceira? Há filhos para você, e filhas para Ele? Certamente esta é uma porção injusta. Tais são meros nomes. Criados por vós e por vossos antepassados (ALCORÃO, 53: 19 – 23, tradução nossa)

Se os versos satânicos tivessem sobrevivido à correção do anjo Gabriel, todo o sistema filosófico e moral da religião islâmica estaria comprometido. A unidade divina seria enfraquecida pelo confronto com as divindades femininas. Haveria assim o princípio feminino e o princípio masculino, haveria a busca pelo equilíbrio na dialética,

ϭϰϰ 

todo o esforço das religiões abraâmicas estaria corrompido como fora corrompido pelo cristianismo.

Se o princípio dialético, no Islã, não está presente na deidade suprema, que pulsão é esta que se coloca com o símbolo do demônio? Se a verdade não está articulada a um conceito de bem ideal, de que maneira se coloca a questão da busca humana e do conhecimento transcendental? O que seria próprio à verdade e de que maneira o mal se colocaria nesta tradição? O que seria Iblis, o demônio, que na exegese cristã encerra a oposição se na mística islâmica ao demônio é próprio a verdade divina?

Iblis, o demônio, seria o líder dos gênios rebeldes que após serem quase por completo massacrados pelos gênios celestiais, islamizam-se, ou seja, submetem-se a Deus. Através de seus bons atos e de sua sabedoria, Iblis alcança um posto semelhante ao dos anjos. Cabe lembrar que existem três classes de mundos no Islã, ocupado por uma das três classes de seres. Os primeiros, que ocupam o céu, os anjos, criados da luz, os segundos, os gênios, criados do fogo, habitam a região além das Montanhas Qaf e por fim, os homens, criados do barro, habitam a Terra.

Durante a sua estada com os anjos, Iblis, vagou pelos sete círculos do céu, ocupando um a cada dia da semana. Com isto, ele conheceu o segredo dos anjos e de Deus. E isto ocorreu antes da criação dos homens, pois quando Deus fez sua criação máxima, Adão, Ele convocou todos os seres celestiais para prestarem-lhe reverência, os anjos e Iblis.

ϭϰϱ 

Segundo “Os Contos dos Profetas”:

Os anjos maravilharam-se na estranheza de sua forma e figura, pois nada tinham visto de semelhante. Iblis olhou durante um longo tempo para Adão antes de falar: “Deus criou isto por um grande propósito. Talvez Ele próprio tenha adentrado esta criatura”. Então falou: “Esta criatura é fraca, foi feita do barro e é oca. E o que é oco deve alimentar-se.” Para animar o corpo de Adão, Deus soprou do próprio espírito (Alcorão, XV.29). Então Adão colocou-se ereto e Deus ordenou que todos ali se prostrassem diante do primeiro homem. Um a um os anjos se agacharam com exceção de Iblis, que devido a sua absoluta devoção e fidelidade a Deus unicamente, não prostrou-se diante de Adão, sendo assim expulso do céu pelos anjos. (tradução nossa)

Segundo os pensadores místicos, Iblis, o demônio, seria o verdadeiro islâmico, incapaz de perceber a essência divina a não ser em Deus. É, portanto, o único a proclamar verdadeiramente a unidade, o um.

Apesar de ser animado pelo sopro divino, a unificação só é possível pela negação do homem. A superação da dialética só é possível ao não-humano, pois a dialética, a percepção do mundo através da tensão de forças eqüipotentes é a própria condição humana. Por mais que o homem diga “tudo é um” ele ainda habitará a dialética, pois o próprio mundo humano, a Terra, se apresenta na tensão dos opostos. A condição humana é anterior à expulsão do paraíso e até mesmo à criação de Eva, pois o homem é formado do barro, é oco, precisa alimentar-se, reside, portanto, na falta e na transitoriedade; apesar disso, é o sopro divino que o põe de pé, que o faz ser ereto, humano. Na tensão primeva do permanente e do impermanente, o homem é criado.

Por serem essencialmente subservientes a Deus, os anjos são incapazes de perceberem o segredo. Iblis, contudo, percorreu todos os três mundos, e, devido à sua ϭϰϲ 

sabedoria, conhecimento e submissão percebeu o segredo, a verdade. O pensador persa FarƯd Al-DƯn ‘Attar diz, em sua “Conferência dos Pássaros”, que Iblis, ao contemplar Adão fala:

“Sei que Adão não é apenas barro! Deixarei minha face erguida para contemplar o mistério. Não temo!” Por não ter abaixado a face, Iblis viu o mistério. Deus então disse-lhe: “Oh, espião! Estás contemplando o mistério? Por teres contemplado o mistério que secretamente inseri, devo repudiá-lo senão falarás dele ao redor do mundo.”

E assim, Iblis recebe seu epíteto de mentiroso, para que nenhum homem acredite quando ele pronunciar o segredo, o mistério oculto. O homem perde seu contato com as únicas forças possíveis de conhecimento, as forças elementais. Posteriormente a mulher reiniciará este contato que será logo quebrado. A verdade tornou-se vedada tanto a homens, como a mulheres.

Tanto no Islã, como no judaísmo, a árvore do Jardim do Éden não era uma apenas, mas duas, a primeira era chamada a Árvore da Eternidade, e a segunda, a Árvore do Conhecimento. Ao tecer seu contato com Iblis, Eva prova do conhecimento velado, ela saboreia o conhecimento divino. Esta é a segunda vez que um ser contempla a verdade e por isso é punido com a expulsão. E, se o Demônio foi expulso das esferas celestes, o homem foi expulso do seio da natureza, tornando-se um refugiado em seu próprio mundo. Que seria então a verdade senão perceber o próprio pneuma humano? Que seria mais verdadeiro senão o próprio errar do homem?

