The Use of the Tanakh in Hebrews 12.14-29 (Th.M. Thesis) / O Uso do Tanakh no discurso parenético-escatológico de Hebreus 12.14-29 (Dissertação - Mestrado em Teologia SBPV)

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Tiago Abdalla Teixeira Neto

O USO DO TANAKH NO DISCURSO PARENÉTICO-ESCATOLÓGICO DE HEBREUS: UM ESTUDO DE CASO DAS ALUSÕES E CITAÇÕES DE DEUTERONÔMIO E DE AGEU EM HEBREUS 12.14-29

Dissertação apresentada em cumprimento das exigências do curso de Mestrado em Teologia

e

Exposição

do

Antigo

Testamento sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Osvaldo C. Pinto.

CURSO DE MESTRADO EM TEOLOGIA SEMINÁRIO BÍBLICO PALAVRA DA VIDA Atibaia 2012

SUMÁRIO Páginas ABREVIATURAS DE OBRAS E PERIÓDICOS .................................................................. 3 1.

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 5

2.

A PROBLEMÁTICA HERMENÊUTICA: UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM

INTERPRETATIVA PARA A COMPREENSÃO DO USO DO ANTIGO TESTAMENTO PELO NOVO TESTAMENTO .............................................................................................. 8 2.1.

Abordagem da Única Intenção Autoral ................................................................. 10

2.2.

Abordagem Canônica ........................................................................................... 13

2.3.

Abordagem do Referentiae Plenior ....................................................................... 19

2.4.

Abordagem da Hermenêutica Judaica ................................................................... 24

2.5.

Outras Abordagens ............................................................................................... 29

2.5.1.

Abordagem do Cumprimento Análogo .......................................................... 30

2.5.2.

Abordagem da Aplicação Inspirada do Sensus Plenior .................................. 32

2.6. 3.

Conclusão ............................................................................................................. 34

ANÁLISE

DOS

TIPOS

TEXTUAIS:

UMA

COMPARAÇÃO

DO

TEXTO

MASSORÉTICO (TM) E DA SEPTUAGINTA (LXX) DE DEUTERONÔMIO E DE AGEU COM O TEXTO GREGO DE HEBREUS 12....................................................................... 37 3.1.

Análise Textual Comparativa do TM e da LXX em Deuteronômio 4.24 e 9.19 com

o Texto Grego de Hebreus 12.21 e 29............................................................................... 39 3.1.1.

Análise Textual de Deuteronômio 4.24 ......................................................... 39

3.1.2.

Análise Textual da Citação de Hebreus 12.29................................................ 41

3.1.3.

Análise Textual de Deuteronômio 9.19 ......................................................... 43

3.1.4.

Análise Textual da Citação de Hebreus 12.21................................................ 47

3.2.

Análise Textual Comparativa do TM e da LXX em Ageu 2.6 e do Texto Grego de

Hebreus 12.26 .................................................................................................................. 49 3.2.1.

Análise Textual de Ageu 2.6 ......................................................................... 49

3.2.2.

Análise Textual da Citação em Hebreus 12.26 .............................................. 52

3.3. Conclusão.......................................................................................................................55

1

4.

UMA COMPREENSÃO DO CONTEXTO E DO SENTIDO DAS PORÇÕES

LITERÁRIAS DE DEUTERONÔMIO 4.21-24; 9.13-21 E 29.16-21 ................................... 56

5.

4.1.

O Contexto Histórico do Livro de Deuteronômio .................................................. 56

4.2.

O Contexto Literário-Teológico do livro de Deuteronômio ................................... 61

4.3.

Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Deuteronômio 4.15-24 ......... 80

4.4.

Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Deuteronômio 9.15-21 ......... 87

4.5.

Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Deuteronômio 29.16-21 ....... 92

UMA COMPREENSÃO DO CONTEXTO E DO SENTIDO DA PROFECIA DE

AGEU 2.6-9......................................................................................................................... 99

6.

5.1.

O Contexto Histórico do livro de Ageu ................................................................. 99

5.2.

O Contexto Literário-Teológico do livro de Ageu ............................................... 105

5.3.

Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Ageu 2.6-9 ........................ 109

O USO HERMENÊUTICO-TEOLÓGICO DAS CITAÇÕES E DA ALUSÃO DE

DEUTERONÔMIO E DE AGEU EM HEBREUS 12.14-29 .............................................. 117 6.1.

A Hermenêutica do Autor de Hebreus e seu Milieu Teológico-Interpretativo

Judaico.................................................................................................................................117 6.2.

O Contexto Epistolar e da Porção Literária de Hebreus 12.14-29 ........................ 128

6.2.1.

O Contexto Histórico da Carta aos Hebreus ................................................ 128

6.2.2.

O Contexto Literário-Teológico da Epístola e de Hebreus 12.14-29 ............ 133

6.3.

Análise Exegética e Intertextual das Citações e Alusões de Hebreus 12.14-29 .... 138

6.3.1.

Exortação: Não falhem em se apropriar da graça de Deus (Hb 12.14-17) .... 139

6.3.2.

Os cristãos não se aproximaram do Monte Sinai (12.18-21) ........................ 144

6.3.3.

Os cristãos se aproximaram do Monte Sião (12.22-24) ................................ 148

6.3.4.

Exortação: Não rejeitem aquele que fala dos céus (12.25-29) ...................... 150

6.4.

Implicações na Construção de uma Hermenêutica Contemporânea: o Método

Interpretativo do autor de Hebreus e o Método Histórico-Gramatical ............................. 159 6.5. 7.

Conclusão ........................................................................................................... 165

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 167

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 171

2

ABREVIATURAS DE OBRAS E PERIÓDICOS Versões Bíblicas LXX – Septuaginta TM – Texto Massorético ARA - Versão Almeida Revista e Atualizada ARC – Versão Almeida Revista e Corrigida A21 – Versão Almeida do Século 21 Ave Maria – Bíblia Ave Maria BHS - Biblia Hebraica Stuttgartensia BJ – Bíblia de Jerusalém HCSB – The Holman Christian Standard Bible LXXApp - The Old Testament in Greek: according to the Septuagint (Apparatus) NA27 - Nestle-Aland 27th edition NET Bible - The NET Bible NVI – Nova Versão Internacional SVOTE - The Septuagint Version of the Old Testament: English translation UBS4 - The Greek New Testament 4th edition Obras e Periódicos ABD – Anchor Bible Dictionary APOTE - The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English BAGD - A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature: A translation and adaption of the fourth revised and augmented edition of Walter Bauer's Griechisch-deutsches Worterbuch zu den Schrift en des Neuen Testaments und der ubrigen urchristlichen Literatur BKC – Bible Knowledge Commentary BDB - The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon CNTOT – Commentary on the New Testament use of the Old Testament DITAT - Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento EBC – Expositor’s Bible Commentary EWQ – The Essene Writings from Qumran JE - The Jewish Encyclopedia: a descriptive record of the history, literature and customs of the Jewish people from the earliest times to the present day 3

JBC – Jerome Biblical Commentary NLTSB – New Living Translation Study Bible PHILO - The works of Philo: complete and unabridged TDNT - The Theological Dictionary of the New Testament TLOT - Theological Lexicon of the Old Testament WBC – Word Biblical Commentary Series Textos Judaicos do Período Posterior do Segundo Templo Manuscritos do Mar Morto CD – O Documento de Damasco 1QH - Hinos 1QM – Rolo da Guerra 1QS – A Regra da Comunidade 4Q174 - Florilegium 4Q252 – Comentário de Gênesis A 4Q400ss. – Cânticos do Sacrifício de Sábado b 4Q543-549 – Visões de Arão 11QMelq – Melquisedeque 1QpHab – Pesher de Habacuque Pseudoepígrafos, Apocalíptica e Deuterocanônicos 2Bar – 2Baruque 1Mac – 1Macabeus 2Mac – 2Macabeus 1En – 1Enoque Jub – Jubileu Test. Levi – Testamento de Levi Targuns e Tratados da Mishná e Talmude ‘Abod Zar – ‘Abodah Zarah Bab Talm - The Babylonian Talmud TgJ - Targum Jonathan to the Prophets TgO - Targum Onqelos to the Pentateuch

4

1.

INTRODUÇÃO Um artigo teológico recente destacou que a “exegese intrabíblica, ou a intertextualidade, continua a atrair a atenção de estudiosos bíblicos enquanto buscam explorar tudo que envolve o relacionamento literário entre os textos escriturísticos ... estudos que focalizam o uso que o NT (Novo Testamento) faz das passagens do Antigo ainda dominam a disciplina”.1 A motivação deste estudo parte da observação das recorrentes citações e alusões que os autores cristãos do século I fizeram da Bíblia Hebraica revelando a profunda interação textual entre os escritos canônicos. Esta conexão intertextual bíblica vem promovendo pesquisas frutíferas, debates acalorados e conclusões das mais diversas. Além disso, a análise do uso que os autores do NT fizeram do AT (Antigo Testamento) tem amplo alcance, atingindo áreas de estudo como (1) a inspiração bíblica, (2) o método hermenêutico dos autores canônicos e o método histórico-gramatical, e (3) a crítica textual. Na primeira área, Darrel Bock acertadamente observou que o uso do AT pelo NT “é de alta importância, desde que tanto as asserções cristológicas como as teorias de inspiração bíblica estão amarradas às conclusões feitas sobre a maneira em que os fenômenos destas passagens se relacionam uns com os outros”.2 O problema foi apresentado em forma de pergunta por Douglas J. Moo: “Como nós podemos conferir completa confiabilidade aos escritos que parecem compreender erroneamente e empregar mal aqueles textos dos quais reivindicam derivar sua autoridade?”.3 O modo como os autores do NT empregaram os textos do AT requer, portanto, uma compreensão adequada, que corrobore a inspiração e confiabilidade do texto bíblico. Dizer que os apóstolos citaram o AT, mas atribuíram um sentido diferente do significado original, certamente, colocaria em cheque a bibliologia ortodoxa. A segunda área vem sendo objeto de grande debate e um estudioso que tem dedicado grande atenção à hermenêutica dos autores do NT colocou a questão da seguinte maneira: “De que forma tais práticas de exegese são obrigatórias ou relevantes para nós, hoje? Como elas podem ser empregadas?”.4 A problemática consiste então na definição sobre a normatividade

Sheri L. KLOUDA, “Applying Fishbane’s hermeneutical strategies”, p. 19. Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, p. 209. 3 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 181. 4 Richard N. LONGENECKER, “Can we reproduce the exegesis of the New Testament?”, p. 3. 1 2

5

da exegese dos autores do NT para os exegetas cristãos modernos. Este aspecto ultrapassa o tema da legitimidade da interpretação do AT pelos escritores do século I e toca na questão da possibilidade de se usar ou não a mesma metodologia hermenêutica dos autores bíblicos. Quais seriam os limites para se usar este método e até que ponto a exegese do NT foi condicionada pela prática hermenêutica judaica de seu tempo? O aspecto da crítica textual é extremamente útil no estudo intertextual, pois ajuda na compreensão do tipo de texto que os autores do período apostólico tinham à sua disposição e no estudo da relação dele com a versão grega do AT (LXX) e o com o Texto Massorético (TM). Em que medida a citação do AT foi feita de forma livre, mas manteve-se fiel à ideia do texto original? Os escritores do NT refletiram, em suas citações, paráfrases aramaicas do texto hebraico ou algum outro tipo textual que não haviam passado pelas recensões posteriores como o texto grego e hebraico que dispomos hoje? Esses aspectos também são importantes para o entendimento do processo de citação e de alusões desenvolvido pelos escritores do NT. Isto posto, o propósito da presente dissertação é lidar com as questões levantadas nesta seção e respondê-las com uma atenção especial às citações dos livros de Deuteronômio e de Ageu feitas pelo autor de Hebreus na porção parenético-escatológica de 12.14-29. Para tanto, discutir-se-á, primeiramente, a melhor abordagem no estudo do uso do AT pelo NT, que reflita uma alta consideração pelas Escrituras e que seja corroborado pela própria dinâmica das citações encontradas nos textos bíblicos (cap. 2). Várias metodologias têm sido propostas e o autor buscará mostrar que o Referentiae Plenior, juntamente com alguns aspectos de outras abordagens, apresenta a melhor maneira de compreender a dinâmica do uso do AT no NT. Após isso, será dada atenção a aspectos da crítica textual que esclareçam o tipo textual usado pelo autor de Hebreus e o modo pelo qual ele preserva a ideia do texto original em suas citações (cap. 3). A comparação entre LXX e o TM percorrerá cada um dos versos citados em Hebreus 12.14-29, acompanhada pelo estudo do texto grego da carta aos Hebreus. Em casos de diferenças, a leitura do Targum será também apresentada com a observação de sua influência ou não no tipo textual da epístola. Os capítulos 4 e 5 se constituem em exegeses das passagens utilizadas no texto em foco de Hebreus, as quais são Deuteronômio 4.15-24; 9.15-21; 29.16-21 e Ageu 2.6-9. Os aspectos históricos e literários que cercam cada livro serão estudados juntamente com os 6

aspectos linguísticos de cada passagem, a fim de se chegar à compreensão de seu sentido e significância originais. A última parte desta pesquisa (cap. 6) tratará diretamente da exegese de Hebreus 12.14-29, dando atenção aos aspectos literários e histórico-gramaticais tanto do livro quanto do discurso parenético-escatológico da epístola. Em conjunto com a exegese do texto, este autor discutirá as propostas da relação da carta de Hebreus com outros textos do judaísmo do segundo templo, como também observará as semelhanças e distinções entre o tratamento que o intérprete cristão e os grupos judaicos do período dispensaram aos textos que aparecem na porção de Hebreus 12.14-29, destacando o fato de que as diferenças sobrepassam as semelhanças, de modo que é inadequado propor alguma ligação direta entre eles. O final do capítulo trará uma reflexão sobre a possibilidade dos intérpretes atuais seguirem os traços básicos da exegese encontrada no NT, especialmente do autor da carta aos Hebreus, dentro do texto enfocado nesta dissertação. O intuito será mostrar a plausibilidade e legitimidade da moldura hermenêutica neotestamentária para o exegeta de hoje.

7

2.

A PROBLEMÁTICA HERMENÊUTICA: UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM INTERPRETATIVA PARA A COMPREENSÃO DO USO DO ANTIGO TESTAMENTO PELO NOVO TESTAMENTO

Antes do século XVI, a predominância do latim e da Vulgata como texto oficial da igreja católica romana obstaculizou o desenvolvimento de estudos que observassem os tipos textuais do AT usados pelos autores do NT e o modo como estes lidaram com o texto sagrado em suas citações.5 A igreja antiga praticamente abordava o AT por meio da tipologia e alegoria ou como texto prova para combater hereges e confirmar o valor da fé cristã.6 Porém, a partir do período da Reforma, esta problemática hermenêutica passou a ser observada com considerável atenção, como demonstram os vários comentários exegéticos de João Calvino (1509-1564 A.D.).7 Na análise sobre a passagem de Atos 7.14, por exemplo, Calvino discute a diferença do número de pessoas da família de Jacó que descera ao Egito apresentado pelo TM (Texto Massorético) e pela LXX (Septuaginta), nos textos de Gênesis 46.27 e Êxodo 1.5. Ele chega à conclusão de que Lucas preferiu seguir a LXX em um ponto “de pouca importância”, ainda que errônea em sua tradução, a fim de não gerar confusão na mente de seus leitores acostumados com o texto grego.8 Várias propostas de abordagens do uso do AT pelo NT têm surgido dentro das alas conservadora e liberal do protestantismo bem como dentro do catolicismo romano, especialmente a partir do século XVIII.9 Mais recentemente, houve uma explosão de artigos e livros sobre o tema, merecendo destaque a perspectiva católica sobre o sensus plenior que influenciou até mesmo escolas hermenêuticas dentro do evangelicalismo. 10 A teoria do sensus

Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 6. Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 65; Philip SCHAFF, History of Christian church, v. 3, cap. IX (versão eletrônica Logos Bible Software 4). 7 Ver o comentário das citações do AT em Mateus 2.23 e Hebreus 10.5 em John CALVIN, Commentary on Matthew, Mark and Luke, v. 1, p. 151-152; Idem, The commentaries on the epistle of Paul the apostle to the Hebrews, p. 199-200. 8 John CALVIN, Commentary on the Acts of the apostles, p. 215-216. Ver também Timothy GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 194-195. 9 Ver um breve resumo em Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 6-9; 10 Ver Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, 212-215. 5 6

8

plenior nasceu no final da década de 1920, proposta pelo frade Andrea Fernández11 e influenciada por outros estudiosos como M. J. Lagrange12 e R. Cornely. 13 Ela foi resumida da seguinte forma por Raymond E. Brown: Deus pretendeu expressar um significado mais profundo do que aquele que os escritores sagrados entenderam e pretenderam. Todavia, este significado oculto não é completamente diferente do sentido literal, mas um completo desenvolvimento dele. 14

Do lado protestante, estudiosos como Krister Stendahl e E. Earle Ellis propuseram, em meados do século passado, uma abordagem que destacava a influência da metodologia interpretativa do judaísmo da época de Jesus sobre os escritores do NT, fosse por parte dos sectários do Qumran ou das escolas rabínicas.15 Ellis enfatizou mais o estudo do sentido das citações do que a dinâmica do processo interpretativo,16 enquanto Stendahl defendeu o uso da abordagem pesher, comum na seita de Qumran, na produção do evangelho de Mateus, mediante as fórmulas das citações que demonstravam uma consciência do cumprimento escatológico do AT nos eventos da vida de Jesus.17 Nos últimos cinquenta anos, várias abordagens do uso do AT pelo NT surgiram dentro dos círculos acadêmicos evangélicos e formaram grupos em torno de suas propostas. Quatro abordagens predominam no cenário atual e serão estudadas neste capítulo juntamente com outras perspectivas que floresceram em resposta a elas, possibilitando assim uma proposta inicial de metodologia para a compreensão hermenêutica da questão. Tal análise abrirá caminho para o exame, nos capítulos seguintes, do uso que o escritor de Hebreus fez das citações de Deuteronômio e Ageu em seu discurso paranético-escatológico de 12.14-29. Carlos Osvaldo Pinto e Darrel L. Bock traçaram quatro grupos básicos de estudiosos evangélicos que se distinguem qualitativamente na compreensão do uso das citações do AT feito pelos autores do NT.18 Nenhum destes grupos buscou formar uma “escola hermenêutica”, mas os traços característicos de cada um ajudam a entender as várias nuances A. FERNÁNDEZ, “Hermeneutica”. In: Institutiones biblicae scholis accomodatae, p. 306. M. J. LAGRANGE, “L’interpretátion de la Sainte Écriture par l’Église”, p. 141-142. 13 R. CORNELY, Introductio Generalis, p. 527-30. 14 Raymond E. BROWN, “The history and the development of the theory of a sensus plenior”, p. 142. 15 Krister STENDAHL, The School of St. Matthew and Its Use of the Old Testament; E. Earle ELLIS, Paul’s Use of the Old Testament; Cf. Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 67-68. 16 Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 1011. 17 Krister STENDAHL, Op. cit., p. 35. 18 Carlos Osvaldo PINTO, Op cit. p. 16-38; Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, p. 210-220. 11 12

9

e as diferenças de perspectivas da questão em pauta. Essas abordagens podem ser classificadas como: “Abordagem da Única Intenção Autoral”, “Abordagem Canônica”, “Abordagem do Referentiae Plenior” e a “Abordagem da Hermenêutica Judaica”. Em reação a elas, novas propostas surgiram com o objetivo de oferecer respostas mais satisfatórias para a problemática em questão, como a “Abordagem da Aplicação Inspirada do Sensus Plenior” e a “Abordagem do Cumprimento Análogo”. 2.1. Abordagem da Única Intenção Autoral Walter Kaiser e Douglas Stuart são dois expoentes importantes desta abordagem. Eles defendem que profetas do AT, incluindo os salmistas, “possuíam uma compreensão do que estavam escrevendo, que era suficientemente adequada para perceberem as implicações e os resultados daquilo que estavam dizendo”.19 Tal frase implica que “eles não pregaram palavras totalmente ou parcialmente sem sentido para si mesmos”. 20 Ao mesmo tempo, há o esclarecimento de que eles não “entendiam exatamente como e quando Deus realizaria as promessas feitas para o futuro de Israel além do nível de detalhes que os seus próprios oráculos continham”.21 A diferença entre os profetas que anunciaram os acontecimentos futuros e os cristãos que vivem após o seu cumprimento é ilustrada mediante o exemplo de dois homens que escutam a descrição de um determinado lugar: um deles esteve no local e consegue compreender melhor os detalhes da exposição do que aquele que ainda não esteve, mas ambos entendem o que é comunicado. 22 A “Abordagem da Única Intenção Autoral” rejeita a presença de “significados múltiplos” ou “duplo sentido” nas passagens proféticas, afirmando a existência de “cumprimentos múltiplos” dentro do único significado de uma passagem. 23 W. Kaiser escreve: “Muitas profecias têm um desdobramento de aplicações ou cumprimentos como forma de assegurar que a palavra seja mantida viva enquanto aguarda pelo cumprimento final, mas todos esses desdobramentos compartilham de um mesmo sentido”. 24 A ideia básica é que a intenção autoral humana em sua profecia coincidia com a intenção divina, não havendo um

Walter C. KAISER, “E quanto ao futuro?: o significado da profecia”. In: Walter C. KAISER, Moisés SILVA, Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de Deus em nossa época, p. 142. 20 Douglas STUART, “The Old Testament prophet’s self-understanding of their prophecy”, p. 12. 21 Idem, Ibidem. 22 Walter C. KAISER, “The single intent of Scripture”. In: Roy B. ZUCK (ed.). Rightly divided: readings in biblical hermeneuticals, p. 161. 23 Walter C. KAISER, “E quanto ao futuro?: o significado da profecia”, p. 152-153. 24 Idem, p. 152. 19

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significado oculto tencionado por Deus mediante as palavras do profeta, que o próprio portador da mensagem não soubesse. 25 Diante da passagem de 1 Pedro 1.10-12, que afirma que os profetas investigavam “atentamente, qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo ... ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo...”, Kaiser apresenta uma análise sintática da estrutura do texto e demonstra que a indagação dos escritores do AT “não era uma busca pelo sentido do que eles escreveram; era uma inquirição sobre os aspectos temporais do assunto, o qual ia além do que eles escreveram”. 26 Ele prossegue em seu argumento: “... os escritores poderiam e tinham de fato um adequado entendimento do tema sobre o que escreveram, ainda que isso não fosse um controle compreensivo de todos os particulares e partes pertencentes ao assunto”.27 Douglas Stuart apresenta as seguintes evidências que, de sua perspectiva, confirmam a compreensão do quadro geral que os autores humanos tinham de seus oráculos, ainda que não soubessem exatamente o momento do cumprimento de cada evento: (1) os profetas possuíam aguçada consciência sobre o resultado de suas mensagens (Jn 4.3); (2) as orações intercessoras assumidas por eles demonstravam sua compreensão das implicações de sua revelação (Am 7.1-6; Jr 7.16; 11.14); (3) a natureza específica da maioria das profecias, dando direção específica para circunstâncias particulares, implica que os profetas sabiam o que Deus estava falando por meio deles (Is 37.33-35; Jr 50); (4) os oráculos proféticos foram tão cuidadosamente compostos, fosse por meio de poesias complexas ou representações dramáticas, que torna bem improvável a falta de compreensão deles por seus autores humanos (Is 5.1-30; Os 4.1-19; Ez 4.1ss.).28 Uma chave dentro da herança hermenêutica patrística é proposta por Kaiser, que vê na theoria da escola de Antioquia uma explicação para o múltiplo cumprimento, mas não para a diversidade de sentido. A ideia é composta por três aspectos: (1) “A palavra de previsão que antecede o acontecimento para o qual ele aponta”; (2) o meio histórico, pelo qual Deus mantém viva a palavra de previsão durante as sucessivas gerações, dando demonstrações parciais que estão ligadas à palavra proclamada com seu cumprimento final; (3) o

Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, p. 211. Walter C. KAISER, The uses of the Old Testament in the New, p. 20-21 (itálico do original). 27 Idem, p. 21 (itálico do original). 28 STUART, Douglas, “The Old Testament prophet’s self-understanding of their prophecy”, p. 13-14. 25 26

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cumprimento final da palavra na era do NT, no primeiro advento ou nos dias do segundo advento.29 Apesar da tentativa bíblica de demonstrar a compreensão total que os profetas tinham de seus oráculos e da base histórica encontrada na escola de Antioquia, a “Abordagem da Única Intenção Autoral” não responde satisfatoriamente a textos que indicam fortemente a ausência de entendimento completo por parte dos próprios portadores das mensagens proféticas do AT (ver Dn 7.15-16, 19-20; 8.15-16; 12.8-9; Zc 4.5; Jo 11.49-50).30 Será que Davi tinha consciência que escrevia sobre Judas, quando mencionou a traição de um amigo íntimo (Sl 41.9 com Mt 26.24; Mc 14.21)? Ou Asafe compreendia que se referia ao ensino de Jesus quando disse que ele próprio falava por parábolas (Sl 78.2 com Mt 13.35)? Oséias pensava em Cristo quando disse que Deus chamou seu filho do Egito (Os 11.1 com Mt 2.15)? Ou Zacarias tinha em mente Jesus Cristo sendo punido pelo Pai por nossos pecados na cruz, quando disse “fere o pastor e as ovelhas ficarão dispersas” (Zc 13.7 com Mt 26.31)? É bem improvável que o profeta e sua audiência entenderam tais nuances do significado de sua mensagem, que foram esclarecidas pelos autores do NT.31 Como observou Roy B. Zuck: Parece que os autores humanos das Escrituras não compreendiam totalmente o significado do que escreviam. Com certeza Deus tinha em mente desdobramentos que se concretizariam no Novo Testamento, aplicações do Antigo a situações ou verdades neotestamentárias e/ou a expansão daquelas passagens de maneira que fizessem referência a Cristo.32

Por fim, como Elliot Johnson observou, o argumento de Kaiser de que os profetas eram ignorantes apenas quanto ao tempo em que suas profecias se cumpririam, leva-o a um “golpe fatal” se aspectos temporais fizerem parte da mensagem de suas predições. Este é o caso da profecia de Daniel 9.24-27, em que o profeta especifica o tempo da “vinda do Príncipe” em termos numéricos.33 “Os próprios profetas esperavam encontrar uma notação de

Walter C. KAISER, “E quanto ao futuro?: o significado da profecia”. In: Walter C. KAISER, Moisés SILVA, Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de Deus em nossa época, p. 154. 30 Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 90; John GOLDINGAY, “The Old Testament and Christian faith: Jesus and the Old Testament in Matthew 1 – 5, Parte 1”, p. 7-8. 31 Paul S. KARLEEN, The handbook to Bible study, p. 130-131. 32 Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 313. 33 Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single meaning of Scripture”, p. 219. 29

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tempo em suas profecias. Este é um exemplo de uma implicação de referência anunciada por eles que não sabiam”. 34 2.2. Abordagem Canônica A abordagem canônica recebe importante peso por ter sido proposta e defendida pelo teólogo Bruce Waltke, além de contar com o apoio de outros exegetas de destaque.35 Ela reflete a migração de Waltke do sistema dispensacionalista para uma perspectiva amilenista.36 Dois textos importantes ajudam a compreender melhor essa abordagem hermenêutica: “A Canonical Process Approach to the Psalms” e “Is it right to read the New Testament into the Old?”. 37 O enfoque canônico propõe que o sentido de uma profecia escriturística deve ser apreendido dentro de seu contexto canônico maior e que o significado de uma determinada passagem se torna mais claro de acordo com o progresso da revelação. “A ênfase parece repousar sobre o processo pelo qual o público leitor em constante mudança passa a perceber como a nova revelação afetou a significância das Escrituras anteriores”. 38 Waltke defende uma única intenção autoral entre o autor divino e os autores humanos, rejeitando o conceito de duplo sentido e afirmando que os escritores bíblicos anunciaram seus oráculos numa linguagem ideal, de acordo com os parâmetros do reino físico na terra prometida que tinham diante de si, mas cujo sentido era o de um reino espiritual. Se o Senhor Jesus Cristo e sua igreja cumprem as promessas do Antigo Testamento, como o Novo Testamento afirma (ver At 3.24-25), então aquelas promessas expressas em termos apropriados para a forma terrena do reino de Deus na antiga dispensação encontram seu cumprimento literal na forma espiritual do reino na nova dispensação. 34

Elliott E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 184-185. Ver o artigo-resenha de G. K. Beale, no qual ele sustenta uma abordagem semelhante à de Waltke chamando-a de “abordagem bíblico-teológica”: “os autores do Novo Testamento podem ter usado uma abordagem bíblicoteológico que poderia ser descrita como uma abordagem contextual canônica. Esta abordagem não é tecnicamente histórico-gramatical, mas faz uso de contextos bíblicos mais amplos do que meramente daquele que está sendo citado, ainda que não seja inconsistente com o contexto citado” (G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: revisiting the debate seventeen years later in the light of Peter Enns Inspiration and Encarnation”, p. 21). Outro exegeta importante que abraça o modelo canônico, mas apresenta uma perspectiva mais equilibrada que Waltke e aplica a abordagem especialmente ao uso do AT pelo NT é Douglas Moo: “O uso do Antigo Testamento no Novo não pode ser entendido sem situá-lo na moldura do cânon como testemunha da história da salvação. Esta ‘abordagem canônica’ ... é um elemento básico e essencial da resposta ao problema que estamos considerando” (Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 209). 36 Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 19. 37 Bruce K. WALTKE. “Is It Right to Read the New Testament into the Old?”. In: Christianity Today, v. 27, no. 2 September, 1983; Idem. “A Canonical Process Approach to the Psalms”. In: John S. FEINBERG, Paul D. FEINBERG. Tradition and Testament. 38 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 20. 35

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Portanto, se o Salmo 2.7 se refere a Jesus Cristo em sua primeira vinda, da mesma forma a referência ao Salmo 2.6 e ao Monte Sião não se refere a um local na Palestina; mas ao Monte Sião celestial e à tomada de posse de Cristo sobre as nações. 39

Diante disso, o sentido único “desembrulhado” pelo progresso da revelação para a compreensão das profecias e dos salmos do AT deve ser encontrado no NT, fazendo com que o significado da expressão original seja superado e redefinido pelo NT.40 A posição de Waltke afirma que “obviamente um salmo foi dado em um contexto literário em expansão dentro de um cânon em desenvolvimento. O todo é maior do que suas partes, assim uma exegese reconhecida deveria interpretar um salmo dentro de sua moldura canônica”. 41 Alguns problemas básicos podem ser encontrados nesta proposta. Primeiramente, o sentido progressivamente mais claro das profecias ou de textos do saltério torna desnecessária qualquer preocupação com a compreensão do contexto que envolveu o autor e os leitores iniciais de seu texto, já que o sentido ou referência dados pelo NT são os únicos possíveis. 42 De certo modo, perde-se a preocupação com a exegese histórico-gramatical da passagem do AT. A abordagem de Waltke viola os princípios histórico-gramaticais que declaram que o sentido de um texto é descoberto com base no contexto histórico original e nas regras gramaticais. A interpretação literal não pressupõe que os leitores originais foram excluídos da compreensão do significado de um texto que viria à luz apenas depois de séculos de espera.43

Em segundo lugar, a visão de que “a abordagem canônica conscientemente reconhece e representa os distintos estágios de ganho de uma significância mais clara e profunda dos textos antigos” 44 tende a focalizar o sentido da passagem no leitor (autores do NT) em lugar de colocá-lo no próprio texto em si. 45 Isto posto, outras considerações precisam ser feitas sobre tal modelo, pois, assim como a abordagem do referentiae plenior passou por modificações e refinamento (ver o subponto seguinte), do mesmo modo outros estudiosos têm retrabalhado aspectos da abordagem canônica e proporcionado importantes contribuições para a discussão atual, não tocando, necessariamente, no debate dispensacionalista-aliancista. Como Elliot Johnson Bruce K. WALTKE, “Is It Right to Read the New Testament into the Old?”, p. 77 (itálico do original). Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, p. 220. 41 Bruce K. WALTKE, James HOUSTON, The Psalms as Christian worship: a historical commentary, p. 100. 42 Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 23. 43 Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 89. 44Bruce K. WALTKE, “A Canonical Process Approach to the Psalms”. In: John S. FEINBERG, Paul D. FEINBERG. Tradition and Testament, p. 8-9. 45 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 20-22. 39 40

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reconheceu: “há uma válida aplicação da ‘Abordagem do Processo Canônico aos Salmos’ desenvolvido por Bruce Waltke”.46 O ensaio hermenêutico de Douglas Moo apresenta insights interessantes e esclarecedores para esta abordagem. 47 Ele expõe os seguintes argumentos em favor do enfoque canônico: (1) a abordagem canônica é construída sobre uma base escriturística sólida de uma estrutura histórico-redentora em que Cristo é o objetivo final e aquele que completa as antecipações e prefigurações do AT, de uma forma que o próprio AT seria incapaz de fazer (cf. Mt 5.17; 11.13; At 3.18; Rm 10.4); (2) a abordagem canônica dos autores do NT tem seus antecedentes na própria maneira em que o AT trata a revelação anterior, como o êxodo, que ganha maior significância como modelo do futuro tratamento de Deus com o seu povo, ou como a significância do rei Davi em termos de antecipação do rei messiânico, que se torna mais clara e mais específica conforme o AT se revela; (3) a divisão entre a intenção do autor humano e a do autor divino é atenuada pela abordagem canônica, já que o apelo não é feito a um sentido do autor divino que está oculto ao autor humano, mas ao sentido do próprio texto que recebe uma significância mais profunda conforme o plano de Deus se revela; (4) na abordagem canônica, o “sentido mais completo” descoberto por Jesus e pelos apóstolos se encontra, em alguma medida, aberto à verificação, pois quando se lê o AT à luz de seu cumprimento e como um todo, pode-se demonstrar a validade do “sentido adicional” encontrado nos textos.48 Os dois pontos iniciais destacados por Moo são completamente pertinentes e corroborados pelo próprio texto bíblico, que continuamente mostra o cumprimento de “Moisés, dos Profetas e dos Salmos” na autorrevelação de Jesus (Lc 24.27, 44; Jo 5.39; Rm 10.4).49 Não há dúvida, também, que há um progresso na revelação que proporciona uma significância maior para eventos ou temas importantes da história da salvação, como é o caso 46

Elliot E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 183. Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”. In: Donald A. CARSON, John D. WOODBRDIGE, Hermeneutics, authority and canon. p. 179-211. Vale lembrar que o artigo de Douglas Moo, apesar de ter sido republicado pela Baker em 1995, é antigo (1986) e, portanto, não lida com aspectos da abordagem do Referentiae Plenior desenvolvido por Elliot Johnson em seu livro Expository Hermeneutics: an introduction. O ensaio também concentra sua crítica principalmente sobre a proposta dos círculos católico-romanos, interagindo pouquíssimo com a perspectiva evangélica do sensus plenior. 48 Douglas J. MOO, Op. cit., p. 204-206. 49 Esse tratamento das Escrituras pode se chamar “hermenêutica cristotélica”, não sendo uma tentativa de ler Cristo em cada passagem do AT, mas sim, uma compreensão de que o objetivo de todo o AT é apontar para a revelação de Cristo (Ver G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: revisiting the debate seventeen years later in the light of Peter Enns Inspiration and Encarnation”, p. 219). Ver também Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 116-117. 47

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dos exemplos destacados por Moo.50 No ponto 3, ele tem razão em afirmar que o “sentido do próprio texto ... recebe uma significância mais profunda enquanto o plano de Deus se desenrola”,51 mas ao mesmo tempo, sua preocupação em deslocar totalmente a discussão das intenções dos autores humano-divino para o progresso da revelação no cânon é desnecessária, 52 pois não há como escapar do fato de que há significâncias ou referentes que nem sempre são percebidos e tencionados pelo escritor humano dentro do sentido de seu texto no momento em que ele foi registrado na Escritura.53 Por fim, o quarto ponto requer certa atenção, pois Douglas Moo é culpado da mesma negligência que Carlos Osvaldo Pinto observa nos textos de Bruce Waltke, quando este usa os termos “significado” e “significância”,54 faltando uma linguagem mais acurada no ensaio de Moo. Em um momento, ele afirma, em referência ao AT, que o apelo é feito “não a um sentido do autor divino que de alguma forma é deliberadamente escondido do autor humano no processo de inspiração ... mas ao sentido do próprio texto que recebe uma significância mais profunda enquanto o plano de Deus se desenrola”; 55 já em outra parte ele diz que o que está envolvido na leitura que os autores do NT fazem do AT “não é apenas a significância última de um texto ou suas múltiplas aplicações válidas, mas o sentido do texto não compreendido plenamente pelo autor humano”.56 Essa confusão terminológica é realçada quando se compara outras partes do mesmo ensaio: “Uma vez mais, então, nós encontramos um versículo no Antigo Testamento ao qual é dado uma profundidade adicional, uma nova riqueza e uma significância mais precisa à luz da ‘revelação da justiça de Deus’”;57 “O significado ‘último’ e cristológico discernido pelos autores do Novo Testamento em passagem

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Vale notar esta ampliação da significância, por exemplo, no livro de Naum, em que termos específicos para retratar a misericórdia e justiça de Deus no contexto da aliança do Sinai (‫ ֶ ֶ֤א ֶרְך ַא ַַּ֨פי ִם‬, “paciente”; ‫ ְונ ֵַּ֖קה לֹ֣ א יְנ ֶ ֶַּ֑קה‬, “jamais inocenta o culpado”) (Êx 34.6-7) são ampliados para um contexto universal como introdução do oráculo de juízo contra o império assírio (Na 1.3). Deus não é apenas o suserano da aliança com Israel, ele é o suserano do universo que, apesar de ser paciente, não inocenta os que quebram suas leis e desprezam sua justiça. 51 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 206. 52 Essa mesma preocupação é ecoada no artigo de Jared M. Compton (Ver Jared M. COMPTON, “Shared Intentions? Reflections on Inspiration and interpretation in light of Scripture’s dual authorship”, p. 23-33). 53 Ver Darrel BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New: Part 2”, p. 308-309. Observe que o próprio Moo reconhece que, “por uma direta e inspirada apreensão, os autores do Novo Testamento percebem o sentido num texto posto ali por Deus, mas desconhecido ao autor humano” (Douglas J. MOO, Op. cit., p. 210). 54 Carlos Osvaldo C. PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 21-22. 55 Douglas J. MOO, Op. cit., p. 206. 56 Idem, p. 210. 57 Idem, p. 209. 16

após passagem do Antigo Testamento frequentemente se estende além, mas está sempre baseado no sentido tencionado pelo autor humano”.58 Além disso, a falta de critério na distinção das duas palavras dá espaço para se dizer que a audiência original do texto do AT não compreendeu plenamente o sentido da mensagem, desde que o seu sentido final só fora revelado pelos autores do NT.59 Certamente, ninguém “contestaria a realidade de um conjunto diferente de implicações ou percepções, ou significâncias, para estágios diferentes da história da interpretação, mas a aplicação da palavra ‘sentido’ para descrevê-las é, na melhor das hipóteses, infeliz”.60 O alerta de Elliot Johnson para a abordagem canônica se aplica a esta situação: O intérprete não deve confundir seu conhecimento maior de um tema com a interpretação do sentido de um autor [...] quando aspectos adicionais do tema são mencionados no progresso da revelação, é possível que implicações que não são antecipadas possam ser lidas de volta no sentido textual do Antigo Testamento. O escopo da intenção do Autor/autor não deve ser separado das afirmações no texto. 61

Outras contribuições dentro da abordagem canônica têm surgido e proporcionado novas percepções ou reforçado observações anteriores, ainda que mantendo algumas fraquezas já destacadas neste capítulo.62 Esta metodologia está de acordo com a “escola do Referentiae Plenior” de que há no NT “referências ampliadas ou aplicações de um princípio que é inerente ao texto do AT”63 e que, portanto, “permanecem dentro dos limites conceituais do significado contextual do AT”.64 Além disso, a observação de que a interpretação que os autores do NT fazem do AT tem o cânon como fator controlador, enquanto Deus desvenda seu plano redentor no progresso da revelação, é por demais pertinente,65 como observou Donald Carson: Os escritores do Novo Testamento insistem que o Antigo Testamento só pode ser interpretado de modo correto se toda a revelação for mantida em perspectiva à medida que é estendida historicamente (e.g. Gl 3.6-14). Do ponto de vista hermenêutico, isto não é uma inovação. Os Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 211. Ver Idem, p. 210-211. 60 Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 22. 61 Elliot E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 183. 62 Ver G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: revisiting the debate seventeen years later in the light of Peter Enns Inspiration and Encarnation”, p. 18-43; Idem, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: an examination of the presuppositions of Jesus’ and the apostles’ exegetical method”, p. 91-96; D.A. CARSON, O comentário de Mateus, p. 46-48, 119122; Jared M. COMPTON, “Shared Intentions? Reflections on Inspiration and interpretation in light of Scripture’s dual authorship”, p. 23-33. 63 G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: an examination of the presuppositions of Jesus’ and the apostles’ exegetical method”, p. 92. 64 Idem, Ibidem. 65 Ver Jared M. COMPTON, Op. cit., p. 30-31. 58 59

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escritores do Antigo Testamento extraem lições da história da salvação anterior, lições essas difíceis de serem percebidas enquanto essa história estava sendo vivida, mas lições que o olhar em retrospectiva pode esclarecer.66

Assim, Douglas Moo estava certo quando afirmou que não há no texto do AT um sensus occultus, “sentido oculto”, que o autor divino “deliberadamente ocultou do autor humano no processo da inspiração”, mas uma “significância mais profunda enquanto o plano de Deus se desenrola”.67 Conforme Jared Compton, a “abordagem canônica” tem o mérito de destacar a ampliação do horizonte do texto do AT, seja pela “identificação histórica de um conhecido/desconhecido (mais pleno) referente, [pelo] cumprimento histórico de uma promessa anterior ou [pela] concretização histórica de um tipo ou sombra agora identificados” mediante “novos eventos [que] eram necessários antes que uma revelação mais clara fosse possível”. 68 O problema com a abordagem canônica permanece na sua insistência em falar de um “sentido mais pleno” ou “mais amplo” do texto do AT percebido ao longo do progresso histórico da revelação, em lugar de tratar de novas significâncias ou novos referentes.69 A implicação perigosa de tal insistência pode ser vista em conclusões como a de Hulitt Gloer: “Os escritores do NT estavam convencidos que o verdadeiro significado do AT é Jesus Cristo e que apenas Ele provê o modo de entendê-lo. A verdadeira interpretação do AT é alcançada pela leitura de passagens ou incidentes do AT à luz do evento de Cristo”.70 Fica-se com a impressão de que o povo de Deus, durante boa parte da história de redenção, interpretou erroneamente parte do texto sagrado, pois eram incapazes de alcançar o “significado verdadeiro” revelado posteriormente. Diante disso, a abordagem do referentiae plenior, analisada a seguir, parece oferecer uma solução mais adequada para a compreensão do sentido do texto, sem “roubar” da audiência original a possibilidade de compreensão.

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D. A. CARSON, O comentário de Mateus, p. 121. Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 206 (itálico acrescentado). 68 Jared M. COMPTON, “Shared Intentions? Reflections on Inspiration and interpretation in light of Scripture’s dual authorship”, p. 31. 69 Ver D.A. CARSON, Op. cit., p. 121-122; G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: an examination of the presuppositions of Jesus’ and the apostles’ exegetical method”, p. 93; Jared M. COMPTON, Op. cit., p. 31, 33. 70 Hulitt GLOER, “Old Testament quotations in the New Testament”. In: BRAND, Chad Owen, et al (ed). Holman Illustrated Bible Dictionary, p. 1218 (itálico acrescentado). 67

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2.3. Abordagem do Referentiae Plenior A escola hermenêutica do Referentiae Plenior encontra suas raízes em teólogos como Elliott Johnson, J. I. Packer, Roy B. Zuck, Norman Geisler entre outros.71 Esta abordagem é, de certa forma, uma reação à proposta do Sensus Plenior originada no meio católico-romano e definida, especialmente, por Raymond E. Brown: Sensus Plenior é o sentido mais profundo tencionado por Deus, mas não claramente tencionado pelo autor humano, que é visto existir nas palavras das Escrituras quando estudadas à luz da revelação posterior ou do desenvolvimento da compreensão dessa revelação.72

Os estudiosos evangélicos reagem ao modelo do sensus plenior no sentido de se apropriarem de boa parte da proposta e refinarem seus conceitos e abrangência. Concorda-se com o fato de que existe no texto bíblico um “sentido [ou significância] mais profundo[a] tencionado[a] por Deus, mas não claramente tencionado[a] pelo autor humano, que é visto existir nas palavras das Escrituras”. Por outro lado, discorda-se da ideia de Brown de que A base geral para se propor o Sensus Plenior seria o fato de que na longa história da exegese ... textos da Escritura têm sido interpretados de um modo que vai além do seu sentido literal e sua mais plena interpretação vem sendo apoiada por escritos aos quais os cristãos conferem autoridade, e.g., o NT, os Pais e os pronunciamentos da Igreja. [...] O guia mais seguro para um Sensus Plenior é uma interpretação autoritativa das palavras da Escritura de um modo mais que literal – autoritativo no sentido que vem de um dos guias da revelação, e.g., o NT, os Pais da Igreja, os pronunciamentos da Igreja, etc. 73

A discordância ocorre, primeiramente, porque este método propõe uma interpretação “que vai além do seu sentido literal” ou “de um modo mais que literal”.74 A abordagem do

Ver Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single meaning of Scripture”, p. 218-227; Idem. Expository Hermeneutics: an introduction Grand Rapids: Zondervan, 1990; J. I. PACKER, “Biblical Authority, Hermeneutics and Inerrancy”. In: E. R. GEEHAN (ed.). Jerusalem and Athens: critical discussion on the theology and apologetics of Cornelius van Til, p. 147-148; Idem, “Hermeneutics and Biblical Authority”, p. 6-7; Roy B. ZUCK. A interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 1994; Norman L. GEISLER. “The relation of purpose and meaning in interpreting the Scripture” In: Roy B. ZUCK (ed.). Rightly divided: readings in biblical hermeneutics. Grand Rapids: Kregel, 1996. Outros expoentes de uma posição parecida são Darrel Bock (Ver Darrel BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New: Part 2”, p. 306-319) e Carlos Osvaldo Pinto (Ver Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11). Ver também Idem, “O uso de Isaías em Apocalipse: hermenêutica e escatologia intratestamentárias”, p. 35-53. Na nota de rodapé 20, o autor deste último artigo afirma: “O que se sugere aqui não é a prática do sensus plenior (i.e., a descoberta de sentidos múltiplos diferentes, não relacionados, ou até mesmo contraditórios), mas o reconhecimento de que o sentido original único era passível de uma multiplicidade de referenciais”. 72 Raymond E. BROWN, “Hermeneutics”. In: JBC, v. 2, p. 616. 73 Raymond E. BROWN, Op. cit., p. 616-617. 74 Ver Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 24-25; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 316-317. 71

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referentiae plenior defende um sentido único para o texto bíblico, mas contendo significâncias ou referentes múltiplos. Nesta visão o sentido de uma passagem é textualmente determinado com um único significado, que inclui vários subsignificados ou implicações relacionados ao significado expresso pelo autor humano. O sentido expressado pelo autor no texto contém apenas um significado que inclui qualquer subsignificado não declarado, mas relacionado, um significado que é traço necessário daquele tipo de significado como um todo. 75

Zuck esclarece esta perspectiva fornecendo vários exemplos de sua aplicação. Em um deles, ele comenta que o Salmo 78.2 tem apenas um significado (“abrirei os meus lábios em parábolas”), mas possui dois referentes, já que aponta para duas pessoas diferentes: o autor do Salmo, Asafe, e Jesus, que aplicou o versículo a si mesmo em Mateus 13:35. 76 James Packer aceita o rótulo do sensus plenior para uma abordagem do uso do AT pelo NT, mas sua posição, certamente, é mais restrita do que aquela encontrada no círculo católico romano: Se, como em um sentido é invariavelmente o caso, o significado e a mensagem de Deus por meio de cada passagem, quando colocados no seu contexto bíblico total, excedem o que o escritor humano tinha em mente, esse significado ulterior é apenas uma extensão e desenvolvimento do sentido do autor, uma extração de implicações e um estabelecimento de relacionamentos entre suas palavras e outras declarações bíblicas, talvez posteriores, de um modo que o próprio escritor, pela natureza do caso, não poderia fazer. [...] O ponto aqui é que o sensus plenior que o texto adquire no seu contexto bíblico mais amplo permanece uma extrapolação sobre o plano histórico-gramatical, não uma nova projeção sobre o plano da alegoria.77

As declarações de Packer de que o “significado ulterior é apenas uma extensão e desenvolvimento do sentido do autor” e de que aquele significado permanece “uma extrapolação sobre o plano histórico-gramatical”, mantêm-no dentro do método históricogramatical. A precaução que se deve tomar é com a frase: “o sensus plenior que o texto adquire no seu contexto bíblico”. O verbo usado na frase (“adquire”) sugere o acréscimo de um novo significado ao texto e um direcionamento para o plano alegórico, ultrapassando os limites de uma compreensão literal da Bíblia. Porém, a continuidade do argumento do teólogo anglo-saxão revela que ele ainda se coloca dentro das trincheiras da hermenêutica protestante histórica: “E ainda que Deus possa ter mais a dizer para nós de cada texto do que o escritor humano tinha em mente, o significado tencionado por Deus nunca é menor do que o dele”. 78 Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single meaning of Scripture”, p. 222 (itálico original). Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 317. 77 J. I. PACKER, “Hermeneutics and Biblical Authority”, p. 6-7 (itálico acrescentado). 78 Idem, p. 7. 75 76

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A preocupação de Elliot E. Johnson, Roy B. Zuck , Norman Geisler, Carlos O. Pinto na diferenciação entre significado e subsignificado ou entre significado e significância é mais recomendável do que o uso livre que Packer faz do sensus plenior. Em um artigo estimulante, Norman Geisler argumenta que o significado de um texto bíblico independe da compreensão do propósito não declarado do autor.79 Dentro de sua proposta, ele faz uma importante diferenciação entre significado e significância, em que o primeiro termo diz respeito ao que o autor afirma em um texto, e o segundo se relaciona com o contexto em que a afirmação é feita e suas implicações para o contexto de vida dos leitores. 80 Ele exemplifica: [...] o significado (o que) dos grandes mandamentos é amar a Deus com todo nosso coração e ao nosso próximo como a nós mesmos. Mas este significado não nos limita quanto às várias maneiras (como) que este amor pode ser expresso. Nem o nosso entendimento deste significado garante que veremos todas as implicações deste amor. A significância de amor é mais profunda do que o seu significado. 81

Assim, pode-se dizer que o sentido de uma declaração é sempre o mesmo, mas as significâncias ou implicações diferem conforme seu contexto.82 Como Vanhoozer afirmou: o “significado é aquilo que o autor intentava, a significância refere-se à relação que o significado do autor tem com alguma outra coisa ... o significado de um texto é inalterável, mas sua significância é inesgotável”.83 Isso possibilita uma compreensão gramático-histórica do significado único de uma passagem bíblica, mesmo com a indicação de dois ou mais referentes históricos relacionados.84 Elliot Johnson afirma que o “sentido expresso pelo autor no texto tem um único significado, que inclui qualquer subsignificado não declarado, mas relacionado, o qual é um traço necessário daquele tipo de significado como um todo”.85 Isso o leva à seguinte conclusão: [...] a natureza determinada do significado literal deve ser definida não em nível de palavra, mas de uma unidade de texto, na qual o autor expressa uma única mensagem ou proposição. Cada mensagem expressa pelo autor envolve unidade distinta. A unidade Norman L. GEISLER, “The relation of purpose and meaning in interpreting the Scripture”, p. 142-157. Idem. p. 145, 147. É importante salientar que Geisler não é o criador desta teoria linguística dentro da interpretação bíblica. Na verdade, Elliot Johnson é quem propõe este modelo e o desenvolve. Ver Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single meaning of Scripture”, p. 218-227; Idem. Expository Hermeneutics: an introduction. p. 137-154. Bernard Ramm reconhece o valor da proposta da “dupla referência” de Elliot Johnson, qualificando-a como “excelente discussão” (Bernard RAMM, Protestant biblical interpretation, p. 253). Ver também William F. WARREN, “Expository Hermeneutics: an introduction” (Review). p. 152. 81 Norman L. GEISLER, Op. cit., p. 147. 82 Idem, p. 145. 83 Kevin VANHOOZER, Há um significado neste texto?, p. 95. 84 Ver a exemplificação deste modelo em Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 319-321. 85 Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single meaning of Scripture”, p. 222. 79 80

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mais claramente distinta por um autor humano é a composição de uma peça literária completa. Esta, todavia, inclui muitas outras subunidades de pensamento, como sentenças, parágrafos e capítulos. As proposições assim expressas devem ser reconhecidas como “tipos de significado” distintos, agrupados pelo tipo de significado total. Este reconhecido tipo de significado determina os limites de um significado literal. Neste modelo, o significado textual consiste de (a) um tipo de significado completo e (b) traços componentes do significado ... Os significados do texto são traços necessários ou associados do tipo de significado expresso. Este modelo descritivo da comunicação de significados textuais explica tanto as implicações do sentido textual e as implicações de referência histórica.86

A discussão de Johnson, apesar de complexa à primeira vista, tem como objetivo explicar a razão pela qual certas implicações ou significâncias do sentido do texto podem fazer parte dele, mesmo sem a percepção inicial do intérprete, até que o referente tencionado por Deus apareça na história.87 Um exemplo típico é o Salmo 16.10, em que Davi confessa sua confiança de que Deus não deixaria sua “alma na morte” nem permitiria que ele experimentasse corrupção. O subsignificado contido no Sitz im Leben do salmista era que Deus o livraria da morte prematura, planejada contra ele por seus inimigos. Mas Davi não era o único referente histórico tencionado por Deus na mensagem do Salmo, outro personagem da história da salvação experimentou tal libertação divina de forma ainda mais extraordinária que Davi. Por isso, Pedro afirmou que o Salmo 16.10 era uma referência ao próprio Cristo que, ao ser ressuscitado por Deus, não “foi deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção” (At 2.31; cf. 2.27-32).88 Esta abordagem do texto bíblico, exposta acima, pode ser resumida na declaração de Douglas J. Moo: “O que está aparentemente acontecendo aqui não é que o Salmo 16 recebe um significado adicional à luz da revelação posterior, mas sim, que a revelação posterior nos capacita a entender, pela primeira vez, a significância última das palavras de Davi”.89 Em suma, a distinção entre significado e significância proposta pela abordagem do referentiae plenior acarreta os seguintes benefícios: (1) protege o texto bíblico do relativismo e ceticismo hermenêutico, que ocorrem quando não se diferencia o sentido do texto em si Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single meaning of Scripture”, 222-223. Idem, p. 223. 88 Ver o comentário no texto e na nota de rodapé de Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 27; Ver também a nota de rodapé 18 de Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, p. 222. 89 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 209 (italico acrescentado). O mesmo texto é citado de forma errada pela versão em português do livro Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 320. A expressão “ultimate significance” é traduzida por “pleno significado”, mas deveria ser compreendida como “significância plena” ou “significância última”. 86 87

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(significado) daquilo que ele significa para seus leitores (significância); (2) confere realismo hermenêutico na interpretação das Escrituras mediante a distinção entre o objeto de conhecimento e o contexto no qual ele é conhecido.90 Além desta importante diferenciação entre significado e significância/referente, há um segundo ponto de diferença entre o Sensus Plenior e a Abordagem do Referentiae Plenior. Raymond E. Brown propõe como guia seguro e autoritativo para a interpretação do sentido mais profundo do texto bíblico os “Pais da Igreja” e os “pronunciamentos da Igreja”. O princípio protestante de Sola Scriptura limita o guia autoritativo de fé e prática às Escrituras do AT e NT, respeitando a tradição cristã, mas de forma alguma a tratando como infalível (2Tm 3.16; 2Pe 1.19-21).91 Assim os expoentes do Referentiae Plenior rejeitam a proposta de que os Pais da Igreja ou a tradição cristã possam fornecer um guia absolutamente seguro para a compreensão dos textos das Escrituras.92 Esta perspectiva hermenêutica, com as devidas ressalvas destacadas anteriormente, parece ser a que melhor faz jus à hermenêutica intratestamentária. A crítica de Robert L. Thomas à proposta de Johnson é que ela “não faz justiça ao princípio do sentido único”, pois “na sua visão ambos os significados humano e divino são possíveis de descobrir no AT e ... possuem uma mensagem genérica”. Thomas, porém, não trata adequadamente a própria citação que faz de Johnson, pois este não afirma haver “significados humano e divino”, mas sim, que “o sentido tencionado por Deus pode muito bem ser mais rico do que o sentido que o autor humano tinha consciência”.93 Não existe a afirmação de que o texto da Escritura tem dois sentidos, mas apenas um, o qual talvez não fosse plenamente compreendido pelo escritor

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Kevin VANHOOZER, Há um significado neste texto?, p. 95, 317-318. Apesar de apoiar esta distinção entre significado e significância, Vanhoozer acaba defendendo um modelo de abordagem do uso do AT pelo NT semelhante ao da abordagem canônica, no qual enxerga um “significado mais completo” que “emerge apenas no nível do cânone inteiro” (ver p. 321-325). Isso, na perspectiva deste autor, parece ser uma contradição com a afirmação de Vanhoozer na mesma obra: “A distinção entre significado e significância é, em sua origem, um corolário da crença na realidade do passado. Para o realista não se pode mudar o passado simplesmente interpretando-o de maneira diferente [...] decorre daí, então, que a autoridade do autor partilha a autoridade do passado, ou melhor, da autoridade da realidade do passado, que, por sua vez, é a autoridade da verdade ... Sem essa distinção básica entre significado e significância, as distinções subsequentes – entre exegese e eisegese, entendimento e supraentendimento, comentário e crítica – serão difíceis, se não impossíveis, de serem mantidas” (p. 321, itálico acrescentado, com exceção de “realidade”). 91 J.I. PACKER, “Upholding the unity of Scripture today”, p. 414; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 317. 92 Roy B. ZUCK, Op. cit, p. 316-317; Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 202. 93 Cf. Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p.89 (itálico acrescentado). 23

humano.94 O escritor poderia visualizar a significância de seu texto de forma limitada, não percebendo outras significâncias tencionadas pelo próprio Deus e reveladas ao longo da história da salvação. 2.4. Abordagem da Hermenêutica Judaica Apesar de antiga, a “Abordagem da Hermenêutica Judaica” tem sido desenvolvida e exposta atualmente por exegetas evangélicos como Richard N. Longenecker95 e Earle E. Ellis 96 e, num grau mais ameno e crítico, por F. F. Bruce97 e Grant Osborne98. Esses estudiosos, especialmente os dois primeiros, vêm escrevendo artigos e obras com a finalidade de demonstrar a estreita ligação do modus operandi da interpretação do AT feita pelos escritores neotestamentários e aquela realizada pelos grupos judaicos da mesma época. A premissa de tal perspectiva é que “ainda que o evangelho seja supra-histórico em sua origem e efeito, ele provém de um Deus que encarna a sua palavra ... e que usa os métodos históricos contemporâneos como veículos para sua graça”. 99 A pressuposição de que o cristianismo primitivo fazia parte do judaísmo do período posterior do segundo templo (167 a.C. - 70 A.D.) leva à conclusão de que as técnicas hermenêuticas judaicas nortearam também a interpretação de Jesus e dos apóstolos. 100 Basicamente, a “Abordagem da Hermenêutica Judaica” se concentra no estudo dos métodos exegéticos rabínicos encontrados nos Midrashim, coleção das interpretações do AT feitas pelos mestres judeus,101 e da exegese desenvolvida pela comunidade essênia de Qumran, conhecida como pesher.102 Dois tipos de interpretação caracterizavam a hermenêutica rabínica, o peshat e o midrash, ainda que ambas só viessem a ser distinguidas pelos rabinos amoraicos no século

A frase “sentido mais rico” do texto de Johnson torna-o passível de crítica por não ser consistente na distinção terminológica entre sentido e significância. A preservação da metodologia requer uma “significância mais rica” e não “um sentido mais rico”. 95 Richard N. LONGENECKER, “Can we reproduce the exegesis of the New Testament?”, p. 3-38; Idem, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 4-8; Idem. Biblical exegesis in the apostolic period. 96 E. Earle ELLIS. Paul’s Use of the Old Testament; Idem, “How Jesus interpreted his Bible”, p. 341-351. 97 F. F. BRUCE, Biblical exegesis in the Qumran texts. 98 Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 412-439. 99 Richard N. LONGENECKER, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 6. 100 Grant OSBORNE, Op. cit., p. 414. 101 Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 51-52. 102 Richard N. LONGENECKER, “Can we reproduce the exegesis of the New Testament?”, p. 7. 94

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IV.103 O peshat era o método literal, por meio do qual se analisava uma passagem bíblica com atenção especial às considerações filológicas e ao contexto histórico. 104 Já o midrash, derivado do verbo hebraico D*r~v, era a tentativa de encontrar um sentido oculto que ia além do significado obviamente determinado na passagem. 105 A comunidade do Mar Morto praticava um tipo de interpretação conhecido como pesher (“interpretação”) ou raz-pesher (mistério-interpretação), em que se concebia a revelação bíblica dada em dois estágios: primeiro, o raz, mistério divino comunicado por meio dos profetas do AT, e segundo, o pesher, o sentido revelado da profecia bíblica especialmente por meio do Mestre da Justiça, mas também pelos comentaristas da comunidade qumranita.106 Esse princípio de que o propósito divino não pode ser adequadamente compreendido, até que o pesher tenha sido revelado tanto quanto o raz, subjaz a exegese bíblica nos comentários de Qumran. O raz foi comunicado por Deus ao profeta, mas o sentido da comunicação permanecia selado até que o pesher fosse revelado por Deus ao seu intérprete escolhido. O intérprete escolhido era o Mestre da Justiça, o fundador da comunidade de Qumran. 107

O processo exegético era uma atualização das profecias bíblicas, em que o intérprete não tinha como alvo elucidar o sentido do texto em seu contexto, mas sim, determinar a aplicação da passagem profética de acordo com os eventos contemporâneos ao tempo em que a irmandade de Qumran viveu, considerado como o fim dos tempos.108 “Não se trata apenas de o significado antigo do texto ser pertinente para eles, mas de os textos serem pensados exclusivamente para seu grupo”.109 Ao identificar e delinear as características dos métodos exegéticos judaicos da época de Jesus e da igreja primitiva, Longenecker observa várias passagens bíblicas que fazem referência ao AT demonstrando a influência que os cristãos experimentaram em sua maneira de ler as Escrituras. A influência específica sobre os autores bíblicos é tratada da seguinte forma: Richard N. LONGENECKER, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 6. 104 Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 55; F. F. BRUCE, Biblical exegesis in the Qumran texts, p. 8-11. 105 Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 415; Richard N. LONGENECKER, “Can we reproduce the exegesis of the New Testament?”, p. 4-5. 106 Augustus Nicodemus LOPES, Op. cit., p. 75. Ver também Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 38-39. 107 F. F. BRUCE, Op. cit., p. 9. 108 Richard N. LONGENECKER, “Can we reproduce the exegesis of the New Testament?”, p. 11-12. 109 Grant OSBORNE, Op. cit., p. 417. 103

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Em quase todos os autores do NT podem ser encontradas algumas exegeses literais e diretas dos textos bíblicos. Ocasionalmente, algumas interpretações alegóricas estão também presentes. O método pesher, todavia, predomina em certa classe de material, isto é, aquele que é representativo dos primeiros discípulos de Jesus: principalmente a pregação de Pedro registrada nos capítulos iniciais de Atos, nos evangelhos de Mateus e de João e em 1 Pedro. Nesses textos, os autores parecem tomar o próprio método de Jesus de interpretação das Escrituras como o padrão deles. Por revelação, eles vieram a compreender que ‘isto’ manifesto na obra e pessoa de Jesus é ‘aquilo’ do qual o AT fala. Outros escritores do NT, porém, como Paulo e o autor de Hebreus, podem ser identificados por um tipo midráshico de interpretação bíblica (exceto onde Paulo usa uma abordagem pesher na descrição do seu próprio chamado apostólico). A interpretação midráshica nas mãos destes autores começa com a Escritura e busca demonstrar a relevância cristológica mediante uma exegese atomista controlada. 110

Como evidência de sua afirmação, Longenecker diz que as fórmulas de citação no evangelho de Mateus revelam o tratamento encontrado na exegese pesher, pois têm seu ponto de partida em certos eventos da vida de Cristo em lugar do próprio texto do AT e, além disso, são empregadas para mostrar o cumprimento das palavras e ações proféticas ao invés de elucidarem princípios inerentes das passagens antigas, recebendo a forma textual conforme aplicação feita pelo evangelista (cf. Mt 2.14-15, 16-18).111 Em favor da metodologia midráshica de Paulo, Longenecker argumenta que enquanto os primeiros líderes cristãos judeus caracteristicamente começam com Jesus, o Cristo, e caminham para compreender o AT a partir desta perspectiva cristológica, Paulo, geralmente, começa com o próprio texto e busca via exposição midráshica mostrar a sua significância cristológica.112

Um dos exemplos que ele fornece é a comum prática farisaica do “colar de pérolas” de citações, a fim de dar suporte ao argumento e demonstrar a unidade da Escritura. Isso pode ser visto na passagem de Gálatas 3.10-13, em que Paulo reúne vários trechos da lei e dos profetas para mostrar que Cristo morreu como maldito em lugar dos pecadores, tornando possível a justificação pela fé nele. 113 Grant Osborne também cita vários usos da hermenêutica rabínica nos escritos paulinos, um deles é a aplicação do Qal wachomer, uma das sete middôth (“regras”) de Hillel, 114 no texto de Romanos 5.15-21, mostrando que aquilo

Richard N. LONGENECKER, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 7. 111 Richard LONGENECKER, Biblical exegesis in the apostolic age, p. 126. 112 Richard N. LONGENECKER, “Can we reproduce the exegesis of the New Testament?”, p. 26-27 113 Idem, p. 27. 114 Ver a explicação das sete middôth em Jacob Zallel LAUTERBACH, “Talmud Hermeneutics”. In: JE, v. 12, p. 32-33 110

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que é verdadeiro numa situação menor, como a queda da humanidade por meio de Adão, também o é numa situação maior, a justificação da humanidade por meio de Cristo. 115 E. Earle Ellis, igualmente, mostra outros casos em que a exegese rabínica influenciou o olhar do próprio Jesus para as Escrituras. Em um deles, Ellis toma a mesma regra de Hillel citada anteriormente e mostra o uso que Jesus faz de Salmo 82.6 em João 10.34-36, cujo argumento básico consiste em validar o título de “Filho de Deus” para Cristo, que é maior em dignidade do que todo o povo de Deus ao qual o salmo faz referência como “deuses”. 116 Esta proposta de comparação entre a hermenêutica judaica e a dos escritores do NT deve ser examinada com cuidado. Como observado por Darrell Bock, sua fraqueza consiste em ser demasiadamente aberta a paralelos históricos fora do cristianismo e por enfraquecer o conceito de profecia, concentrando-se mais no período do cumprimento do que no tempo da revelação original. 117 Dentro desses aspectos, Augustus N. Lopes traz uma importante advertência: Muitos estudiosos são culpados de “paralelomania”, isto é, eles colocam lado a lado elementos do Cristianismo e Judaísmo primitivos, detectam similaridades, e com base nelas, concluem que o Cristianismo copiou isto ou aquilo do Judaísmo da época. Além do fato de que não havia uma forma única do Judaísmo no período apostólico (fariseus, saduceus, essênios, Filo, apocalípticos, etc.), similaridades de pensamento e métodos podem se explicar de outra forma que não dependência direta. 118

Outro ponto importante de alerta ao lidar com a “Abordagem da Hermenêutica Judaica” é o uso que essa escola faz de categorias não muito bem definidas como midrash e pesher.119 Este último termo, por exemplo, é às vezes compreendido de forma ampla para se referir à aplicação do AT ao NT cuja procedência é de uma base revelatória; enquanto outros estudiosos compreendem pesher como uma “leitura para dentro” do AT que não se encontra lá, expressando restrições ao uso da palavra para determinar a exegese dos escritores do NT.120 Quando o primeiro trabalho de Longenecker foi publicado, o campo de estudos judaicos estava em seu início e, atualmente, tem se tornado cada vez mais complexo no 115

Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 432. Ver também o exemplo da aparente dependência do Targum de Onkelos por parte de Paulo, em 1 Coríntios 10.4, discutido por E. Earle Ellis em seu artigo: E. Earle ELLIS, “A note on 1 Corinthians 10.4”, p. 53-56. 116 E. Earle ELLIS, “How Jesus interpreted his Bible”, p. 346. 117 Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, p. 217. 118 Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 64. 119 Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New: Part 2”, p. 313; Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 34-35. 120 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 193. Ver também as observações de Augustus N. Lopes sobre os problemas que cercam os Midrashim e as fontes rabínicas (Augustus Nicodemus LOPES, Op. cit., p. 62-63). 27

ambiente acadêmico.121 O “judaísmo palestino do primeiro século não era monolítico, mas multifacetado”.122 Ao mesmo tempo, o NT mostra inegáveis similaridades com a literatura de Qumran, com os escritos rabínicos e com outros materiais judaicos do primeiro século. Portanto, o estudo destas fontes judaicas contemporâneas do período da igreja primitiva possibilita a compreensão de pontos em comum entre ambos e ajuda a explicar o que os autores bíblicos fizeram com o texto bíblico e porque agiram dessa forma.123 Mas sempre será importante lembrar que “por trás destas técnicas ... estão as convicções básicas de cada comunidade acerca da Escritura, sua própria identidade e o movimento de Deus na história”. 124 Assim, “o uso no Novo Testamento de termos da teologia judaica não significa necessariamente que eles foram apropriados sem qualquer mudança de significado no Novo Testamento”.125 F. F. Bruce assinalou acertadamente vários pontos distintos de convicção entre o cristianismo primitivo e a comunidade de Qumran: (1) os autores do NT apresentam uma exegese do AT que se fundamenta no padrão do agir salvador e julgador de Deus na história da redenção, contido nas próprias Escrituras, diferente dos essênios, que tinham uma exegese centrada apenas em si mesmos e em sua própria época; (2) o cristianismo via a participação dos gentios com os mesmos privilégios que os judeus nas bênçãos prometidas a Abraão, algo completamente inaceitável para a comunidade de Qumran; (3) o cristianismo compreendia que uma nova ordem de adoração havia se instalado, tornando obsoleto todo o sistema sacrificial do AT, já a irmandade de Qumran cria que a cessação da adoração no templo era apenas temporária e seria retomada logo que o verdadeiro Israel retornasse a Jerusalém e adorasse no templo renovado; (4) enquanto os comentaristas de Qumran buscavam achar um correspondente contemporâneo para cada detalhe das profecias do AT, ao autores do NT se concentravam em princípios permanentes que as profecias preservavam e em sua especial aplicação a Jesus.126 Outro ponto positivo que a “Abordagem da Hermenêutica Judaica” apresenta está no seu alerta para o fato de que não se pode olhar para a relação do AT com o NT apenas sobre a

Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 34-35. 122 Mikeal C. PARSONS, “The critical use of the rabbinic literature in new testament studies”, p. 92. 123 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 194. 124 Idem. Ibid. 125 Darrel L. BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New: Part 2”, p. 312. 126 F. F. BRUCE, Biblical exegesis in the Qumran texts, p. 77-81. 121

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base de profecia-cumprimento, pois isso não esgota a abordagem hermenêutica dos primeiros cristãos na sua compreensão do AT.127 Uma característica importante de tal abordagem é a solidariedade corporativa ou personalidade corporativa, em que há uma constante oscilação entre o indivíduo e o grupo (família, tribo, nação) ao qual ele pertence, de modo que o rei ou outra figura significativa pode personificar ou representar o grupo como um todo.128 Isso se torna perceptível em Mateus 2.15 e sua citação de Oséias 11.1. Ali a expressão coletiva para Israel, “meu filho”, em seu contexto original, encontra sua concretização máxima nas experiências de Jesus, o Messias de Israel. 129 A tipologia, com sua correspondência histórico-teológica do agir de Deus na história da redenção, traçando um padrão nas manifestações salvadoras de Yahweh na vida do povo de Israel e na vida de Jesus, revela que há referências indiretas e prospectivas no AT que apontam para Cristo e sua igreja (e.g. 1Co 15.7; Hb 5.4-5).130 “Isso não demonstra uma ligação profética direta, mas antes uma correspondência histórica na qual a experiência presente revive o passado. Deus é imutável ou consistente, e age hoje da mesma maneira que fez no passado”.131 2.5. Outras Abordagens Dentro dos círculos da academia evangélica, muitas outras propostas de abordagem da relação intratestamentária entre AT e NT surgiram tanto no período em que os quatro métodos acima emergiram como modelos de discussão,132 como também recentemente em dois artigos significativos no The Master’s Seminary Journal. 133 Duas dessas propostas serão

Richard N. LONGENECKER, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 4-5. 128 Richard N. LONGENECKER, Biblical exegesis in the apostolic age, p. 77. 129Idem, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 5. 130 Idem. Ibidem; Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 195-198. 131 Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 419. 132 Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 65-76; John GOLDINGAY, “The Old Testament and Christian faith: Jesus and the Old Testament in Matthew 1 – 5, Part 1”, p. 4-10; Idem, “The Old Testament and Christian faith: Jesus and the Old Testament in Matthew 1 – 5, Part 2”, p. 5-12; Norman R. ERICSON, “The NT use of the OT: a kerygmatic approach”, p. 337-342; Walter R. ROEHRS, “The typological use of the Old Testament in the New Testament”, p. 204-216. Por questão de espaço e foco, apenas duas dessas abordagens serão avaliadas na presente dissertação. A proposta de Goldingay merece maior atenção por parte de estudiosos, especialmente por mesclar a abordagem canônica e a do referentiae plenior com uma separação radical na análise das intenções divino-humana do texto bíblico. Surpreendentemente, seus dois artigos no Themelios receberam pouquíssima atenção, ou nenhuma, por parte de estudiosos desta área, pois eles nem sequer constam nas bibliografias finais de livros e textos referências. 133 John WALTON, “Inspired subjectivity and hermeneutical objectivity”, p. 65-77; Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 79-98. 127

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analisadas neste subponto de forma mais sintética do que as anteriores, porém com suficiente especificidade para apontar contribuições e fraquezas de suas metodologias. 2.5.1.

Abordagem do Cumprimento Análogo Essa abordagem foi desenvolvida por Jack Weir, em um artigo de Perspectives on

Religious Studies, com o objetivo de propor uma solução para o entendimento da relação entre o AT e o NT que preservasse a hermenêutica histórico-crítica e, ao mesmo tempo, percebesse pontos de contato entre ela e a interpretação dos escritores do NT.134 Weir observa que cinco metodologias subjazem o uso que o NT faz do AT e devem ser incorporadas na abordagem hermenêutica dos dias atuais: (1) método histórico-literal, em que as citações no NT possuem os mesmos sentidos que tinham no seu contexto original; (2) método pesher, em que os textos do AT eram aplicados aos eventos contemporâneos do século I, sem uma preocupação com o contexto original; (3) método tipológico, em que pessoas, instituições e eventos do AT são identificados como tipos ou modelos de realidades correspondentes na história da salvação do NT; (4) método alegórico, usado para ilustrar ou dar ênfase a um ensino, sem produzir nova teologia; (5) método teológico, pelo qual os escritores do NT viam no evento-Cristo e nos acontecimentos da vida da igreja no NT o cumprimento de conceitos e da teologia do AT. 135 O artigo prossegue mostrando que é fundamental reconhecer o caráter de revelação tanto do AT como do NT, vendo o impacto que o primeiro testamento teve sobre o segundo e compreendendo o NT como a consumação do AT mediante o evento-Cristo.136 O método do “cumprimento análogo” reconhece tanto as similaridades quanto as diferenças de objetos, eventos e ideias do AT e seus devidos correspondentes no NT. As analogias na hermenêutica e no cumprimento envolvem uma âncora objetiva e um elemento subjetivo. A âncora objetiva deve estar em algum sentido dentro da intenção ou do entendimento do profeta do AT, caso contrário o cumprimento seria equívoco ou alegórico. Weir trabalha com os conceitos de equivocidade e univocidade, mostrando que as metodologias dos autores neotestamentários se encontravam, geralmente, no meio termo destes dois conceitos. Quando o cumprimento no NT era literal, então a interpretação era unívoca, mas em todos os outros quatro métodos, ela era análoga, contendo um elemento de subjetividade alicerçado em conceitos teológicos ou eventos históricos que proviam a similaridade objetiva. 137 Todavia, até o cumprimento literal Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 65-66. Idem, p. 67-70. 136 Idem, p. 71-72. 137 Idem, p.72-74. 134 135

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de passagens do AT no NT não é completamente unívoco, por serem compreendidas em um novo contexto de espaço e tempo diferentes.138 A abordagem do cumprimento análogo tem o mérito de tentar propor uma metodologia que seja a mais ampla possível e abarque os vários tipos de interação que os escritores do NT tiveram com o texto do AT. Certamente, não há completa uniformidade no modo como os autores do NT citaram o AT, e o exegeta precisará olhar com cuidado para as contribuições positivas de cada abordagem hermenêutica do uso do AT no NT. Weir, porém, é completamente superficial em sua comparação da hermenêutica neotestamentária com a hermenêutica de Qumran. Há outras possibilidades de se explicar as fórmulas de cumprimento em Mateus além do método pesher. Além disso, ele descreve erroneamente a interpretação pesher, dizendo que “o sentido do AT era preservado, mas aplicado a uma nova situação”.139 Todavia, quando se observa a prática interpretativa de Qumran, chega-se a uma conclusão diferente: “eles não consideravam as profecias particulares em análise como a mensagem de Deus que foi significativa num período anterior, ... ao contrário, olhavam para estas passagens como sendo exclusivamente dirigidas a eles”. 140 Outra fraqueza da proposta do “cumprimento análogo” é a defesa de que a analogia (equivocidade versus univocidade) explica o uso literal de passagens do AT no NT, desde que tal uso implica tempo e espaço diferentes. 141 Weir parece confundir o tempo e espaço em que a profecia é proferida com o tempo e espaço do cumprimento dela. Por exemplo, o cumprimento de Isaías 7.14 na concepção virginal de Maria do menino Jesus, em Mateus 1.22-23, é literal,142 pois os dois textos se referem ao mesmo tempo e espaço de cumprimento, ainda que cada um veja o cumprimento de um ponto distinto da história, antes e depois de sua concretização. Por fim, a preocupação em validar a exegese histórico-crítica ao lado da busca por defender o AT como revelação divina apontam para um inconsistência substancial na abordagem de Weir, 143 pois o método histórico-crítico tem sua ênfase na “razão em

Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p.75. Idem, p. 67-68 (itálico acrescentado). 140 Richard LONGENECKER, Biblical exegesis in the apostolic age, p. 39. Ver também F. F. BRUCE, Biblical exegesis in the Qumran texts, p. 16ss.; Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 73-74, 81 141 Jack WEIR, Op. cit., p. 75. 142 Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 80. 143 Jack WEIR, Op. cit., p. 66. Ver também: “... se a Bíblia deve ter uma autoridade objetiva, ela só pode tê-la se a teologia é produto da exegese histórico-crítica. Sem esta base objetiva, toda teologia será especulação subjetiva 138 139

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detrimento da revelação”,144 “relegando a um papel secundário o ... caráter divino” da Bíblia. 145 O método histórico crítico “frequentemente exclui ... a função da Bíblia como testemunha ou testemunho apontando, além de si mesma, para uma realidade divina externa ao texto”.146 Se Weir entende o método histórico-crítico como sinônimo para o método histórico-gramatical não fica claro em seu ensaio, o que leva o leitor a considerar a expressão conforme tradicionalmente entendida e definida. Apesar de tais alertas quanto à abordagem de Weir, sua proposta do uso análogo que os autores do NT fizeram do AT contribui para a percepção de que a relação intratestamentária experimenta tanto descontinuidade quanto continuidade e, mesmo onde há certa subjetividade no modo como os apóstolos lidaram com o AT, sempre há uma âncora objetiva que explica as ligações canônicas feitar por eles, enquanto olhavam para o “sim” das promessas de Deus no evento-Cristo (2Co 1.20; cf. Mt 5.17). 2.5.2.