ϭϰϳ 

O Fardo da Terra

Ao ser expulso do paraíso o homem não apenas recebeu seu fardo, como também a Terra recebeu o fardo do homem. A partir de então, seus passos começaram a sulcar a Terra, fazendo-a sangrar:

“Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea ele os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: “sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e tudo que vive e se move sobre a terra”. (Gênesis, 1: 27-28)

A ordem humana primeira é submeter a Terra. Dominar a Terra é submeter a Deusa Mãe, a morada do politeísmo, ao zelo de Deus:

O Senhor respondeu: Olha, eu vou fazer uma aliança! Diante de todo o teu povo farei prodígios como nunca se fizeram em nenhum país ou nação, para que todos vejam como são terríveis as obras do Senhor, que estou para fazer contigo. Guarda bem o que hoje te ordeno. Eu expulsarei da tua frente os amorreus, os canaaneus, os hititas, os ferezeus, os heveus e os jesubeus. Guarda-te de fazer aliança com os habitantes do país que invadirás para que não se tornem uma armadilha. Ao contrário, derrubareis os altares, quebrareis as colunas sagradas e cortareis os bosques sagrados. Porque não deverás adorar nenhum outro deus, pois o Senhor se chama Zeloso: ele é um Deus Zeloso. (Êxodo: 34, 10 - 14)

Submetendo a Terra, o homem não estaria mais condicionado aos seus desígnios. Submeter a Terra é a própria tentativa do homem de superar sua condição frágil e suscetível aos transtornos da Deusa Mãe. Neste caminhar em que planeja ser vitorioso o homem tenta distanciar-se desta força feminina, trilhando assim os caminhos das ciências, em um afã de superar seu fardo e sua impotência diante da morte. O

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homem que louva a Terra é agraciado com a morte sacrificial, o homem que louva o Pai é agraciado com a vida eterna.

Ainda assim, ecoa a Pergunta em nossos ouvidos: Haveria uma terceira via para a pergunta: o que é Deus?

A coluna sagrada deve ser destruída, o vínculo com a Terra deve ser quebrado para que haja uma a Aliança com o Nome. Todos os símbolos de poder são enfraquecidos, erguendo-se assim o Nome, como força máxima, e a linguagem como Sua manifestação.

Os vínculos com a Terra tornam-se pecado: a magia, a representação, o sacrifício do ente querido, o canibalismo, a prostituição, o incesto. A Aliança faz com que qualquer incursão pelos pecados torne-se não só um crime, mas também um tormento para o pecador, com uma força muito mais poderosa que as fúrias a perseguilo.

A Aliança encaminha o homem para o seu destino, assinalado pela Árvore do Conhecimento. A busca pelo deus dragão ou pelo deus touro já assinala esse destino da quebra do vínculo primeiro do homem com a Terra. Se o homem deve procurá-la no bosque sagrado, é porque já não se sentia mais em seu seio. Quando a visão da Deusa desnuda constitui um insulto é porque ela já se punha ou sempre se pôs apenas velada, oculta, não vista.

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O recorrente símbolo do confronto entre o deus superior tauriforme, ou aquiliforme, com o deus inferior viperiforme, assinala já desde tempos imemoriais este caminho que se bifurcou para o homem. Um caminho que é trilhado sempre entrecruzado com o seu oposto.

A Terra será por fim a morada do homem e revolverá apenas quando inspirada por Deus:

Quando a Terra em seu tremor fender Quando a Terra seus fardos abandonar Os homens dirão: “O que há com ela?” Neste dia ela anunciará suas novas Assim teu Senhor a inspirou (Alcorão: XCIX, 1-5)

Uma morada que apenas suporta o homem.

ϭϱϬ 

O poder do homem, o Poder

Ao assegurar o poder sobre a Terra ao homem, a Aliança submete-o ao Poder. A idéia do Julgamento Final, se, por um lado, permite ao homem escolher trilhar o caminho correto ou o incorreto, por outro lado, retira-lhe algo.

Quando Moisés recebe a Aliança, o grande profeta recebe também um conjunto de Leis que ficaram registradas em seus Livros. A Lei deveria ser obedecida estritamente pelo povo de Israel, pois através de sua instauração e vigência, a Aliança entre Deus e os homens permaneceria. No instante em que as Leis fossem gradualmente abandonadas, Deus se afastaria dos homens. O cumprimento da Lei santificaria o povo de Israel, divinizando-o, ou seja, fazendo-o participar da Sophia divina, a Justiça.

Assim, surge uma das grandes questões das religiões semíticas. O que é a sabedoria e o que é a sabedoria de Deus? Qual o caminho do sábio e qual o caminho do tolo? O que é participar da Aliança? Ser sábio seria inevitavelmente ser aprovado no Julgamento Final, ou seja, assemelhar-se à essência divina.

Deus é o Onipotente, todo ato e toda ação são movidos por Sua mão. Deus é Onisciente, todo ato e toda ação são observados pelos Seus Olhos. Se a correta conduta fosse a aproximação à sabedoria divina, o caminho desviante seria a aproximação ao princípio opositor. Assim corre o pensamento conforme a heresia maniqueísta. Mas de que maneira corre o pensamento que anseia a Unidade?

ϭϱϭ 

Al-Jubbai estava lecionando certa vez quando Abu´l-Hasanu´lAsh’ari, um de seus discípulos, propôs o seguinte caso a seu mestre: “Havia três irmãos, sendo um deles, um verdadeiro crente, virtuoso e pio, o segundo, um infiel, devasso e perverso, o terceiro uma criança; os três morreram. O que sucedeu a eles?” Al-Jubbai respondeu: “o irmão virtuoso recebeu uma alta colocação no paraíso, o infiel está nas profundezas do inferno, enquanto que a criança está entre aqueles que obtiveram a salvação”. “Suponha agora”, disse Ash´ari, “que esta criança desejasse ocupar o lugar habitado pelo seu irmão virtuoso, seria a ela permitido?” “Não”, respondeu Al-Jubbai, “seria dito a ela: ‘teu irmão chegou a este lugar através de seus trabalhos de obediência a Deus, e não tens tais trabalhos para ir adiante’”. “Suponha, então,” disse o discípulo, “que a criança diria: ‘Não é minha culpa, não me permitiste uma vida longa, não me foram permitidos os meios de provar minha obediência.’” “Neste caso”, disse Al-Jubbai, “O Todo-Poderoso diria: ‘Eu sabia que se eu te permitisse à vida, tu haverias de ser desobediente e incorrerias na punição dos infernos, agi desta forma para tua vantagem.’” “Bem”, disse Ash´ari, “suponha que o irmão infiel teria dito: ‘Ó Senhor dos Mundos, pois que tu conheceste o destino de meu irmão, tu haverias de conhecer o meu! Por que, então, agiste em sua vantagem e não em minha?’” Al- Jubbai silenciou-se, apesar de furioso com seu aluno, que estava convencido agora de que o dogma mutazilita do livre arbítrio era falso, e que Deus elegia alguns para a misericórdia e outros para a punição, sem nenhum motivo qualquer. (KLEIN, The Religion of Islam, p. 48, versão nossa)

Conferir a potência da vontade ao homem seria conferir poder ao princípio opositor. Conferir o poder da vontade ao homem seria abrir duas trilhas: a trilha de dois princípios opostos. O homem seguindo a este ou àquele habitaria após o Julgamento o reino para o qual, voluntariamente, se dirigia. Isto seria negar o Ser, o princípio único dAquele que não é suscetível ao Tempo. Pois o homem não pode ser julgado pelos seus atos, mas sim pela sua sabedoria, ou seja, pela sua submissão a Deus, submissão esta que significa compreensão e aceitação da Unidade.

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A Unidade é a instauradora da verdade, ou seja, do real em sua multiplicidade, que o homem percebe apenas como uma dualidade. Compreender que o movente mundo movimenta-se com a mão de Deus, é perceber o divino equilíbrio, a Justiça que não pode ser movida ou desbalanceada pelo homem.

O Misericordioso A Recitação ensinou O homem, Ele o criou A Linguagem, Ele a ensinou O Sol e a Lua seguem suas rotas, As árvores e a relva inclinam-se em reverência. O Misericordioso ergueu os céus e firmou o equilíbrio Para que não destruísseis o equilíbrio Tão justo firmou o equilíbrio, não permitindo que errasse a balança Assim a terra para as criaturas, o Misericordioso a colocou Com frutas, e tâmaras em cachos Com grãos em vagens, e ervas Que sinais de vosso Senhor vós dois [homens e gênios] ireis negar? (Alcorão: LV, 1- 13, tradução nossa)

Se o homem se afasta da Unidade isto não pode ser por uma falha do Poder, mas sim, pelos desígnios deste próprio Poder. Tudo que se movimenta, movimenta-se pelo Poder, se o homem vai para a esquerda ou para a direita, vai pela mão do Poder. Se o Sol e a Lua seguem seus cursos intransponíveis pelo céu, seguem orientados pelo Poder. O Poder é a própria essência inaugural de todo movimento. Esta é a Justiça:

Como um oleiro, o homem da terra úmida, Ele o criou. O gênio do fogo sem fumaça, Ele o criou. Que sinais de vosso Senhor vós dois ireis negar? Dos Ocidentes e Orientes o Senhor. Que sinais de vosso Senhor vós dois ireis negar? (Alcorão: LV.1418, tradução nossa)

Errar é negar o Poder Único, a Verdade instauradora que brota do conflito do Dois. Errar é afirmar a existência própria àqueles que habitam a Terra, pois a existência

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é dialética. A sabedoria está em perceber o Uno que se faz presente na criação originária, que dá origem ao dois. Portanto, o Um está tanto no dois, como na união do dois. Está é a sabedoria: perceber que o Ocidente e o Oriente são na verdade o reino do Senhor, tudo é um; o reino de Israel está onde está a Sophia.

À morte todos sobre a Terra tombarão Ainda assim permanece a face do Senhor, sublime e honorável Que sinais de vosso Senhor vós dois ireis negar? (Alcorão: LV, 2628, tradução nossa)

Das dobras e redobras do mundo, o homem vai se afastando do princípio originário. Afastar-se não significa distanciar-se fisicamente, assim como o Reino não significa um espaço físico; distanciar-se é não perceber a força dinâmica originária, o princípio do qual não se pode afastar. Estar no Ocidente ou no Oriente é habitar a terra na qual reside Sophia. Estar no Ocidente ou estar no Oriente é estar presente no real, lugar onde é o ser. Perceber o ser em sua essência imutável e impermanente que reside em cada átomo do mundo é perceber a unidade.

Assim, para o Islã, ser islâmico não é presenciar e aceitar a revelação corânica, por isso, é possível existirem islâmicos em períodos anteriores ao apostolado de Maomé. Ser islâmico é aceitar e pronunciar a existência da Unidade.

O que é ansiar a unidade senão abandonar as leis moventes da Terra? A Lei da Unidade é uma e apenas uma durante eras e em torno do mundo.

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A magia, o Nome

O Nome é Deus e Deus é o Nome, a linguagem, sua manifestação, sua força, seu poder. O Verbo humano torna-se o poder, Deus fala pelo homem através da Linguagem, constituindo assim seu mundo, o real. A magia torna-se fraca e irrelevante frente ao poder do Verbo, da linguagem.

O verbo dos profetas, dos apóstolos e dos poetas carrega todo o poder constituidor, a magia perde assim sua potencialidade, o verbo torna-se assim o instaurador da verdade, da proteção e do real.

Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo À sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: “ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei”. Porque Ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa Ele te cobrirá com Suas plumas, E debaixo de suas asas estarás seguro; sua verdade é escudo e broquel. Não temerás o espanto noturno; Nem seta que voe de dia; Nem peste que ande na escuridão; Nem mortandade que ronda ao meio-dia. Mil cairão a teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido Somente com teus olhos olharás e verás a recompensa dos ímpios. Porque tu, oh Senhor, és o meu refúgio, o Altíssimo é tua morada. Nenhum mal te sucederá, nem a praga chegará á tua tenda. Porque aos teus anjos dará ordens a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas tuas mãos, para que não tropeces com teu pé em pedra. Pisarás o leão e o áspide, calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.

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Pois que tão encarecidamente me amou, também eu o livrarei; po-loei num alto retiro, pois conheceu meu nome. Ele me invocará, e eu lhe responderei; estarei com ele na angústia, livrá-lo-ei e o glorificarei; Dar-lhe-ei abundância de dias E lhe revelarei a minha salvação”. (Salmo 91)

A verdade é a condição primeira do verbo, o verbo é a verdade e nele a verdade se constitui. O Verbo cria a verdade, a verdade e o verbo tornam-se o mesmo, a verdade é, portanto, o aparecer, a Justiça. A Justiça no judaísmo não está na correta conduta, na aceitação do bem e do mal. A Justiça é a aceitação irrestrita de Deus, Deus como aquele que é, e que transcende qualquer possibilidade do sendo. O verdadeiro sábio é aquele que percebe que não há o mal, nem, tampouco, o bem. Aquele que caminha pela busca do bem e da correta conduta é o dualista, o maniqueísta, que aceita a divisão da unidade suprema. O caminho da sabedoria é a união do bem e do mal, a Justiça é aquela que julga, não os atos, mas a percepção da verdade divina, de que Deus é. De um ser que transcende qualquer possibilidade de qualificação, pois se fosse Deus sábio, haveria o Deus tolo, se houvesse o Deus bom, haveria o Deus mau.