Abordagem da Aplicação Inspirada do Sensus Plenior Em reação às abordagens evangélicas tradicionais para o uso do AT no NT, Robert

L. Thomas, em um artigo de The Master’s Seminary Journal, apresentou uma nova maneira de encarar as citações no NT que não apontam para um cumprimento literal do AT verificável pela exegese histórico-gramatical. 147 A proposta de Thomas está em consonância com outro artigo do mesmo volume do journal, escrito por John Walton, no qual o autor diferencia duas formas distintas, porém aceitáveis de ler o AT. A primeira delas é a interpretação históricogramatical, que possui regras objetivas e fixas na leitura bíblica; a segunda é a interpretação subjetiva feita pelos autores do NT, cuja autoridade residia na própria inspiração divina. 148 “Se você tem inspiração, você não precisa da hermenêutica histórico-gramatical. Se você não tem inspiração, você deve proceder pelas diretrizes conhecidas da hermenêutica”. 149 Essa metodologia de compreensão do uso do AT pelo NT, denominada “Aplicação Inspirada do Sensus Plenior” (AISP) por Robert Thomas, atribui dois sentidos às passagens do AT que são aplicadas subjetivamente pelo NT: “Que a passagem tem dois sentidos é ou misticismo” (Idem, p. 70-71); “O Antigo Testamento pode funcionar como revelação apenas se sua exegese histórico-crítica for estabelecida sem ser manipulada pelos moldes do Novo Testamento” (Idem, p. 71). 144 Augustus Nicodemus LOPES, “O dilema do método histórico-crítico na interpretação bíblica”, p. 115. 145 Idem, p. 118. Ver também Gleason ARCHER Jr., A survey of Old Testament Introduction, p. 577. 146Ensaio de Dennis OLSON em The Princeton Seminary Bulletin XIV, no. 3, 1993, p. 297, citado em Gleason ARCHER Jr., Op. cit., p. 574. 147 Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 79-80, 82-83. 148 John WALTON, “Inspired subjectivity and hermeneutical objectivity”, p. 69-70. 149 Idem, p. 70. 32

óbvio, mas apenas um desses sentidos deriva da interpretação histórico-gramatical do próprio AT. O outro sentido vem da análise histórico-gramatical da passagem do NT que a cita”.150 Ele prossegue dizendo: “A autoridade para o segundo sentido do AT não é o AT, mas sim o NT. O AT produz apenas o sentido literal. O sentido do sensus plenior emerge apenas depois que uma AISP do fraseado do AT é feita para uma nova situação”.151 A conclusão que Walton e Thomas chegam é a seguinte: Nós não almejamos reproduzir a hermenêutica dos autores do NT porque eles, em virtude da inspiração, conferiram autoridade a si mesmos por meios indisponíveis a nós. Nós buscamos apenas proclamar o que o texto, em sua autoridade, já tem revelado.152

Ou seja, o intérprete cristão da Escritura Sagrada não deve seguir a prática hermenêutica dos escritores do NT, pois eles possuíam dons de apostolado e de profecia que lhes possibilitavam transmitir a revelação segura da parte de Deus, capacidade esta que o intérprete contemporâneo não desfruta.153 A preocupação por trás da AISP de preservar a objetividade hermenêutica em compromisso com a autoridade bíblica é recomendável. 154 Porém, relegar os usos que o NT faz da revelação anterior, que não apresentam uma interpretação histórico-gramatical clara, ao subjetivismo inspirado parece uma resposta simplista para um problema realmente complexo. Como Donald Carson observou acertadamente: “os escritores do NT não pensavam que liam no AT coisas que já não estavam lá de forma germinal”, assim o apelo do sentido oculto no AT “parece um estranho contexto para a insistência de Mateus de que o êxodo de Jesus do Egito num certo sentido cumpria a passagem de Oséias. Essa observação não é trivial; Mateus argumentava com judeus que poderiam dizer ‘você não está lidando adequadamente com o texto’”.155 Mesmo tendo consciência da inspiração de seus escritos (cf. 1Co 14.37-38; 1Ts 2.13; Ap 22.18-19), os autores do NT e o próprio Jesus apelavam constantemente ao AT como base autoritativa que corroborava seus ensinos e argumentos (cf. Mt 19.1ss.; 1Co 9.812; 1Tm 2.11-15; 1Pe 2.4-8).156 A convicção cristã era que o sentido do texto do AT apontava para o ápice do plano redentor de Deus em Cristo e para a nova era escatológica que se iniciava. Como destacou Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 87. Idem, Ibidem. 152 John WALTON, “Inspired subjectivity and hermeneutical objectivity”, p. 76. 153 Robert L. THOMAS, Op. cit., p. 86. 154 Ver John WALTON, Op. cit., p. 77. 155 Donald CARSON, “Matthew”. In: EBC, v. 8, p. 92. 156 Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 138-141. 150 151

33

Gerhard Hasel: “É difícil aceitar a ideia escriturística de uma referência arbitrária somente com a finalidade de obter material para ilustrações”.157 Nesse sentido, a “abordagem do cumprimento análogo” rebate a ênfase na subjetividade dos autores do NT contido na AISP, mostrando que “o escritor do NT não era completamente livre para improvisar, desde que estava limitado aos pontos de correspondência, equivalência e similaridade entre o Antigo Testamento e o cumprimento proclamado”.158 A abordagem do AISP é superficial, pois deixa de perceber que a história é uma “unidade inter-relacionada e que Deus designa as primeiras partes para corresponderem e apontarem para as partes posteriores, especialmente para aqueles eventos que ocorreram na era do cumprimento escatológico em Cristo”.159 2.6. Conclusão O estudo das abordagens hermenêuticas evangélicas no estudo do uso do AT pelo NT esclareceu os principais prismas com os quais se tem observado esta questão interpretativa complexa. O exame de cada uma das escolas revelou que não há uma panaceia metodológica que lide com todos os problemas envolvidos na questão, exigindo, portanto, uma abordagem múltipla.160 Há por parte deste autor uma preferência ou ênfase na abordagem do referentiae plenior, com sua distinção entre significado e referente/significância e com sua percepção do conceito de cumprimento no NT como indicador da concretização plena da significância de certas passagens da Escritura. As abordagens “canônica”, do “cumprimento análogo” e da “hermenêutica judaica”, também, oferecem insights importantes para a compreensão do pensamento cristão do século I em sua leitura do AT e para o entendimento da ampliação dos temas e da teologia canônica. Fica evidente, portanto, que As palavras dos escritores do Antigo Testamento eram necessárias para transmitir todas as implicações que eles podiam perceber em seu estágio da história da revelação e que desejavam comunicar a sua audiência/leitores considerando seu assunto principal. Todavia, elas eram suficientes em seu campo semântico para compreender não apenas tudo o que o Autor [divino] desejava comunicar para a geração do escritor, como também

157

Gerhard F. HASEL, Teologia do Antigo e Novo Testamento: questões fundamentais no debate atual, p. 440. Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 72. 159 G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: an examination of the presuppositions of Jesus’ and the apostles’ exegetical method”, p. 92. 160 Gerhard F. HASEL, Op. cit., p. 455; cf. Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior, p. 209-211. 158

34

aquilo que ele havia determinado manter armazenado para os escritores do Novo Testamento, várias gerações depois. 161

Afirma-se assim que cada texto do AT possui apenas um sentido, o qual pode conter mais de um referente ou uma significância. “Em muitos casos, o Novo Testamento faz uma aplicação particular de princípios declarados no Antigo, cujo cumprimento é concretizado em mais do que um único evento”.162 Por isso, nem sempre os autores do AT estavam plenamente conscientes de todas as implicações contidas em seus textos, as quais só foram percebidas “mediante uma dose de revelação concedida posteriormente”.163 Além

disso,

deve-se

reconhecer

a

leitura

cristológica

dos

escritores

neotestamentários: “o Novo Testamento vê o Antigo Testamento como uma coleção de livros que, em cada uma de suas partes bem como em seu todo, era de alguma forma ‘incompleta’ até ‘ser completa’ por meio do advento de Cristo e da inauguração da era da salvação”.164 Pois, Jesus “‘completa’ a Lei de Israel (Mt 5.17), sua história (Mt 2.15) e sua profecia (At 3.18)”.165 Na pessoa e obra de Jesus Cristo, as Escrituras se cumprem na verdadeira intenção de suas profecias e no objetivo de sua história de salvação.166 Como bem observou Longenecker: O que o NT nos diz é que em Jesus de Nazaré os primeiros cristãos viram a culminação ou o cumprimento dos propósitos redentores de Deus para a humanidade ... Assim eles eram capazes de olhar para trás, para o padrão dos relacionamentos pessoais de Deus no passado – particularmente aqueles com Israel, o seu povo da aliança – e ver todos aqueles relacionamentos atingirem a sua finalidade na vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus.167

Por fim, uma análise adequada do uso que o NT faz do AT precisa observar os objetivos tencionados pelos escritores do século I ao citarem um texto da Bíblia Hebraica. Bernard Ramm e Roy B. Zuck dão alguns exemplos de objetivos, como (a) confirmar uma proposição (cf. Mt 22.32; Mc 10.8; Jo 6.45); (b) ilustrar uma verdade do Novo Testamento (cf. Rm 10.16, 18; 1Co 1.18-19); (c) explicar uma proposição do AT (cf. At 2.16-21; Hb 12.19-20); (d) mostrar o cumprimento de uma predição do AT (cf. Mt 1.22-23; 2.5-6); (e) Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p. 28-29 (itálico original). 162 Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”. p. 149-150. 163 Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 314; ver Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single meaning of Scripture”, p. 221-223. 164 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 205. 165 Idem. Ibidem. 166 E. Earle ELLIS, “How Jesus interpreted his Bible”, p. 345-346. 167 Richard N. LONGENECKER, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 5. 161

35

traçar um paralelo com um acontecimento do AT (Rm 11.4-5).168 Outros objetivos, além destes, podem ser verificados na citação do AT em passagens do NT,169 e a compreensão deles em cada caso é importantíssimo para alcançar a interpretação adequada da passagem em análise. O presente estudo do uso que o autor de Hebreus faz da alusão de Deuteronômio 29.18 e das citações de Deuteronômio 4.24, 9.19 e Ageu 2.6-9 levará em conta, portanto, os seguintes aspectos: (1) o único sentido do texto do AT com um ou mais referentes; (2) o Sitz im Leben original de Deuteronômio e da profecia de Ageu; (3) a significância cristológica/escatológica da passagem do AT para o autor de Hebreus e o objetivo pelo qual ele a cita; e (4) a metodologia hermenêutica do escritor neotestamentário em comparação com os métodos hermenêuticos judaicos de sua época. Antes de lidar com tais questões hermenêuticas, porém, faz-se necessário examinar o tipo de texto usado pelo autor neotestamentário em comparação com os textos do TM e da LXX de Deuteronômio e de Ageu.

168

Bernard RAMM, Protestant biblical interpretation, p. 262; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 300312.Ver também Walter C. KAISER, The uses of the Old Testament in the New, p. 225-235; Norman R. ERICSON, “The NT use of the OT: a kerygmatic approach”, p. 339; R. H. GUNDRY, “Quotations in the NT”. In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 5, p. 9-10. 169 Ver os dez objetivos destacados por Zuck na obra citada na nota anterior. 36

3.

ANÁLISE DOS TIPOS TEXTUAIS: UMA COMPARAÇÃO DO TEXTO MASSORÉTICO (TM) E DA SEPTUAGINTA (LXX) DE DEUTERONÔMIO E DE AGEU COM O TEXTO GREGO DE HEBREUS 12 Quando se trata de estatísticas do número de citações e alusões do AT no NT, os

dados apresentam discrepâncias surpreendentes, pois os cálculos variam de 613 até 4105 usos que o NT faz do AT.170 Um cálculo razoável e seguro de citações explícitas tem girado em torno de 300 citações,171 cerca de 4,5% do conteúdo do NT,172 sendo que apenas as cartas de Filemom e de 1 e 2 João não trazem citações ou alusões ao AT.173 O livro de Hebreus, em estudo na presente dissertação, é uma das obras neotestamentárias que mais cita a Bíblia Hebraica174 e está saturada de ecos, citações e alusões do AT.175 “O fato de que o Antigo Testamento é citado tão extensivamente, e que as numerosas alusões são feitas num alcance de passagens bíblicas ainda maior, é claramente parte do plano e da intenção do autor”.176 O número de alusões é mais difícil de identificar, pois são fatos históricos, cláusulas ou frases com referencial no AT, que podem passar despercebidos na leitura do NT.177 Certamente, não há qualquer exagero em dizer que existem milhares de alusões do AT em todos os livros do NT.178 Esses dados apontam para a profunda relação entre os testamentos bíblicos e revelam a confiança que os autores do NT tinham no AT como revelação revestida da autoridade de Deus.179 Ao citarem passagens do AT, os escritores do NT lançaram mão dos textos que tinham à sua disposição: o texto hebraico, representado nos dias atuais principalmente pela Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”. p. 138; Walter C. KAISER, The uses of the Old Testament in the New, p. 2. 171 Walter C. KAISER, Op. cit., p. 3; Ronald F. YOUNGBLOOD, “Old Testament Quotations in the New Testament”, In: Roy B. ZUCK (ed.), Rightly divided: readings in biblical hermeneutics, p. 201; Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 412. 172 Roger NICOLE, Op. cit. p. 137. 173Grant OSBORNE, Op. cit., p. 412; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 291. 174 Ronald F. YOUNGBLOOD, Op. cit., p. 202. 175 Roger NICOLE, Op. cit. p. 138. 176 Ronald E. CLEMENS, “The use of the Old Testament in Hebrews”, p. 36. 177 R. H. GUNDRY, “Quotations in the NT”. In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 5, p. 7. 178 S. Lewis JOHNSON, The Old Testament in the New, p. 27. Ver Ronald F. YOUNGBLOOD, Op. cit., p. 201202; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 291; Grant OSBORNE, Op. cit., p. 412. 179 Roger NICOLE, Op. cit. p. 138-141; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 292. 170

37

tradição massorética, mas também pelos manuscritos de Qumran, e a LXX, a versão grega do AT produzida entre os anos 250-150 a.C.180 O texto massorético (TM), um grupo de manuscritos hebraicos da Bíblia que apresenta grande uniformidade entre si, é datado desde os primeiros séculos da Idade Média.181 Esse texto hebraico, estruturado com rígidos padrões e com sinais vocálicos, remonta em sua forma consonantal ao período do segundo templo (515 a.C. – 70 A.D.) e foi, provavelmente, o texto padrão dos fariseus e dos círculos de escribas do templo de Jerusalém (texto protomassorético).182 Por isso, “o texto hebraico existiu numa forma não muito diferente do texto massorético durante o período do Novo Testamento como tem sido demonstrado agora pela descoberta dos manuscritos de Qumran”.183 Outros tipos textuais hebraicos existentes ao lado do texto protomassorético acabaram dando origem à LXX, a principal versão grega que havia na época do nascimento do cristianismo.184 Essa versão do AT passou por várias recensões judaicas e cristãs, entre os séculos II e IV A.D., e seu texto original é reconstruído via crítica textual. 185 O predomínio do uso da LXX nos textos sagrados neotestamentários é ponto pacífico entre os exegetas contemporâneos,186 com a ressalva de que nenhuma deles difere significativamente do Texto Massorético (TM) quanto ao sentido da passagem. 187 Há situações em que os próprios autores do NT traduziram com certa liberdade o texto hebraico ou o parafrasearam, mantendo sua ideia principal. 188 Os Targuns, paráfrases aramaicas do texto hebraico do AT, tiveram certa relevância para os escritores cristãos do século I e auxiliam na compreensão de certas traduções do AT encontradas no NT.189

180

Ellis R. BROTZMAN, Old Testament textual criticism: a practical introduction, p. 72-73; R. H. GUNDRY, “Quotations in the NT”. In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 5, p. 7; D. Moody SMITH Jr., “The use of the Old Testament in the New”. In: James M. EFIRD (ed.), The use of the Old Testament in the New and other essays: studies in honor of William Franklin Stinespring, p. 8-9; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 299-300. 181 Edson de Faria FRANCISCO, Manual da Bíblia Hebraica, p. 221. 182 Idem, p. 221, 224-225. 183 D. Moody SMITH Jr., Op. cit., p. 8. 184 Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 142-143; Edson de Faria FRANCISCO, Op. cit., p. 224-225. 185 Ellis R. BROTZMAN, Op. cit., p. 74-79; Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 413-414. 186 Grant OSBORNE, Op. cit., p. 412-413; R. H. GUNDRY, Op. cit., p. 7; D. Moody SMITH Jr., Op. cit., p. 8-9. 187 Roy B. ZUCK, Op. cit., p. 299-300; Roger NICOLE, Op. cit., p. 142-143. 188 Roger NICOLE, Op. cit., p. 144-145. 189 D. Moody SMITH Jr., Op. cit., p. 11-13; Grant OSBORNE, Op. cit., p. 414-415. 38

No livro de Hebreus, as citações do AT provêm em grande parte da LXX, com a possibilidade de que o autor tivesse em mãos mais do que um texto grego e mais de uma forma do texto hebraico.190 Diante disso, este capítulo objetiva analisar o tipo de texto do AT usado pelo escritor de Hebreus em suas citações de Deuteronômio e Ageu na seção de 12.1429, observando semelhanças e diferenças entre o tipo textual encontrado na epístola e os textos da LXX e do TM. Sempre que necessárias, referências aos Targuns aramaicos do AT serão feitas. 191 Desde que certo grau de conformidade entre os tipos textuais deve ser esperado apenas quando os autores do NT demonstram a clara intenção de citar o AT, 192 a alusão a Deuteronômio 29.18 em Hebreus 12.15 não será objeto da crítica textual deste capítulo, recebendo análise na discussão hermenêutico-exegética dos capítulos que se seguirão. 3.1. Análise Textual Comparativa do TM e da LXX em Deuteronômio 4.24 e 9.19 com o Texto Grego de Hebreus 12.21 e 29 Duas passagens do livro de Deuteronômio são citadas pelo autor de Hebreus em seu discurso parenético-escatológico. Elas serão analisadas na ordem em que ocorrem no livro do AT, que é inversamente proporcional à sequencia do texto do NT. Após a comparação do TM com a LXX de cada passagem citada, seguir-se-á uma análise do tipo textual utilizado na carta aos Hebreus. 3.1.1.

Análise Textual de Deuteronômio 4.24 A tabela abaixo coloca em perspectiva os textos hebraico e grego da passagem de

Deuteronômio e mostra que há um alto grau de semelhança entre eles: TM – DEUTERONÔMIO 4.24

LXX - DEUTERONÔMIO 4.24

‫ ִּ֚ ִכי י ְהוֹ֣ה אֱל ֶהיָך אֵׁ֥ש אֹכְלֵּ֖ה ֶּ֑הּוא ֵּ֖אל קַנ ָּֽא‬ὅτι

κύριος



θεός

σου

πῦρ

καταναλίσκον ἐστίν, θεὸς ζηλωτής.

Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 7; Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 434; Ronald F. YOUNGBLOOD, “Old Testament Quotations in the New Testament”, In: Roy B. ZUCK (ed.), Rightly divided: readings in biblical hermeneutics, p. 203. 191 Stephen A. KAUFMAN (ed.). Targum Onqelos to the Pentateuch; Idem, Targum Jonathan to the Prophets. 192 Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 145-146. 190

39

O TM de Deuteronômio 4.24 inicia com a conjunção ‫ כִי‬em seu uso explicativo (“porque”, “pois”) 193 e é seguido pela LXX, que traz a conjunção ὅτι,194 ambas introduzindo a razão pela qual os israelitas deveriam observar a ordem dada por Moisés no verso 23. ‫י ְהוֹ֣ה‬

‫“( אֱ ל ֶהיָך‬YHWH, o teu Deus”) é consistente e literalmente traduzido pela LXX como Κύριος195 ὁ θεός σου.196 Na expressão ‫“( אֵׁ֥ש אֹכ ְֵּ֖לה‬fogo devorador/consumidor”), o particípio hebraico do verbo ‫ ָאכַל‬é usado com função adjetiva, qualificando o “fogo” (‫ )אׁש‬como devorador.197 O texto grego demonstra, novamente, consistência mediante a tradução correspondente, πῦρ καταναλίσκον, em que da mesma forma se usa um particípio (καταναλίσκον) com função adjetiva. 198 Interessantemente, em outras partes do Pentateuco, quando se fala de “fogo que consome” e se usa os mesmos substantivo e verbo hebraicos de Deuteronômio 4.24 (‫ אׁש‬e

‫)ָאכַל‬, a LXX utiliza também o verbo καταναλίσκω (“consumir”, “destruir completamente”)199 acompanhando o substantivo πῦρ (cf. Lv 6.3 [ARA 6.10]; Dt 9.3).200 Há na expressão (“fogo consumidor”) uma metáfora vívida que retrata o juízo de Deus contra a deslealdade cultual no meio de seu povo.201 Na sequência, a diferença que surge no texto, em que o TM usa o pronome pessoal

‫“( הּוא‬ele”) enquanto o grego traz o verbo de ligação ἐστίν (“é”), ocorre por uma questão idiomática e é completamente aceitável. A frase ‫ְהוה אֱ ל ֶהיָך אׁש אֹכְלה הּוא‬ ֹ֣ ‫ י‬é uma típica

193

Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, p. 139-140 (18.41). Cf. BDB, p. 473 (3.b). 194 J. P. LOUW, E. A. NIDA, Greek-English lexicon of the New Testament: Based on semantic domains, v.1, p. 780 (89.33); BAGD, p.71 (B). 195 O termo grego Κύριος é regularmente usado para a tradução do tetragrama divino na LXX (cf. as passagens de Dt 1.3, 6, 10-11, 19-21, 25-27, 30-31, 41; 2.7, 9, 3.2, 3, 18, 23; 4.1-5, 7, 10, 19, 31; 5.2-3; passim). Ver TDNT, v. 3, p. 1058-1060; Oscar CULLMANN, Cristologia del Nuevo Testamento, p. 271-272. 196 O artigo ὁ antes do substantivo ὁ θεός é necessário no grego, pois Sufixo Pronominal Possessivo (SPP) junto ao substantivo ‫ אֱלהִים‬torna-o definido no hebraico (Page H. KELLEY, Hebraico Bíblico: uma gramática introdutória, p. 100-101). Ver essa mesma expressão (κύριος ὁ θεός) consistentemente traduzida em Dt 3.21-22; 4.21, 23; 5.6, 9. 197 Cf. Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, p. 84-85 (19.1). 198 Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Novo Testamento, p. 95 (A.1); William D. MOUNCE, Fundamentos do grego bíblico: livro de gramática, p. 324-325. 199 J. P. LOUW, E. A. NIDA, Op. cit., v. 1, p. 233; BDB, p. 414. 200 No primeiro caso, é o “fogo” que literalmente “consome” o holocausto (Lv 6.3 / καταναλώσῃ τὸ πῦρ τὴν ὁλοκαύτωσιν). No segundo, YHWH é “fogo” que consome os inimigos de seu povo (Dt 9.3 / πῦρ καταναλίσκον ἐστίν). 201 Thomas L. Constable, Notes on Deuteronomy, p. 18; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 104. 40

sentença nominal do hebraico, em que não há a presença de um verbo finito entre o sujeito (‫ )י ְהוֹ֣ה אֱ ל ֶהיָך‬e o predicativo do sujeito formado pela locução adjetiva ‫אׁש אֹכְלה‬. O pronome (‫)הּוא‬, que seria redundante no português (assim como no grego), é usado tanto como substituto do verbo de ligação como para dar ênfase ao atributo divino mencionado no texto.202 Por isso, a LXX usa o verbo ἐστίν (“é”) como sinalizador de que “YHWH, teu Deus é fogo consumidor”.203 A última parte do versículo ‫“( אל קַ נא‬Deus zeloso”) explica a significância da metáfora (“fogo consumidor”) usada para descrever YHWH, o Deus de Israel. 204 O texto grego traduz o hebraico de forma basicamente literal, θεὸς ζηλωτής (“Deus zeloso/zelote”), usando o substantivo ζηλωτής (“zelote”, “entusiasta”, “partidário”)205 como correspondente ao adjetivo hebraico ‫קַ נא‬. Apesar das nuances partidárias e religiosas que o termo assume no NT e nos clássicos,206 a LXX sempre usa ζηλωτής, dentro dos livros canônicos, para ressaltar o compromisso profundo e fiel de Deus em sua aliança com Israel, de modo a não admitir nenhum rival na devoção da nação escolhida (ver LXX Êx 20.5; 34.14; Dt 6.15) e a se vingar dos inimigos de seu povo (Na 1.2). Em resumo, a LXX apresenta um texto que reproduz de forma adequada e fiel o TM de Deuteronômio 4.24, diferindo em questões pequenas, mas necessárias para a comunicação do sentido da passagem na língua grega. A literalidade da LXX vai na direção oposta do Targum Onkelos, que qualifica a “fala” ou “palavra” divina como “fogo consumidor” ( ‫מימְ ריה‬

‫( )אִישא ָאכְלא‬TgO Dt 4.24), alterando a estrutura e o sentido do TM. 3.1.2.

Análise Textual da Citação de Hebreus 12.29 Em sua proposta metodológica para a compreensão do uso do AT pelo NT, Grant

Osborne sugere como passo importante a observação de possíveis alterações na citação que o autor do NT faz do AT e das fontes ele usou para ela (TM, LXX ou Targuns). 207 Depois da análise conjunta do TM e da LXX, este autor comparará os dois tipos textuais com o texto Carl Philip WEBER, “‫”הּוא‬. In: DITAT, p. 342-343. Ver Dt 9.3, em que o mesmo uso de ‫ הּוא‬é traduzido pelo verbo de ligação na LXX. 204 Telford WORK, Deuteronomy, p. 64-65; Thomas L. Constable, Notes on Deuteronomy, p. 18. 205 BAGD, p. 338. Cf. J. P. LOUW, E. A. NIDA, Greek-English lexicon of the New Testament: Based on semantic domains, v. 1, p. 133, 297. 206 Ver Lc 6.15; At 1.13; 21.20; Gl 1.14; Flavius JOSEPHUS, Wars of the Jews, 2.651; PLUTARCO, Themistocles, 2.4, et al. 207 Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 424. 202 203

41

grego da carta aos Hebreus, a fim de examinar a fonte da citação de Deuteronômio 4.24 usada pelo escritor neotestamentário. O quadro seguinte auxilia na comparação dos textos. TM – DEUTERONÔMIO 4.24

LXX - DEUTERONÔMIO 4.24

HEBREUS 12.29

‫ ִּ֚ ִכי י ְהוֹ֣ה אֱל ֶהיָך אֵׁ֥ש אֹכְלֵּ֖ה ֶּ֑הּוא‬ὅτι κύριος ὁ θεός σου πῦρ καὶ γὰρ ὁ θεὸς ἡμῶν πῦρ ‫ ֵּ֖אל קַנ ָּֽא‬καταναλίσκον

ἐστίν,

θεὸς καταναλίσκον

ζηλωτής.

A passagem de Hebreus 12.29 não apresenta nenhum problema textual significativo, tanto no aparato da UBS4 como no da NA27.208 A expressão καὶ γὰρ é uma fórmula introdutória que indica a razão para a exortação feita no verso anterior e aponta para a citação da Bíblia Hebraica que se segue (“pois”; “porque”; cf. ARA e NVI).209 Há uma discussão se o texto em questão é, realmente, uma citação ou alusão a Deuteronômio 4.24. Visto que o verso 29, do ponto de vista linguístico, usa os mesmos termos da passagem de Deuteronômio e apenas acrescenta um pronome como atualização e, da perspectiva teológica do argumento do autor, propõe uma base escriturística para a exortação que o antecede, o mais natural é entender que Hebreus 12.29 cita o trecho do AT. 210 A referência citada no texto do NT recebe algum debate, se foi Deuteronômio 4.24 ou 9.3, mas maioria dos estudiosos concorda que o primeiro texto é que se constitui o objeto da citação (ou alusão), pois “sua extensão e ordem de palavras é mais próximo de Hebreus

A NA27 apenas indica que um uncial do século VI, D*, contém o substantivo  no início do versículo, mas não conta com o apoio de qualquer outro manuscrito. 209 William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 444, 487; David M. ALLEN, Deuteronomy and exhortation in Hebrews: a study in narrative re-presentation, p. 66; Thomas HEWITT, The epistle to the Hebrews: an introduction and commentary, p. 204. 210 NA27; Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 75; David M. ALLEN, Op. cit., p. 66; Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 237; George GUTHRIE, “Hebrews”. In: NLTSB, p. 2107. Outros estudiosos e referências entendem Hb 12.29 como um eco ou uma alusão a Dt 4.24: UBS4, p. 893; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 249; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 560; William L. LANE, Op. cit., p. 487. Um caso de semelhante em que se usa a conjunção γαρ seguida da citação do texto bíblico como texto fundante para o argumento do autor é 1 Co 15.27 (Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 207). 208

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12.29 do que o [texto] mais expansivo [de] 9.3 e seu uso do tema do πῦρ καταναλίσκον é mais afim ao tema de Hebreus”.211 A citação é parcial, pois apenas a seguinte porção do verso na LXX é citada: ὁ θεὸς [ἡμῶν] πῦρ καταναλίσκον. O verbo de ligação (ἐστίν), que aparece logo depois de καταναλίσκον na LXX de Deuteronômio 4.24, não ocorre em Hebreus, mas também é desnecessário na construção grega, pois a construção πῦρ καταναλίσκον, qualificadora de ὁ θεὸς, é escrita sem o artigo, funcionando como predicativo do sujeito e pressupondo a presença do verbo ε μί (“ser”). O acréscimo do pronome ἡμῶν em lugar de σου (LXX Dt 4.24) não significa de forma alguma uma distorção da passagem original, mas sim, uma atualização dela para uma “audiência cristã”212 e demonstra a identificação do autor com a situação de sua audiência (cf. Hb 12.25).213 A análise da citação de Hebreus 12.29 mostra, portanto, que o autor da epístola fez uma citação parcial de Deuteronômio 4.24 e usou o texto grego da LXX como sua fonte (contra TgO Dt 4.24), modificando apenas o pronome do trecho original, a fim de relacionar o discurso de Moisés com a situação presente dos cristãos no século I. 3.1.3.

Análise Textual de Deuteronômio 9.19 A menção à fala de Moisés em Hebreus 12.21 é amplamente reconhecida por obras

exegéticas como tendo sua origem em, ou possuindo relação com Deuteronômio 9.19,214 ao mesmo tempo em que outros estudiosos afirmam não ter ela nenhum equivalente absoluto no Pentateuco.215 Isso exige a observação das duas principais tradições textuais do AT (TM e LXX) antes da verificação se a fonte usada pelo autor de Hebreus foi secundária, isto é, algum 211

David M. ALLEN, Deuteronomy and exhortation in Hebrews: a study in narrative re-presentation, p. 67. Ver também F. F. BRUCE, La Epistola da los Hebreos, p. 384; Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 145; William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 487; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 249; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 560; Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 75. 212 William L. LANE, Op. cit., p. 487. Ver também Brooke Foss WESTCOTT, The epistle to the Hebrews: the Greek text with notes and essays, p. 422. 213 David M. ALLEN, Op. cit., p. 67. David M. Allen observa, na nota 138, que a não ocorrência do pronome ἡμῶν no discurso de Dt 4.24, talvez, reflita sua perspectiva de uma situação além do Jordão, quando Israel entrasse na terra e ele não estivesse mais presente. A modificação de pronome em citações do AT no NT é plausível e exemplificada em Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 295. 214 Ver NET Bible s.n. 30; NVI; UBS4, p. 887, 890; Myles M. BOURKE, “The Epistle to the Hebrews”. In: JBC, v. 2, p. 402; F. F. BRUCE, Op. cit., p. 373, 375; George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 988; Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 543-544; Leon MORRIS, Op. cit., p. 141; Richard LONGENECKER, Biblical exegesis in the apostolic age, p. 164-166. 215 Donald GUTHRIE, Op. cit., p. 244; David M. ALLEN, Op. cit., p. 63; Philip Edgcumbe HUGHES, Op. cit., p. 543. 43

targum ou exposição rabínica da narrativa da Lei (exposição hagádica), ou se foi uma alusão à passagem. TM – DEUTERONÔMIO 9.19

LXX - DEUTERONÔMIO 9.19

‫ ִכֹ֣י י ֹ֗ג ֹ ְרתִ י מִ פְנֶ֤י הַאף ְו ַ ֹ֣החמה אֲ ׁשֶַּ֨ ר ק ַצַ֧ף‬καὶ ἔκφοβός εἰμι διὰ τὴν ὀργὴν καὶ τὸν ‫ׁש ַמֶ֤ע י ְהוה‬ ְ ִ ‫יכֵּ֖ם ְלהַׁשְ ִ ֹ֣מיד אֶתְ ֶכֶּ֑ם ַוי‬ ֶ ‫י ְהוָ֛ה עֲל‬

θυμόν, ὅτι παρωξύνθη κύριος ἐφʼ ὑμῖν ἐξολεθρεῦσαι ὑμᾶς, καὶ εἰσήκουσεν

‫ א ַלי ַגֵּ֖ם בַפַ ֵ֥ עַם הַהִ ָּֽוא׃‬κύριος ἐμοῦ καὶ ἐν τῷ καιρῷ τούτῳ.

O texto de Deuteronômio 9.19 inicia com a mesma conjunção de 4.24, ‫כִי‬, cujo uso tem sido entendido de maneiras diferentes, como revelam as traduções bíblicas. Algumas versões apresentam a descrição da reação de Moisés de modo direto no versículo, sem nenhuma partícula introdutória.216 Supõe-se que essas traduções entendem a função enfática da conjunção hebraica na frase,217 ressaltando a reação de Moisés sem o objetivo de conectar diretamente a descrição do verso 19 com seu contexto próximo anterior. Deuteronômio 9.19, porém, sugere que a oração e o jejum do verso 18 ainda estejam em foco (“... e YHWH me ouviu também naquela ocasião”). Portanto, é mais natural interpretar a conjunção hebraica em seu uso causal (“porque”, “posto que” “pois”)218 apontando para a razão da intercessão intensa de Moisés no contexto anterior (v. 18), como faz a maioria das versões.219 A LXX apresenta a conjunção καὶ com um uso distinto da partícula‫ כִי‬do TM. A função da conjunção grega parece ser mais provavelmente aditiva (“e”),220 ainda que possa ter também a ideia de resultado, isto é, o temor de Moisés vindo em consequência da ira divina

NVI: “Tive medo da ira e do furor...”; NLT: “I feared that furious anger”; Ave Maria: “Eu estava aterrado vendo o furor...”. 217 O uso enfático ou asseverativo de ‫ כִי‬é explicado em Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, p. 145 (19.67); Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 312 (A.1). 218 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 144 (19.63); Luis Alonso SCHÖKEL, Op. cit., p. 312 (B.1). 219 A21: “… pois tive medo por causa da ira e do furor…”; ARA: “Pois temia por causa da ira e do furor...”; NET Bible: “For I was terrified...”; ARC: “Porque temi por causa da ira e dor furor...”; BJ: “Pois eu tinha medo da cólera e do furor...” (itálicos acrescentados). 220 Ver SVOTE: “And I was greatly terrified because of the wrath and anger” (Dt 9.19, itálico acrescentado). Ver J. P. LOUW, E. A. NIDA, Greek-English lexicon of the New Testament: Based on semantic domains, v.1, p. 789 (89.93); Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Novo Testamento, p. 56. 216

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contra o pecado do povo (cf. vv. 18-19).221 Dificilmente, o καὶ tem um uso explicativo no início do verso 19.222 O verbo hebraico

‫“( יג ֹ ְרתִי‬eu estava com medo/temor”)223 é traduzido pela expressão

grega, mais intensa, 224 porém equivalente ἔκφοβός ε μι (“eu estava aterrorizado/muito temeroso”).225 As preposições que seguem o relato do medo apontam para a causa do temor, ainda que com nuances levemente diferentes. O hebraico usa ‫מִ פְני‬, cuja tradução seria “diante de”, “perante”,226 enquanto o grego apresenta διὰ seguido de acusativos, com o sentido de “por causa de”.227 O termo hebraico “denota a base externa de uma ação ou efeito”, 228 mas também traz consigo uma significância locativa (“na presença de”), 229 enquanto que no grego a ênfase recai diretamente na causa. Quando descreve a causa do temor de Moisés, a LXX segue literalmente o hebraico, trazendo dois substantivos numa relação de hendíade, em que um único conceito básico é expresso por dois termos coordenados.230 Por isso, tanto ‫ הַאף ְוהַחמה‬quanto τὴν ὀργὴν καὶ τὸν θυμόν devem ser compreendidos com um sentido intensificador, apontando para a “furiosa ira” ou a “ira feroz” de YHWH contra o Israel infiel. 231 A conjunção hebraica ‫אֲׁשֶ ר‬, que possui a função de complemento direto na oração (“com que YHWH se irou”)232 é refletida no uso de ὅτι no texto da LXX.233 A frase ‫ק ַצַ֧ף י ְהוָ֛ה‬

‫יכֵּ֖ם ְלהַׁשְ ִ ֹ֣מיד אֶ תְ ֶ ֶּ֑כם‬ ֶ ‫“( עֲל‬YHWH se irou contra vós para vos destruir”) é seguida quase literalmente pelo grego παρωξύνθη κύριος ἐφʼ ὑμῖν ἐξολεθρεῦσαι ὑμᾶς (“O Senhor foi O uso resultante de καὶ é explicado em BAGD, p. 651 (2874). Ver este uso da conjunção em BAGD, p. 393 (4). 223 BDB, p. 388. O imperfeito no texto possui um sentido habitual passado (Ver Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, p. 63 [5.3]). 224 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 81. 225 J. P. LOUW, E. A. NIDA, Greek-English lexicon of the New Testament: Based on semantic domains, v. 1, p. 315 (25.256). O tempo presente no grego deve, nesse contexto, ser traduzido no passado em seu aspecto contínuo (Ver William S. LASOR, Gramática sintática do grego do Novo Testamento, p. 43 [11.52]). 226 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 541 (5.c). 227 Lourenço Stelio REGA, Johannes BERGMANN, Noções do grego bíblico: gramática fundamental, p. 101; BAGD, p. 181 (B.II). 228 BDB, Op. cit., p. 818 (6.b). 229 Idem, Ibidem. 230 NET Bible, Deuteronomy 9.19, t.n. (textual note) 23. Ver a explicação de hendíade em Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 177. 231 Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 81. A maioria das versões em português mantém os dois termos “ira/cólera” e “furor” separados (Ver ARA, ARC, NVI e BJ). Para uma tradução diferente, que expressa a ideia contida na hendíade, ver NET Bible. 232 Luis Alonso SCHÖKEL, Op. cit., p. 82 (1.b). 233 Contra a tradução de SVOTE, que apresenta “because”. 221 222

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inflamado contra vós para vos destruir”), que apresenta a mesma sequencia de palavras na construção. As pequenas diferenças não alteram o sentido do texto, como no caso em que o TM usa o verbo

(“estar irado”) no grau Qal e a LXX traz o verbo παροξύνω na voz

passiva (“ser irritado”, “ser inflamado”), a voz mais comumente usada deste vocábulo grego.234 O mesmo pode ser dito da presença da preposição ‫ ְל‬antes do verbo hebraico

no

infinitivo, ressaltando o sentido télico (“para destruir”),235 mas ausente no grego ἐξολεθρεῦσαι (“destruir”, “destruir completamente”)236, já que o infinitivo na língua helênica não necessita da preposição para comunicar propósito.237 A versão grega mantém a literalidade na frase καὶ ε σήκουσεν κύριος ἐμοῦ (“mas [o] Senhor me ouviu”) traduzindo o correspondente ‫“( ַויִׁשְ ַמֶ֤ע י ְהוה א ַלי‬mas, o Senhor me ouviu”) do TM.238 O uso do genitivo ἐμοῦ como objeto indireto de ε σακούω (“ouvir”) é a construção sintática esperada com esse tipo de verbo no grego.239 A parte final que comunica o aspecto temporal e de repetição no TM, ‫ַגֵּ֖ם בַפַ ֵ֥ עַם הַהִ ָּֽוא‬ (“ainda nesta vez” ou “também nesta ocasião”) é reproduzida de forma literal pela LXX, καὶ ἐν τῷ καιρῷ τούτῳ (“também neste tempo/ocasião”).240 Uma vez mais, constata-se certa literalidade no texto de Deuteronômio da LXX, reproduzindo, de forma muito próxima, as palavras e o sentido do TM. Findada a comparação dos tipos textuais do AT, abre-se caminho para o estudo da fonte usada na citação de Hebreus 12.21.