Dizer qualquer coisa de Deus é assumir uma dualidade, uma força contrária a Deus. Dizer “Deus existe” é dizer “há um Deus que não existe”. O Nome divino é, portanto, impronunciável, pois pronunciar o Nome é trazê-lo à condição humana, pronunciar o Nome é transformá-lo em um princípio opositor. Pronunciar qualquer nome é dizer também seu contrário, dizer o ser é dizer o não-ser. Clamar à vida é clamar também à morte.

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O CAMINHAR DOS DEUSES, O CAMINHAR DOS HOMENS, O CAMINHAR DO TEMPO, A PALAVRA

Se o homem vê tudo caminhar para a sua aniquilação, para onde poderá caminhar o homem? Se o homem movimenta-se, movimenta-se pelo Tempo, o Tempo que lhe confere vigor e simultaneamente o devora. O caminhar do homem é um caminhar no Tempo. Se o Sol nasce das profundezas oceânicas, alcançando seu ápice no cume da abóboda celeste para em seguida mergulhar novamente nas profundezas obscuras; se a Lua é engolida pela noite obscura para em seguida renascer em sua luminosidade - qual o caminho do Tempo, de que forma ele percorre seu próprio percurso e de que forma percorre o homem seu percurso na trajetória do Tempo Devorador? Se tudo que o Tempo devora renasce, poderá o homem renascer também?

Podemos imaginar o percurso do tempo de pelo menos duas maneiras: como algo circular ou como algo linear. No tempo circular, tanto o homem como a natureza seriam regidos pelo ciclo de nascimento e morte em uma indeterminada progressão de repetição dos mesmos movimentos que compõem o ciclo. Assim como o Sol, o homem e sua história estariam fadados a uma repetição indefinida de ciclos; no entanto, neste ciclo seria impossível perceber o eterno girar, pois, no girar o homem esquece que gira,

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e assim, vendo o mundo movimentar-se acredita que em seu próprio caminhar há uma progressão.

Vendo dentro de seu próprio ciclo os demais ciclos girando com maior ou menor velocidade, o homem não percebe estar ele mesmo dentro de um ciclo, ciclo este que não seria definido em seu princípio no ato do nascimento e seu término na morte. O princípio da vida de um homem está em seu despertar de cada dia e seu término, no sono de cada noite. A vida se sucede neste ciclo constante de eternos nascimentos e mortes do qual o homem não consegue escapar. Despertar é nascer e dormir é morrer. O homem suporta o peso destes constantes renascimentos apenas por não conseguir experienciar a memória dos dias anteriores. A presença do enorme passado é abandonada, para viver é necessário esquecer, esquecer a dor das sucessivas mortes, esquecer a percepção do ciclo, esquecer a dor de ser mastigado pelo Tempo. A crença na memória do ontem é a presença do esquecimento possibilitando o erguimento do pesado fardo. Seria possível tomar consciência de que o homem de ontem não é o mesmo homem de hoje? Seria possível obter a memória ou a presença deste homem de ontem? Não é a memória algo tão enganador? É possível crer no ontem, assim como não cremos na mais turva das lembranças? O que faz uma memória ser turva ou clara, senão apenas o desejo de lembrá-la, de recriá-la?

Pois o Tempo não seria então circular, mas pontual apenas, pois o futuro é a projeção do hoje, o passado, a memória do hoje. Não há o amanhã que transcorreu, nem o passado que transcorrerá. Não há o amanhã, não há o tempo que virá, apenas o tempo presente a devorar. O tempo circular é, na verdade, o tempo pontual. O homem vive ϭϱϴ 

assim na iminência, na iminência da vida e na iminência da morte, sempre percorrendo estes dois extremos, em um percurso imperceptivelmente próximo, na ilusão da memória, na esperança do passado e no anseio pela permanência no futuro. Mas tudo apenas se concretiza ou se abstrai no presente absoluto. Viver o tempo circular é esquecer. Apenas um deus distante do tempo, incriado e eterno poderia perceber a circularidade do tempo, observando os ciclos de passados e presentes impulsionados pela roda do presente.

No tempo linear, o homem seria fruto de um princípio criador que o originou. A partir deste momento ele foi impulsionado por esta força primeira, dando movimento assim à sua história que terá, por ter sido criada, um final inevitavelmente demarcado, podendo ser adiantado ou atrasado. O homem do tempo linear é o homem que crê em seus atos e crê no julgamento, sendo sua permanência no jogo do tempo dependente da correta colocação de seus atos. Os atos o julgarão, os atos definem a história. A memória o compromete e o esquecimento possibilita o continuar no trilhar do percurso cujo resultado é indefinido ou indecifrável. A vida se encaminha para a morte e a morte é apenas uma, aguardando no final de sua estrada. O que é o passado e o futuro se cada ato é julgado no presente? O que é o passado no momento da presentificação do momento final? O que é o futuro se nada pode ultrapassar a visão do momento final? É possível um passado se ele é, em toda sua carga, descarregado em todo seu peso em cada momento do presente? O tempo linear é, na verdade, o tempo pontual. O passado torna-se então imperceptível, o homem vê novamente apenas o presente, presente que é o esquecimento do trilhar da estrada que leva apenas para o fim. Viver o tempo linear é esquecer. Apenas um deus distante do tempo, incriado e eterno poderia perceber a linearidade do tempo, observando o impulso primeiro originado no primeiro instante do ϭϱϵ 

passado e sendo consumido pelo eterno trilhar do presente que se encaminha, inevitavelmente, para o fim.

Quantos ciclos e quantas linhas de tempo compõem o mundo humano? A impossibilidade de compreensão do Tempo é a impossibilidade de ver os fios e ciclos de tempo que se entrelaçam e se fiam entre os infinitos dentes do Devorador.

Deste anseio absurdo de compreender as tramas do tecido temporal, do anseio de possibilitar a permanência de algo, de possibilitar a diminuição do movimento destruidor do tempo, o homem age, e, agindo, cria e, criando, esquece-se do Tempo. Criar é esquecer, conhecer é esquecer, buscar é esquecer, viver é esquecer a violência do Tempo. Esquecer, morrer, não há uma terceira escolha. A busca e o êxtase constroem o esquecimento absoluto e momentâneo da presença do Tempo e de suas iniqüidades. Não seria a insistência no viver uma eterna luta contra o poder circundante e imperativo do não-viver?

Preparamos lanças e espadas E a morte nos derrota sem batalha

O imperativo da morte nos obriga a lutar, a buscar, a conhecer e a não nos importar; mas todo trilhar é um trilhar pelas profundas fendas do esquecimento. Apenas esquecendo, o homem pode continuar a insuflar as suas hostes contra o inimigo inamovível. Perceber quão inamovível é o destino é entregar-se sem batalha, sem

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trilhar, sem esquecer. Pois viver é esquecer. Ao tomar consciência da vida, do poder do Tempo e da inefabilidade do destino, o homem inevitavelmente morrerá. Contemplar é morrer, percorrer a vida é esforçar-se no caminho do esquecimento. Esquecer, morrer, não há uma terceira escolha. Ao percorrer a trilha do esquecimento, perguntamos o motivo do trilhar, perguntamos pelo que seria o Tempo, o que seria o conhecimento, o que seria Deus.

Assim, na trilha do perguntar, na trilha da tentativa da impossível contemplação, buscamos a impossível permanência, buscamos a possibilidade do prolongamento da fugidia permanência. Se na permanência dizemos daquilo que permanece como eternidade e também daquilo que persiste na iminência da impermanência, poderá o homem, mesmo em suas infinitas impossibilidades, perguntar? Perguntar com o discurso em que com uma mesma palavra possa-se dizer, ao mesmo tempo, de algo e de seu contrário? É possível perguntar pelo Tempo, sendo ele o poder doador e o poder devorador? É possível perguntar pela palavra Deus?

Deste mundo que ao homem se apresenta como uma projeção do esquecimento do passado e do anseio do futuro, o que pode ser dito? O que pode ser dito do Tempo além de apontá-lo e dizer: ei-lo, ou, talvez, assim é o Tempo, ou, o Tempo é como tal coisa ou tal coisa? O que é dito do Tempo pode ultrapassar o ecoar do esquecimento do passado ou o anseio fugidio do futuro? Pode o que é dito do Tempo, que é o próprio mundo, superar as distorções de uma memória regida por ciclos sucessivos e o futuro determinado por expectativas determinadas por inúmeros objetos instigadores de anseios? O dizer sobre o Tempo pode superar as intempéries do próprio Tempo? É ϭϲϭ 

possível que haja algo maior que o Tempo? Não seria o Tempo a condição primeira e doadora de todo ser e toda existência?

Pode a palavra Tempo apontar ao que é Tempo? Pode a palavra Deus apontar para o que é Deus? Pode o Tempo ser apontado como se aponta a um cachorro? Pode a palavra dizer o Tempo, ou o Tempo diz a palavra? Assim como dizemos “o homem é”, “o cão é”, “Deus é”, “a morte é”, não poderíamos dizer o Tempo é, pois não seria o Tempo o doador de ser a tudo aquilo que é? Assim como o Tempo confere ser e existência, confere o não-ser e a inexistência, a inexistência pela consumação do poder temporal do total esquecimento, e a inexistência pela total impossibilidade temporal de ser ou existir.

O homem é temporizado pelo Tempo. O homem é espaço, mas o homem não é Tempo. O Tempo cria e destrói o espaço; não há, portanto, uma instância em que o princípio de tempo e espaço seja o mesmo. O Tempo é superior ao espaço, o Tempo cria o espaço. A confusão entre espaço e tempo possibilita que o homem meça o tempo com o espaço e o espaço com o tempo. O Tempo rege toda a espacialidade, pois é no espaço que se articulam as possibilidades de ser, existir, não-ser e extinguir.

Se o Tempo é algo doador e destruidor do todo, não seria o Tempo o próprio Deus Monoteísta? É possível algo se opor ao princípio temporal, ou, é possível que haja algo superior ao Tempo? ϭϲϮ 

Ao perguntar pelas delimitações do Tempo, perguntamos pelo que seja a Verdade. Se a Verdade é algo interior ao Tempo, ela pertenceria então aos ciclos de sucessão; a verdade seria então algo inconstante e mutável. Se a verdade é o fluxo do tempo, ou seja, o movimento do mostrar e de ocultar, o processo de nascimento e morte, a verdade seria então o próprio Tempo, o poder do Tempo ou a ação do Tempo sobre a existência.

Se a verdade é atemporal, não afetada pelo Tempo ou pelo espaço,

constituindo-se como verdade em todos os planos e tempos da existência, a verdade seria então Deus.

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O DEUS TOURO, SENHOR DAS TEMPESTADES, SENHOR DO TEMPO, SENHOR DA PALAVRA

Dos arcos de antiga fortaleza bizantina

Assim caminhamos, assim percorremos infindável memória, mar de conceitos, memória de fatos e encantamentos, tristes e antigos sentimentos, escolas e seus fundamentos, assim percorremos, culturas e ensinamentos. Assim é um dia, e assim mais um dia, uma, duas, três vezes tal dia, dia após dia. Assim caminhamos, assim percorremos, contratos e seus méritos, assim o homem caminha cumprindo e cumprindo metas e acontecimentos, festas, trabalhos e casamento, méritos e deméritos, vitórias ou derrotas, convites e interditos, um dia e mais dia, um, dois e ainda mais um terceiro, dia após dia, mérito após demérito e assim enfim morrer, dia após dia.

Assim são os arcos de antiga fortaleza bizantina. Rios de memória no oceano de vasto esquecimento. Monumento de profundo esquecimento. Assim escutamos do passado etérea presença, sulcada pelos ventos do mortal deslumbramento. Assim escutamos, tal enigma velado. Assim respondemos em imortal ecoar à religião que aponta este é teu Deus. Assim escutamos “este é teu Deus”. Disso que de tão distante, tão habilmente aprendemos, nesta religião sem enigmas, nestes sistemas de postulados, nestas metas de morais, a questão que ouvimos é: “este é teu Deus”. Mas, da antiga fala da esfinge, Édipo escutou: “tu és isto, oh homem. Tu és isto: o homem”. ϭϲϰ 

Assim são os arcos de antiga fortaleza bizantina, mortal esquecimento. Assim é o percurso do homem, coluna após coluna, uma via colunada. Caminhar constante, profundo esquecimento, mortal encantamento. A ti, teus méritos, coluna após coluna, constante fenecimento. E das vozes da via colunada, espíritos do passado cantam em muda melodia memórias de esquecimento, eis o mortal encantamento, coluna após coluna, este é mortal esquecimento, muda palavra, eterna palavra, inamovível barreira, invisível presença - esta que aponta, este que não pergunta, e que diz: este é teu Deus, um deus zeloso.

Antiga fortaleza bizantina, uma via colunada. Um mosaico, algumas imagens, transeuntes que se esbarram, compras e vendas, certificados e casamentos, alguns filhos, alguns tios, memória, esquecimento, um, dois, enfim, talvez, três sepultamentos, e assim, um dia e mais dia, um, dois e ainda mais um terceiro, então enfim. Uma via colunada, coluna após coluna, dia após dia, uma antiga fortaleza bizantina.