234

TDNT, v. 5, p. 857. Allen P. ROSS, Gramática do hebraico bíblico, p. 169-170 (2.a). 236 BAGD, p. 276. 237 O infinitivo pode ter ou não uma preposição antecedente para comunicar propósito. Ver Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Novo Testamento, p. 109-110 (A.2); William S. LASOR, Gramática sintática do grego do Novo Testamento, p. 78-79 (14.422 e 14.4221). Este autor concorda com LaSor que a “linha que divide propósito e resultado é bastante delicada e, em muitos casos, o único fator determinante é o significado do verbo”, todavia, compreende-se que o “‘resultado pretendido’ ... indica, claramente, propósito” (Idem, Ibidem). 238 Tanto a conjunção do hebraico como a καὶ do grego são usados na frase com a função adversativa (“porém”, “mas”, “contudo”; ver ARA, NVI, BJ, NET Bible, SVOTE). 239 William S. LASOR, Op. cit., p. 65 (13.741). 240 O uso de καιρός para traduzir ocorre várias vezes no Pentateuco, apesar de não ser o único termo usado pelos tradutores da LXX (Ver Gn 29.34; 30.20; Êx 8.28; 9.14; 23.17; 34.23, 24; Dt 10.10; 16.16). 235

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3.1.4.

Análise Textual da Citação de Hebreus 12.21

TM – DEUTERONÔMIO 9.19

‫ִכֹ֣י י ֹ֗ג ֹ ְרתִ י ִמפְנֶ֤י הַאף ְו ַ ֹ֣החמה‬ ‫יכם‬ ֵּ֖ ֶ ‫ֲא ֶַּׁ֨שר ק ַצַ֧ף י ְהוָ֛ה עֲל‬ ‫ְל ַהׁש ִ ְֹ֣מיד ֶאתְ ֶ ֶּ֑כם ַויִׁש ַ ְֶ֤מע י ְהוה‬ ‫א ַלי ַגֵּ֖ם בַפַ ֵ֥ עַם הַהִ ָּֽוא׃‬

LXX - DEUTERONÔMIO 9.19

HEBREUS 12.21

καὶ ἔκφοβός εἰμι διὰ τὴν ὀργὴν καί, οὕτω φοβερὸν ἦν τὸ καὶ τὸν θυμόν, ὅτι παρωξύνθη φανταζόμενον,

Μωϋσῆς

κύριος ἐφʼ ὑμῖν ἐξολεθρεῦσαι εἶπεν· Ἔκφοβός εἰμι καὶ ὑμᾶς, καὶ εἰσήκουσεν κύριος ἔντρομος. ἐμοῦ καὶ ἐν τῷ καιρῷ τούτῳ.

O quadro comparativo revela que apenas uma pequena porção do texto de Deuteronômio 9.19 (LXX) aparece em Hebreus 12.21 (Ἔκφοβός ε μι), e a outra parte citada (καὶ ἔντρομος) não ocorre em nenhuma outra passagem do AT como fala de Moisés.241 Tal fato levou um comentarista a supor que “houve alguma confusão na mente do autor neste ponto”.242 Outros exegetas têm proposto que a fala de Moisés referida na epístola neotestamentária é extraída de algum relato hagádico do evento do Sinai que fazia menção explícita ao tremor e medo de Moisés nessa ocasião.243 Um texto geralmente mencionado como exemplo é o Tratado sobre o Sábado 88b, do Talmude Babilônico, em que Moisés declara: “Eu estava com medo de que os anjos pudessem me consumir com o sopro de suas bocas”. 244 Todavia, não se pode ignorar a expressão introdutória do escritor de Hebreus para a citação que faz, Μωϋσῆς εἶπεν (“Moisés disse”), nem a frase idêntica de seu texto com aquela encontrada em Deuteronômio 9.19 na LXX (ἔκφοβός ε μι). Tais evidências levam este autor a

241

A única passagem em que ambas as palavras aparecem juntas na LXX está em 1Mac 13.2, quando Simão macabeu percebe que o povo de Jerusalém estava em “grande tremor e medo” (ἔντρομός ἐστιν καὶ ἔκφοβος) diante da ameaça de um inimigo. 242 Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 229. 243 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 375; Brooke Foss WESTCOTT, The epistle to the Hebrews: the Greek text with notes and essays, p. 412; Thomas HEWITT, The epistle to the Hebrews: an introduction and commentary, p. 200; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 543; Cf. William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 464. 244 Babylonian Talmud: Tractate Shabbath, folio 88b. Disponível em http://www.come-andhear.com/shabbath/shabbath_88.html. Acessado em 23/05/2012. Cf. William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 464; David M. ALLEN, Deuteronomy and exhortation in Hebrews: a study in narrative re-presentation, p. 63. 47

considerar parte de Hebreus 12.21 como citação de Deuteronômio 9.19, em concordância com outros estudiosos.245 A resposta para este acréscimo em Hebreus não parece ter ligação direta com alguma paráfrase aramaica, visto que o Targum Onkelos apresenta apenas um verbo para a descrição que o próprio Moisés faz de seu sentimento, “eu temi” ( ‫)דְ חילִית‬. E o restante da frase segue basicamente o TM, sem alterações significativas: ‫דְ חילִית מִן קְדם רּוגזא ְוחִמתא דִ רגַז יוי י ָתְ כ ֹון‬

‫“( עֲליכ ֹון לְשיצָאה‬eu temi diante da ira e do furor com que se irou YHWH contra vós para vos destruir”) (TgO Dt 9.19). A explicação para o acréscimo de καὶ ἔντρομος pode ser compreendida a partir do contexto canônico maior e no uso do adjetivo dentro da LXX. O termo grego ἔντρομος ocorre apenas três vezes na LXX dentro dos livros do cânon judaico-protestante: uma vez em Daniel 10.11 e, as outras duas, nos Salmos 77.18 [LXX 76.19] e 18.7 [LXX 17.8]. Estas duas passagens dos Salmos usam o vocábulo ἔντρομος para descrever a terra tremendo (exatamente com a mesma expressão grega - ἔντρομος ἐγενήθη ἡ γῆ) diante da epifania divina nos eventos libertadores do êxodo e na revelação do Sinai (cf. 77.14-18; 18.7-15).246 O “tremor” (ἔντρομος), portanto, é considerado um efeito da automanifestação de YHWH no Sinai dentro do ambiente canônico maior. Por trás de tal ligação de ἔντρομος com a epifania do Sinai nos Salmos da LXX, está o motivo mais provável para os escritores da tradição cristã descreverem a reação humana 247 à manifestação divina, neste monte Sagrado, com o mesmo adjetivo, visto que Estevão também usa o vocábulo ἔντρομος, ao narrar a reação de Moisés em seu encontro com YHWH, no mesmo local, em um momento anterior à libertação do Egito (At 7.32; cf. Êx 3.1-6).248 O argumento da proposta esboçada neste subponto é desenvolvido mais adiante, na exegese de Hebreus 12.14-29 no capítulo 6 (6.3.2) da presente dissertação. Ver Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 81; George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 988; UBS4, p. 887, 890; NET Bible, Hebrews 12.21, s.n. (study note) 30. 246 Derek KIDNER, Salmos 73-150: introdução e comentário, p. 308; J. L., MAYS, p. 92; Roland E. MURPHY, “Psalms”. In: JBC, v. 1, p. 578. Várias expressões no Sl 77.17-18 evocam a linguagem encontrada em Êx 19 e Dt 4, como as densas nuvens (Êx 19.9, 16), os relâmpagos (‫ – בְרקִים‬cf. Êx 19.16), o som do trovão (Êx 19.16) e o tremor da terra (Êx 19.18). O mesmo ocorre no contexto próximo de Sl 18.7, pois os versos precedentes (vv. 816) apresentam um quadro que “empresta seus traços literários da teofania do AT (e.g., Êx 19; Hb 3.4ss.); a enumeração dos fenômenos cataclísmicos (terremoto, tempestade e relâmpagos) serve para atualizar a teofania do Sinai” (Roland E. MURPHY, Op. cit., p. 578). 247 Ver a relação deste termo com o sentimento humano na exegese de Hb 12.21 da presente dissertação, ponto 6.3.2. 248 Lane observa também este uso do adjetivo em Atos 7 (William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 464). 245

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3.2. Análise Textual Comparativa do TM e da LXX em Ageu 2.6 e do Texto Grego de Hebreus 12.26 O discurso exortativo de Hebreus apresenta uma expectativa escatológica, que serve como fundamento e motivação para o ensino e apelo do autor cristão (Hb 12.25-28). Tal expectativa se fundamenta na citação de uma passagem profética de Ageu, que receberá atenção no estudo crítico-textual a seguir. 3.2.1.

Análise Textual de Ageu 2.6 O quadro seguinte apresenta o TM e a LXX de Ageu 2.6, lado a lado, e demonstra,

por meio de cores correspondentes, que a versão grega mantém uma construção sintática e semântica semelhante àquela encontrada no hebraico: TM - AGEU 2.6

‫ַאחת‬ ֵּ֖ ַ ‫ִכֹ֣י ֶ֤כ ֹה ָאמַר י ְהוֹ֣ה צְבאֹות עֵ֥ ֹוד‬ ‫ְמ ַעט ִ ֶּ֑היא ַו ֲא ִֹ֗ני מ ְַרעִיׁש אֶת־הַש ַ ֹ֣מי ִם‬ ‫ְואֶת־הא ֶרץ ְואֶת־הַיֵּ֖ם ְואֶת־הֶחרבָּֽה׃‬

LXX - AGEU 2.6

διότι τάδε λέγει κύριος παντοκράτωρ Ἔτι ἅπαξ ἐγὼ σείσω τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γῆν καὶ τὴν θάλασσαν καὶ τὴν ξηράν,

A expressão inicial διότι τάδε λέγει é a tradução correspondente de

, cuja

tradução em português seria “Porque assim diz”. A conjunção grega διότι introduz uma cláusula causal (“porque”)249 seguindo o hebraico que usa a conjunção ‫ ִכֹ֣י‬com este mesmo sentido.250 O verbo λέγει traduz adequadamente o hebraico ‫ ָאמַ ר‬e o pronome demonstrativo τάδε geralmente é usado na LXX, dentro de contextos proféticos, para introduzir uma fala divina sequencial, em paralelo semântico com o advérbio demonstrativo ‫( כ ֹה‬cf. Is 7.7; Jr 2.2;

249

BAGD, p. 199. Ver o uso causal de ‫ ִכֹ֣י‬em Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, p. 144 (19.63). Constable vê o mesmo uso da conjunção hebraica aqui quando afirma: “A base da sua confiança e falta de temor era uma promessa do Todo-Poderoso Yahweh. Ele faria novamente no futuro o que ele havia feito no Êxodo e no Sinai” (Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 12 – grifo do autor). Calvino também apoia este uso: “Esta declaração, então, depende da aliança mencionada anteriormente; por isso a partícula causativa é usada, Porque assim diz o Jeová dos Exércitos...” (John CALVIN, Commentary on the prophet Haggai, p. 39 – itálico acrescentado). Ver também o mesmo entendimento da função causativa de ‫ ִכֹ֣י‬em David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 67. 250

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Ag 2.11; Zc 8.30, 23),251 com função semelhante à fórmula encontrada nos decretos imperiais persas.252 A identificação de Yahweh dos Exércitos ( ‫ )י ְהוֹ֣ה צְבאֹות‬como κύριος παντοκράτωρ segue o curso comum da LXX na tradução da expressão hebraica dentro de Ageu, Zacarias e Malaquias (cf. Ag 1.2, 5, 7, 9; 2.4, 7, 8, 9, 23; Zc 1.3, 4, 6; 2.15; 3.7, 9; 5.4; 8.6; et al; Ml 1.4, 6, 8, 13, 14; 2.2, 4, 8; 3.1, 7; et al).253 Na segunda parte do versículo, o verbo hebraico ‫רעַׁש‬, que aparece no Particípio Ativo Hifil ( ‫מַרעִיׁש‬ ְ ) com o sentido de “fazer tremer”,254 é usado com a função de predicado da sentença e indica uma ação futura iminente. 255 Assim, o verbo grego correspondente, que ocorre no futuro na LXX, σείσω (“eu abalarei”; “eu farei tremer”)256, é completamente plausível e não altera o sentido do texto. Os objetos diretos que recebem a ação do verbo ‫מַרעִיׁש‬ ְ (‫)הַיֵּ֖ם הֶחרבָּֽ ָּֽה הא ֶרץ הַש ַ ֹ֣מי ִם‬ são mantidos pela LXX, conforme seus correspondentes no grego (τὸν οὐρανὸν, τὴν γῆν, τὴν θάλασσαν, τὴν ξηράν).257 Vale destacar que a própria presença da conjunção καὶ bem como dos artigos antes dos substantivos e do adjetivo que aparecem como objetos, segue literalmente o texto hebraico. O ponto central de distinção entre o TM e a LXX, destacado na própria Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS) por K. Elliger, está na diferença das frases ‫ַאחת מְ ַ ֹ֣עט ִ ֶּ֑היא‬ ֵּ֖ ַ ‫עֵ֥ ֹוד‬ do TM e Ἔτι ἅπαξ da LXX. Como observou Verhoef, as duas últimas palavras do hebraico (‫מְעט ִ ֶּ֑היא‬ ֹ֣ ַ ) não ocorrem na versão grega.258 A ausência da última parte da frase do TM na 251

BDB, p. 462. BAGD, p. 553. 253 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 34. Ver também a mesma expressão grega nos textos da LXX de 2Rs 7.8; 1Cr 11.9; 17.7; Na 2.14. A opção da LXX ao usar tal terminologia (κύριος παντοκράτωρ - “Senhor Todo-Poderoso”) talvez se deva ao fato da expressão hebraica ‫ י ְהוֹ֣ה צְבאֹות‬realçar o caráter Soberano e Supremo do Deus Israel que se assenta em seu trono, cercado por sua corte celestial (1 Sm 4.4; 2 Sm 6.2; cf. Sl 103.21; Is 6.3, 5), e que possui todos os recursos e poderes para operar em prol de seu povo (Ver BALDWIN, J. G, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 57-59). 254 BDB, p. 950. 255 J. W. GESENIUS, Hebrew and English lexicon of the Old Testament including the biblical Chaldee, p. 249 (131.2b). Ver os textos citados por Gesenius em Gn 19.13 e 41.25. A classificação como “ação iminente” vem de Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, p. 84 (18.2). Como apoio a esta compreensão sintática do termo na passagem em análise, ver Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 158 (nota 30); John A. KESSLER, “The shaking of the nations: an eschatological view”, p. 162-163. 256 BAGD, p. 746. 257 O último termo grego tem o sentido básico de “seco”, “ressecado” (Ver BAGD, p. 548). Na LXX, ξηρός traduz ‫ חָּֽ רבה‬em outros textos como Gn 7.22; Êx 14.21; Js 3.17. O termo grego geralmente faz contraponto com θάλασσα (cf. Êx 14.21; Jn 1.9; Ag 2.21; 1Mac 8.23, 32; Mt 23.15). 258 Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 101. 252

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LXX tem levado alguns estudiosos a proporem que ela é uma glosa, adicionada para explicar o sentido iminente de ‫“( ַא ַחת‬de repente”, “inesperadamente”; cf. Pv 28.18).259 Outros exegetas veem a expressão ‫ מְ עַט ִהיא‬não como uma glosa, mas com função apositiva, enfatizando a iminência da ação divina, já declarada por ‫ַאחת‬ ֵּ֖ ַ ‫ ;עֵ֥ ֹוד‬o que renderia uma tradução semelhante a “De repente, sim, isto ocorrerá em pouco tempo...”.260 O grande problema com estas propostas é que elas não lidam de forma adequada com a função mais provável do termo ‫ עֹוד‬no contexto de profecia escatológica, como a que aparece em Ageu 2.6. Esta palavra hebraica deve ser propriamente entendida em seu uso adverbial, indicando a repetição de uma ação ocorrida no passado, como “novamente”, “de novo” ou “ainda” (cf. Gn 9.11; Zc 1.17; 2.16).261 As profecias de Oséias 12.10[9], Jeremias 31.4,5 e 33.12-13 são paralelos interessantes, onde o termo ‫ עֹוד‬é colocado no começo da frase e indica uma ação escatológica de Yahweh em favor de seu povo, que se assemelha a seu agir salvador na história anterior ou que restaura a sorte da nação a uma condição abençoada do passado (por isso, traduzir-se como “ainda” ou “novamente”).262 O profeta Ageu faz o mesmo uso de ‫עֹוד‬, a fim de indicar uma teofania divina que se repetiria no futuro da mesma forma que ocorrera no passado, especialmente nos eventos do Êxodo e Sinai (cf. Êx 19.16; Sl 68.9[8]; 77.17-19[16-18]).263 O quadro descrito pelo profeta de abalo de céus, terra, mar e continente “aparece, sem qualquer dúvida, para chamar a atenção à violenta intervenção de YHWH no passado e para sugerir que Ele fará assim, uma vez mais”.264 Esta compreensão do termo hebraico também possibilita o entendimento mais natural do numeral ‫ַא ַחת‬, quando usado como advérbio temporal, como “uma vez” ao invés de “de repente” (cf. Êx 30.10; Lv 16.34; 2 Rs 6.10; Sl 62.12).265 Isto posto, a LXX omite a expressão hebraica que indicava iminência ( ‫ ְמעַט ִהיא‬- “isto é em pouco [tempo]”), mas mantém aquela que apontava para a repetição do evento 259

Ver exemplos em Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 101. Ver a nota de crítica textual em NET Bible, Haggai 2.6, t.c. [textual critic] 10. Cf. David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 61-62. 261 BDB, p. 729. 262 John A. KESSLER, The book of Haggai: prophecy and society in early Persian Yehud, p. 174-175. 263 Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 158; Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 40-41 264 Eugene H. MERRILL, Op. cit., p. 40. 265 BDB, p 25; John A. KESSLER, Op. cit., p. 174. 260

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cataclísmico da ação de Yahweh ( ‫ עֵ֥ ֹוד ַא ַחת‬- Ἔτι ἅπαξ). O motivo mais provável para a omissão do indicador de brevidade de tempo (‫)מְ עַט ִהיא‬, na LXX, se dá pelo fato de que anos se passaram desde o oráculo de Ageu sem o seu cumprimento.266 Omitir o indicador temporal, portanto, possibilitaria (da provável perspectiva dos tradutores da LXX) a expectativa de uma concretização futura do vaticínio.267 3.2.2.

Análise Textual da Citação em Hebreus 12.26 A análise comparativa entre o TM e a LXX possibilita uma observação mais acurada

do tipo textual que serviu de base para a citação de Ageu 2.6 no ensino do autor da carta aos Hebreus. A tabela a seguir coloca os três textos em perspectiva.

TM - AGEU 2.6-9

‫ַאחת‬ ֵּ֖ ַ ‫ִכֹ֣י ֶ֤כ ֹה ָאמַר י ְהוֹ֣ה צְבאֹות עֵ֥ ֹוד‬ ‫מ ַ ְֹ֣עט ִ ֶּ֑היא ַו ֲא ִֹ֗ני מ ְַרעִיׁש‬ ‫אֶת־הַש ַ ֹ֣מי ִם ְואֶת־הא ֶרץ ְואֶת־הַיֵּ֖ם‬ ‫ְואֶת־הֶחרבָּֽה׃‬

LXX - AGEU 2.6-9 διότι

τάδε

λέγει

HEBREUS 12.26

κύριος [οὗ



φωνὴ

παντοκράτωρ Ἔτι ἅπαξ ἐγὼ ἐσάλευσεν σείσω τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν ἐπήγγελται

τότε,

τὴν

γῆν

νῦν

λέγων·]

δὲ Ἔτι

γῆν καὶ τὴν θάλασσαν καὶ τὴν ἅπαξ ἐγὼ σείσω οὐ μόνον τὴν ξηράν,

γῆν ἀλλὰ καὶ τὸν οὐρανόν.

Como pode ser observado de forma rápida, a introdução ao oráculo divino encontrada na LXX e no TM (διότι τάδε λέγει κύριος παντοκράτωρ) não consta no texto de Hebreus 12.26, que cita diretamente o pronunciamento de Yahweh em Ageu 2.6. O autor neotestamentário, todavia, não insere o texto do profeta num vácuo, mas reconhece ser a citação a palavra do próprio Deus, quando escreve οὗ ἡ φωνὴ τὴν γῆν ἐσάλευσεν τότε, νῦν δὲ ἐπήγγελται λέγων· (“Aquele cuja voz, então, abalou a terra, agora, porém, tem prometido...”). A frase οὗ ἡ φωνὴ τὴν γῆν ἐσάλευσεν τότε remonta à revelação majestosa de Deus no Sinai, mencionada no contexto próximo (12.18-21) e referida no AT de forma semelhante, ligada ao tremor da “terra” ou do “monte” (Êx 19.18; Jz 5.4-5; Sl 68.9[8]; 77.17-19[16-18]; 114.4, 7).268 O fato de que a mesma voz majestosa do passado (ἡ φωνὴ ... τότε) fizera a promessa que se O sentido de ‫ מ ַ ְֹ֣עט ִֶּ֑היא‬será analisado pelo autor no capítulo 5. John A. KESSLER, The book of Haggai: prophecy and society in early Persian Yehud, p. 160. 268 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 144; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 247. 266 267

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encontra em Ageu 2.6, certifica aos leitores da autoridade divina que jaz por trás do pronunciamento profético.269 A citação em Hebreus 12.26 parece seguir basicamente o texto da LXX com pequenas alterações. Ela inicia com a sequência encontrada na versão grega Ἔτι ἅπαξ ἐγὼ σείσω270 (“ainda uma vez, eu abalarei...”), omitindo a expressão hebraica ‫“( ְמ ַ ֹ֣עט ִ ֶּ֑היא‬isto ocorrerá em pouco tempo”). Tal omissão não indica que o autor do século I alterou o texto bíblico de Ageu, seguindo uma versão que lhe convinha, mas apenas que citou a parte que era importante para o seu argumento; assim como Deus abalara a terra no passado, quando se revelou a Israel no Sinai, uma vez mais271 ele a abalará no futuro, quando se manifestar de forma cataclísmica num evento escatológico futuro.272 Na continuidade do texto neotestamentário, o autor utiliza apenas o primeiro dos merismas273 do texto do AT (céus e terra), mas não menciona o segundo que aparece até mesmo na LXX (mar e terra seca).274 Novamente, a omissão aqui não altera o significado da profecia de Ageu, mas serve ao propósito do escritor de Hebreus de ressaltar que, diferentemente do evento do Sinai, em que apenas a terra foi abalada (cf. Jz 5.4-5; Sl 68.9[8]; 77.17-19[16-18]), na intervenção futura divina, tanto o céu quanto a terra o serão, destacando a natureza cósmica e decisiva do acontecimento porvir. 275 Com este mesmo intuito, o autor inverte a posição dos termos do merisma, mencionando primeiro o abalo da “terra” (τὴν γῆν) e depois do céu (τὸν οὐρανόν), e acrescentando ao texto do AT comentários elucidativos, οὐ μόνον (“não somente”) e ἀλλὰ καὶ (“mas também”).276 Por fim, deve-se discutir o problema de crítica textual que aparece na própria citação de Ageu feita pelo autor de Hebreus, no que diz respeito ao tempo do verbo σείω. A diferença entre os manuscritos é omitida no texto grego de The Greek New Testament (UBS) 4th, mas é mencionado em Nestle-Aland (NA) 27th. O texto Majoritário Bizantino, que contém centenas

269

James W. THOMPSON, Hebrews, p. 268-269. O autor discutirá o problema textual de σείω mais à frente. 271 BAGD, p. 316. 272 Donald GUTHRIE, Op. Cit., p. 247. 273 O merisma é uma figura de linguagem em que se utiliza de opostos para indicar a totalidade (Ver Carlos Osvaldo PINTO, , p. 17). 274 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 558; James W. THOMPSON, Op. cit., p. 268. 275 Leon MORRIS, Op. cit., p. 144. 276 David L. ALLEN, Hebrews, p. 596. Roy B. Zuck documenta alterações semelhantes feitas pelos escritores do NT (Ver Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 294-298). Os textos gregos de UBS4 e NA27 reconhecem esta inserção como sendo do próprio autor, distinguindo a citação de Ageu 2.6 com itálico ou negrito. 270

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de Manuscritos Minúsculos, apoia a leitura do verbo no presente do indicativo, na primeira pessoa do singular (σείω), acompanhado por mais duas testemunhas: os Unciais Ψ(tipo Alexandrino - séc. VIII-IX) e D (tipo Ocidental – séc. VI). Já a leitura normal da LXX, com o verbo no tempo futuro (σείσω), conta com o apoio do Papiro 46 (200 A.D.), além de vários Unciais, como o Códex Sinaíticus (séc. IV), Minúsculos e Versões Latinas e Copta antigas. 277 Apesar de possuir um testemunho distribuído, σείω tem apoio muito reduzido dos Unciais (apenas dois) e todos os Manuscritos Minúsculos que trazem a leitura são bizantinos. Por outro lado, mesmo σείσω tendo boa parte de seu testemunho concentrado no tipo Alexandrino, há vários Unciais que o apoiam, além de Versões antigas do tipo ocidental e alguns Manuscritos Minúsculos bizantinos. Isso leva à conclusão de que σείσω apresenta a leitura original de Hebreus 12.26, seguindo a LXX de Ageu 2.6, e que a alteração para o tempo presente (σείω), provavelmente, se deu por uma confusão com a leitura da LXX de Ageu 2.21, uma profecia similar àquela encontrada em 2.6 e cujo texto hebraico, assim como Hebreus 12.26, menciona apenas “o céu e a terra”.278 A possibilidade de que o autor de Hebreus tenha usado o verbo no presente σείω como tradução para o particípio Hifil do hebraico ‫ מ ְַרעִיׁש‬é bem improvável, visto que o texto claramente remonta à LXX de Ageu 2.6 na sequência inicial das palavras (Ἔτι ἅπαξ ἐγὼ), na ausência da tradução da expressão hebraica de iminência ‫ ְמעַט הִיא‬e no uso de τὸν οὐρανόν no singular em lugar do plural ‫שמַ י ִם‬ ָ ‫ַה‬ no hebraico.279 Essas marcas de dependência da LXX no próprio texto juntamente com o fato de que o tipo textual predominante na carta é o da LXX 280 tornam pouquíssimo provável uma leitura do particípio hebraico aqui. Além disso, a evidência interna do texto neotestamentário favorece a leitura no futuro grego, pois, o argumento do autor aponta para um acontecimento cósmico futuro de aspecto pontilear (cf. Hb 12.26-27 e ênfase na expressão Ἔτι ἅπαξ), assim como o evento no Sinai ocorrera de forma pontual no passado (veja o uso do aoristo - ἐσάλευσεν).281 O estudo de crítica textual de Ageu 2.6, por meio da comparação entre o TM e a LXX, demonstrou que a versão grega alterou minimamente o texto hebraico, retirando o

As testemunhas que apoiam σείσω são: 46 A C I 048 0243 6 33 1175 1241 1739 1881 pc cop it vg . F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 384. 279 George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 990. 280 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 7; Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 434. 281 Quanto à ênfase do aspecto pontilear do futuro, ver Lourenço Stelio REGA, Johannes BERGMANN, Noções do grego bíblico: gramática fundamental, p. 29, 55. 277 278

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indicador temporal de iminência da concretização do oráculo (‫)מְ עַט ִהיא‬, mas conservando o restante do texto. O autor de Hebreus também manteve o sentido da passagem de Ageu 2.6, em sua citação, mas acrescentou um comentário elucidativo (οὐ μόνον ... ἀλλὰ καὶ), alterou a ordem dos objetos diretos que ocorrem no texto (mencionando primeiro o abalo da “terra” e depois o do “céu”) e omitiu o merisma “mar e terra seca”. Ainda assim, a ideia da intervenção universal de Deus sobre o universo para instaurar o seu reino foi preservada, mantendo o ímpeto da mensagem profética. 3.3. Conclusão O estudo da crítica textual dos textos da LXX, do TM e de Hebreus revelou que a LXX se mantém muito próxima ao texto hebraico, especialmente nas passagens de Deuteronômio, contendo apenas uma alteração na tradução de Ageu 2.6, na qual retira do texto o sentido de iminência, ao omitir a expressão hebraica ‫ ְמעַט הִיא‬. Tal omissão não apresenta nenhum problema para o argumento do autor de Hebreus no uso da LXX, visto que seu objetivo era apontar para outra intervenção cataclísmica divina no futuro, sem uma preocupação com o momento específico dela (Hb 12.16-27).282 O texto grego do autor de Hebreus apresenta, em geral, modificações pequenas no texto da LXX, fazendo inserção de comentário (Hb 12.26) ou atualizando o pronome (12.29), a fim de tornar mais claro seu argumento e mostrar a relevância do texto a seus destinatários. A alteração mais significativa ocorre em 12.21, na citação de Deuteronômio 9.19, em que o escritor neotestamentário acrescenta a expressão καὶ ἔντρομος para mostrar a intensidade do temor de Moisés diante da revelação sinaítica. Desde que o mesmo adjetivo grego ocorre na descrição da sensação de tremor causado pela epifania no êxodo e na outorga da lei, em outras passagens do AT (LXX 77.14-18; 18.7-15), o autor fez uso legítimo de um termo canônico correspondente ao contexto do evento histórico-libertador em foco.

282

Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”. p. 142-143. 55

4.

UMA COMPREENSÃO DO CONTEXTO E DO SENTIDO DAS PORÇÕES LITERÁRIAS DE DEUTERONÔMIO 4.21-24; 9.13-21 E 29.16-21 O livro de Deuteronômio localiza-se numa posição estratégica dentro do cânon

hebraico, concluindo e interpretando as leis apresentadas ao longo do Pentateuco e fornecendo um arcabouço hermenêutico para a leitura da história narrada pelos Profetas Anteriores (Js— 2Rs).283 O quinto livro de Moisés também recebe grande atenção dentro do cânon neotestamentário, sendo um dos quatro livros mais citados pelos autores bíblicos do século I.284 Apesar de não ser a obra hebraica mais usada pelo autor de Hebreus, 285 Deuteronômio é a mais citada dentro do discurso hortatório de 12.14-29,286 fornecendo duas citações e um fraseado alusivo para o argumento do texto. O presente capítulo visa lidar com as passagens deuteronômicas referidas em Hebreus 12.14-29, interpretando de forma histórica e gramatical o sentido e a significância que essas porções textuais comunicaram para o seu público original. Como abordagem básica, esse estudo observará os aspectos históricos e literários envolvidos na confecção do quinto livro do Pentateuco e, então, fará uma análise exegética específica de cada passagem. 4.1. O Contexto Histórico do Livro de Deuteronômio Determinar a autoria e o Sitz im Leben do Deuteronômio é desafiador, desde que a erudição bíblica vem propondo diversas possibilidades para a origem do livro. Sugestões que remontam à época de Moisés até o período pós-exílico são feitas e não se chega a um consenso geral. Portanto, faz-se necessária uma exposição resumida das várias propostas de datação do livro e o parecer deste autor sobre aquela que, mais adequadamente, faz jus ao texto bíblico. Em 1805, W. M. L. de Wette propôs que o Deuteronômio provinha de uma fonte à parte do restante do Pentateuco, cuja origem se deu no século VII a.C., pouco antes do

Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. lvii. Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 213. 285 George Guthrie, em sua análise das citações bíblicas em Hebreus, lista o livro de Salmos como o mais citado (Ver George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 921). 286 Ver notas textuais e de estudo da NVI e da NET Bible. 283 284

56

reinado de Josias. 287 Mais adiante, tal tese fora sustentada por K. A. Riehm288 e, então, desenvolvida, estabelecida e popularizada entre os eruditos por Julius Wellhausen, em 1876. Ele defendia que o livro fora composto por profetas da época de Josias que o esconderam no templo para, em seguida, ser “achado” e dar impulsão à reforma promovida pelo rei, legitimando a adoração central em Jerusalém (Dt 12.13ss.),289 diferentemente da possibilidade de altares múltiplos encontrada no Êxodo (Êx 20.24). Apesar de ser contestada por diversos estudiosos, a hipótese de uma autoria não mosaica para o livro, dentro do século VII, continua a receber o apoio maior da academia teológica. 290 Tal proposta afirma que, em vários aspectos, o livro de Deuteronômio apresenta características legais e religiosas desenvolvidas numa época posterior da história hebraica, como uma preocupação mais humanitária com os escravos (Êx 21.1-11 com Dt 15.12-18)291 e um conceito mais transcendente de Deus no seu ambiente cúltico, seja quanto à habitação do templo (Sl 76.3 com Dt 12.11; 1 Sm 7.13; 1 Rs 3.2; 5.17; 8.17-20, 44, 48) ou ao propósito da Arca da Aliança (Êx 25.10-22; Nm 10.33-36 com Dt 31.12-13, 26). 292 Além disso, afirmam que partes da estrutura literária e alguns termos do Deuteronômio se enquadram dentro dos tratados assírios do século VII.293 Os proponentes da autoria no século VII a.C. argumentam, então, que as reformas religiosas promovidas por Ezequias e Josias seriam ambientes propícios para a redação do Deuteronômio, o qual com sua perspectiva profética fora escrito entre a queda de Samaria, em 722 a.C., e o começo do reinado de Josias, servindo como base para a reforma cúltica realizada em 2 Reis 22 e 23.294 Vários estudiosos têm reagido à datação do século VII para a composição do Deuteronômio e proposto datas anteriores e posteriores às reformas de Ezequias e Josias.