E assim um dia, um dia talvez, da esfinge presença ouvir, não mais teu Deus, mas a rocha de frontal enigma: tu és isto, oh homem. Tu és isto: o homem. E este é um deus, o Deus Touro, Senhor das Tempestades, este é o Deus Touro, este é Baal e tu, tu és isto, oh homem. Sacrifica a Baal.

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A longa via colunada

Ao cruzar a via do principal mercado da antiga Damasco, coluna após coluna, um frontal de um templo romano já em ruínas abre-se em um amplo átrio, um solo já, desde eras, sagrado a Baal-Hadad, Senhor das Tempestades. E neste átrio contemplamos entre as colunas do Templo de Júpiter, grandiosa catedral bizantina. Mas os homens que agora a freqüentam não mais professam a fé no deus menino, mas a fé muçulmana. Das colunas de antigo templo ao Pai Júpiter, uma mesquita, e do alto minarete vemos triunfante o Crescente. O Crescente e a Estrela, o Profeta e o anjo Gabriel. O Crescente em sua forma ecoando a memória da antiga forma de antigo crescente, o crescente que é a coroa triunfante do senhor das tempestades, o crescente: os chifres do Deus Touro, os chifres de Baal, o chifres de Aleph.

Em imagens, o deus touro ainda se apresenta, em ruínas, qual fortaleza bizantina, em arcos, muros, e pedestais, mas, mesmo assim, ainda em ruínas de mortal esquecimento. Se dizes: “este é meu Senhor”, sacrificas a Baal, curta memória em oceano de esquecimento. Lembrar é, sobretudo, lançar aos domínios dos mais profundos reinos do esquecimento.

Pois, que seria esquecer senão seguir a longa via colunada; pois que seria esquecer senão ver que há um Deus, um deus zeloso; pois que seria esquecer senão subtrair-se em sistemas; qual a conseqüência de seguir e percorrer, senão percorrer, passo após passo, esquecer, coluna após coluna.

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Assim subtraiu-se o homem na crise dialética primeira, no confronto primeiro do enigma da esfinge que diz: “tu és isto, oh homem” com o apontar do profeta: “este é teu Deus, o Deus zeloso”. O Deus zeloso é aquele que vence as tempestades, que faz do peixe primordial seu brinquedo; Deus é aquele que oferece os sistemas aos homens, o logos racional, do qual tudo se subtrai e para onde tudo converge. O Deus zeloso é a irredutível razão, a impossível divisão, a certeza absoluta de que tudo é redutível, divisível, de que não há força que não seja reduzida pela razão, que não há deus, homem ou touro que se contraponha à única força imperativa, a Justiça. O zelo confere conforto às estafadas sandálias. O zelo oferece promessas às mentes assombradas. Pois este Deus é discurso.

No princípio.

Este é mortal esquecimento, a promessa, a confiança, a salvação irrevogável a todos que acreditam. Pois acreditar é esquecer, é seguir coluna após coluna. Esquecer é percorrer. Viver é esquecer, é se deixar nas mãos de puro discurso, racional, irredutível, lógico, linguagem.

No princípio era a Linguagem.

A força irracional e irredutível, primeira e última, a que tudo permeia e a que tudo possibilita. O percurso primeiro de todo homem e todo ser. O rio movente de fluxo sobre fluxo, circundante e possibilitador de seu próprio curso e de tudo que segue ϭϲϳ 

em curso. Possibilidade de tudo que é possível e impossível. Assim o homem esquece o mito, o mito que cessa seu dizer antes do próprio dizer, o mito que diz na mera semi circunferência do crescente, o mito que se diz apenas no evocar da memória, no clamar de cada torre, cada coluna, cada arco, cada face de cada ídolo, um mito que diz em princípio, sem logos. Pois no princípio era o Logos.

No princípio era o Verbo e o Verbo era com Deus.

O homem necessita de seu sistema; um deus como Baal, iracundo e mortal, um deus como El, velho e impotente, não oferecem a seus adoradores as muralhas necessárias para impedir o avanço das hordas de guerreiros. Um deus que ama e morre, não é deus, é apenas mito, mito como são os homens, e assim poderá ser coberto pelas areias carregadas pelo vento e pelo esquecimento. Um deus que é esquartejado é o deus fraco, é um homem, não um deus. A palavra, para ser eterna, deverá ser mais que mito, mais que humana palavra, mais que língua, Linguagem, mais que voz, escrita, mais que canto, Verdade.

No princípio era o Logos e o Logos era com Deus e o Logos era Deus.

Assim surge o princípio irredutível, acima de toda moral. O mito torna-se moral. A moral que é o esquecimento do ritual do mito, a presença fantasmagórica de ritos e histórias que não podem mais ser encenados, nem recontados. Quando uma religião afasta-se de seu tempo originário, ela se torna aquilo que de mais tênue membrana lhe constitui, moral. Fugir da moral é constituir moral, esquecer a moral é criar nova moral. ϭϲϴ 

Pois a moral é o esquecimento do mito, na relação primeira do homem com seu mundo, seus companheiros, seus animais, sua memória. A palavra da moral não mais evocará memória nem presença, mas lançará o homem aos desafios dos méritos, na resolução de sistemas. Sistema é moral, o percurso de uma via colunada.

No princípio era a Palavra e a Palavra era com Deus e a Palavra era Deus. No princípio ela era com Deus.

A Palavra garante assim a possibilidade ao homem. O homem torna-se seu reflexo torpe. A angústia, sua impossível contemplação, a impossível contemplação daquilo que não é tempo, nem humano, nem transitório, nem inteligível, o ser. O ser, o esvaziamento de toda possibilidade e impossibilidade. O ser, doador de tudo aquilo que está sendo ou não pode ser, do que será e do que foi.

Na instância em que há uma reinauguração da Palavra, da Palavra sem tempo, da Palavra doadora da verdade moral, a memória do mito ainda permanece lembrada, pois, por mais fácil que seja esquecer, a memória ainda persistirá em ser lembrada, mesmo que fraca, mesmo que sem potência, mesmo que como Verdade em discurso. O ser perfeito por insistência da memória esquece de seu ser e torna-se assim também mito, um mito como conceito, postulado em sistema, justificado por uma moral, mas ainda assim, na memória do mito.

No princípio era a Palavra e a Palavra era com Deus e a Palavra era Deus. ϭϲϵ 

No princípio ela era com Deus. Todas as coisas tornaram-se por meio dela e sem ela nada se tornou do que foi tornado. Nela era a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. E a Palavra tornou-se carne e habitou entre nós.

A apoteose das antigas divindades, o reconhecimento dos antigos deuseshomens de sua essência divina, torna-se, ao novo Deus-Palavra, sua descida ao sendo humano, sua temporização, o esquecimento de Sua essência como a razão irredutível, através da suave lembrança do mito. Ao tornar-se sendo, este Deus, deverá irremediavelmente morrer. Mesmo como luz, ser sem tempo, conhecerá as trevas, o não-ser daquilo que atravessou o sendo.

O mito falava sobre o ser do sendo, o mito apontava para o homem, na contemplação do homem, na percepção de seu ser transitório e delimitado pelo Tempo. O discurso do ser da luz, o ser que transcende o tempo, apontará para o próprio ser atemporal, o ser que fala a verdade sem a medida do tempo, puro discurso de verdade. O mito não mais ecoará o canto sagrado de contemplação do horror da existência, mas o louvor de um canto de esperança, sem memória, daquele que anseia a luz, daquele que anseia a superação do tempo e da morte. Este novo canto, a ciência, a tentativa de alcançar a pureza da razão irredutível.

No princípio.

Será que toda tentativa de superação surge da pergunta pelo princípio? A pergunta pela origem? Mas se no século VI a.C. disse Xenófanes que há um Deus,

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maior entre deuses e homens, poderíamos acreditar em uma instância primeira mítica do homem, anterior ao percurso do pensamento abstrato? Se o homem anseia pela superação da morte, não está já construindo a possibilidade de sua superação, o eterno, ou seja, a Verdade? Há a possibilidade de haver uma instância mítica, ou, em nosso esvaziamento total da experiência mítica, não podemos perceber o mito? Não vivemos no percurso da via colunada? Não seria o caminhar do afastamento passível de ser afligido pela memória do esquecimento? A memória que dissesse: eis teu mito, eis tu, homem, pois tu és isto: o homem. Sacrifica a Baal.

Ao assumir seu papel como o grande patriarca do povo e do pensamento semítico, Abraão exclamara: “nem o Sol, nem a Lua, mas Deus, aquele que permanece”. Pois nada permanece; assim, apenas aquilo que em sua total impossibilidade de exercer qualquer possibilidade pode ser diferente do Sol e da Lua, diferente de todo ser e todo sendo, apenas aquilo que transcende qualquer temporização pode permanecer, ou seja, o nada, o absoluto, inominável e imperceptível vazio, a total inamplitude do não-ser, o completo nada, Deus. Apenas percebendo Deus como total inexistência, a total inarticulção de força, sentido e tempo, o homem poderá se fundamentar como o perfeito monoteísta, o perfeito cientista, o homem que esqueceu por completo todo dizer mítico. Apenas Deus pode perceber-se como Deus. Apenas Deus pode crer em Deus. Apenas Deus pode crer na total impossibilidade. Mas, mesmo assim, persiste o homem em sua breve jornada pela longa via colunada.

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O DEUS QUE MORRE

Pois assim como o Sol se levanta das abissais profundezas do oceano, erguendose ao ápice das esferas celestes, para, em seguida, mergulhar novamente nas profundezas, os deuses eram aqueles que também pereciam. Até mesmo Baal, o cavalgador das nuvens, fora esquartejado pela força de Mot, a morte. Mot, o de fome insaciável, Mot, seu lábio superior tocava o mais superior dos círculos celestes e seu lábio inferior o mais inferior dos círculos terrestres.

Não há diferença entre homem ou deus, potestade ou servo, fera ou divindade, se tudo sucumbe. Para que sacrificar ao deus que morre? Que diz a frase da pitonisa, se deuses e homens, indistintamente, sucumbem? Haverá realmente o sentido oculto nos versos místicos? Haverá o Conhecimento nos versículos da Tora? Haverá maior sabedoria que “tudo é um” ou “tudo flui”? Haverá, enfim, a possibilidade de superação?

Ao escutarmos os ecos de textos antigos e de textos orientais acreditamos ouvir vozes de outra presença, de uma maneira outra de se colocar no mundo.

Voz e a ti ecoarei Da árvore palavra e da pedra sussurro Murmúrio entre Céu e Terra

Palavras de Baal a sua irmã, Anat, a donzela vingadora. Baal, senhor do Monte Saphon, senhor das tempestades, o deus touro, tauricéfalo, senhor do raio e da guerra, o ϭϳϮ 

deus imolado. Em sua voz retumbante, na sua voz de trovão e tempestades, eis que ecoam sussurros da rocha, ígneos sussurros, arbóreos sussurros, o imortal encantamento.

Entre Profundezas e Estrelas Compreendo o trovão, o Céu não o conhece Palavra os homens não conhecem E as multidões da terra não conhecem

Do épico de Baal, talvez, o imortal encantamento? A imortal metafísica do total esquecimento, imortal memória de fenícia contemplação. A voz da rocha. Este é o imortal enigma: Baal é a tempestade. Baal cavalga as nuvens, senhor das terras e tempestades. Eis Baal, imortal voz de mortal esquecimento. Assim sacrificas Baal, o deus morto, o deus que permanece morto. Assim é o imortal esquecimento, memória de rocha presença. Que sentido haverá em imolar o Pai? Não o cordeiro, mas teu Pai? O invocar da imortal força, o puro poder temporal, imolar o Touro, teu Pai.

No seio de minha montanha, sagrada Saphon No sagrado, na montanha, minha herança

Baal, tu tombaste frente a tua última batalha. Tu tombaste diante de Mot, tuas pernas, teus braços, teus membros espalhados pelo solo. De ti temos apenas memória, memória do guerreiro, e de Mot, sim, talvez seja este o maior de todos os guerreiros, inquebrantável guerreiro. Vede, vede Baal, antes imortal, vencera Yamm, a furiosa profundeza, abissal oceano, e agora, divina assembléia, ecoai o lamento, percorrei a procissão funerária, prostrai-vos diante de Saphon, diante do monte Saphon, e choremos

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por meu filho Baal, o touro. Vosso deus El é um velho, um idoso rei cansado de seus dias, impotente senhor da divina assembléia, pois tu, Mot, tu mataste Baal. Tu imolaste o Touro. Com o princípio, vosso pai, El, criou, criou as Profundezas Oceânicas e a Terra Primordial, separou o alto celeste do abaixo profundo. Assim El criou, vosso pai criou o início e o fim.

Com o princípio.