287

W.M.L. DE WETTE. Dissertatio critico-exegetica, qua deuteronomium a prioribus Pentateuchi libris diversum, alius cuiusdam recentioris auctoris opus ese monstratur. Halle: 1805. 288 Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 230. 289 Julius WELLHAUSEN, Prolegomena to the history of Israel, p. 16, 20-41; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 124; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 57; WALKER, L. L, “Deuteronomy”. In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 112; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 159-160. 290 Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 56-65. 291 Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E. MILLS, Roger Aubrey BULLARD (eds.), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210; 292 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: ABD, p. 175-176. 293 Ibid., p. 170. 294 Ver J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 56-65; Cf. Ernst SELLIN, George FOHRER, Op. cit., v. 1, p. 230. 57

Adam C. Welch e Theodor Oestreicher representam o grupo de acadêmicos que propõe uma data no décimo século, entre os reinados de Davi e Salomão,295 cujas raízes teológicas remontam a um movimento iniciado por Samuel. 296 A razão que apresentam para se oporem a uma data durante o governo de Josias é que a preocupação do Deuteronomista não era a centralização do culto em Jerusalém (Kulteinheint), mas a purificação dos elementos pagãos na adoração (Kultreinheint) (2 Rs 23.4-20, 24).297 Argumentam que certas leis eram demasiadamente primitivas para a monarquia judaica posterior, mas que seriam plenamente plausíveis no período final dos Juízes e começo da monarquia, como a lei acerca do homicídio cujo autor fosse desconhecido, em que os sacerdotes deveriam exercer o julgamento (Dt 21.19), ou a permissão e a proibição de determinados grupos estrangeiros participarem da assembleia do Senhor (Dt 23.1-8). Teólogos como R. K. Kennett e G. Hölscher propõem uma data para o livro no período exílico e pós-exílico em círculos sacerdotais. 298 Defendem este Sitz im Leben de Deuteronômio por entenderem ser impossível que um reformador da época de Josias escrevesse leis como as que constam nos capítulos 13 e 17, quando a grande maioria das cidades de Judá, inclusive Jerusalém, estava contaminada pela idolatria, o que implicaria na morte de comunidades inteiras em Israel no século VII. Hölscher, outrossim, identificou paralelos de linguagem em textos de Malaquias e Neemias com aquela encontrada em Deuteronômio, o que, a seu ver, favorece uma data pós-exílica (cf. Ml 1.2, 6, 8; 2.1-2, 4-5, 8; 3.1, 3; Ne 13.25-27).299 Este autor entende que a solução mais satisfatória para a questão de data e autoria do Deuteronômio se dá na proposta da autoria mosaica do livro, durante a segunda metade do segundo milênio, 300 incluindo pequenas edições posteriores, provavelmente, inseridas por algum editor da geração seguinte a Moisés (cf. Dt 2.10-12; 34).301 295

J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 53-55; Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 488-189. Após analisar as várias propostas de datação para o Deuteronômio, J. A. Thompson chega a uma conclusão próxima àquela que Welch e Oestreicher defendem. Ver sua obra citada, p. 66-67. 296 J. A. THOMPSON, op. cit., p. 54; Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 241. 297 Gleason L. ARCHER, Jr., Op. cit., p. 488; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 53. 298 G.T. MANLEY, “Deuteronômio, livro de”. In: J. D. DOUGLAS (ed.), O novo dicionário da Bíblia, v. 1, p. 412; J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 65-66; Gleason L. ARCHER, Jr., Op. cit., p. 489-491. 299 J.A. THOMPSON, Op. cit., p. 66. 300 Para uma defesa mais detalhada da posição deste autor, ver Tiago Abdalla T. NETO, “Deuteronômio: escrito de Moisés ou uma fraude piedosa?”. Disponível em http://www.opv.org.br/portal/sbpv/dbarticle/. Acessado em Novembro de 2012. Outros estudiosos e obras que defendem a mesma posição, com pequenas diferenças: 58

Há indicações claras no livro da atividade redatorial de Moisés e de sua comunicação e exposição da lei contida no Deuteronômio (Dt 31.9, 19, 22, 24-26; cf. 1.1, 3, 5; 4.44-45; 5.1; 27.1, 9, 11; 29.1-2; 31.1).302 As referências a ocasiões que suscitaram os sentimentos de Moisés e recordações de detalhes históricos mencionados na obra, somente fariam sentido caso o seu autor tivesse experimentado tais situações (Dt 1.9-12; 5.6; 7.8; 8.14; 9.22-24; 11.10; 16.6; 25.17ss.).303 Digna de nota é a menção da intercessão de Moisés em favor de Arão, depois da quebra da aliança, cujo incidente não é sequer referido no relato de Êxodo, mas consta em Deuteronômio (Dt 9.20ss.). O posicionamento de Israel, dentro do livro, é sempre fora de Canaã prestes a entrar nela (3.20, 25; 4.5, 14; 5.31; 11.30; 12.10; 18.9)304 e as tribos são vistas como parte de “todo o Israel” (1.1; 5.1; 13.11; 21.21; 27.9; 29.2, 10; 31.1, 7, 11; 32.45), não há referência a Norte e Sul como nações separadas.305 Outrossim, no aspecto religioso, não há qualquer menção à abolição dos “lugares altos” (B`mot) nem à centralização do templo em Jerusalém, o que enfraquece a posição dos que defendem a autoria de século VII, dizendo que estes eram os principais objetivos do grupo reformador profético responsável pela edição do livro na época de Josias. 306 Um fator final que favorece a escrita de Deuteronômio no segundo milênio, no período de Moisés e não no primeiro milênio, época de Josias, é a semelhança muito maior dos tratados do segundo milênio com o livro bíblico do que com os do milênio posterior,

Meredith G. KLINE, “Two tables of the covenant”, p. 133-146; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 214-215; G.T. MANLEY, op. cit., p. 412-414; Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 173-183; L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 112-116; K.A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 4-8. 301 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 161. 302 K. A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 4-5; THOMPSON, J. A, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 49; G.T. MANLEY, “Deuteronômio, livro de”. In: J. D. DOUGLAS (ed.), O novo dicionário da Bíblia, v. 1, p. 413. 303 G.T. MANLEY, Op. cit., p. 413; L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 114-115. 304 George L. ROBINSON, “Deuteronomy”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado); Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 175-176. 305 Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 179; L. L. WALKER, Op. cit., v. 2, p. 115; George L. ROBINSON, op. cit. (Versão eletrônica). 306 G.T. MANLEY, Op. cit., p. 412-413. Carlos Osvaldo observa, pertinentemente: “... parece claro que se Deuteronômio foi uma ‘fraude piedosa’ projetada para legitimar Jerusalém como santuário único, seu autor fez um péssimo trabalho, pois a cidade jamais é mencionada no livro. Ao contrário, Deuteronômio prescreve a construção de um altar no monte Ebal, na região de Samaria, rival de Jerusalém, e a celebração da renovação da aliança ali!” (Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 160). 59

diferente da argumentação de Weinfeld. 307 K. A. Kitchen afirma claramente: “À luz de tal padrão de medida tangível (especialmente quando as formas do primeiro milênio são completamente diferentes) datar Deuteronômio cerca de 621 a.C. (...) é simplesmente um erro grotesco, sem nenhuma base, na verdade”. 308 O livro de Deuteronômio é uma renovação da aliança do Sinai e sua estrutura em muito se assemelha com as formas encontradas nos tratados de vassalagem hititas da última metade do segundo milênio. 309 As seguintes características são comuns tanto em Deuteronômio quanto nos tratados hititas: (1) Título ou Preâmbulo (Dt 1.1-5); (2) Prólogo Histórico (Dt 1.6 – 4.43); (3) Estipulações ou Mandamentos (Dt 4.44 – 26);310 (4) Depósito do Texto e Leitura Pública (Dt 31.9-13, 24-26); (5) Testemunhas (Dt 31.16-30; 32.1-47); Bênçãos e Maldições (Dt 28.1-68).311 Quando se compara o livro de Deuteronômio com os tratados neoassírios e neobabilônicos (primeiro milênio) percebe-se pouca semelhança. Nestes não há a menção de bênçãos que acompanham as maldições.312 Também, não existe qualquer prólogo histórico nem indicação de depósito do texto e leitura posterior, o que é típico do segundo milênio. 313 Diante da exposição acima, para o presente autor, atribuir o texto encontrado em Deuteronômio a Moisés e datá-lo no segundo milênio é a opção mais plausível e honesta a se fazer numa perspectiva científica, devido aos fortes paralelos histórico-contextuais com a época de Moisés e com o segundo milênio, além da fraqueza na proposta de datação no século VII a.C., que não resiste a um exame histórico e teológico mais acurado.

Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: ABD, p. 169-171. K.A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 9. 309 Meredith G. KLINE, “Two tables of the covenant”, p. 140-142; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 98-99. 310 A divisão do texto de Deuteronômio nos pontos (2) e (3) aqui proposta difere da encontrada nos textos de Kitchen, pois entende que os mandamentos gerais da renovação da aliança (3) começa com a expressão “Esta é a lei que Moisés propôs aos filhos de Israel” (‫ׁשה ִלפְנֵּ֖י בְנֵ֥י יִשְראָּֽל‬ ֶ ֹ ‫ֶר־שם מ‬ ֹ֣ ‫ַתֹורה ֲאׁש‬ ֶּ֑ ‫( )ו ְֵּ֖ז ֹאת ה‬4.44). Ver apoio em Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 5-6; Lester J. KUYPER, “Book of Deuteronomy”, p. 321-340; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 14-15; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 216-219. 311 K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 92-97; Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 126-127. 312 K.A. KITCHEN, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 128-129; Idem, Ancient Orient and Old Testament, p. 96. 313 Meredith G. KLINE, Op. cit., p. 139-141; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament. p. 95; Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 132-133. Ver também George E. MENDENHALL, “Covenants forms in Israelite tradition”, p. 54-57. 307 308

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A localização do autor e do público original são, portanto, as planícies de Moabe, região próxima ao rio Jordão e fronteiriça à terra prometida.314 Após quarenta anos de peregrinação no deserto, a nação está prestes a tomar posse de Canaã, e Moisés, o mediador da aliança do Sinai, escreve o Deuteronômio com o propósito de conduzir Israel à renovação de sua aliança com Yahweh e de interpretar o código sinaítico para a nova geração, em uma nova condição de vida na “terra que mana leite e mel”. 4.2. O Contexto Literário-Teológico do livro de Deuteronômio Os estudos literários do livro de Deuteronômio têm suscitado várias propostas de enfoque na compreensão do arcabouço estrutural da obra.315 Uma delas, sugerida por Duane L. Christensen, é a de que o livro se constitui num grande poema didático, originalmente composto por Moisés, mas ampliado por uma grande linha de cantores dos festivais cúlticos e dos círculos levíticos no antigo Israel. 316 A justificativa de Christensen se apoia na prática encontrada nas culturas do mediterrâneo antigo de comunicarem suas tradições mediante a poesia e comporem suas leis de forma métrica. 317 “Como a antiga literatura grega, a Bíblia hebraica emergiu na forma de mousikh - uma combinação de música e linguagem”.318 A poesia é a ferramenta ideal para a teologia. Ela é um modo de ver que não se constitui apenas em um sistema de interpretação, mas em modo de vida, um modo de fazer presente o que está além dos limites da experiência e do entendimento humanos.319

Apesar de inovadora, a visão apresentada por Christensen parece improvável e carente de dados suficientemente fortes, pois a história israelita apresenta a lei sendo sempre “lida”, não cantada, fosse na reforma do rei Josias (2Rs 22.10; 23.2; 2Cr 34.18, 30), ou durante o retorno do exílio (Ne 8.3) ou nas próprias instruções mosaicas do Deuteronômio (Dt 31.11).320 Gerhard von Rad desenvolveu e popularizou a perspectiva de que o livro de Deuteronômio é, na verdade, “um artístico mosaico de muitos sermões sobre os mais variados

Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 312-313. Ver exemplos em Tremper LONGMAN III, Raymond B. DILLARD, Introdução ao Antigo Testamento, p. 95-100. 316 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. lxxx-lxxxvii; Duane L. CHRISTENSEN, Marcel NARUCKI, “The mosaic authorship of the Pentateuch”, p. 469-471. 317 Duane L. CHRISTENSEN, Marcel NARUCKI, Op. cit., p. 470; Duane L. CHRISTENSEN, Op. cit., p. lxxx. 318 Duane L. CHRISTENSEN, Marcel NARUCKI, Op. cit., p. 470. 319 Duane L. CHRISTENSEN, Op. cit., p. lxxxv. 320 Tremper LONGMAN III, Raymond B. DILLARD, Op. cit., p. 100. 314 315

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assuntos ... a síntese de uma atividade de pregação que evidentemente era muito vasta”. 321 Ele propõe que o livro nasceu como fruto de um desenvolvimento litúrgico de uma festa da renovação da aliança em Siquém, 322 na qual os levitas expunham a lei para o povo de Deus como ocorrera na adoração da comunidade pós-exílica da época de Esdras.323 O motivo para von Rad encarar Deuteronômio como um condensado da atividade homilética de exposição da lei se encontra na diferença entre o discurso legislativo do livro de Deuteronômio e aquele encontrado no Código da Aliança (Êx 20-23) e no Documento Sacerdotal. Enquanto o segundo e o terceiro se limitam a descrever a lei divina, o primeiro mescla exposição com exortação: “Deuteronômio não é lei divina em forma codificada, mas pregação acerca dos mandamentos”.324 A proposta do florescimento de Deuteronômio dentro do ambiente levita e da celebração da aliança em Siquém foi corretamente criticada por Weinfeld, que afirmou que ela “não apenas carece de base objetiva como tem muito contra si”.325 Todavia, von Rad tem razão em destacar o caráter peculiarmente homilético do quinto livro da Tor>, pois “Deuteronômio é lei, mas é também exposição e aplicação da lei”, 326 o que combina com o enfoque da estrutura literária como um tratado de aliança (explicado e defendido em seguida), já que os tratados hititas e do oriente antigo em geral eram redigidos em forma de discursos.327 Nos últimos sessenta anos, um consenso vem surgindo entre os estudiosos de que o livro de Deuteronômio tem sua estrutura literária moldada pelo padrão encontrado nos tratados internacionais do antigo oriente, ainda que se discuta a época e origem desses tratados (ver discussão em 4.1).328 Yahweh, o Deus de Israel, é retratado como o poderoso

321

Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 217. Ver apoio em Claus WESTERMANN, Handbook to the Old Testament, p. 77-84. 322 Gerhard VON RAD, Op. cit., p. 216. 323 Gerhard VON RAD, Studies in Deuteronomy, p. 13-15. 324 Idem, p. 15. 325 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy: the present state of inquiry”, p. 252. Cf. Idem, “Deuteronomy, book of”. In: ABD, v. 2 p. 170. 326 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 4. 327 K.A. KITCHEN, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 132. 328 Entre os que defendem uma influência básica dos tratados hititas do final do segundo milênio estão: Meredith G. KLINE, “Two tables of the covenant”, p. 133-146; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 213247; Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 20-24; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 90-102; Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 118-135. Já os que propõem a influência dos tratados assírios mesclada com a dos hititas são: Moshe WEINFELD, “Deuteronomy: the present state of inquiry”, p. 249-262. Cf. Idem, “Deuteronomy, book of”. In: ABD, v. 2 p. 169-171; Dennis J. MCCARTHY, “Covenant in the Old Testament: the present state of inquiry”, p. 217-235. 62

soberano que renova e atualiza sua aliança com Israel, seu vassalo, nas planícies de Moabe. 329 A mudança de liderança de Moisés para Josué sobre o povo divino requeria tal ratificação, exatamente como ocorria nos tratados antigos, quando o rei deixava o seu lugar no trono para o sucessor.330 A renovação da aliança foi empreendida, não porque Deus mudou, mas porque cada geração precisava se recomprometer regularmente em amor e obediência ao Senhor da aliança. No discurso de Moisés, a mais poderosa exortação é usada para levar o povo a um novo e sincero compromisso com Deus. A tendência de ver a aliança como um contrato legal que automaticamente amarra o homem a Deus deve ser rejeitada; a natureza da aliança, como expressão de um relacionamento vivo, requeria do homem não uma aquiescência legalista, mas um compromisso de amor a Deus. [...] A estrutura de tratado da aliança era uma lembrança ao povo de sua liberdade neste mundo e de seu total compromisso com Deus.331

Alguns estudiosos têm sugerido que o livro é uma mescla entre os tratados antigos e códigos legais do terceiro milênio e início do segundo.332 Todavia, ainda que haja certa influência de códigos legais como o de Lipti-Ishtar, de Hamurábi e de outros sobre o quinto livro de Moisés, não há como negar o traço marcantemente ligado às alianças políticas conhecidas no oriente médio do segundo milênio.333 As semelhanças literárias e de linguagem entre o Deuteronômio e os tratados antigos são notáveis e podem ser verificadas, esboçadamente, da seguinte forma:

329

Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 163. Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 5; Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”, p. 169-170. 331 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 37. 332 K.A. KITCHEN, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 118-135; George E. MENDENHALL, “Ancient oriental and biblical law”, p. 26-46; Idem, “Covenants forms in Israelite tradition”, p. 50-76. 333 Meredith G. KLINE, “Two tables of the covenant”, p. 213-247 (ver notas 12 e 19). 330

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TRATADOS DE SUSERANIA –

ALIANÇA DO DEUTERONÔMIO

MILÊNIO II A.C. 1. Título ou Preâmbulo (Dt 1.1-5)334

1. Título ou Preâmbulo335

2. Prólogo Histórico (Dt 1.6 – 4.43)

2. Prólogo Histórico336

3. Estipulações Gerais/ Específicas (4.44 – 11.32/12 3. Estipulações

Gerais

e

Específicas337

- 26) 4. Bênçãos e Maldições (Dt 27.1 – 28.68)

4. Depósito do Texto e Leitura

5. Depósito do Texto e Leitura Pública (Dt 31.9-13,

Pública338 5. Testemunhas339

24-26)

6. Bênçãos e Maldições340

6. Testemunhas (Dt 31.16-30; 32.1-47)

A diferença na ordem estrutural ocorre apenas na posição em que as “bênçãos e maldições” aparecem no Deuteronômio, antes da provisão da leitura pública e da invocação das testemunhas. Isso se deve ao fato de que o livro não pretende reproduzir de forma exata os tratados antigos, mas usar sua estrutura maior para modelar a aliança entre Yahweh e Israel.341 Além do mais, os capítulos 29—30 são colocados logo depois das bênçãos e maldições como 334

Apesar de Deuteronômio não iniciar identificando de forma direta as palavras de Yahweh, o verdadeiro rei de Israel, o texto aponta para o seu porta-voz, Moisés, cujas palavras têm sua origem no Rei (cf. Dt 1.3-4) (Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 38). 335 Essa porção do tratado identifica o autor da aliança, dando seus títulos e atributos, bem como sua genealogia. Ver George E. MENDENHALL, “Covenants forms in Israelite tradition”, p. 58; Meredith G. KLINE, “Two tables of the covenant”, p. 134; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 92, 96. Ver K.A. KITCHEN, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 126. 336 Tal elemento no documento era designado para inspirar confiança e gratidão no vassalo e, por meio disso, dispô-lo a atender as obrigações da aliança. Ver Meredith G. KLINE, “Two tables of the covenant”, p. 134; Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: ABD, v. 2 p. 170. Ver K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 92-93, 96; Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 126. 337 K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 93, 97. Ver Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 126. As estipulações gerais estavam intimamente ligadas à história antecedente e resumiam o propósito das ordens específicas que a seguiam (Ver Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 23). 338 Desde que não apenas o monarca, mas toda nação estava ligada às exigências da aliança, a leitura pública servia para familiarizar a população com suas obrigações diante do grande rei e promover respeito pelo rei vassalo, pois ele possuía um relacionamento próximo e familiar com o poderoso imperador. Ver George E. MENDENHALL, Op. cit., p. 60; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 93, 97. Ver Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 126. 339 Os deuses pagãos que eram invocados como testemunhas do tratado não aparecem na Renovação da Aliança em Deuteronômio. Porém, o Cântico de Moisés (Dt 31.16-20; 32.1-47) e o próprio Livro da Lei (Dt 31.26) ocupam essa função como testemunhas da Aliança. Ver K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 93, 97; Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 126; Meredith G. KLINE, op. cit., p. 142. 340 A referência às bênçãos, em caso de obediência do vassalo, é exclusividade dos tratados antigos, não aparecendo nos tratados neoassírios do primeiro milênio (Ver Moshe WEINFELD, Op. cit., p. 170). Ver K. A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 93, 97; Idem, The fall and rise of covenant, law and treaty, p. 127. 341 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 23-24; K. A. KITCHEN, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 129-130. 64

recapitulação da aliança, seguidos de 31—34, que focalizam o processo de sucessão de liderança israelita, com o encargo do comando sendo passado a Josué (Dt 31), e a canção e as bênçãos de Moisés, em sua despedida do povo (32 - 33), acompanhando o relato de sua morte (34).342 Preâmbulo (Dt 1.1-5). O livro de Deuteronômio inicia com a identificação do mediador da renovação da aliança entre Yahweh e Israel, Moisés (Dt 1.1, 3, 5), com a localização onde ela é feita, a leste do Jordão, na planície de Moabe (1.1-2), mais a nota cronológica do momento em que a aliança é ratificada, no quadragésimo ano da saída do Egito, após a vitória sobre os reis Ogue e Basã e a consequente conquista de suas terras (1.34).343 Moisés, o porta-voz do Suserano absoluto, e “todo Israel”, o povo vassalo, são introduzidos no tratado.344 Prólogo Histórico (Dt 1.6 – 4.43). Como era comum aos tratados antigos, o Deuteronômio traz um prólogo que relembra, de forma breve, a história da peregrinação de Israel desde a partida do monte Sinai, passando por Cades-Barnéia e chegando ao local em que estavam (Dt 1.6 – 3.29). No relato da jornada do Sinai até Cades-Barnéia, menciona-se a ordem de Deus para que o povo marchasse na direção da terra prometida aos patriarcas (1.68). Durante a marcha, o grande número do povo, “como as estrelas do céu”, leva Moisés a dividir a responsabilidade jurídica com outros homens, que tomassem decisões justas e imparciais enquanto representantes divinos (1.9-18).345 A descendência numerosa e a caminhada rumo à terra de Canaã evocava, no relato, o pacto divino com os pais da nação, lembrando que tudo isso era um ato da graça de Deus.346 Ao chegarem a Cades-Barnéia, na fronteira sul de Canaã (Nm 34.4),347 o povo propõe uma missão de reconhecimento a Moisés, que a considera uma boa ideia e, então, envia doze líderes das tribos para investigarem a nova terra (Dt 1.19-25; cf. Nm 13) 348. A narrativa, que transborda a graça de Deus, abre espaço para falar da atitude de incredulidade e murmuração do povo e dos espias contra Deus, desprezando o cuidado amoroso e a orientação 342

J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 20. Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 171; Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 89. 344 L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 111. 345 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 23-24. 346 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 218. 347 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 30. 348 O texto de Números diz que foi Yahweh que ordenou Moisés a enviar os doze espias (Cf. Nm 13.1ss.). Para uma harmonia adequada dos dois textos, Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 25. 343

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segura de Yahweh para com Israel durante todo tempo da caminhada até ali (1.26-33). O resultado da murmuração foi trágico, pois Deus, em sua ira, decidiu não dar àquela geração a terra da promessa, deixando tal privilégio para seus filhos e ordenando que o povo voltasse pela estrada rumo ao mar Vermelho (1.34-40). A independência presunçosa da nação ao tentar conquistar Canaã sem o auxílio do Senhor culminou em fragorosa derrota diante dos amorreus (1.41-46). A narrativa passa de forma muito rápida sobre os trinta e oito anos de peregrinação no deserto e focaliza no momento em que o Senhor se pronuncia, uma vez mais, a Moisés orientando para que o povo rumasse ao norte e passasse pelo território de Edom, sem provocar nenhum tipo de guerra (Dt 2.1-8; cf. 1.6-8). Depois, outras orientações são dadas para que Israel passasse por Moabe e pelo território de Amom, respeitando os seus habitantes e sua terra, desde que, por razões etiológicas, Deus não lhes havia entregado aquelas nações (2.9-23). Há uma ênfase na confiança em Deus para suprir as necessidades do povo (2.6-7) e na esperança de que ele daria a Israel a porção prometida no momento adequado, assim como dera um território próprio àquelas outras nações (2.20-23).349 “A afirmação de que fora Javé quem dera a Edom e a Moabe os seus territórios é uma clara declaração de monoteísmo. A Javé apenas pertencia a prerrogativa de distribuir aos povos da terra os seus territórios”. 350 A conquista do lado leste do Jordão, dos territórios dos reis Ogue e Basã, dois monarcas amorreus, é descrita de modo a destacar o pleno sucesso dos israelitas em sua desafiadora empreitada bélica diante de povos poderosos e com cidades muradas (Dt 2.24 3.11; ver a menção ao comprimento do esquife de Ogue, em 3.11, e o contraste com 1.28).351 A população inimiga foi dizimada, assim como ocorreria em Canaã, e o bônus da vitória foi dado a Yahweh, que prometeu aos israelitas o êxito militar e a concessão dessas terras (2.2425, 36; 3.2-3).352 Moisés, então, descreve as fronteiras conquistadas após a batalha inicial, sua devida proporção e a responsabilidade que ainda recaía sobre as tribos de Rubén, Gade e Manassés de auxiliar as demais tribos na conquista da Palestina, pois a nação deveria agir como um

Jack S. DEERE, “Deuteronomy”, In: BKC, v. 1, p. 265. J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 90; cf. Ralph L. SMITH, “Some theological concepts in Deuteronomy”, p. 20. 351 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 28. 352 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 14-15. 349 350

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único grupo ou comunidade (3.12-20).353 A conquista inicial proporcionava uma lição tangível sobre a fidelidade de Deus na concessão da terra, ao mesmo tempo em que a proibição da entrada de Moisés nela lembrava Josué e todo o povo acerca da importância de confiar em Yahweh e agir em obediência à sua palavra (3.21-29).354 Diante dos atos poderosos e da fidelidade de Deus no passado, o líder israelita faz o apelo para que o povo obedeça com fidelidade ao seu Deus (4.1-2),355 recordando do desastre de Baal-Peor (4.3-4), apontando para a justiça e sabedoria de Deus expressas na lei e para a proximidade grandiosa manifestada durante a concessão dela no monte Horebe (4.5-14).356 A menção à revelação legal sinaítica abre espaço para advertência contra transgressão aos primeiro e segundo mandamentos. A cena teatral e amedrontadora em Horebe ensinava a transcendência de Deus para Israel e os proibia de retratar Deus com qualquer imagem ou de adorar as imagens dos deuses cananeus (4.15-24). Como Deus zeloso, ele castigaria seu povo caso incorresse na idolatria, espalhando-o entre os povos, mas trazendo-o de volta em sua misericórdia, se eles se arrependessem e se voltassem para o Senhor (4.25-31).357 A revelação pessoal de Deus a Israel no Sinai e sua visitação poderosa na libertação do Egito demonstravam sua singularidade inequívoca (4.32-39; cf. vv. 35, 39). Manter esses eventos redentores em mente protegeria o povo de desobedecer ao Suserano da aliança e lhes garantiria prosperidade na terra (4.39-40).358 A designação das cidades-refúgios à leste do Jordão parece ser uma nota cronológica (4.41-43), descrevendo a ação tomada por Moisés em obediência à ordem divina, que ocorre entre os discursos de 1.6—4.40 e de 4.44—26 de Deuteronômio.359 Estipulações Gerais (Dt 4.44 – 11.32). Outra nota introdutória com informações geográficas e cronológicas inicia a segunda maior parte do livro (4.44-49).360 A aliança sinaítica é atualizada para a geração que entraria em Canaã, e Moisés enfatiza que ela fora feita com eles (Dt 5.1-5). “Ele deseja trazer o evento de estabelecimento da aliança, que já

353

J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 97; Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 122. 354 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 171. 355 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 218. 356 Gerhard von RAD, Deuteronomy. p. 48-49; Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 171. 357 Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC v. 1, p. 270. 358 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 271. 359 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 144-145; Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 172. 360 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 51. 67

pertence ao passado, vividamente diante dos olhos de seus contemporâneos”. 361 Os dez mandamentos são recitados de maneira muito próxima a Êxodo 20 (5.6-21), com exceção da guarda do sábado, que encontra o seu fundamento teológico no evento redentor da escravidão do Egito, não mais na criação (5.13-15), “assim mesmo, a criação continua sendo a principal razão teológica para o sábado, pois o próprio êxodo cria a nação recém libertada de Israel”. 362 Após a reapresentação das “dez palavras”, Moisés traz uma recordação histórica do pedido do povo para que ele mesmo mediasse as palavras de Deus à nação (5.22-33),363 o que em nada alterava a autoridade da revelação, ao contrário, requeria da parte de Israel obediência completa a ela (5.32 - 6.3).364 Deuteronômio 6.4 retoma o ensino da singularidade de Deus. O famoso credo de Deuteronômio 6.4 destaca que “Yahweh, nosso Deus, Yahweh é único”,365 indicando o caráter singular de Yahweh, sem igual, que não poderia ser comparado nem emulado. “Mesmo que alguém em Israel admitisse a existência de outros deuses, a afirmação de que somente Javé era Soberano e único objeto da obediência de Israel fazia soar o toque fúnebre para quaisquer posições inferiores ao monoteísmo”. 366 Em resposta à singularidade de Yahweh e à sua ação graciosa na eleição, libertação do Egito e na concessão da terra, Israel é chamado a amá-lo com todo o seu coração, não dividindo este amor com ninguém mais (Dt 6.5).367 Havia a necessidade de um exercício constante de lembrança dos feitos e ordens de Deus, tanto no contexto familiar como pessoal (6.6-9), a fim de que os momentos de prosperidade não desviassem o coração do povo de seu verdadeiro Senhor (6.10-17). A obediência a Deus e a recordação de seus atos redentores possibilitariam a conquista da terra e deveriam ser transmitidos às gerações seguintes para a ordem e a permanência nela (6.18-25).

361

Gerhard von RAD, Deuteronomy. p. 55. Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 223. 363 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 172. 364 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 165-166. 365 A tradução de  (a#j^d) como “único”, indicando a exclusividade da divindade de Yahweh, parece ser a melhor tradução do termo, tendo em vista o próprio contexto que exige de Israel um coração totalmente consagrado a Ele como o único Deus de sua devoção (Dt 6.5). Ver Herbert WOLF, “”. In: DITAT, p. 47-49; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 224, 228. 366 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 118. Ballarini afirma: “O orador não se preocupa com a existência ou não de outros deuses: o que ele quer acima de tudo é sublinhar o fato de não terem poder algum; e um Deus sem poder não merece consideração. Javé é a fonte de toda a autoridade, de todo o poder, de todo o criado, só dele é que depende o universo” (P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 298). A dificuldade com essa conclusão é que outros textos do Deuteronômio, que o próprio Ballarini cita em seu livro, deixam muito claro a inexistência de qualquer outro deus além de Yahweh (cf. Dt 4.35, 39; 32.39). 367 P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Op. cit., p. 299; C. PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 7677. 362

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Em Deuteronômio, a santidade não é algo a ser buscado e desenvolvido como no Código de Santidade (Lv 19.2; 20.26), mas sim, o status de povo eleito que impulsiona Israel a ser completamente leal ao seu Deus, destruindo as nações idólatras da terra de Canaã (Dt 7.1-6; cf. 14.1-2).368 “Trata-se antes de um convite dirigido a Israel, para que se aproprie pessoalmente de uma realidade que já está dada e para que se instale nessa realidade através da obediência e em atitude de gratidão”.369 A escolha de Israel não se deu por algum atributo peculiar do povo nem por sua grandeza, mas pelo amor de Yahweh e por sua promessa feita aos pais da nação (7.7-10). Este era um forte motivo para que o povo obedecesse à lei divina e desfrutasse, consequentemente, de fertilidade, prosperidade, saúde e supremacia militar (Dt 7.11-16). “A obediência de Israel dependia da fé, e a fé fundamentava-se no registro histórico dos grandes atos de salvação e julgamento do passado (7.17-26)”.370 Moisés relembra o cuidado de Deus pelo povo, no deserto, não deixando que seus pés se inchassem e suas roupas se gastassem e lhes dando o maná por alimento, ao mesmo tempo em que permitiu a humilhação de Israel nesse tempo, com o propósito de ensiná-los a depender completamente de Yahweh para o seu suprimento, confiando em suas promessas e obedecendo à sua palavra (Dt 8.2-6).371 Isso os protegeria de confiarem em suas próprias forças e capacidades quando viessem a prosperar na terra prometida (Dt 8.12-18). Pois, a prosperidade “poderia facilmente levar ao orgulho; orgulhar-se era pensar que tal prosperidade fora alcançada como resultado das suas próprias realizações humanas e pensar assim era ‘esquecer-se do Senhor, seu Deus’”. 372 A recordação das dificuldades enfrentadas no deserto produziria um espírito de humildade em Israel. Já durante os quarenta anos de peregrinação Deus ensinara a Israel a absoluta dependência dEle para seu suprimento de água e comida. Fome e sede não poderiam jamais ter sido satisfeitos por auxílio humano, somente por Deus. 373

O olhar atento ao passado, após vencer e destruir poderosas nações de Canaã, impediria Israel de achar que tais conquistas se deram por algum mérito próprio, pois o extermínio dos cananeus ocorreu por causa da maldade desses povos e pela fidelidade de Deus ao juramento feito aos antepassados de dar a “boa terra” aos descendentes deles (9.1-6). “A condição humana é tal que tendemos a legitimar os atos graciosos de Deus em nosso favor Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: ABD, p. 181. Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 226. 370 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 172. 371 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 75. 372 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 188. 373 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 130. 368 369

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como nossa justa recompensa”. 374 Ao contrário do que os israelitas poderiam vir a pensar, eles eram, na verdade, um povo obstinado que se corrompeu e se entregou à idolatria, rapidamente, quando estavam do Sinai e continuaram a se rebelar contra o Senhor durante toda a peregrinação até Cades-Barnéia (9.7-24).375 Se não fora a fidelidade de Deus às suas promessas e o zelo pela honra de seu nome diante das nações, as tribos de Israel teriam deixado de existir (9.25-29). A cena da idolatria junto ao Sinai também oferecia a esperança da graça de Deus, que “restaurou o status de Israel como seu povo da aliança apresentando uma nova versão de seu código de leis (10.1-6), consagrando a tribo de Levi ao ministério (10.7-9) e considerando a intercessão ampla e intensa de Moisés (10.10, 11)”.376 A única exigência de Yahweh a seu povo era uma devoção e amor completos que se expressavam em obediência à sua lei (10.1213). Israel precisava interiorizar a percepção de quão grande era o seu Deus e quão imenso era o seu amor para com a descendência de seus antepassados, de modo a refletir este mesmo amor e misericórdia em suas relações interpessoais e na adoração à única divindade verdadeira (10.14-22).377 O poder de Yahweh, demonstrado na história recente mediante salvação e juízo (11.1-7), servia como fundamento motivador para a obediência do povo na conquista da terra prometida, uma terra tão fértil, que é contrastada com o Egito (um território fértil) (11.812).378 A obediência era urgente para que o povo desfrutasse de prosperidade e plenitude na terra e não experimentasse o castigo divino que culminaria em sua expulsão do “paraíso de Yahweh” (11.13-17). Cabia à geração da conquista “gravar as palavras de Deus no coração” e transmiti-las insistentemente à próxima geração (11.18-21).379 Diante de Israel permanecia a fundamental decisão de desfrutar da vida plena das bênçãos divinas ou sofrer a maldição de Deus, como a ratificação gráfica da aliança nos montes Ebal e Gerizim demonstraria (11.2231).380 Estipulações Específicas (Dt 12 - 26). Enquanto as estipulações básicas apontaram para a necessidade da obediência e se concentraram nos dois primeiros mandamentos, as

Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 181. Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 79-82. 376 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 173. 377 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 227. 378 Gerhard VON RAD Teologia do Antigo Testamento, p. 220-221. 379 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 149. 380 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 173. 374 375

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estipulações específicas tratavam da forma externa e institucional pela qual o amor a Yahweh se concretizava, proporcionando um arcabouço para a vida religiosa e civil futura da nação. 381 O capítulo 12 trata, de modo específico, da adoração central a Yahweh com as expressões “no lugar que o SENHOR escolher para ali pôr o seu nome [dentre todas as tribos – v. 5]” e “no lugar que o SENHOR escolher [numa das suas tribos – v. 14]” (cf. Dt 12.5, 11, 14, 18, 21, 26). O contexto que cerca as ordens acerca do lugar escolhido por Deus para adoração mostra uma preocupação com a multiplicidade de locais usados pelos cananeus para prestar culto a seus deuses e o caráter abominável deles para Yahweh, tanto no começo quanto no final do capítulo.382 Por isso, os altares idólatras deveriam ser destruídos e sua forma de culto evitada (12.1-3, 29-32).383 Von Rad observa que a singularidade do caráter de Yahweh servia de base para o estabelecimento de um lugar central para a sua adoração (Dt 12.2-7). Enquanto Baal se revelava em qualquer lugar onde se havia experimentado um mistério da natureza, o culto a Yahweh tinha sua característica única e centralizadora, distinta da forma como se dava a adoração do deus da fertilidade cananeu. 384 Moisés alertou contra o perigo da idolatria apresentando três cenas básicas: um falso profeta talentoso chamando Israel a adorar outros deuses (Dt 13.1-5), uma pessoa íntima, da própria família, convidando um israelita para servir outros deuses (13.6-11), e uma cidade inteira envolvendo-se com a idolatria (13.12-16). Todos os casos deveriam ser punidos com morte e ninguém poderia ser conivente com tal “ato detestável” (13.5, 9-10, 15).385 A prontidão em destruir completamente os objetos de culto cananeus garantiria a graça de Deus, em lugar de sua ira, sobre a nação (13.17-18).386 Como povo santo a Yahweh, Israel deveria repudiar as práticas supersticiosas de laceração de pele e raspagem de cabelo, peculiares aos rituais cananeus direcionados aos

381

Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 230; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 172. 382Como Walter Kaiser notou, isso, de modo algum, é uma ordem contrária a Êxodo 20.24 que fala sobre ofertas e holocaustos levados a “todo lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome”, desde que o Deuteronômio não lança uma polêmica sobre um altar de Yahweh contra os muitos altares de Yahweh, mas sim, contra o caráter corruptor da religião cananeia (Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135; cf. C. PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 79). Enquanto no livro de Êxodo a ordenança se destina à comunidade peregrina do deserto, em Deuteronômio, Moisés estabelece o modus operandi cúltico de um povo que está prestes a estabelecer-se em Canaã, num sistema de vida sedentário. 383 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 92-93. 384 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 222-223; Ver também John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 150. 385 Paul R. HOUSE, Op. cit., p. 231. 386 Thomas L. Constable, Notes on Deuteronomy, p. 54. 71

espíritos dos mortos (14.1-2).387 A legislação detalhada sobre animais puros e impuros parece transcender questões de natureza higiênica ou religiosa e apontar para o fato de que animais que se conformam à ordem natural da criação devem ser considerados puros, ao passo que aqueles que parecem misturar as espécies são impuros (14.3-20).388 “Enquanto eles distinguiam entre comidas puras e impuras, eram lembrados que santidade é mais do que uma questão de comida e bebida, e sim, um estilo de vida caracterizado por pureza e integridade”. 389 A ordem para não se cozinhar o cabrito no leite de sua mãe parece proteger o povo de ritos cúlticos da fertilidade comuns em Canaã (14.21),390 e a lei dos dízimos e das ofertas era tanto uma lembrança de que a prosperidade provinha da “beneficência e provisão do seu Deus”,391 quanto o meio pelo qual Deus sustentaria os levitas em seu trabalho religioso e os carentes da comunidade, como órfãos e viúvas (14.22-29).392 A preocupação com os menos favorecidos dá ensejo para as leis de cancelamento total de dívidas e de libertação da escravidão dos compatriotas hebreus, que deveriam ocorrer no ano do Jubileu (15.1-18). O desfrute da generosidade de Deus e a confiança de que ele abençoaria com prosperidade a obediência de seu povo eram os fatores fundamentais para a benevolência a ser demonstrada ao necessitado (cf. 15.6, 10-11, 14, 18).393 As primeiras crias dos rebanhos, desde que fossem perfeitas, deveriam ser oferecidas a Yahweh, em gratidão e em confiança adoradoras por seu suprimento e cuidado (15.19-23). Das festas previstas anteriormente na legislação, três recebem atenção especial, pois deveriam ser celebradas no local que Yahweh escolheria para adoração (16.2, 11, 15):394 a Páscoa, que celebrava a libertação e fuga apressada do Egito; a festa das Semanas, em gratidão pela colheita concedida por Deus; e a festa das Cabanas, que também era um festival de colheita (16.117).395 Após tratar de questões relacionadas à adoração da comunidade santa, com seu culto, ofertas e festas (12.1 – 16.17), o livro de Deuteronômio passa a tratar daqueles que exerceriam certa liderança sobre a nação, fosse ela civil ou religiosa (16.18 – 18.21). Os juízes Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 288. Tremper LONGMAN III, Raymond B. DILLARD, Introdução ao Antigo Testamento, p. 80-81. 389 Gordon J. WENHAM, “The theology of unclean food”, p. 11. 390 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 171-172; Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 101; Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 232-233. 391 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 233. 392 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 174. 393 Jack S. DEERE, Op. cit., p. 291. 394 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 174. 395 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 245-246. 387 388

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de Israel deveriam cumprir seus deveres com total justiça, sem favorecer os ricos (16.18-20). A idolatria não poderia ser admitida em hipótese alguma e deveria ser devidamente punida com a morte dos envolvidos (16.21 – 17.7). Os casos demasiadamente difíceis deveriam ser analisados juntamente com os sacerdotes, que tinham a função de esclarecer como a lei de Deus se aplicava ao caso apresentado (17.8-13).396 O final do capítulo apresenta ainda provisões legais para uma futura instauração de um governo monárquico: o rei precisaria ser israelita e não poderia acumular muitos cavalos (sinal de poderio militar), muitas mulheres (sinal de tratados com outros povos) nem muita riqueza (17.14-17).397 Além disso, o futuro monarca deveria ter consigo o livro da Lei, a fim de que visse a si mesmo como servo do povo e percebesse sua responsabilidade de exercer justiça como líder da nação (Dt 17.18-20). Os levitas e sacerdotes, por não terem terras como herança, viveriam das ofertas levadas ao santuário pelo povo, isto é, de porções dos animais sacrificados e das primícias da produção dos israelitas (18.1-8).398 As práticas idólatras de sacrifícios humanos e presságios, comuns no ambiente cananeu, eram terminantemente proibidas (18.9-13). Após a morte de Moisés, Deus levantaria outros profetas que mediariam suas palavras ao povo, às quais os israelitas deveriam obedecer, certificando-se, primeiro, do cumprimento delas e do comprometimento exclusivo do profeta com o Senhor (18.14-22). A partir do capítulo 19, o livro passa a abordar aspectos da vida diária e dos direitos civis no contexto da teocracia israelita.399 A vida era sagrada, como um dom de Yahweh, portanto, pessoas que cometessem homicídio culposo (sem intenção de matar), deveriam ter cidades de refúgio, dentro do território nacional, para onde correriam até que seu caso fosse julgado, sendo preservadas da vingança dos parentes das vítimas (19.1-10). Mas caso um homicídio fosse doloso, com a clara intenção de tirar a vida de outrem, a pena capital era requerida (19.11-13). A terra também era uma herança concedida por Deus, por isso ninguém deveria remover os marcos de pedras a fim de roubar o terreno de seu vizinho (19.14). “Havia uma íntima ligação entre a terra de um indivíduo como seu meio de sustento e a própria vida do homem”. 400 O perjúrio, proibido nos dez mandamentos (Dt 5.20), deveria receber sua justa

396

Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 63. J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 196-197; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 175. 398 Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 295-296 399 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 236. 400 J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 207-208. 397

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punição, conforme a lex talionis, o que protegeria a vida e a terra das pessoas (19.16-21; cf. 1Rs 21).401 A justiça de Deus deveria governar a nação até mesmo em tempos de guerra. “Israel não é uma nação criminosa com licença divina para matar onde quer e quem quer que queira. Até mesmo a maneira de Israel lutar na guerra deve distingui-la de outras nações”.402 As batalhas deveriam ser guerreadas na força, dependência e comando de Yahweh (20.1-4) e os soldados com potencial para causar problemas internos precisavam ser excluídos e enviados de volta para casa (20.5-9).403 Quando atacasse cidades fora dos limites de Canaã, o exército israelita proporia primeiramente a paz, mas caso houvesse resistência, só mataria a população masculina (20.10-15). Já os povos de Canaã deveriam ser totalmente exterminados, nem as mulheres e as crianças poderiam ser poupadas (20.16-18).404 O cuidado com as árvores frutíferas revelava boa mordomia com as fontes naturais de alimento, diferentemente da atitude bélica cananéia (20.19-20).405 A ocorrência de um assassinato misterioso, em que apenas o corpo fosse achado no campo, sem o conhecimento das circunstâncias do crime, tornava a comunidade da cidade responsável pelo ocorrido e as autoridades precisavam expiá-la mediante um ato cerimonial (21.1-9).406 A fim de zelar pela dignidade e pelos direitos humanos, Moisés expõe uma legislação que protegia a liberdade da mulher cativa que fosse rejeitada por seu marido (21.10-14), o direito do filho mais velho de receber a maior parte da herança de seu pai, mesmo que este tivesse duas mulheres e preferisse a mãe dos filhos mais novos (21.15-17),407 a autoridade que os pais tinham sobre seus filhos, por direito, conforme definido pelo decálogo (21.18-21; cf. 5.16) e a honra do cadáver de um criminoso humilhado publicamente (21.22-23).408 A preocupação e o respeito para com a propriedade particular eram esperados pela lei da devolução de animais e dos objetos perdidos ao seu dono (22.1-4).409 A distinção dos sexos era obrigatória na sociedade israelita (22.5), como também o cuidado com a vida, fosse de 401

C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 399. Ver também Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 428-429. 402 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 236. 403 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 175-176. 404 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 128. 405 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 71. 406 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 216. 407 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Op. cit., p. 407. 408 Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 134. 409 Paul R. HOUSE, Op. cit., p. 237. 74

pequenos animais ou de seres humanos criados à imagem de Deus (22.6-8). O princípio da separação deveria reger a prática agrícola e a confecção de roupas e agasalhos (22.9-11).410 O matrimônio e a sexualidade eram considerados sagrados, de modo que um homem que difamasse sua esposa injustamente deveria ser castigado e multado (22.13-20), mas se fosse fato o envolvimento da moça em relações sexuais pré-maritais, ela seria punida com a morte, assim como os adúlteros que desrespeitassem os compromissos conjugais e os estupradores que violassem a sexualidade de uma mulher (22.20-27). O envolvimento sexual entre um homem e uma mulher solteiros resultava na obrigatoriedade do casamento mais o pagamento de multa por parte do violador (22.28-29), e as relações de um homem com a madrasta ou com a concubina do pai eram completamente proibidas (22.30).411 Em Deuteronômio 23, há uma série de regulamentos que definem a participação na assembleia do Senhor, entendida aqui como referência à comunidade adoradora do povo de Deus, reunida na presença de Yahweh para cultuá-lo e celebrar suas festas.412 Nessas assembleias, jamais poderiam entrar eunucos (por atos religiosos), filhos de prostitutas cultuais, amonitas e moabitas (23.1-6).413 Já os egípcios e edomitas residentes em Israel tinham permissão para participar das celebrações cultuais após a terceira geração (23.7-8). As regras sanitárias para acampamentos militares não apenas garantiam um ambientado esterilizado, mas também demonstravam “pela higiene e limpeza, o caráter santo de Yahweh” (23.9-14).414 Um conjunto de diversas leis aparece no final do capítulo 23, ordenando o asilo político a escravos estrangeiros e o cumprimento de votos feitos diante de Yahweh (23.15-16, 21-23), e proibindo a prostituição cultual, a cobrança de juros de outros israelitas e o armazenamento dos frutos da terra alheia (23.17-20, 24-25). O caráter santo do casamento não deveria ser menosprezado e a mulher não poderia virar um joguete nas mãos de homens perversos, por isso, Deuteronômio 24.1-4, uma lei casuística, proíbe o marido que se divorciou de sua mulher tomá-la de volta após a morte do

410

Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 176. Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 522, 526. 412 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 296; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 78. 413 A expressão “dez gerações” é um termo enfático que aponta para a completa exclusão. Ver C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 414; Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 297. 414 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 177. 411

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segundo esposo dela.415 O homem que se casasse, ficava livre das responsabilidades militares durante o primeiro ano de seu casamento para fazer feliz sua esposa e reproduzir sua descendência, já que a possibilidade de morte na batalha era grande (24.5).416 Uma sequencia de leis limitavam os abusos por parte daqueles que emprestavam dinheiro e protegiam a propriedade do pobre (24.6, 10-13), condenavam o sequestro à pena capital (24.7),417 remetiam o povo às orientações sacerdotais em casos de doenças de pele (24.8-9), impediam a exploração dos ricos sobre os trabalhadores assalariados (24.14-15), responsabilizavam o indivíduo por suas ações (24.16)418 e promoviam a generosidade para com os grupos menos favorecidos da sociedade israelita (24.17-22). Em caso de uma briga violenta entre dois homens, a punição deveria corrigir o malfeitor, mas preservar sua integridade física mediante o limite máximo de quarenta açoites (25.1-3).419 O trabalhador deveria receber salário digno da execução de sua tarefa (25.4).420 A lei do levirato colocava sob a responsabilidade do irmão do falecido a provisão da descendência e do sustento da viúva (25.5-6); em caso de recusa, sua escolha estava sujeita a um ato simbólico que apontava para a vergonhosa omissão (25.7-10).421 O recato feminino e a integridade pessoal do homem deveriam ser mantidos (25.11-12);422 medidas e pesos honestos eram a regra nas transações comerciais em Israel (25.13-16). A vingança de Yahweh contra os amalequitas por seu ataque traiçoeiro deveria ser executada assim que Deus concedesse descanso a seu povo na terra (25.17-19; cf. 1Sm 15). No capítulo 26, a “maneira simples e elegante de expressar as ordens acerca das primícias faz com que o relacionamento entre Yahweh e Israel soe ao mesmo tempo amoroso e vibrante”.423 O estabelecimento na terra prometida requeria uma resposta de devoção e gratidão do israelita ao Suserano da aliança, apresentando como oferta os primeiros frutos de seu trabalho em Canaã e confessando a bondade do Deus de Jacó, desde o passado até o momento presente, em que colhia e desfrutava das delícias da terra dada pelo Senhor (Dt

J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 233-235; Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 305. 416 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 145. 417 O sequestro parece ter sido uma prática comum no antigo Oriente, conforme demonstrado por outros códigos antigos, como o de Hamurábi e a legislação hitita (Ver J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 236, nota 177) 418 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 310. 419 Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 116. 420 Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 305-306. 421 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 86. 422 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 316. 423 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 238. 415

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26.1-11).424 No terceiro ano, as primícias deveriam ser separadas e direcionadas aos levitas e carentes da comunidade de Israel, tal ação seria acompanhada por uma declaração de lealdade a Yahweh e de um clamor para que ele abençoasse seu povo e a terra dele (26.12-15). Ao final, há uma breve seção parenética, que conclui a seção legislativa e marca o compromisso mútuo entre o vassalo Israel e o Suserano Yahweh, de obediência por parte do primeiro e de bênção e cuidado por parte do segundo (26.16-19).425 A Ratificação da Aliança em Canaã e suas Bênçãos e Maldições (Dt 27.1 – 28.68). O capítulo 27 apresenta a ratificação da aliança, anunciada nas planícies de Moabe por Moisés, mas descrita a partir da perspectiva da conquista (cf. Js 8).426 Um monumento e um altar de pedras deveriam ser erigidos no monte Ebal, seguidos de uma refeição de comunhão em celebração da aliança (27.1-8). Então, as doze tribos deveriam pronunciar sobre os montes Gerizim e Ebal, de forma representativa, as bênçãos e maldições, respectivamente (27.926).427 Se o povo abandonasse Deus e suas ordenanças, para seguir deuses estranhos, experimentaria a justa ira de Yahweh por meio da infertilidade da terra, doenças, fome, opressão dos inimigos e, logo, seriam eliminados de Canaã (28.15-68). Todavia, se fossem obedientes e leais a Ele, guardando e cumprindo os seus mandamentos, certamente, gozariam de bênção plena da parte de Yahweh, como a fertilidade humana, da terra e do rebanho, a supremacia militar e política sobre as demais nações e a fartura de alimento (28.1-14).428 A “sequencia de bênçãos e maldições e a proporção de poucas bênçãos para as muitas maldições são traços que correspondem diretamente àqueles traços observáveis das coleções legais do começo do segundo milênio”.429 A graça e juízo de Deus são dois enfoques conjuntos expressos no Deuteronômio para a nova fase de vida dentro da terra prometida. 430 A Renovação da Aliança nas Planícies de Moabe (Dt 29.1 – 30.20). A renovação da aliança propriamente dita é feita nos capítulos 29 e 30, em que Moisés relembra a poderosa e graciosa presença de Deus na libertação do Egito, na peregrinação no deserto e nas recentes vitórias a leste do Jordão, e explica o significado da renovação da aliança com o Senhor (29.1-

Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 307-308. Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 644, 646-647. 426 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 178. 427 Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 352. 428 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 178. 429 K. A. KITCHEN, Bible in its world: the Bible and archaeology today, p. 82. 430 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 242. 424 425

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15).431 Tal ato implicava exclusividade pactual com Deus, tanto no nível coletivo como individual, e a quebra desse compromisso com a idolatira resultaria na ira de Deus contra indivíduos e contra a comunidade, culminando na expulsão da terra prometida (29.16-28). A obediência à revelação divina era a postura esperada de todas as gerações do povo da aliança (29.29). A reversão da sorte israelita de juízo para a graça é algo significativo também em Deuteronômio. O destaque dado ao arrependimento, caracterizado pelo verbo hebraico (vWb) em Deuteronômio 30.1-10, mostra a Israel que, mesmo em meio à desgraça nacional do cativeiro como julgamento divino por sua apostasia, haveria esperança de restauração em seu relacionamento com Yahweh e de retorno ao desfrute de suas bênçãos. 432 Tal certeza do perdão e restauração divinos se dá pela misericórdia de Yahweh, expressos pelo verbo (r>j^m - 30.3).433 Mas, isso iria requerer um arrependimento de “todo o teu coração” e “toda a tua alma”, isto é, uma inclinação à voz do Senhor “segundo tudo o que hoje te ordeno” (30.2). Após encorajar o povo mostrando que as exigências divinas eram evidentes e não estavam além de sua capacidade de entendimento, diferentemente das revelações enigmáticas dos deuses pagãos (Dt 30.11-14),434 Moisés colocou diante do povo a escolha: a vida por meio de devoção e amor a Yahweh, ou a morte e a destruição pela apostasia (30.15-18). A invocação de testemunhas, comum aos tratados antigos, foi acompanhada do apelo para que se escolhesse a vida e a lealdade pactual (30.19-20).435 Provisões para a continuidade da Aliança (Dt 31.1 – 34.12). Consciente da proximidade de sua morte, Moisés encorajou a nação e o futuro líder dela, Josué, a conquistarem a terra prometida sem temor, com confiança de que o Senhor iria à frente guerreando pelo seu povo (Dt 31.1-8). O registro da lei da aliança fora entregue aos sacerdotes e líderes da nação, a fim de ser lida e de incutir temor no coração do povo e das futuras gerações (31.9-13). Os tratados hititas também continham provisão para leituras

431

Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 356-358. Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 187-188. 433 Idem, Ibidem. 434 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 98. 435Lester J. KUYPER, “Book of Deuteronomy”, p. 338; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 275. 432

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futuras, com o alvo de que o povo vassalo conhecesse as condições do compromisso com o rei suserano.436 Como profeta, Moisés recebeu revelação da parte de Yahweh de que o povo seguiria sua inclinação natural na terra prometida, desobedecendo ao Deus da aliança e adorando outros deuses, consequentemente receberiam destruição como castigo divino contra seu pecado (31.14-18). Por isso, o Senhor orientou Moisés a ensinar o povo uma canção que serviria de testemunha contra a própria nação por sua infidelidade e ordenou aos levitas, de forma mediada, que colocassem o livro da Lei ao lado da arca da aliança como outra testemunha contra a corrupção futura de Israel (Dt 31.14-29).437 O cântico do capítulo 32 foi, provavelmente, escrito por Moisés antes de ser lido ao povo e compreende uma antecipação profética do destino da nação.438 Novamente, céus e terra são invocados como testemunhas silenciosas da aliança entre Deus e Israel (Dt 32.1-3). Em seguida, um contraste marcante é feito entre a fidelidade e a perfeição de Yahweh e a imperfeição e corrupção de seu povo (32.4-5), algo que fica mais acentuado diante do pano de fundo de um Deus amoroso e seu propósito bondoso para Israel (32.6-9).439 De modo gráfico, o autor relembrou, uma vez mais, o cuidado amoroso de Deus por seu povo durante a caminhada no deserto (32.10-14),440 mas previu o afastamento autossuficiente de Israel quando se estabelecesse na terra (32.15-18), o que culminaria nas maldições previstas na aliança contra uma nação que se tornara como Sodoma e Gomorra (32.19-35).441 No final, porém, após disciplinar os seus escolhidos, Deus demonstraria compaixão a eles e julgaria os seus inimigos, revelando que ele é o único Deus verdadeiro, apenas ele tem poder sobre a morte e a vida, e ninguém pode escapar de suas mãos (32.36-43).442 Depois de recitar a canção, Moisés lembrou que os mandamentos de Yahweh são a essência da vida na terra (32.44-47).

George E. MENDENHALL, “Covenants forms in Israelite tradition”, p. 60; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 93, 97. 437 Os deuses pagãos, invocados como testemunhas do tratado não aparecem na renovação da aliança em Deuteronômio. Porém, o Cântico de Moisés (Dt 31.16-20; 32.1-47) e o próprio Livro da Lei (Dt 31.26) ocupam essa função como testemunhas da Aliança. Ver K.A. KITCHEN, Op. cit., p. 93, 97; Idem, “The fall and rise of covenant, law and treaty”, p. 126; Meredith G. KLINE, “The two tables of the Covenant”, p. 142. 438 Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 659-660. 439 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 376-378. 440 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 103. 441 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 179. 442 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 289. 436

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Ao receber as instruções divinas para subir o monte Nebo para ali contemplar o “paraíso de Yahweh” e morrer (32.48-52), Moisés declarou a bênção de Deus sobre as tribos de Israel assim como Jacó fizera a seus doze filhos às portas da morte (cf. Gn 49.1-28).443 Primeiramente, ofereceu louvor a Deus por sua majestade e seu compromisso com Israel no Sinai (33.1-5), depois, anunciou bênçãos sobre cada tribo (33.6-25), e, por fim, louvou o caráter singular de Yahweh, que garantiria a vitória final de seu povo (33.26-29).444 O livro conclui com o relato da morte de Moisés acompanhada de sua subida ao monte Nebo e a contemplação de Canaã, a terra prometida por Deus aos pais, onde ele não pôde entrar (Dt 34.1-4). A morte de Moisés foi lamentada por todos israelitas durante trinta dias (34.7-8), ainda que sua sepultura permanecesse uma incógnita, indicação de que esta era uma questão particular entre ele e Deus, na qual homem algum teve parte (34.5-6).445 Josué, capacitado pelo carisma da sabedoria concedido por Deus mediante a imposição de mãos de Moisés (cf. Nm 27.18-23), era o novo líder da nação (34.9). A nota final de Deuteronômio “louva Moisés como o maior de todos os profetas, aquele a quem Deus conhecia de forma íntima, e o maior operador de milagres” (34.10-12).446 A sua morte permanece como um exemplo memorável da severidade do Deus santo contra o pecado, mesmo no caso de seu servo fiel.447 4.3. Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Deuteronômio 4.15-24 Deuteronômio 4 é um texto hortatório que insta o povo a apreender as palavras da lei em seu coração e a manter sempre viva, na mente, a gloriosa revelação de Deus no Sinai, a fim de não sofrer futuramente o juízo divino contra seu pecado.448 O capítulo é “em essência um sermão em miniatura sobre a aliança e a lei, no qual a recordação histórica é empregada em um estilo didático mais geral”.449 A porção literária de 4.15-24 pertence a uma seção maior que vai dos versos 9-24, na qual a exortação à lembrança da revelação do Deus imanente e absconditus no Sinai (vv. 9-

Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NTLSB, p. 363; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 246. 444 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 179. 445 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 405. 446 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 234. 447 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 515. 448 Idem, p. 308. 449 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 129. 443

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14) proporciona a advertência contra todo tipo de idolatria (vv. 15-24).450 Desde que a seção se subdivide em duas partes, a porção de 4.15-24 receberá atenção como a unidade literária que envolve o verso 24.451 Alguns traços linguísticos chamam a atenção em Deuteronômio 4.15-24. Primeiramente, a mesma exortação para que o povo “tenha cuidado” ou “guarde-se” de fazer um ídolo de alguma forma molda o início e o fim da subseção com os mesmos termos hebraicos:452

‫ל־סמֶל תַ ְב ִנֵ֥ית‬ ַ ְ‫ִיתֵ֥ם לכֶ ָ֛ם ֶ ֵּ֖פסֶל ת‬ ֶ ‫ׁשחִתּון ַו ֲעש‬ ְ ַ‫ ֶַּ֨פן־ת‬... ‫יכם‬ ְ ִ‫“ ְונ‬e ֶּ֑ ‫מּונֹ֣ת כ‬ ֶּ֑ ֶ ‫ׁשמ ְַר ֶ ֵ֥תם מ ְֵּ֖א ֹד ְלנַפְׁש ֹת‬

(A)

guardai cuidadosamente a vossa alma ... para que não vos corrompais e vos façais um ídolo em forma...” (v. 15-16). (A’)

– “guardai-vos para que não vos

...

esqueçais ... e vos façais um ídolo em forma...” (v. 23). A preocupação com a corrupção do povo na idolatria dá a tônica dessa porção homilética, 453 como também a lembrança da gloriosa santidade divina e de seu zelo pelo “povo de sua herança”. A santidade gloriosa de Yahweh é ressaltada pelo molde que o termo hebraico

(“fogo”) dá ao texto, tanto no começo, quando Yahweh fala ao povo “do meio do

fogo” (v. 15), quanto no final, em que ele é chamado de “fogo consumidor” (‫ אׁש אֹכְלה‬- v.

450

A favor dessa divisão do capítulo 4, compreendendo os versos 9-24 como a segunda seção do texto, estão Gerhard VON RAD, Deuteronomy, p. 49-50; Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 65-67; Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 131-138. Apesar de von Rad crer que as duas partes da seção não estivessem unidas originalmente, ele as trata como uma unidade em que o “pregador se apega à declaração contida na tradição de que, no Horebe, Israel apenas ouviu a voz de Yahweh, mas não o viu, para impor seu significado teologicamente”. O marcador de unidade da seção parece ser a repetição do verbo (“guardar”) com força imperativo mais a conjunção indicadora de proibição ( ‫ פֶן‬- “para que não”), que ocorre no começo (‫ׁש ַַּ֨כח‬ ְ ִ‫ִשמֶר ְל ָָ֩ך ּוׁש ְַּ֨מ ֹר נַ ְפׁש ְָָ֜ך מ ְֹ֗א ֹד פֶן־ת‬ ֹ֣ ‫ ַַ֡רק ה‬- “Tão somente guarda-te a ti mesmo e guarda bem a tua alma, para que te não esqueças...”) (v. 9), no meio, onde há o início da segunda subunidade (...‫יכם‬ ְ ִ‫ְונ‬ ֶּ֑ ֶ ‫ׁשמ ְַר ֶתֵ֥ם מ ְֵּ֖א ֹד ְלנַפְׁש ֹת‬ ‫ׁשחִתּון‬ ְ ַ‫ ֶַּ֨פן־ת‬... – “Guardai, pois, cuidadosamente, a vossa alma... para que não vos corrompais...”) (vv. 15-16), e no fim da porção literária maior ( – “Guardai-vos para que não vos esqueçais...”) (v. 23). 451 Ver Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 17-18; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 311-313; Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 270. 452 Ver Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 86; ver Gary H. HALL, Deuteronomy, p. 96. 453 Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 105. 81

24).454 “A metáfora do ‘fogo consumidor’ refere-se à manifestação da glória de Deus que queima em julgamento contra tudo que é impuro”.455 O contexto que cerca Deuteronômio 4.24 se inicia com a repetição de que, quando Yahweh falou (‫ )דִ ֶבר‬a Israel como o Senhor da aliança, não se viu (

) forma (‫)תְ מּונה‬

alguma em sua epifania (Dt 4.15; cf. v. 12). Aqui, o princípio da ausência de forma do ser divino é afirmado como fundamento da proibição da idolatria que surge nos versos seguintes. 456 A presença de Yahweh em Horebe era indubitável, visto que se ouviram suas palavras e sentiu-se o temor da sua manifestação no meio do fogo.457 “Desde que Israel adorava um Deus invisível, eles não deveriam tentar construir uma divindade visível (cf. 5.810). Há ainda um contraste entre os ídolos visíveis e o Deus audível de Israel”.458 A idolatria equivalia à corrupção moral do povo de Deus (‫ׁשחִתּון‬ ְ ַ‫ ;ת‬cf. v. 25)459 e ela poderia ocorrer por meio de ídolos talhados de madeiras ou de pedra (‫ ) ֶפסֶל‬ou estátuas (

)460 em forma (‫תְ מּונה‬/

) de seres humanos, homem ou mulher (‫( )זָכָר אֹו נְ ֵקבָה‬Dt

4.16). A representação de Deus em forma humana era uma reversão de Gênesis 1.26-27, em que homem e mulher são criados à imagem de Deus, e um solapamento da transcendência de Yahweh, o Criador distinto da criação (Gn 1.1).461 As imagens dos deuses no oriente antigo não eram vistas como sendo as próprias divindades, mas como uma extensão delas, mediando a revelação dos deuses por elas representados e possibilitando a relação deles com os adoradores.462 As imagens das deidades no Oriente próximo eram onde elas se tornavam presentes de um modo especial ... Como resultado dessa ligação, palavras mágicas, encantamentos e outros atos mágicos poderiam ser realizados sobre a imagem com o alvo de ameaçar, obrigar ou compelir a divindade.463

Os versos 17-18 incluem imagens de vários tipos de animais, numa espécie de detalhamento do segundo mandamento: “Não farás para ti imagem de escultura, nem 454

Ver Duane L. CHRISTENSEN, Op. cit., p. 86. Ver Thomas L. CONSTABLE, Op. cit., p. 18. Essa associação entre a glória e o fogo de Yahweh é observada por F. Stolz e pela nota da NET Bible (ver F. STOLZ, “ ”. In: TLOT, v. 1, p. 186; NET BIBLE, Deuteronomy 4.24, t.n. 41). 456 Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 270. 457 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 134. 458 Gary H. HALL, Deuteronomy, p. 98 (itálico original). 459 Ver BDB, p. 1008 (Hifil 2). 460 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, p. 47. 461 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 135; Gary H. HALL, Op. cit., p. 99. 462 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 210-211 . 463 John WALTON, Victor H. MATTHEWS (eds.), The IVP background commentary: Genesis-Deuteronomy, p. 224. 455

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semelhança alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Dt 5.18).464 A experiência no deserto com o bezerro de ouro já tinha demonstrado a inclinação do povo em criar ídolos em forma de animais para adorar o próprio Yahweh (9.717; cf. Êx 32.2-6). Tanto Canaã (o destino israelita) quanto o Egito (a origem da peregrinação) tinham vários exemplos de imagens de animais como representações de seus deuses, especialmente o último.465 No alto panteão de divindades egípcias, a deusa Hator era representada por uma vaca, Tote por um babuíno e Hórus se manifestava como um falcão.466 A referência aos animais é reminiscente do relato da criação, 467 ainda que apareça na ordem inversa. 468 Isso relembra que Yahweh transcende sua criação, ele é Criador, não criatura. No verso 19, a proibição aponta para o perigo não de se fazer uma imagem, mas de se adorar astros do universo criado como se fossem seres divinos.469 A expressão ‫ש ַַ֔מי ִם‬ ָ ‫צ ָ ְָ֣בא ַה‬ (“exército dos céus”) fazia referência “às estrelas e outros corpos celestes, que eram considerados encarnações ou representações das deidades”. 470 Mas de forma contrária, as Escrituras hebraicas os apresentam como [...] servos de Deus designados por ele para desempenhar suas tarefas de marcar os tempos e as estações (Gn 1.14-19; Is 4026) ... Em lugar de adorar esses corpos celestes, o povo de Israel deveria reconhecer que a criação de Deus foi feita, entre outros motivos, para servir à humanidade (Gn 1.28).471

Hall observa que Gênesis 1.14-18 é notavelmente reticente quando relata a criação dos astros: “Apenas as estrelas foram especificamente nomeadas. Gênesis deliberadamente minimiza o sol e a lua ... eles não eram divindades substitutas que controlavam o destino humano ... [mas foram] designados para glorificar a Deus (Sl 19.1)”.472

Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 105. J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 104; Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 105; Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 270; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 312; Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 88-89. 466 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 135-136. 467 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 45. 468 Gary H. HALL, Deuteronomy, p. 99. Enquanto o relato da criação apresenta os peixes que povoam o mar, as aves do céu e os animais da terra (Gn 1.20-26), o Deuteronômio inverte referindo-se, primeiro, aos animais da terra, depois às aves do céu e aos peixes do mar (Dt 4.17-18). 469 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 137. 470 Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 322. 471 Idem. Ibidem. 472 Gary H. HALL, Op. cit., p. 100. 464 465

83

A adoração aos corpos astrais era uma prática comum em todo o Oriente antigo, o que incluía o Egito e Canaã. 473 “O sol era adorado como o deus Rá ou Aten no Egito, e na nova terra para a qual os israelitas estavam indo, a adoração astral também era comum (e.g.: a cidade de Jericó era dedicada à deusa lua)”. 474 (“que

A expressão hebraica

Yahweh, o teu Deus, distribuiu-os a todos os povos debaixo dos céus”) indica, mais provavelmente, não que “a idolatria dos pagãos existia por permissão e providência divina”, 475 opinião esposada por vários exegetas, 476 mas sim, que “estes objetos celestiais foram dados a toda a humanidade para o benefício físico da terra e não eram inerentemente objetos de adoração (Gn 1.14-18)”.477 Juntamente ao fato geral de que Yahweh distribuiu os astros para proveito de todos os povos, há também uma razão particular para que Israel não se dobre diante de outros deuses ou imagens apresentada no verso 20.478 A experiência do êxodo marcava a relação especial e pactual de Yahweh com Israel, distinguindo essa nação de todos os povos da terra.479 O Egito como “fornalha de fundir ferro” (

) remontava à cena da fundição

de metais, especialmente do ferro, onde o fogo precisava atingir a temperatura mais alta possível para que o ferro fosse derretido e moldado pelos artesãos.480 Tal figura é uma “significativa descrição dos terríveis sofrimentos experimentados por Israel no Egito”. 481 Enquanto a fornalha pode ser certamente uma metáfora de opressão, o fogo da fornalha de fundir não é destrutivo, mas construtivo. Esta é a fornalha que transforma um minério

473

John WALTON, Victor H. MATTHEWS (eds.), The IVP background commentary: Genesis-Deuteronomy, p. 224-225; J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 104; Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 137. 474 Jack S. DEERE, Op. cit., p. 270. 475 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 312. 476 Ver Gerhard VON RAD, Deuteronomy, p. 50; Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 137; Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 89; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 104. 477 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 45. Ver apoio em Gary H. HALL, Deuteronomy, p. 100; Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 322. 478 O verso 20 parece indicar o segundo motivo pelo qual os israelitas não deveriam devotar sua adoração aos seres criados (ver Jack S. DEERE, Op. cit., p. 270), assim a conjunção deve ter função aditiva (“e”), como traduz Christensen (Duane L. CHRISTENSEN, Op. cit., p. 84), e a relação entre os dois motivos é feita mediante o jogo entre duas palavras: “distribuiu ( ) ... a todos os povos debaixo dos céus” (v. 19) e “tomou ( ) a vós ... da fornalha de ferro, do Egito...” (v. 20). 479 Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 105; Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 137. 480 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 18; Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 45-46, 47-48. 481 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Op. cit., p. 312. 84

maleável em um produto de ferro durável. A experiência do êxodo transformou Israel no povo da aliança de Deus.482

Exatamente porque Israel era um povo especial para Yahweh, ele é chamado de “povo de sua herança” (‫( )לֹוָ֛ ל ְַעֵ֥ם נַחֲלֵּ֖ה‬Dt 4.20). Essa expressão, como explicada por G. Wanke, “sublinha o relacionamento singular entre Yahweh e Israel bem como o status singular de Israel entre as nações ... quem vive dentro dessa comunidade tem um relacionamento com Yahweh (1Sm 26.19; 2Sm 14.6)”.483 O termo também é visto como sinônimo de ‫“( ַעם ְסגֻלה‬povo de propriedade especial” – Dt 7.6; 14.2; et al).484 Israel era considerado a propriedade valiosa, o tesouro particular, 485 a coroa de joias de Yahweh.486 A libertação do Egito lembrava Moisés que ele não desfrutaria da redenção por completo, pois não atravessaria o Jordão nem entraria na “boa terra” ( “herança” (

), na

) prometida por Yahweh ao seu povo (Dt 4.21).487 Isso certamente afetou

profundamente Moisés e seu desapontamento é refletido na repetição do fato três vezes dentro da narrativa histórica do livro (1.37; 3.26-27; 4.21-22).488 A menção da ira (

) do Senhor

contra seu servo, por causa das palavras do povo (‫)עַל־דִ בְרי ֶכם‬, remontava à murmuração de Israel pela falta de água em Cades, no deserto de Zim (Nm 20.9-12; 27.12-14).489 O exemplo dos resultados desastrosos da desobediência aparentemente “pequena” de Moisés ensinava à geração que herdaria a “boa terra” que “se ele não escapou do julgamento de Deus por sua desobediência ... a nação não poderia pensar que escaparia se cometesse idolatria”.490 O comprometimento da lealdade absoluta de Israel ao Senhor da aliança traria consequências sérias para eles também, 491 como a profecia dos versos 25-27 deixa claro. “A herança não apenas poderia ser alcançada pela obediência, mas também poderia ser perdida pela desobediência”. 492

482

John WALTON, Victor H. MATTHEWS (eds.), The IVP background commentary: Genesis-Deuteronomy, p. 225. 483 G. WANKE, “‫”נַחֲלֵּ֖ה‬. In: TLOT, v. 2, p. 733. 484 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 47-48; Gary H. HALL, Deuteronomy, p. 100. 485 BDB, p. 688. 486 H. WILDBERGER, “”. In: TLOT, v. 2, p. 792-793. 487 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 312; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 18. 488 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 89; Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 46, 48. 489 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 98-99; Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 27-28. 490 Gary H. HALL, Op. cit., p. 101; Cf. Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 270. 491 J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 104. 492 Joseph C. DILLOW, The Reign of the Servant Kings, p. 50. 85

A menção ao fato de que Moisés não atravessaria o Jordão, enquanto o povo atravessaria e entraria na boa terra (4.22), realça o caráter do livro como “a última vontade e o testamento de Moisés ao povo”.493 A expressão “boa terra” (

) (v. 22) é recorrente

no livro de Deuteronômio (Dt 1.25, 35; 3.25; 4.21-22; 6.18; 11.17) e apresenta Canaã como uma dádiva divina (1.20, 25; 2.29; 3.20; 4.40; 5.16, passim),494 terra onde “mana leite e mel” (Dt 11.29; 26.9, 15; 31.20), “generosamente irrigada, cheia das mais viçosas culturas e de parreiras, com abundância também de riquezas minerais (Dt 8.7-9)”.495 A fertilidade da terra era tamanha que é contrastada com o Egito (uma terra fértil) em Deuteronômio 11.10-12.496 Novamente há o chamado para que o povo não se esqueça da aliança que Yahweh realizara com a nação de Israel (Dt 4.23; cf. v. 9) nem faça para si imagem de qualquer forma (‫ ַו ֲעשִיתֶַּ֨ ם לכֶ ֵ֥ם ֶַּ֨פסֶל תְ ֹ֣מּונַת‬... ‫ ; ֶפן‬cf. v. 15 – ‫מּונֹ֣ת‬ ַ ְ‫ִיתֵ֥ם לכֶ ָ֛ם ֶ ֵּ֖פסֶל ת‬ ֶ ‫ ַו ֲעש‬...‫) ֶַּ֨פן‬. O verso 23 ensina que “fazer uma imagem seria equivalente ao esquecimento da aliança, e esquecer a aliança era se olvidar do relacionamento que provia a total raison d’être dos israelitas”. 497 No contexto, a aliança (

) está diretamente ligada ao compromisso firmado no

Sinai entre Deus e Israel, mediado por Moisés e resumido nos dez mandamentos (Dt 4.13; 5.2ss.; cf. 9.9). Deus era fiel à aliança e não se esqueceria dela (4.31), assim também esperava que Israel não se esquecesse do pacto, sendo leal a Yahweh por meio da recusa de adorar ídolos que jamais o representariam (4.23). 498 Em resposta à singularidade de Yahweh e à sua ação graciosa na eleição, libertação do Egito e concessão da terra, Israel é chamado a amá-lo com todo o seu coração, não dividindo este amor com ninguém mais (Dt 6.5), 499 e a confiar exclusivamente nele, não em outras fontes. 500 A deslealdade ao Deus da aliança e a apostasia idólatra provocariam a ira do Deus que é zeloso de seu povo e da aliança firmada com eles. A expressão ‫“( ֵּ֖אל קַנ ָּֽא‬Deus zeloso/ciumento”), no final de Deuteronômio 4.24, não deve ser tomada como indicação de Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 105. John D. W. WATTS, “The deuteronomic theology”, p. 328. 495 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 220. 496 Idem, p. 220-221. 497 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 138. 498 E. KUTSCH, “‫ְרית‬ ִ ‫”ב‬. In: TLOT, v. 1, p. 263; Gary H. HALL, Deuteronomy, p. 101. 499 P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 299; C. PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 76-77. 500 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 147. “O fato de que o Deus que livrou Israel da escravidão egípcia é o único Deus verdadeiro é central na apresentação que Deuteronômio faz da aliança. Porque só há um Deus, ele exige a lealdade total do seu povo” (Eugene MERRIL, “Deuteronômio”. In: David S. DOCKERY (Ed.), Manual bíblico Vida Nova, p. 211). 493 494

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um sentimento mesquinho de Yahweh, mas de um zelo por sua própria santidade e singularidade que exige adoração exclusiva de seu povo a si. 501 Essa qualidade divina “não expressa o irracional ou o demoníaco em Yahweh, mas sim, sua santidade e singularidade”. 502 Gary Hall pontuou muito propriamente esse caráter divino: O zelo de Deus estava fundamentado em seu zelo pela sua própria honra e pela pureza de seu povo. Não poderia haver nenhum rival em fidelidade. O Senhor era o único Deus e tinha exclusiva reivindicação sobre Israel. Sua redenção de Israel requeria a lealdade última do povo à aliança. Mas a idolatria era a violação maior dessa lealdade (ver 5.9; 6.15; 32.16, 21; Êx 34.14)... Tolerar rivais era impensável. 503

‫ אל קַנא‬elucida o sentido da metáfora de Deus como “fogo consumidor” (‫)אֵׁ֥ש אֹכְלֵּ֖ה‬ (Dt 4.24), uma figura que relembra a revelação de Yahweh “do meio do fogo” no monte Sinai (4.15), onde o aspecto se sua glória era “como fogo consumidor” (‫ כְאֵׁ֥ש א ֶ ֵֹּ֖כלֶת‬- Êx 24.17).504 Deus, zeloso por sua santidade e pela pureza de seu povo, manifestaria sua glória como fogo que consome, em juízo, sobre tudo que é impuro (Êx 24.17; Lv 10.2; Nm 16.35). 505 A ideia da figura, no contexto de Deuteronômio 4, pode ser resumida na manifestação da ira de Deus contra a deslealdade de seu povo, que emana de seu zelo por sua santidade e sua singularidade, não admitindo rivais na devoção de Israel. “O relacionamento pactual era uma relação de amor iniciada na aliança por Deus e que exigia uma resposta de amor dos israelitas (Dt 6.5)”.506 4.4. Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Deuteronômio 9.15-21 O parágrafo de Deuteronômio 9.15-21507 está inserindo num contexto de recordação histórica que “provia provas suficientes da teimosia de Israel” (cf. 9.7-29).508 A estrutura da seção maior que vai de 9.7 a 10.11509 contrasta o coração obstinado e perverso dos israelitas, revelado desde cedo no estabelecimento da aliança, com a graça e lealdade de Yahweh para com os patriarcas e sua descendência, evidente na restauração das tábuas da aliança e na preservação do povo de Israel. 501