Assim no princípio. O espírito de El soprando sobre águas, sobre as águas, o espírito de El. O puro sopro divino soprava sobre águas. Nada havia, somente o sopro sagrado, nem nome, nem som, nem nada, somente o sopro.

Com o princípio Elohim criou.

No princípio, com o princípio Deus criou o céu e a terra, o início e o fim, o um e o dois, do sopro que soprava no princípio, o sopro que era o princípio, criou a Palavra, criou o um e o dois. O princípio era Deus, mas o princípio não era um. O princípio era o sopro de Deus.

No princípio Elohim criou o Céu e a Terra.

Tu Baal, tu conhecias o princípio. Tu Mot, tu devoraste o princípio? Tu Yamm, tu arremessaste tuas vagas nas águas primordiais? Tu Anat, tu decapitaste as cabeças primordiais? E vós, arautos, que vós trouxestes do tempo sem tempo? Que mistério ecoa ϭϳϰ 

do antes que é hoje? Que lembrança trazeis à mais presente memória? Que podereis dizer do hoje, que podereis lembrar sem esquecer? Que dizer do princípio?

No princípio.

No princípio havia o que tudo há. Sopro, vento, ar. O que tudo há. Assim canta Baal, imortal. Pura morte imortal. Vosso deus é Baal, pois vós isto sois: sois deuses. Imortal encantamento. E tu, homem, a ti o mortal esquecimento, a ti, o mortal deslumbramento. A ti, um deus morto, a ti um deus vivo, mortal esquecimento. Pois no princípio: tu és isto, oh homem, tu és isto, o homem. De Baal, teu deus, eu, pai El, lembro cantar:

Pois tenho palavra e a ti falarei Voz e a ti ecoarei Da árvore palavra e da pedra sussurro Murmúrio entre Céu e Terra Entre Profundezas e Estrelas Compreendo o trovão, o Céu não o conhece Palavra os homens não conhecem E as multidões da terra não conhecem Vem e a ti revelarei No seio de minha montanha, sagrada Saphon No sagrado, na montanha, minha herança Na beleza, no monte, meu poder

Se escolhes teu deus, homem, não tens um deus. Um bom deus é nenhum deus. Se escutas a tempestade, se ouves o retumbar do trovão, se vês as nuvens, não são negras e poderosas, não são selvagens suas águas? Sua força não alimenta teu solo,

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homem? Não vês a muralha que cerca tua cidade, seus tijolos não são bem cozidos? Não vês o ídolo de rocha bem esculpida? Não vês a espada; seu ferro bem forjado? Anda no muro que protege tua cidade, não vês a colina e o campo que se estendem após ela, não vês a montanha que por trás dela se projeta? Não ouviste, tu, homem, a palavra; não ouviste a memória alada da guerra? Não cantaram a ti as histórias dos patriarcas? Não conheces tu, homem, teus deuses, teus heróis? Não percorreste estradas, não conversaste com os estrangeiros, não viste o passado nos olhos de teu pai? Não visitaste após longa viagem, o mais belo dos templos? E lá viste o ídolo, um grande ídolo de rocha, de negro basalto? E quando olhaste nos olhos deste teu deus, de terras tão distantes, e nos olhos de negro basalto, o que viste? O que viste nos olhos de Baal, de Baal Saphon, de Baal Hadad, de Baal Shamin, senhor das tempestades? Eram profundos seus olhos? Que palavra ouviste no templo de Baal? Olha o oceano e olha a terra, em proporções bem medidas, em formas bem forjadas, em cores bem distintas. Não vês o oceano, vasto e sem medida? Não vês a terra, em altas montanhas e longas planícies? Não ouves tu a Palavra? Não vês a mão de teu deus, pai El, um deus touro?

Pois ao homem cabe apenas seu esquecimento, um mortal deslumbramento.

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OUTRAS OBRAS CONSULTADAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Jorge de Almeida, trad. São Paulo: Editora 32, 2003. AGOSTINHO, Santo. Confissões e De Magistro. J. Oliveira Santos, Abrósio de Pina e Ângelo Ricci, trad. São Paulo: Abril Cultural, 1973. _________________. A Cidade de Deus parte I. Oscar Paes Leme, trad. Petrópolis: Vozes, 2ª ed, 1990. AQUINO, São Tomás de e DANTE. Seleção de Textos. Vários Tradutores. São Paulo: Abril Cultural, 4ª ed, 1988. ANÔNIMO. The Kalevala. John Martin Crawford, trad. London: The Robert Blake Company, 3a ed, 1910. ANSELMO, Santo e ABELARDO. Monólogo, Proslógio, A Verdade, O Gramático, Lógica para Principiantes e A História das Calamidades. São Paulo: Abril Cultural, 4ª ed, 1988. BUBER, Martin. O Eclipse de Deus: Considerações sobre religião e filosofia. Carlos Almeida Pereira. Campinas: Versus Editora, 2001. CAMPBELL, Joseph. A Máscara de Deus: Mitologia Primitiva. Carmen Fischer, trad. São Paulo: Palas Athena, 1992. ________________. A Máscara de Deus: Mitologia Oriental. Carmen Fischer, trad. São Paulo: Palas Athena, 1992. ϭϵϭ 

________________. The Masks of God: Occidental Mythology. New York: Penguin Books, 1991. ________________. Tu és isto: transformando a metáfora religiosa. Marcos Malvezzi Leal, trad. São Paulo: Madras, 2003. ________________. O Herói de Mil Faces. Adail Ubirajara Sobral, trad. São Paulo: Pensamento, 2007. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Salma Tannus Muchail. 6a Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? Trad. E. Stein. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ______. Introdução à Metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. 4a edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. ______. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel & Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002. ______. A caminho da linguagem: a linguagem; a essência da linguagem; o caminho para a linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003. JARDIM, Antonio. Música: Vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. JUNG, C. G. Answer to Job. R. F. C. Hull, trad. Nova Iorque: Meridian Books,1954. __________. Psicologia e Religião Oriental. Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, trad. Petrópolis: Vozes, 4ª ed, 1992. __________. Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, trad. Petrópolis: Vozes, 7ª ed, 2008. __________. Myterium Coniunctionis. R. F. C. Hull, trad. Priceton: Princeton University Press, 2ª ed, 1989. MOORE, George Foot. Storia delle religioni. 2 vol. 5ª ed. Giorgio La Piana, trad. Bari: Editori Laterza, 1957. SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. M. F. Sá Correia, trad. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. WELLEK, René. Conceitos de Crítica. Oscar Mendes, trad. São Paulo: Cultrix, sem data.

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