Ralph L. SMITH, Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem, p. 198; Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 323; W. H. SCHMIDT, “ ”. In: TLOT, v. 1, p. 110-111. 502 Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 105. 503 Gary H. HALL, Deuteronomy, p. 101. 504 Ver C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 313; F. STOLZ, “ ”. In: TLOT, v. 1, p. 186. 505 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 18. 506 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 138. 507 Ver esta divisão de parágrafo em NET Bible, BJ e HCSB. Cf. Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 195. 508 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 173. 509 BJ, p. 270, nota a. 87

Isso ... levaria Israel tanto à desconfiança em sua própria habilidade para cumprir os termos da justiça de YHWH, implicitamente prescritos em 9.1-6, e a reconhecer que a única forma de Israel continuar na aliança era a graça imerecida de YHWH para com eles. 510

Toda a porção de Deuteronômio 9.7-29 se desenvolve de modo a ilustrar e comprovar a afirmação de 9.6 de que Israel é “povo de dura cerviz” (‫)עַם־ ְקׁשֵה־ע ֶֹרף‬, não tendo qualquer motivo para considerar a conquista futura de Canaã como mérito seu ou fruto de sua justiça (“Saiba que não é por causa de tua justiça que YHWH, teu Deus, te dá esta boa terra para possuí-la”511).512 “Tristemente, Israel não era apenas ocasionalmente obstinado; a obstinação era a característica distintiva do comportamento e atitude da nação”. 513 A evidência marcante do coração duro de Israel se dá quando a mesma frase do verso 6, pronunciada por Moisés, aparece na fala divina da narrativa: “Observei este povo e eis que é um povo de dura cerviz” (‫ׁשה־ע ֶֹרף‬ ֵ ‫ עַם־ ְק‬- 9.13). O panorama do passado pecaminoso de Israel “desde o dia em que saístes do Egito” (9.7), apresentado pelo mediador da aliança, focaliza especialmente o evento da adoração do bezerro de ouro, e os versos 15-21 compõem essa narração maior. A ênfase nesse momento se dá por sua importância para a vida da nação. “Logo após a recepção da maior bênção de Deus, a revelação de si mesmo e de sua vontade, eles se envolveram com a apostasia”. 514 A rememoração de Deuteronômio 9 revela vários paralelos com a narrativa de Êxodo 32 – 34.515 Já em Horebe, Israel provocara a ira (‫) ִה ְק ַצ ְפתֶם‬516 de Yahweh a ponto de ele querer exterminá-los (‫ׁשמִיד‬ ְ ‫( ) ְל ַה‬9.8), sentimento que o Senhor anuncia a Moisés (‫ׁשמִידֵם‬ ְ ‫ ֶה ֶרף ִמ ֶמנִי ְו ַא‬v.14). A apostasia da nação se caracterizou pela fabricação de uma imagem de metal fundida (‫ מַ ֵסכָה‬- v.12),517 cuja forma era a de um bezerro (cf. v.16), demonstrando sua extrema fragilidade espiritual em um rápido desvio dos caminhos ordenados por Deus (v. 12)518 durante a revelação do Sinai (v. 10; cf. 5.4; 10.4; Êx 19 - 20). A perversidade idólatra do povo forma um contraste marcante com a dependência e comunhão de Moisés com Deus, expressos Robert H. O’CONNELL, “Deuteronomy IX.7-X.7, 10-11: panelled structure, double rehearsal and the rhetoric of covenant rebuke”, p. 502. 510

511

‫ְהוָ֣ה ִּ֠אלהֶיך נ ֹ ֵֵ֨תן ל ְָ֜ך אֶת־הָאָ ֶָ֧רץ הַּטֹובָ ָ֛ה ה ַֹּ֖ז ֹאת ל ְִרׁש ָ ְָּ֑תּה‬ ָ ‫ְוי ָדַ עְתָָּ֗ ִּ֠ ִכי לֹ֤ א ְבצִדְ ָ ָֽקתְ ָ֙ך י‬

512

Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 45; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 336. 513 Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 330. 514 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 45. 515 Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 112-114; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 134. 516 BDB, p. 893. 517 Ver Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 330. 518 ‫צּוִיתִַ֔ ם‬ ִ ‫ֲׁשר‬ ָ֣ ֶ ‫ ָ ָ֣סרּו ַמ ֵָּ֗הר מִן־הַדֵֶ֨ ֶר ָ֙ך א‬. Ver Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 279. 88

em seu jejum durante 40 dias no monte, quando recebeu as duas tábuas de pedras com os mandamentos da aliança (Dt 9.9-11).519 A ameaça de destruição e extinção do povo que peregrinava pelo deserto520 e a ordem divina (Dt 9.12) levaram Moisés a descer do monte e ir ao encontro do povo que ele havia tirado do Egito (v. 15).521 Ele carregava consigo as duas tábuas da aliança, uma em cada mão (‫ׁש ֵתי י ָדָי‬ ְ ‫ׁשנֵי לֻח ֹת ַהב ְִרית עַל‬ ְ ‫)ּו‬,522 que deviam conter basicamente o mesmo conteúdo, sendo ambas cópias para depósito na arca da aliança, semelhante ao costume dos tratados do oriente antigo (Êx 25.16, 21; 40.20).523 A menção ao “monte que ardia em fogo” (‫ )ה ָ ָֹּ֖הר ב ֵ ָֹ֣ער ָבאֵׁש‬evoca a profunda experiência psicológica causada pela teofania no Sinai, especialmente descrita em Deuteronômio 4.11-13.524 O uso de várias palavras hebraicas que se repetem no discurso de Deus a Moisés e na situação do povo ao pé do monte, rememorados pelo mediador da aliança, revelam tanto a afinidade de pensamento entre Moisés e Yahweh, bem como autorizam o diagnóstico do profeta durante o evento catastrófico passado. Assim como Deus observou o povo ( ‫ָראִ יתִ י‬ ‫( )אֶת־ ָהעָם‬Dt 9.13), Moisés também viu (‫( )וָאֵ ֶרא‬v. 16) a condição do arraial israelita e constatou o pecado da nação contra Yahweh (‫( ) ְו ִהנֵה ֲחטָאתֶם לַיהוָה‬v. 16), corroborando a afirmação do próprio Deus de que Israel é um povo duro de coração (‫( ) ְו ִהנֵה עַם־ ְקׁשֵה־ע ֶֹרף‬v. 13). Moisés conclui que Israel se desviou rapidamente dos caminhos ordenados por Deus ( ‫ס ְַרתֶּ ם‬ ‫( ) ַמהֵר מִן־הַדֶּ ֶּרְך אֲ שֶּ ר־ ִצוָּה י ְהוה אֶ ְתכֶם‬v. 16), assim como Yahweh lhe anunciara no monte ( ‫סָרּו ַמהֵר‬ ‫( )מִן־הַדֶ ֶרְך אֲ שֶ ר ִצּוִיתִ ם‬v. 12).525 O desvio foi a quebra do primeiro e segundo mandamentos (cf. Dt 5.7-10), ao fazerem um ídolo de metal fundido (9.12, 16).526 Este ídolo é descrito em hebraico como sendo um ‫“( ֵ֫עגֶל‬bezerro”) (v. 16), o mesmo termo usado no relato de Êxodo 32 (cf. vv. 4, 8, 19-20, 24). A origem dessa prática idólatra, provavelmente, se dá pela absorção da influência religiosa egípcia da região de Gósen, que tinha o culto ao bezerro mesclado com a adoração

519

Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 194. ameaças faziam parte das maldições previstas pela aliança (v. 14; cf. Dt 29.19ss.). Ver J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 135. 521 Ver a frase hebraica: ‫מצ ָ ְָּ֑רי ִם‬ ִ ‫הֹוצאתָ ִמ‬ ֹּ֖ ֵ ‫ֲׁשר‬ ֶׁ֥ ֶ ‫( ׁש ֵ ִָ֣חת ַעמ ְַ֔ך א‬v. 12). 522 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 80. 523 Meredith G. KLINE, “Two tables of the covenant”, p. 136-140. 524 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 88, 187. 525 Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 114. 526 Aqui também há alta semelhança entre a linguagem do v. 12 (‫סכָה‬ ֵ ‫ )עָׂשּו ָלהֶם ַמ‬e do v. 16 ( ‫ֲעׂשִיתֶ ם ָלכֶם ֵעגֶל‬ ‫) ַמ ֵסכָה‬. 520Essas

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ao deus Hórus, e de semitas cananeus que podem ter apresentado aos israelitas a adoração a Baal, deus da fertilidade, o qual era representado por um touro.527 A narrativa de Êxodo indica que o propósito da imagem era representar o próprio Yahweh, o Deus de Israel (cf. Êx 32.45).528 A reação imediata de Moisés ao ver a orgia idólatra praticada pela comunidade israelita foi lançar as tábuas ao chão e quebrá-las diante do povo (v. 17). O ato de Moisés não era simplesmente uma reação espontânea de ira, na qual ele quebrou as tábuas apenas porque estavam em suas mãos ... o ato de Moisés de destruição das tábuas simbolizava de modo muito vigoroso o significado potencial da ação dos israelitas na construção do bezerro. No mesmo momento em que Deus concedeu as tábuas da aliança através de Moisés, o povo quebrou as condições da aliança e tornou-a potencialmente nula e vazia.529

Como E. S. Kalland afirmou: “Os dois primeiros mandamentos das tábuas que foram fisicamente quebradas por Moisés, já tinham sido quebrados pela desobediência e idolatria do povo”.530 Essa ação de quebra das tábuas era a praxe no antigo oriente quando a aliança era transgredida pelo vassalo, requerendo a reescrita da aliança para a sua renovação.531 Após mencionar sua indignação contra o pecado do povo, Moisés não se preocupa em realizar uma descrição minuciosa dos fatos decorrentes, mas faz um salto narrativo 532 para o momento em que intercedeu pelo povo prostrado diante de Yahweh (‫)וָאֶתְ נַפַל ִל ְפנֵי י ְהוָה‬ durante outros 40 dias e 40 noites, em completo jejum (‫ׁשתִיתִי‬ ָ ‫ ) ֶ֚ ֶלחֶם לא ָא ַַ֔כ ְלתִי ּו ַמי ִם לא‬e em total dependência do Senhor533 (Dt 9.18. cf. Êx 34.28). O jejum de Moisés e sua intercessão intensa com a finalidade de desviar a ira do Senhor contra Israel534 revelam “sua unidade com a nação e seu horror diante do pecado dela”. 535 Seu papel mediatório e intercessório é explicitado ao

K. A. KITCHEN, “Calf, golden”. In: D. R. W. WOOD, I. H. MARSHALL (ed.), New Bible Dictionary, p. 158-159. Cf. Allen C. MYERS (ed.), Eerdmans Bible Dictionary, p. 430 (verbete “Golden Calf”). Ver também exemplo de idolatria hitita envolvida com a representação de um bezerro em GERMAN BIBLE SOCIETY, 1000 Bible images, verbete “Bull on a pedestal”. 528 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 152-154; Joseph BLENKINSOPP, “Deuteronomy”. In: JBC, v. 1, p. 108; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 136; K. A. KITCHEN, “Calf, golden”. In: D. R. W. WOOD, I. H. MARSHALL (ed.), New Bible Dictionary, p. 159. Alguns exegetas questionam se o deus representado era, de fato, YHWH. Cf. Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 195. 529 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 195. 530 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 80. 531 J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 136. 532 Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 115; Earl S. KALLAND. Op. cit., p. 80. 533 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 45. 534 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 338. 535 Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 279-280. 527

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final do verso 18: “por causa536 de todo pecado que cometestes, ao praticardes o que é mau aos olhos de YHWH, provocando-o à ira”.537 A segunda razão da intercessão é dada no verso 19: “Pois fiquei com medo diante do intenso furor com que se irou YHWH contra vós a ponto de querer destruí-los”.538 O “medo” de Moisés é descrito pelo verbo ‫יג ֹר‬, termo raro na Bíblia hebraica, geralmente ligado a desastres que assolam a vida de um indivíduo ou de uma nação (cf. Dt 28.60; Jó 3.25; 9.28). A desventura temida por Moisés era a destruição de Israel (‫ׁשמִיד ֶא ְתכֶם‬ ְ ‫) ְל ַה‬539 resultante da ação do Deus intensamente furioso 540 contra a prostituição idólatra de seu povo. Assim o temor de Moisés era realmente medo do próprio Yahweh541 e do castigo a ser aplicado por ele. 542 O jejum de Moisés no monte foi bem-sucedido e Yahweh ouviu sua oração, isto é, atendeu ao seu pedido (Dt 9.19b).543 Ela é descrita nos versos 25-29544 e a resposta de Yahweh em 10.11. A oração eficaz do profeta foi tão marcante na história de Israel, que é aludida na fala posterior de Yahweh a Jeremias (Jr 15.1).545 A ira de Yahweh se estendeu contra Arão a ponto de querer destruí-lo (Dt 9.20),546 pois “sobre ele repousava a responsabilidade imediata pelos pecados dos israelitas ... Arão assim ficou sujeito à ira de Deus e sua vida estava em perigo”.547 Ele teve um papel importante na promoção da idolatria entre o povo (Êx 32.1-6, 21-26), levando-o a tão grande pecado (32.21)548 e deixando o povo fora de controle (32.25). A oração de Moisés em favor do futuro sumo sacerdote da nação é mencionada apenas aqui em Deuteronômio 9.20 e revela quão “desprovido de mérito ... e quão dependente da misericórdia de Deus era um povo cujo sumo sacerdote tinha que ser resgatado da morte”.549 Como notaram Keil e Delitzsch:

A conjunção ‫ עַל‬aqui denota causa. Ver BDB, p. 754 (f.a). ‫ְהוֹּ֖ה ְל ַה ְכעִיסָֹֽו‬ ָ ‫ֲׁשר ֲחטָאתֶַ֔ ם ַלע ֲֶׁׂ֥שֹות ה ַ ָָ֛רע ְבעֵינֵ ֶׁ֥י י‬ ָ֣ ֶ ‫ ַ ֹ֤על כָל־ ַחּטַאתְ כֶםָ֙ א‬. Ver a nota do v. 18 em Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 81. 536 537

538

‫ׁשמִיד אֶתְ כֶם‬ ְ ‫כִי י ָג ְֹרתִ י ִמ ְפנֵי הַָאף ְו ַה ֵחמָה ֲאׁשֶר ָקצַף י ְהוָה ֲעלֵיכֶם ְל ַה‬

539

J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 136. Os termos ‫ הַָאף ְו ַה ֵחמָה‬ocorrem numa relação de hendíadis denotando a forte reação emocional de Yahweh contra o pecado da nação (Ver NET Bible, Dt 9.19, tn. 23). 541 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 187. 542 Ralph H. ALEXANDER, “‫”יג ֹר‬. In: DITAT, p. 591. 543 BDB, p. 1034, (1.j). 544 Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 280. 545 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 80. 540

546

‫ׁשמ ִָּ֑יד ֹו‬ ְ ‫ָּֽובְַאה ֲָּ֗ר ֹן הִתְ אַנַ ָ֧ף י ְהוָ ָ֛ה מ ְֹּ֖א ֹד ְל ַה‬

547

Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 196. C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 338. 549 J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 136. 548

91

É verdade que naquele tempo Arão ainda não era sumo sacerdote; mas ele já tinha sido colocado na liderança da nação em conexão com Hur, como representante de Moisés (Êx 24.14), e havia sido designado por Deus para o sumo sacerdócio (Êx 28.1).550

Ao final do parágrafo, Moisés descreve como destruiu o bezerro de ouro, que é chamado de forma depreciativa e sátira de “o vosso pecado” (‫( )אֶת־ ַחּטַא ְת ֶכם‬Dt 9.21).551 O fraseado do verso 21 se assemelha muito com a narrativa de Êxodo 32.20552 e, mediante a descrição do processo de aniquilação, “contrasta o bezerro de ouro como uma peça de metal feita por homens com o próprio Senhor como o Criador Todo-Poderoso”.553 Primeiramente, Moisés derreteu no fogo a imagem de ouro até perder sua forma (‫) ָו ֶאׂשְר ֹף א ֹתֹו ָבאֵׁש‬, então a esmigalhou até virar finas partículas como o pó ( ‫ואֶ כ ֹת א ֹתֹו טחֹון היטב ַעד‬ ‫ ) ֲאׁשֶר־דַ ק לְע ֶּ֑פר‬e enfim lançou o metal em pó no rio que descia do monte ( ‫ו ָּֽאַ ׁשְ לְִך אֶת־עֲפר ֹו אֶל־ ַהנַחַל‬ ‫( )הַי ֹרד מִ ן־ההר‬Dt 9.19). As ações seguidas de Moisés mostravam para o povo que a imagem fundida não passava de um metal precioso, sem qualquer significado sagrado real. 554 Ele dá o exemplo, de forma muito prática, do que a nação deveria fazer diante dos ídolos cananeus que encontraria na terra prometida (Dt 7.5, 25; 12.3)555 e ilustra a punição merecida pela nação por sua infidelidade: a completa destruição.556 O relato de Êxodo ainda acrescenta que o líder da nação a fez beber a água na qual o metal moído fora jogado, um exercício humilhante (Êx 32.20). À luz da análise exegética empreendida, a expressão “tive medo” (‫ )י ָג ְֹר ִתי‬de Deuteronômio 9.19, traduzida pela LXX como “estava aterrorizado” (ἔκφοβός ε μι), comunica o temor do mediador da aliança diante do Deus grandioso e temível, que se revelara de forma extraordinária no Sinai (cf. Dt 5.23-27), em sua resposta afetiva de fúria contra a idolatria depravada da nação israelita. 4.5. Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Deuteronômio 29.16-21

550

C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Op. cit., v. 3, p. 338. Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 280. 552 Comparar: “e tomei o bezerro” (‫קחְתִ י‬ ַ ‫( )אֶת־ ָה ֵָּ֗עגֶל ָל‬Dt 9.19) com “e tomou o bezerro” (‫( ) ַויִקַח אֶת־ ָה ֵעגֶל‬Êx 32.20); “e o queimei no fogo” ( ‫( ) ָו ֶאׂשְר ֹף א ֹתֹו ָבאֵׁש‬9.19) com “e queimou no fogo” (‫( ) ַויִׂש ְָ֣ר ֹף ָב ֵַ֔אׁש‬32.20); “e o esmaguei moendo-o bem até ficar fino como o pó” (‫ֶר־דק‬ ֹּ֖ ַ ‫( ) ָוא ֵֶ֨כ ֹת א ֹתֹוֹ֤ טָחֹו ָ֙ן הֵי ֵַ֔טב ַעֶׁ֥ד ֲאׁש‬9.19) com “e o moeu até que virou pó” (‫( ) ַויִט ַ ְֹּ֖חן עַד ֲאׁשֶר־דָ ק‬32.20). 553 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 80. 554 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 196. 555 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 136. 556 Jack S. DEERE, Op. cit., p. 280. 551

92

Os capítulos 29 e 30 são comumente vistos como uma seção maior do Deuteronômio, contendo o terceiro discurso de Moisés557 em que a renovação da aliança do Sinai é feita nas planícies de Moabe, antes da entrada em Canaã e da outra renovação que ali ocorreria posteriormente, sob o comando de Josué (Dt 27; Js 8.30-35).558 “A aliança é uma; as afirmações ou renovações de lealdade ao Senhor ... podem ser várias”. 559 Na primeira parte da renovação do pacto, há um sumário dos atos redentores de Deus no passado de Israel até o momento presente (29.1-8 [BHS 29.2-9]). “Com a perspectiva do tempo, os israelitas poderiam aprender a ver a presença de Deus na sua experiência passada, mas isso exigia insight e percepção”.560 Após o sumário, vem a convocação para que o povo entre em aliança com Yahweh, que estava sendo confirmada com Israel “hoje” (veja a ênfase na expressão ‫ הַיֹום‬- vv. 10, 12, 13, 15), acompanhada da explicação da natureza e do propósito daquele evento (29.9-15 [8-14]).561 Ainda no capítulo 29, Moisés adverte de forma veemente àqueles cujos corações não estavam totalmente consagrados ao Senhor e que poderiam ser uma raiz amarga no meio da nação, levando outros à idolatria (29.16-21 [15-20]).562 As consequências da idolatria e da infidelidade seriam devastadoras e o juízo de Yahweh sobre Israel se compararia com aquele derramado historicamente sobre a região de Sodoma e Gomorra, causando espanto nas nações (29.22-28 [21-27]).563 A revelação preciosa de Yahweh deveria ser guardada e seguida por todas as gerações israelitas que viveriam na terra de Canaã (29.29[28]). “A aliança de Javé com Israel revela o suficiente para que a nação disponha de um guia seguro para viver no presente, e a isto ela é chamada”.564

557

J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 266; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 446-447; Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 178-179; Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 354366; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 94-95. Concorde com a unidade maior da seção está Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 320. 558 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 178; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 266; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 446-447; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 95. 559 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 178. Cf. Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 243. 560 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 356. 561 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 447; Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 320; J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 268; Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 178. 562 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 719, 721; Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 314. 563 Jack S. DEERE, Op. cit., p. 314-315; Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 184-185. 564 J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 271. 93

Dentro da estrutura concêntrica de Deuteronômio 29, os versos 16-21 [15-20] constituem o centro dela. 565 O apelo contra a “raiz que produza fruto venenoso e amargo” (v. 18[17]), aludido pelo autor de Hebreus (12.15), deve ser visto dentro desta subseção do capítulo 29. O verso 16 [15] inicia com uma conjunção causal (

- “porque”)566 que aponta para

a razão ou o motivo da convocação feita ao povo para a renovação da aliança.567 O Sitz im Leben do Egito e a peregrinação “através das nações” (‫ֲׁשר ֲעב ְַר ֶתָּֽם‬ ֵ֥ ֶ ‫ )עבַ ְָ֛רנּו ב ֶ ְֵ֥ק ֶרב הַגֹו ִיֵּ֖ם א‬não são citados aqui não para lembrar os atos de Deus, como no começo do capítulo (cf. 29.2-8),568 mas para fornecer “o contexto geográfico e histórico para o reconhecimento do povo dos deuses daqueles lugares e da natureza da sua adoração”.569 Os israelitas não eram ingênuos quanto à natureza da idolatria e eles mesmos já tinham caído nessa armadilha durante o caminho pelo deserto (Dt 4.3-4; 9.8ss.; cf. Êx 32; Nm 25).570 Portanto, ainda que encontrassem uma forma estranha de adoração quando entrassem na terra prometida, “já haviam experimentado várias formas de culturas estrangeiras e deveriam estar equipados para lidar com elas”.571 Os ídolos das nações são retratados de forma fortemente depreciativa como ‫ׁש ֹ֣קּוציהֶם‬ ִ (“seus objetos detestáveis”) (v. 17 [16]), um termo que só ocorre aqui em todo o Pentateuco,572 mas é usado bastante pelos profetas do período neobabilônio, como Jeremias e Ezequiel (Jr 4.1; 7.30; 13.27; 16.18; 32.34; Ez 5.11; 7.20; 11.18, 21; 20.7, 8, 30; 37.23). Neste último,

é geralmente paralelo de

, algo repugnante e abominável para Deus (Ez

5.11; 7.20; 11.18).573 A crítica do profeta Ezequiel aponta para o fato de que os israelitas tinham se chafurdado na idolatria egípcia, em infidelidade a Yahweh, desde o começo de sua história como nação (Ez 20.7ss.). Um texto paralelo a Deuteronômio 29.17 [16] que chama a atenção é 2Reis 23.24, em que os vocábulos

e

são empregados de forma sinônima, como no último livro do

Pentateuco. Mas, enquanto Moisés alerta para os “objetos detestáveis” ( 565

Duane L. CHRISTENSEN, Op. cit., p. 720. BDB, p. 473-474. 567 Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 323. 568 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 721. 569 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 182. 570 Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 314. 571 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 358. 572 Samuel R. DRIVER, Op. cit., p. 323-324. 573 Ver BDB, p. 1055. 566

94

) e os

“excrementos” (

) vistos (‫ )וַתִ ְראּו‬no Egito (‫ ) ְבא ֶֶרץ ִמצְריִם‬e nas nações do caminho trilhado

por Israel (‫ֲׁשר ֲעב ְַרתֶ ם‬ ֵ֥ ֶ ‫) ְבק ֶֶרב הַגֹוי ִם א‬, o livro dos Reis observa que esses ídolos ( ‫ְואֶת־ ַה ִג ֻל ִָ֜לים ו ְֹ֣את‬

‫ש ֻק ִֹ֗צים‬ ִ ‫ )כל־ ַה‬eram vistos (‫ )נ ְִראּו‬na própria terra de Judá e em Jerusalém ( ‫ב ֶ ְֶ֤א ֶרץ י ְהּודה‬ ‫)ּוב ִֹ֣ירּוׁשלַ ִם‬. A expressão

denota um desprezo ainda maior, pois o termo, que vem do verbo

(“rolar”, “rolar abaixo”), 574 parece ser um disfemismo retratando os ídolos como excrementos (cf. subst.

– “fezes” em 1Rs 14.10; Sf 1.17).575 “O termo hebraico, cujo

sentido é coisas redondas, provavelmente alude ao esterco. Esses objeto eram tão censuráveis que se comparavam ao excremento”.576 O final do verso 17 [16] traz a conclusão de que os ídolos das nações não passam de pedaços de “madeira e pedra” decorados com “prata e ouro” (‫ֲׁשר עִמהֶ ָּֽם‬ ֵ֥ ֶ ‫)כֶ ֵ֥ סֶף וְז ֵּ֖הב א‬.577 A idolatria era algo tão pernicioso e sedutor que Moisés alerta a nação “para que não haja entre vós nenhum homem ou mulher, ou clã, ou tribo cujo coração hoje se afaste de Yahweh, nosso Deus”.578 O afastamento em foco no texto era a quebra do primeiro mandamento, em que o indivíduo ou um grupo inteiro deixaria o Deus da aliança para servir os deuses das outras nações (‫ֱלהי הַגֹו ִיֹ֣ם ה ֶּ֑הם‬ ֵּ֖ ‫)ל ֶ ֹ֣לכֶת ַלעֲב ֹד אֶת־א‬.579 Outras passagens do Deuteronômio já alertavam para o risco da infidelidade individual e grupal dos israelitas a Yahweh (Dt 13.7ss.; 17.2-7). “A exortação de Moisés era propícia; ele não tinha qualquer otimismo quanto às inclinações do povo (31.27, 29)”.580 A expressão “hoje” destaca a urgência da decisão de serem leais a Yahweh.

574

BDB, p. 164. Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 721. Outra possibilidade é que o termo seja uma linguagem depreciativa e satírica que compara os ídolos a bonecos inanimados, “imagens de bonecos” (inglês: “doll-images”), partindo do significado básico do termo como sendo “tora, bloco, coisa sem forma” (ver Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 324; Earl S. KALLAND, “ ”. In: DITAT, p. 269-270). 576 Eugene H. MERRILL, “Deuteronomy”. In: NLTSB, p. 356. 577 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 358; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 449. 575

‫ׁש ָ֩ר לְב ַּ֨ב ֹו פ ֶֹנֶ֤ה הַיֹום מעִם י ְהוֹ֣ה אֱלהינּו‬ ֶ ‫אֹו־ׁשבֶט ֲא‬ ֹ֗ ‫פֶן־יֹׁ֣ש ָּ֠בכֶם ִ ֹ֣איׁש אֹו־א ִָּׁ֞שה ַ֧אֹו ִמׁשְפ ֹ֣חה‬

578 579 580

Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 358. Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”, In: EBC, v.3, p. 182. 95

Os efeitos perniciosos da idolatria são ilustrados mediante a hipocatástase da “raiz que produz fruto venenoso e amargo”581 (v. 18b [17b]). O dois termos hebraicos ‫ר ֹאׁש ְו ַלעֲנה‬ ocorrem juntos em passagens proféticas do AT, e em Jeremias a ideia comunicada por trás da figura de linguagem é a de juízo divino contra impiedade da nação e de seus profetas (ver Jr 9.14ss.; 23.15ss.). Enquanto o primeiro termo comunica, predominantemente, o conceito de veneno (cf. Os 10.4; Dt 32.33; Jó 20.16),582 o segundo traz a ideia de amargo, visto que seu sentido básico é “absinto”,583 uma planta amarga (cf. Pv 5.4; Lm 3.15).584 Tendo em vista a advertência contra a idolatria nos versos anteriores (vv. 16-17 [1516]) e as consequências individuais e coletivas decorrentes dela nos versos seguintes (vv. 1928 [18-27]), é correto afirmar que “a idolatria é aqui descrita como uma planta que cria raízes e produz uma colheita de erva venenosa e amarga”.585 Há uma ênfase na solidariedade corporativa, em que o mal (retratado pelo politeísmo) penetra, corrompe e traz o juízo consequente a partir da ação de um indivíduo, família, clã ou tribo. Essa é uma “figura significativa e expressiva das amargas consequências que a idolatria traz no seu rastro, uma simples raiz escondida sendo a fonte de abundante fruto venenoso”.586 Essa integração de infidelidade parcial que se alastra e produz juízo coletivo, contida na “raiz que produz fruto venenoso e amargo”, foi muito bem assinalada por Peter Craigie: A ênfase é assim colocada sobre a natureza de Israel como uma comunidade de aliança, o todo dela era afetado, para o bem ou para o mal, pelas ações de seus constituintes. Como uma comunidade, Israel ficaria de pé ou cairia; como uma comunidade, o povo experimentaria bênção ou maldição.587

A aplicação do ensino do verso 18 [19] é desenvolvida a partir de 29.19, quando Moisés menciona um indivíduo que, ao ouvir o anúncio das maldições da aliança sobre os infiéis a Yahweh (‫( ) וְהיה בְׁש ְמע ֹו אֶת־דִ בְרי הָָּֽאלה ה ַֹ֗ז ֹאת‬cf. 28.15-68[15-69]), abençoa a si mesmo 581

Ver a mesma opção de tradução em NET Bible e outras traduções parecidas em BJ, ARA e Duane L. CHRISTENSEN, Op. cit., p. 719. A NVI entende a relação entre ‫ ר ֹאׁש ְו ַלעֲנ ָּֽה‬como uma hendíade e traduz “veneno amargo”. 582 O termo parece indicar alguma planta amarga e venenosa, que veio a ser sinônimo de “veneno” (ver William WHITE, “ ”. In: DITAT, p. 1389; Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 325). Keil, erroneamente, diz que o termo só é usado com o sentido de veneno em Jó 20.16, ignorando Dt 32.33, outra passagem que claramente apresenta este significado (C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 449; Ver BDB, p. 912). Obviamente não comunica apenas “veneno”, mas também algo “amargo” como em Sl 69.22. 583 BDB, p. 542. 584 Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 358, nota 13. Provérbios 5.4 chama a atenção por fazer essa relação muito claramente: “seu fim é amargo como o absinto” (‫)וְַאח ֲִריתּה מרה כַ ָּֽ ַלעֲנה‬. 585 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 270. 586 Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 324-325. 587 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 358. 96

em seu coração (‫) ְוהִתְ ב ַּ֨רְך ִבלְב ֶ֤ב ֹו לאמ ֹר‬: “Haverá paz para mim, ainda que eu persista na obstinação perversa do meu coração” (‫( )ׁשלֹ֣ ֹום ִי ָּֽ ְהיֶה־ ִלי ִכָ֛י ִבׁש ְִר ֵ֥רּות ל ִ ִֵּ֖בי‬v. 19).588 O texto lida com a grande possibilidade de que alguém, presente na renovação da aliança, viesse a decidir continuar em sua devoção idólatra, 589 no anonimato, pensando que por Israel ser o povo de Deus, ele estaria seguro e livre de qualquer juízo.590 Ao contrário do que pensa este indivíduo, sua decisão de seguir com a idolatria provocaria “a completa ruína da nação”. 591 “A ilusão da pessoa trará uma calamidade que levará tudo à ruína”. 592 Essa total destruição é prevista pelo ditado, ao final do verso 19 [18], “a fim de593 destruir o irrigado com o seco” (‫)לְמַ ָ֛ עַן סְפֵ֥ ֹות הרוֵּ֖ה אֶת־ ַהצְמאָּֽה‬. O verbo apresenta a ideia básica de “abrir espaço – mediante o processo tanto de amontoar como de desfazer-se ... Em geral, emprega-se a raiz num sentido hostil, especialmente em contextos de juízo”.594 O aspecto de destruição como juízo divino é, mais provavelmente, o sentido do ditado,595 e alcança todos em Israel, tanto os inocentes como os outros que beberiam do mesmo veneno da apostasia (“o irrigado e o seco”).596 Os atos perversos do idólatra colocaria todos da nação em perigo. “Longe de ser anônimo, cada indivíduo carregava a pesada carga da responsabilidade por toda comunidade”. 597 A parte final da porção textual em análise anuncia as consequências da idolatria sobre o próprio indivíduo infiel (vv. 20-21 [19-20]). O próprio Yahweh, por um ato de sua vontade, não quererá598 perdoar o desobediente obstinado (‫ְלח לֹו‬ ָּֽ ַ ‫)לא־י ֹאבֶה י ְהוה ס‬.599 “Nenhuma Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 182. Ver o sentido negativo de ‫ ִבׁש ְִר ֵ֥רּות ל ִִֵּ֖בי‬em Jr 3.17; 11.8; 13.10; 16.12; 23.17; Sl 81.12[BHS 81.13] (cf. Idem, p. 184; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Op. cit., v. 3, p. 449). 589 Samuel R. DRIVER, A critical and exegetical commentary on Deuteronomy, p. 325. 590 Jack S. DEERE, “Deuteronomy”. In: BKC, v. 1, p. 314; Peter C. CRAIGIE, The book of Deuteronomy, p. 358-359. 591 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 270. 592 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 721. 593 O BDB assinala que a função de ‫ לְמַ ָ֛ עַן‬na passagem é ironizar o curso de ação do indivíduo idólatra como se ele tivesse planejado tal resultado, ainda que o ocorrido não fosse seu intento, na verdade o contrário do que pensou (Ver BDB, 775.). 594 R. D. PATTERSON, “ ”. In: DITAT, p. 1053. 595 Ver o uso de abarcando a ideia do juízo destruidor divino em Gn 18.23-24; 19.15-1; Nm16.26; Sl 40.15; Jr 12.4. Chama a atenção o fato de que as passagens do Pentateuco levantam a temática da punição destruidora do ímpio em distinção do tratamento do justo (Gn 18.23-24; 19.15-1; Nm16.26) ou o derramamento da ira divina sobre Israel por causa do pecado de parte da comunidade (Nm 32.14). 596 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 449; Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: EBC, v. 3, p. 182-183; Duane L. CHRISTENSEN, Op. cit., p. 721; Samuel R. DRIVER, Op. cit., p. 325; J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 270. 597 Peter C. CRAIGIE, Op. cit., p. 359. 598 BDB, p. 2. 588

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outra condição mais terrível pode ser imaginada”. 600 Esta decisão de Yahweh é testificada mais à frente no período do exílio: “Nós transgredimos e fomos rebeldes, e tu não nos perdoaste” (Lm 3.42). Em lugar de desfrutar da graça leal do Senhor, o idólatra conheceria o fumegar de sua ira (cf. Sl 74.1) e de seu zelo, “a punitiva retribuição que Deus exerce contra seu povo apóstata” (cf. Dt 4.23-24).601 Todas as maldições (‫ל־הָאלה‬ ֹ֣ ‫ ;כ‬cf. Dt 30.7; 2Cr 34.24; Is 24.6)602 descritas em Deuteronômio 28.15-68 cairão sobre esse membro da aliança ( ‫ְתּובה ב ַֹ֣ספֶר‬ ֵּ֖ ‫ל־הָאלה ַהכ‬ ֹ֣ ‫ו ְֶ֤רבְצה בֹו כ‬

‫ ) ַה ֶזֶּ֑ה‬até apagar seu nome de debaixo do céu (‫( )ּומ ֶ֤חה י ְהוה אֶת־ׁשְמ ֹו ִמ ַ ֵּ֖תחַת הַש ָּֽמי ִם‬Dt 29.20[19]). Tal fim vergonhoso seria causado pelo próprio Yahweh, que assim trata seus inimigos (Dt 25.19; cf. Êx 17.14). Esse destino era temido “por todo homem em Israel que desejasse ver seu nome lembrado por sua posteridade”.603 Ao contrário do uso comum do verbo

, em

Deuteronômio, que marcava a separação de Israel como povo escolhido de Yahweh (cf. 4.41; 10.8), o apóstata será separado para desgraça (‫( ) ְו ִהבְדִ ילֶ֤ ו י ְהוה לְרעה‬v. 22[21]; cf. Am 9.4).604 As maldições invocadas irresponsavelmente serão derramadas sobre o infiel (v. 22 - ‫כְכ ֹל ָאלֹ֣ ֹות‬

‫ ; ַהב ְִרית‬cf. 27.12ss.). A análise da passagem esclarece o sentido e a significância de “raiz que produz fruto venenoso e amargo”, isto é, uma parte da comunidade da aliança (um indivíduo, família ou até mesmo uma tribo) que não tem um coração completamente devotado a Yahweh, pois serve a outros deuses, e contamina outros membros do povo de Israel com sua infidelidade, trazendo o juízo destruidor divino sobre a nação. A natureza corruptora da idolatria exigia a eliminação do mal em sua raiz (cf. Dt 17.7).

599

J. A. THOMPSON, Op. cit., p. 270. Earl S. KALLAND, Op. cit., p. 183. 601 G. SAUER, “ ”. In: TLOT, v. 3, p. 1147. 602 BDB, p. 46. 603 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 270. O ato de “apagar o nome” estava ligado à destruição da família e descendência do violador da aliança (Ver John WALTON, Victor H. MATTHEWS (eds.), The IVP background commentary: Genesis-Deuteronomy, p. 265). 604 Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 722. 600

98

5.

UMA COMPREENSÃO DO CONTEXTO E DO SENTIDO DA PROFECIA DE AGEU 2.6-9 Após observar as diferenças e semelhanças entre o texto da LXX e do TM de Ageu

2.6 e compará-los com Hebreus 12.26 (cap. 3), este capítulo tenciona investigar o sentido e significância que a passagem profética de Ageu 2.6-9 teve em seu contexto primário.605 Questões de natureza histórica e literário-teológica que cercam o livro serão observadas, abrindo o caminho para a análise exegética da porção bíblica em estudo. 5.1. O Contexto Histórico do livro de Ageu O edito de Ciro, em 538 a.C., que permitia aos povos de todo o império medo-persa retornarem para a sua terra de origem e ali reconstruírem suas vidas bem como os santuários de seus deuses,606 foi certamente um grande incentivo para os judeus piedosos voltarem à Palestina a fim de recomeçarem suas vidas.607 Além disso, o templo de Salomão, símbolo da vida religiosa nacional, seria reconstruído (Ed 1.1-4), pois havia se passado quase cinquenta anos desde a sua destruição por Nabucodonosor (587/86 a.C.) e até então permanecera em ruínas. 608 Cerca de cinquenta mil judeus voltaram a Jerusalém, em 537 a.C., liderados por Sesbazar e Zorobabel, trazendo consigo os objetos do templo de Yahweh (Ed 1.5 – 2.70).609 Pouco tempo depois de chegarem à cidade, o povo deu início à reconstrução do santuário e celebraram com intensa alegria o momento em que seus alicerces foram finalmente estabelecidos (Ed 3.7-10).610 Todavia, quando os samaritanos, que habitavam a região ao redor, se propuseram a ajudar na reconstrução templo e foram rechaçados pelos líderes judeus, logo uma forte oposição começou (Ed 4.4-5). Os inimigos dos judeus recorreram ao imperador persa e, acusando-os de serem rebeldes em potencial, conseguiram autorização 605

Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 322; Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 424. Roland K. HARRISON, “Haggai”. In: Merril C. TENNEY (ed.), The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, p. 11-12; Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 570. 607 Ver John BRIGHT, História de Israel, p. 431-432. 608 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 9; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 423. 609 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 1-2; F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 15361537. 610 Herbert WOLF, Op. cit., p. 9. 606

99

para interromper a obra de reconstrução do templo, que ficou parada até o segundo ano do reinado de Dario I Histapes.611 Nesse ínterim, a Pérsia experimentara algumas agitações de vassalos rebeldes e mudanças políticas.612 Um novo imperador, Dario I (522/21-486 a.C.)613, não pertencente à dinastia vigente, assumira o poder após a morte de Cambises (530-522 a.C.), filho de Ciro.614 Apesar do interesse de Dario em restabelecer a religião dos povos de seu império, os habitantes de Jerusalém se encontravam apáticos depois da oposição que sofreram e diante da situação de pobreza que os cercava, não demonstrando o vigor necessário para assumirem o retorno da obra paralisada do templo. 615 Dentro deste contexto de indiferença espiritual, no segundo ano do reinado de Dario I (520 a.C.),616 emerge na história de Judá o profeta Ageu que, com sua mensagem firme e encorajadora, promove a continuidade da construção do santuário de Yahweh, estagnada há mais de uma década, cuja conclusão ocorreu cinco anos depois, em 515 a.C.617 Pouco se sabe sobre a história de Ageu, seus ancestrais não são mencionados e ele mesmo não consta em nenhuma lista genealógica pós-exílica (cf. Ed 2; Ne 7; 12).618 Sem qualquer referência à sua família ou ao local de origem, 619 Ageu é sempre tratado como ‫חַגַ ָ֣י‬ ‫“( ַהנָ ִָּ֗ביא‬Ageu, o profeta”), tanto dentro de seu livro (ver Ag 1.1, 3; 2.1, 10) como fora dele (Ed 5.1; 6.14).620 Talvez, como Joyce Baldwin observou, a ausência da ascendência do profeta nas notas introdutórias das profecias contidas no livro podem indicar que o pai do profeta caíra no esquecimento, que havia poucos profetas e, portanto, a expressão “o profeta” era 611

J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 12-13. T. V. BRISCO, Holman Bible atlas, p. 166. 613 A datação do início do reinado da Dario varia entre 522 e 521 a.C. Obras que consideram 522 a.C. como a data inicial do governante persa são Eugene H. MERRILL, História de Israel no Antigo Testamento, p. 525; John BOARDMAN, et al, The Ancient Cambridge History, v. 4, p. 172; John BRIGHT, História de Israel, p. 441-442. Para a datação mais recente, ver Allen C. MYERS (ed.), Eerdmans Bible Dictionary, p. 260. (Verbete “Darius”). 614 Carlos Osvaldo PINTO, “História e Interpretação em Ageu 2.20-23”. p. 4-5; Carroll STUHLMUELLER, “Haggai”. In: JBC, v. 2, p. 387. 615 SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL, Bíblia de Estudo Almeida Revista e Atualizada. Ver a introdução ao livro de Ageu. (Versão Eletrônica). J. MCILMOYLE, “Ageu”. In: Francis DAVIDSON (ed.), O Novo Comentário da Bíblia, p. 908. 616 F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1538; Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 11; Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 945. 617Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 570-571; J. G. BALDWIN, Op. cit., p. 21. Andrew HILL, “The book of Haggai”. In: NLTSB, p. 1518, 1520. 618 Roland K. HARRISON, Op. cit., p. 944; David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 18. 619 Apenas outros dois Profetas Posteriores também não recebem essa identificação: Amós e Habacuque. 620 Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 37; Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 3. Nas duas passagens de Esdras, sua qualificação ocorre em aramaico: ‫ ַחגַי נְבִיָאה‬. 612

100

suficientemente específico para identificá-lo, e que ele era bem conhecido no meio de seu povo.621 O responsável pelo livro de Ageu parece intencionalmente evitar questões biográficas e genealógicas de modo a focalizar a atenção do leitor sobre a ação de Ageu enquanto profeta autorizado. Não era a história pessoal, mas a palavra de Yahweh que serviu a essa finalidade. 622

A etimologia do nome do profeta parece relacionar-se com o termo hebraico ‫חַג‬, que significa “festa” ou “festival”. 623 A razão para este nome é provavelmente o fato de Ageu ter nascido numa ocasião ou dia festivo.624 Outros nomes com a mesma raiz também ocorrem no AT: Hagite, esposa de Davi e mãe de Adonias (2Sm 3.4; 1Rs 1.6; 1Cr 3.2); Hagias, levita do clã de Merari (1Cr 6.30); e Hagi, um dos filhos de Gade (Gn 46.16; Nm 26.15). 625 Há certa discussão quanto à idade do profeta durante o ministério registrado no livro, sua condição de vida no exílio e sua ocupação. Vários comentaristas defendem que Ageu já era idoso quando proferiu os discursos contidos no livro, baseados na tradição judaica e na referência ao templo de Salomão em 2.3. 626 Todavia, o texto não é claro 627 e é mais provável que, em Ageu 2.3, o profeta estivesse “evocando memórias de sua audiência do que aludindo às suas próprias recordações de infância”.628 “Sua própria pergunta em 2.3 (‘Quem dentre vós, que tenha sobrevivido, contemplou esta casa na sua primeira glória?’) se sugere algo ... indica que ele não estava entre eles, tendo talvez nascido na Diáspora”. 629 A ausência do nome de Ageu na lista de exilados que retornaram para Jerusalém (Ed 2; Ne 7; 12) levou estudiosos, como W. A. Beuken, a proporem a teoria de que o profeta foi

621

J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 22. Ver também Tremper LONGMAN III, Raymond B. DILLARD, Introdução ao Antigo Testamento, p. 402. 622 David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 18-19. Cf. Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 3 623 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 777; BDB, p. 291; Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 23. 624 Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 4; Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 944; Gleason ARCHER Jr., A survey of Old Testament Introduction, p. 469. Um nome pósexílico paralelo é “Sabetai” (Ed 10.15), provavelmente por ter nascido em um dia de sábado. 625 David L. PETERSEN, Op. cit., p. 17; J. G. BALDWIN, Op. cit., p. 22. 626 Quanto à posição da tradição judaica, ver Eli CASHDAN, “Haggai”. In: A. COHEN, S. M. LEHRMAN, E. CASHDAN, The Twelve Prophets: Hebrew text and English translation with introductions and commentary, p. 254. Essa posição é encarada como provável por exegetas atuais: Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 777-778; J. G. BALDWIN, Op. cit., p. 22; também Tremper LONGMAN III, Raymond B. DILLARD, Op. cit., p. 403; Pieter A. VERHOEF, Op. cit., p. 6. 627 C. F. KEIL, The twelve Minor Prophets, p. 167; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 1. 628 Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Op. cit., p. 41. Ver também Roland K. HARRISON, Op. cit., p. 945; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 425. 629 Eugene H. MERRILL, Op. cit., p. 23. (itálico acrescentado). 101

um dos fazendeiros deixados em Jerusalém, após a deportação.630 Beuken argumenta que o conhecimento profundo de Ageu das circunstâncias agrícolas de seu tempo reforça essa teoria. Uma proposta parecida é a de H. W. Wolff, que compreende Ageu como parte da população rural crescida em Judá depois que a massa do povo fora exilada da terra. 631 O argumento de Beuken tem sido rejeitado tanto porque as adversidades agrícolas descritas pelo profeta são mais provavelmente extraídas das maldições da aliança contidas na lei (Cp. 1.6, 9; 2.6-7 com Lv 26 e Dt 28),632 como pelo fato da ausência de seu nome nas listas dos retornados indicar mais provavelmente que o profeta fosse ainda criança no momento do retorno.633 Essa última conjectura tem levado estudiosos, como R. K. Harrison, a proporem que Ageu nasceu durante o exílio e veio ainda menino para a terra de seus pais. 634 Apesar de certas propostas fazerem sentido, elas são apenas especulações, de forma que “nós realmente não temos nenhuma evidência convincente acerca da vida anterior de Ageu e devemos reconhecer que simplesmente não sabemos”. 635 O mesmo se aplica para a teoria de que Ageu era um sacerdote com base na tradição cristã e na sua associação com o templo de Jerusalém. G. Mitchell cita Doroteu e Epifânio, dois escritores cristãos do período patrístico, que sugeriam ser o profeta da linhagem sacerdotal. 636 Essa tradição tem sido unida ao fato de que alguns Salmos na LXX (Sl 137, 145-148) e na Vulgata (111, 145-146) atribuem autoria a Ageu e a Zacarias, para apoiar a tese de que o primeiro era sacerdote.637 Porém, essas “identificações carecem de um suporte adequado dos manuscritos e parecem ser adições secundárias baseadas em tradições populares. Sua credibilidade histórica não pode ser tomada como certa”.638

630

W. A. M. BEUKEN, Haggai-Sacharja 1 - 8: Studien zur Überlieferungsgeschichte der frühnachexilischen Prophetie, p. 221-229. 631 Hans Walter WOLFF, Haggai: a commentary, p. 17, 38, 40. A proposta de Wolff conta com certo apoio de Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 41. 632 David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 18; Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 7. 633 Pieter A. VERHOEF, Op. cit., p. 7. 634 Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 945. Ver apoio em Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 23. 635 Pieter A. VERHOEF, Op. cit., p. 7. 636 Hinckley G. MITCHELL, “A critical and exegetical commentary on Haggai and Zechariah”. In: Hinckley G. MITCHELL, John M. P. SMITH, Julius A. BEWER, A critical and exegetical commentary on Haggai, Zechariah, Malachi and Jonah, p. 25-26. 637 Posição citada em, mas não defendida por, Pieter A. VERHOEF, Op. cit., p. 7; Hinckley G. MITCHELL, Op. cit., p. 25-26. 638 Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Op. cit., p. 39. Cf. Tremper LONGMAN III, Raymond B. DILLARD, Introdução ao Antigo Testamento, p. 402. 102

As datas de todas as profecias do livro são mencionadas com detalhes, refletindo a preocupação cronológica característica dos registros históricos durante os impérios neobabilônio e persa,639 que é encontrada também em outros profetas pós-exílicos (cf. Ez 1.12; 8.1; 20.1; 24.1; 26.1; et al; Dn 1.1; 2.1; 7.1; 8.1; 9.1; 10.1) e nos livros históricos bíblicos dessa época (cf. Ed 1.1; 3.1, 6, 8; et al; Ne 1.1; 2.1; 5.14; 6.15; et al). 640 Assim, pode-se saber a data exata de cada uma das mensagens de Ageu, especialmente com dados arqueológicos que permitem sincronizar o antigo calendário lunar com o calendário juliano: 641 Referência

Reinado de Dario I

Mês Judaico

Calendário Juliano

Ag 1.1

1º. dia do mês 6, ano 2

Elul

29/Agosto/520 a.C.

Ag 1.15

24º. dia do mês 6, ano 2

Elul

21/Setembro/520 a.C.

Ag 2.1

21º. dia do mês 7, ano 2

Tisri

17/Outubro/520 a.C.

Ag 2.10, 20

24º. dia do mês 9, ano 2

Kislev

18/Dezembro/520 a.C.

As profecias do livro cobrem um período bem curto, cerca de quatro meses, mas foram suficientes para promover a motivação inicial que o povo precisava para a reconstrução do templo de Yahweh. Zacarias, contemporâneo de Ageu, deu continuidade a esse papel profético de encorajamento no desenvolvimento da obra em Jerusalém (cf. Ed 6.14).642 Não se sabe o que sucedeu com Ageu após o ministério descrito em seu livro, mas o silêncio quanto ao término da construção sugere que ele morreu antes de 515 a.C.643 A curta extensão do livro torna “quase ridículo suspeitar de sua unidade”. 644 Ainda assim, o crítico radical P. L. Redditt sustenta que há ecos da genuína voz de Ageu no livro, 639

Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 2. Ver exemplos em D. J. WISEMAN, Chronicles of Chaldean kings (625-556 a.C.) in the British museum. 640 Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 9-10. 641 Ver apoio para a datação da tabela em Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 572; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 777; Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 9; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 425-426; J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 23; Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 5. 642 F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1538; Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 42. 643 Cf. Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Op. cit., p. 41-42; Hinckley G. MITCHELL, “A critical and exegetical commentary on Haggai and Zechariah”, p. 27; Thomas L. CONSTABLE, Op. cit., p. 1; Pieter A. VERHOEF, Op. cit., p. 6. 644 Hinckley G. MITCHELL, Op. cit., p. 28. 103

mas a forma presente da obra é resultado do trabalho de um editor ou redator posterior, que moldou a mensagem do profeta como hoje é lida. 645 Um dos ataques mais antigos à autenticidade do texto foi feito por L. E. Tony André, que defendeu a tese de que o autor do livro é uma figura anônima e o profeta é chamado de Ageu por causa das datas festivas em que suas profecias ocorreram.646 Alguns estudiosos conservadores defendem a historicidade do profeta, mas argumentam que o livro fora escrito por um editor que coletou as mensagens do profeta e as registrou antes do final do século VI a.C., até mesmo logo depois de 520 a.C.647 A favor da datação da escrita próxima ao período em que os oráculos foram pronunciados podem-se alistar as seguintes evidências do próprio livro. O término da construção do segundo templo (515 a.C.) não é mencionado na obra e, desde que a edificação do santuário de Yahweh é o “propósito primário da pregação de Ageu”, 648 é razoável supor que ela seria mencionada, caso o livro fosse escrito depois desse evento. 649 Em segundo lugar, não há qualquer referência histórica sobre o que ocorre com Zorobabel após a profecia de 2.20-23, que atribui a ele, de forma tipológica, grandes expectativas políticas. 650 Ainda, o imperador persa Dario I é simplesmente mencionado como “Dario, o rei”, sem qualquer explicação maior, o que sugere que os leitores da obra estavam politicamente debaixo do domínio desse rei e que o autor não tem qualquer noção da existência de Dario II, governante persa posterior.651 É legítimo, portanto, concluir que, muito provavelmente, o próprio profeta Ageu é o autor do livro que recebe seu nome,652 ainda que a obra possa ter recebido pequena edição não muito posterior à sua redação: “a possibilidade de que o próprio profeta foi o autor do livro e que ele forneceu sua história numa forma estritamente objetiva não deve ser de modo algum

645

P. L. REDDITT, Haggai, Zechariah and Malachi, p. 11. L. A. T. ANDRÉ, Le prophete Aggée: introduction critique et commentaire, p. 8. 647 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 23-24; Pieter A. VERHOEF, Op. cit., p. 10. 648 Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 53. 649 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 2; Adrew HILL, “The book of Haggai”. In: NLTSB, p. 1519. 650 Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Op. cit., p. 53. 651 Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 10; Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Op. cit., p. 53. 652 Em apoio a essa posição estão Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 571-572; Adrew HILL, “The book of Haggai”. In: NLTSB, p. 1519; Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Op. cit., p. 49-54; Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p 16-18. 646

104

descartada”.653 “Não há nada no estilo, forma, vocabulário e conteúdo do livro de Ageu que o impeça de ter vindo completamente, na forma em que se encontra, do próprio profeta”.654 5.2. O Contexto Literário-Teológico do livro de Ageu A obra de Ageu tem um cunho mais narrativo do que outros profetas do AT, mas também apresenta porções poéticas. 655 Ainda que “falte a Ageu o poder poético apresentado pela maioria dos profetas”, seu “estilo não é pura prosa: seus pensamentos, por exemplo, não sem frequência, moldam-se em cláusulas paralelas tais como aquelas comuns à poesia hebraica”. 656 Como destacou David L. Petersen: “O livro de Ageu descreve o efeito da fala profética como parte de um processo em desenvolvimento [...] a pessoa responsável pela forma final do livro estava interessada no processo e não apenas na proclamação”. 657 Este processo é bem delineado por Joyce Baldwin como dois ciclos: (1) confrontação profética (1.1-11), reação dos líderes e do povo (1.12-14) e garantia do sucesso final (2.1-9); (2) confrontação profética (2.10-17), reação dos líderes e do povo (2.18-19) e garantia do triunfo de Deus no final mediante o governante davídico (2.20-23).658 Como essa sequência de palavras proféticas e suas respostas sugerem, Ageu estava preocupado não apenas com a construção física, mas com a resposta psicológica do povo à reconstrução, com a responsabilidade sacerdotal e com a ordem civil.659

Os traços poéticos do livro são vistos: na moldura quiasmática de 1.4, 9-10; 2.23; no ritmo métrico de 1.3-6, 8; 2.4-5, 21-23;660 nos paralelismos antitéticos de 1.6, 11; na repetição sucessiva “Seja forte!” (‫ ) ֲחזַק‬em três versos de 2.4; e nas várias rimas e jogos de palavras como ‫ׂשתַ כֵר‬ ְ ‫( ַה ִמׂשְתַ כֵר ִמ‬1.6), ‫( עַל־כֵן ֲעלֵיכֶם‬1.10), ‫( ַאחַת ְמעַט‬2.6). Outra característica literária marcante do escrito é a repetição, como o uso de ‫ ׂשִ ימּו ְל ַב ְבכֶם‬em quatro versos do livro (1.5, 7; 2.15, 18), como a duplicação de ‫ לִי‬em 2.8 e como o refrão encontrado algures na obra, indicando a origem da mensagem de Ageu: ‫כ ֹה ָא ַמר י ְה ָוה‬.661

653

Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 946-947. Harrison está mencionando com aprovação a posição de Otto Eissfeldt. 654 Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 18. 655 Roland K. HARRISON, Op. cit., p. 946-947. 656 Samuel R. DRIVER, An introduction to the literature of the Old Testament, p. 344. 657 David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 33. 658 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 25. 659 David L. PETERSEN, Op. cit., p. 33. 660 Eugene H. MERRILL, Op. cit., p 16. 661 Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 573-574. 105

A obra gira em torno de quatro profecias proferidas em três momentos diferentes da história do povo de Judá, todas no segundo ano do rei Dario (1.1; 2.1, 10, 20 - ‫ׁש ַתי ִם‬ ְ ‫בִׁשְ נַת‬ ‫)לְד ְריוֶׁש הַמֶ לְֶך‬.662 Na primeira parte do livro (1.1-15), o profeta confronta a nação de Judá por sua letargia espiritual e indiferença pela reconstrução do templo,663 que representava a habitação de Yahweh, o Deus de Israel (Êx 25.8; Dt 12.1-14; Jr 7.11).664 Conclui-se que a honra do Senhor estava ligada à reconstrução do templo. As nações deveriam saber com certeza total que o Deus de Israel não deixara de existir quando os israelitas foram expulsos da sua terra [...] Enquanto o templo estava em ruínas não havia nenhum sinal externo da presença de Deus no meio da comunidade restaurada.665

O grande problema destacado no texto é que os judeus estavam perseguindo “desenfreadamente o seu conforto material enquanto adiavam ad nauseam seu compromisso religioso”

666

(cf. 1.4, 9). O povo de Judá estava preocupado em morar em “casas de fino

acabamento” (1.4, NVI - ‫)בְבתיכֶם סְפּונִים‬, enquanto a casa de Yahweh permanecia em ruínas (1.4 - ‫) ְו ַה ַבי ִת ַהז ֶה חרב‬.667 Como claro sinal do desagrado divino pelo desprezo para com o símbolo da presença de Yahweh entre seu povo, Ageu podia apontar para a crise econômica da nação, para a seca e a fome, numa linguagem alusiva de Deuteronômio 28.38-40 (1.5-6, 10-11).668 O Deus de Israel continuava a se relacionar com seu povo com base em sua aliança, cujas bênçãos e maldições estavam estabelecidas na lei (cf. Lv 26 e Dt 28).669 O chamado profético, portanto, foi para que a nação judaica reavaliasse seus caminhos e mudasse de atitude,670 voltando a construir o santuário do Senhor (1.5, 7-8).671 De forma não tão comum na história da profecia israelita, os líderes e o povo judeus responderam prontamente à repreensão de Ageu e três semanas depois, reiniciaram a

662

Tremper LONGMAN III, Raymond B. DILLARD, Introdução ao Antigo Testamento, p. 404; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 427-429; Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 945. 663 Roland K. HARRISON, “Haggai”. In: Merril C. TENNEY (ed.), The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, p. 13-14; Andrew HILL, “The book of Haggai”. In: NLTSB, p. 1518-1519. 664 Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 34-35. 665 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 16. 666 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 779. 667 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 3. 668 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 12. 669 Carlos Osvaldo PINTO, Op. cit., p. 779. 670 Ver a repetida expressão nos versos 5 e 7: ‫ְכֵּ֖ם עַל־דַרְ כיכֶ ָּֽם‬ ֶ ‫ִ ֵ֥שימּו ְל ַבב‬ 671 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 31-32. 106

construção do templo (1.14-15).672 O profeta lhes garantiu que Deus estava com eles (1.13 -

‫) ֲאנִי אִתְ כֶם נְאֻם־י ְהוה‬. A segunda mensagem do livro (2.1-9) é uma palavra de encorajamento para o povo judeu, especialmente aqueles que viram a glória do templo anterior de Salomão. A situação de extrema pobreza da Judá contemporânea de Ageu levou muitos ao desânimo e desapontamento na consecução da obra, ao perceberem a enorme diferença de esplendor e majestade entre os dois templos. 673 Ageu, então, encoraja os líderes e o povo (ver o triplo uso do imperativo verbal ‫ – ֲחז ַק‬2.4) a continuarem seu trabalho.674 O profeta apresenta dois motivos como fundamentos para sua exortação. Primeiramente, Deus estava com seu povo (novamente em 2.4 - ‫ ) ֲאנִי אִ תְ כֶם נְאֻם י ְהוה צְבאֹות‬e manifestaria sua presença por meio do seu Espírito conforme a aliança feita desde a saída de Israel da terra do Egito (2.4-5; cf. Êx 29.45-46; 33.12-17; Is 63.7-14).675 Em segundo lugar, ele anuncia uma ação divina de âmbito universal, em que Deus faria “tremer o céu, a terra, o mar e o continente”, e tornaria aquele templo um santuário glorioso por meio dos ricos presentes das nações que seriam trazidos até o local (2.6-9).676 Esta certeza da salvação do Senhor no presente e no futuro permeia a mensagem de Ageu e põe nele a marca do verdadeiro profeta. Ele é capaz de ver as paredes nuas do templo em seu estado momentâneo revestidas de prata e de ouro presenteados pelas nações.677

O texto de Ageu 2.10-19 contém o terceiro oráculo do profeta, em que ele lança mão de uma pergunta, novamente, como introdução para a sua mensagem (2.10-13; cf. 2.2-3). Ele indaga aos sacerdotes sobre questões ligadas à pureza cerimonial, mostrando que a santidade de uma oferta não tornava os objetos que nela tocavam santos, mas por outro lado, qualquer toque de alguém impuro em um objeto ou pessoa, os tornava tão impuros como quem os tocou (2.10-13; cf. Lv 11.28; 22.4-7).678 Tal analogia servia para mostrar que o povo de Israel também permanecera impuro enquanto o templo de Deus, no meio deles, continuava em ruínas após ser profanado pela destruição de 587 a.C. (2.14-17).679 “O esqueleto do templo

F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1536. Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 158. 673 Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 946. 674 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 780. 675 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 492-293. 676 Esse trecho de Ageu 2.6-9 será analisado no subponto seguinte. 677 J. G. BALDWIN, Op. cit., p. 26. 678 F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1542-1543. 679 Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament, p. 946. 672

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era como um cadáver que se decompunha em Jerusalém e contaminava tudo”. 680 Tal condição apontava também para a própria impureza do povo com sua desobediência, a qual contaminava seu trabalho e sua adoração.681 O povo havia sido poluído pela desobediência e por sua letargia em reconstruir o templo. Por conseguinte, tudo quanto tocava ficava poluído e, consequentemente, a bênção de Deus fora suspensa de seus esforços e possessões (ver versículos 16, 17).682

Agora, todavia, com a clara demonstração de arrependimento por parte da nação e sua pronta obediência, Deus voltaria a abençoá-los e restauraria sua sorte, concedendo uma colheita recorde e farta, de acordo com os termos estabelecidos na aliança (cf. Lv 26.6-13; Dt 28.1-14).683 A última profecia (2.21-23) remonta ao anúncio de uma intervenção divina escatológica, fazendo “tremer o céu e a terra” (2.21 - ‫ ; ֲאנִי מ ְַרעִיׁש אֶת־הַש ַמיִם ְואֶת־הָא ֶרץ‬cf. 2.6). Mas, desta vez, o foco não é o templo, e sim, as nações e o futuro governante de Judá, representado por Zorobabel, príncipe da nação de Judá e descendente de Davi. 684 Yahweh promete reverter a condição de supremacia dos poderes estrangeiros numa linguagem reminiscente de Daniel 2.34-35, 44-45 (cf. Ez 38.19-23), em que os reinos deste mundo serão abatidos pelo reino do Messias que é estabelecido para sempre, representando o governo supremo de Deus (2.21-22).685 Quando isso acontecesse, Yahweh faria de Zorobabel seu “anel de selar” (2.23; cf. Jr 22.24-25), uma imagem que enfatiza a autoridade real divina concedida ao príncipe judeu (cf. 1Rs 21.8; Dn 6.17), e que lembraria àqueles que retornaram do exílio que Deus continua envolvido e conduzindo o processo político de Israel e das nações. 686 Zorobabel, como parte da linhagem davídica, tipifica o futuro Messias de Israel (cf. Mt 1.12ss.):687 Zorobabel é encorajado não por promessas específicas de poder político para si mesmo ... mas para a linhagem por ele representada [...] A abordagem escatológica de Ageu 680

J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 26. Adrew HILL, “The book of Haggai”. In: NLTSB, p. 1523. 682 J. MCILMOYLE, “Ageu”. In: Francis DAVIDSON(ed.), O Novo Comentário da Bíblia, p. 912. 683 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 793; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 781. 684 William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 428429. 685 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 16; F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1544; Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 55-56. 686 Andrew HILL, “The book of Haggai”. In: NLTSB, p. 1523; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 16; Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 57. 687 Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 56-58; F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1544. 681

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focaliza Zorobabel como um elo davídico na corrente messiânica, elo particularmente significativo devido à sua atividade como reconstrutor do templo. 688 Embora o povo de Deus estivesse sob o domínio de um poder estrangeiro e Zorobabel, descendente da linhagem real de Davi, fosse mero governador, as estruturas políticas poderiam mudar e mudariam. Deus derrotaria os reis da terra (Ag 2.21, 22) e elevaria o trono davídico à notabilidade (v. 23). Chamando Zorobabel de “servo” e dizendo que ele era escolhido, Deus lhe deu o mesmo status que Davi desfrutava (cf. 2 Sm 3.18; 6.21; 7.5, 8, 26; 1Rs 8.16).689

5.3. Uma Compreensão do Sentido e da Significância de Ageu 2.6-9 O anúncio escatológico de Ageu 2.6-9 aparece dentro de um contexto de encorajamento por parte do profeta para que o povo de Judá, dirigido por seus líderes político e religioso, Zorobabel e Josué, respectivamente, continuasse seu trabalho de reconstrução do templo de Yahweh. A profecia é dada no “vigésimo primeiro dia do sétimo mês” (2.1), a data em que era celebrada a festa das cabanas e que remontava ao período de consagração do primeiro templo de Salomão, cerca de 440 anos atrás (cf. Nm 29.32-34; 1Rs 8.1-5).690 Um questionamento do profeta introduz a profecia: “Quem de vocês viu este templo em seu primeiro esplendor [glória]? Comparado a ele, não é como nada o que vocês veem agora?” (Ag 2.3, NVI). Esta pergunta de Ageu apontava para o fato de que parte do povo que retornara do cativeiro era composta por pessoas idosas que conheceram o santuário construído por Salomão e sabiam de sua grandeza. O relato do livro de Esdras faz referências a estas pessoas que, durante a celebração do lançamento dos alicerces, choraram por verem a enorme diferença entre o templo anterior e o posterior ao exílio (Ed 3.8-13).691 O desânimo era grande tanto pela diferença de esplendor entre o primeiro e o segundo templos, como também pela morosidade no processo de reconstrução. Praticamente, um mês e meio se passara desde o primeiro vaticínio de Ageu e pouca coisa fora feita até então. Isso, provavelmente, se deu pela enorme quantidade de entulho que fora necessário limpar após uma ruína de sessenta anos 692 e, também, pelas festas celebradas naquele sétimo mês que requeriam a paralisação da obra.693 688

Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 782. Robert B. CHISHOLM, “Uma Teologia dos Profetas Menores”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p. 456. 690 Thomas L. CONSTABLE, Op. cit., p. 11. 691 Richard A. TAYLOR, E. Ray CLENDENEN, Haggai and Malachi, p. 151; Eugene H. MERRILL, Op. cit., p. 37-38. 692 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 36. 693 F. Duane Lindsey destaca três festas que ocorriam neste mês: a Festa das Trombetas no primeiro dia, o Dia da Expiação no décimo dia e a Festa das Cabanas de 15 a 21 de Tishri (sétimo mês). Ver F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1541. 689

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Uma palavra de ânimo faz-se necessária por parte do representante divino, e Ageu a traz com o enfático “Sê forte” (ARA) ou “Coragem” (NVI) que ocorre três vezes em 2.4 (hebraico - ‫) ֲחז ַק‬. Este imperativo evoca tanto o momento da conquista, em que Josué é encorajado nestes termos (Dt 31.7; Js 1.6-7, 9, 18),694 como também a época preparatória para a construção do primeiro templo, quando Davi encarrega Salomão de realizá-la (1Cr 28.10, 20).695 O primeiro motivo dado ao povo para que continuasse o trabalho de reconstrução era a presença de Yahweh dos exércitos entre eles (2.4),696 garantindo a capacidade, os meios e o sucesso do seu empreendimento. Tal presença divina, por meio de seu Espírito, é tão certa e libertadora quanto foi no período da redenção do povo no êxodo do Egito, por isso, eles não tinham qualquer razão para temer (2.5; cf. Êx 29.45-46; Is 63.11-14). “Da mesma forma que YHWH estivera com seu povo nos dias antigos de redenção e eleição, a ponto de eles triunfarem gloriosamente sobre seus inimigos, assim também estaria com eles no presente”.697 O verso 6 inicia com a expressão ‫“( ִכֹ֣י ֶ֤כ ֹה ָאמַר יְהוֹ֣ה צְבאֹות‬Porque assim diz Yahweh dos exércitos”), introduzindo assim um oráculo divino que apresenta o segundo motivo698 para os judeus darem sequência a seu trabalho e não temerem (cf. 2.5c).699 Como observou Herbert Wolf, a repetição da frase “assim diz Yahweh dos exércitos” cinco vezes nos versos 6-9 “marca a maior concentração de referências à autoridade divina em Ageu”.700 O texto, então, afirma que “ainda uma vez, em breve” ( ‫)עֹוד ַאחַת ְמ ַעט ִהיא‬, Yahweh faria tremer (

) “céus e terra, mar e terra seca” (2.6). A expressão temporal “ainda uma

vez” como complemento do verbo hebraico traduzido por “farei tremer” (NVI - ‫)מ ְַרעִיׁש‬, relembra que Deus já interviera de modo sobrenatural semelhante no passado. Desde que a ação libertadora divina do êxodo e suas promessas no Sinai servem de pano de fundo para os versos 4 e 5, há aqui uma alusão à teofania presente nestes eventos, pois o mesmo verbo Carroll STUHLMUELLER, “Haggai”. In: JBC, v. 1, p. 388; J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 36-37; Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 38; J. MCILMOYLE, “Ageu”. In: Francis DAVIDSON (ed.), O Novo Comentário da Bíblia, p. 910-911; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 427. 695Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 11; Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 36. 696 A conjunção hebraica ‫ כִי‬carrega sentido causal no texto (cf. J. W. GESENIUS, Gesenius’ Hebrew grammar, p. 280. Sect. 152, 1e). Carlos Osvaldo também vê duas garantias apresentadas pelo profeta para que o povo desenvolvesse a obra (cf. Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 780). 697 Eugene H. MERRILL, Op. cit., p. 38. 698 Mais uma vez, o sentido de ‫ כִי‬na passagem é causal. Ver p. 22 desta monografia. 699 John A. KESSLER, The book of Haggai: prophecy and society in early Persian Yehud, p. 173. 700 Herbert WOLF, Op. cit., p. 38. 694

110

(

) é usado para se referir ao tremor de terra causado pela autorrevelação divina neles (cf.

Jz 5.4; Sl 68.8[9]; 77.18[19]).701 O próprio autor de Hebreus menciona a teofania do Sinai em conexão com o acontecimento futuro profetizado por Ageu (Hb 12.18-21, 25-27; cf. Êx 19.16-20).702 O abalo sísmico e universal é, geralmente, referido nas passagens proféticas como uma indicação de um acontecimento escatológico, no qual Deus julgará as nações e estabelecerá a era messiânica (cf. Is 13.13; Ez 38.18ss.; Ag 2.21ss.; Jl 3.16 [4.16]).703 Por isso, o verso 7 afirma que o tremor não afetará apenas a ordem natural, mas também “todas as nações”. 704 A compreensão sobre o momento em que isso ocorrerá, depende do entendimento do sentido de ‫“( ְמ ַעט ִהיא‬em breve”, lit. “isto é um pouco”). Victor P. Hamilton observa que o termo ‫ ְמ ַעט‬é usado em Ageu 2.6 bem como em outros textos do AT para indicar “o fim da paciência divina com os ímpios e o início do juízo” (cf. Sl 37.10; Is 10.25; 29.17; Jr 51.33).705 Se considerado à luz de Jeremias 51.33 e Isaías 10.25, o vocábulo hebraico indicaria um cumprimento próximo para a profecia de Ageu 2.67.706 O oráculo, portanto, pode ter se concretizado, parcialmente, com o decreto de Dario, em 519 a.C., permitindo a continuidade da reconstrução do templo e ordenando que a provisão para o custeio da obra fosse tirada do próprio tesouro real (Ed 6.4, 8-10), fazendo com que “as coisas preciosas de todas as nações” viessem até o templo (Ag 2.7).707 Reconhecido o cumprimento parcial do evento, deve-se observar que a linguagem de intervenção divina sobre “o céu e a terra” requer um cumprimento escatológico final, precedente à era messiânica, como aponta a ocorrência paralela em outras profecias (Is 13.13ss.; Ez 38.18ss.; Jl 2.10; 3.16 [4.16]).708 O termo ‫ ְמ ַעט‬, usado de forma adverbial temporal, pode indicar também a iminência da ação de Deus. Algumas passagens veterotestamentárias confirmam esse uso da palavra, em que Yahweh age de forma súbita, não necessariamente num curto espaço de tempo, para julgar os ímpios e fazer justiça em prol 701

Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 40-41; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 12. 702 Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 586; Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 38. 703 BJ, p. 1666; Thomas L. CONSTABLE, Op. cit., p. 12. 704 F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1541-1542; Herbert WOLF, Op. cit., p. 38 705 Victor P. HAMILTON, “ ”. In: DITAT, p. 863. 706 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 39-40. 707 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 780-781. 708 John A. KESSLER, “The shaking of the nations: an eschatological view”, p. 163-165; Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 781. 111

dos humildes (Sl 37.10; 29.17). Um trecho escriturístico que reforça a perspectiva escatológica de Ageu 2.6ss., conferindo a ‫ ְמ ַעט‬o sentido de iminência na intervenção do juízo messiânico, é Salmo 2.12: “Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-aventurados todos os que nele se refugiam” (grifo do autor; cf. vv. 7-9).709 Não resta dúvida, portanto, de que ainda que Ageu 2.6-9 encontre cumprimento parcial num evento histórico próximo (como em Ed 6.4-10), sua referência primária diz respeito à intervenção final de Deus sobre o mundo, julgando as nações e estabelecendo o governo final do filho de Davi sobre toda a terra.710 A linguagem semelhante da passagem de Ageu 2.21-23 (cf. v. 21b: “... farei abalar o céu e a terra”), que faz referência ao reino messiânico sob a autoridade divina em que Zorobabel representa o rei maior e final da casa de Davi, evidencia que o oráculo do 21º dia do mês de Tishri tem sua concretização última num acontecimento escatológico. “Os temas são derivados do contexto universal e político-militar do Dia do Senhor: não apenas a terra, mas céu e terra, o universo todo será afetado pelo abalo divino”.711 A ação de Deus sobre o universo e sobre os povos levará “as nações a se separarem de suas riquezas com prazer” (Ag 2.6-7).712 Há uma intensa discussão sobre a interpretação de (“o Desejado” [ARC], “as coisas preciosas” [ARA] ou “tesouros” [NVI]). Herbert Wolf apresenta um estudo de vocábulo sobre o substantivo hebraico, mostrando que ele pode ser usado tanto em referência a uma pessoa (e.g. 1Sm 9.20; Dn 9.23; 10.19) quanto a possessões valiosas, como ouro e prata (2Cr 32.27; 36.10; Dn 11.8, 43).713 Sua conclusão é que Ageu buscou comunicar tanto o sentido do “Desejado” Messias que vem ao templo como a ideia de “possessões” das nações trazidas ao santuário de Jerusalém: “Com toda probabilidade, ele selecionou preciosidade por prover exatamente a ambiguidade que desejava”. 714

Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 586. John A. KESSLER, Op. cit., p. 165-166. 711 Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 103. 712 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 37. 713 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 40-42. Cabe salientar aqui que Wolf é inexato em seu estudo de vocábulo, ao afirmar que Daniel usa a mesma palavra que aparece em Ageu 2.7 (Ver p. 41 do comentário). Apesar de serem palavras praticamente sinônimas e virem da mesma raiz, Ageu usa ‫ ֶחמְדה‬, enquanto Daniel traz ‫( חֲמּודה‬Ver BDB, p. 326). 714 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 42. Ver também F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1542; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 12-13. Lindsey concorda com Wolf e argumenta que há evidência para a compreensão de ambos os sentidos do substantivo no texto de Ageu 709 710

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A própria tradução da Vulgata, seguida pela Almeida Revista e Corrigida, entende a frase hebraica com sentido messiânico: “veniet desideratus cunctis gentibus” (“e virá o Desejado de todas as nações” - ARC). Cada vez mais, porém, as versões têm se afastado desse tipo de tradução, optando por uma concepção impessoal de ‫ ֶחמְדה‬.715 O verbo ‫ בֹוא‬no Perfeito Plural ( ‫ )ּובאּו‬que acompanha ‫ ֶחמְדה‬favorece a compreensão do substantivo de forma coletiva como “tesouros” ou “coisas preciosas”. Este verbo hebraico, ocasionalmente, é construído no plural com uma palavra no singular de sentido coletivo.716 O contexto, especialmente o verso 8 com sua expressão “‘Minha é a prata e meu é o ouro’, declara o SENHOR dos exércitos”, favorece a implicação de que as nações trarão seus tributos valiosos em honra a Yahweh.717 “A declaração do versículo 8 parece sugerir que o influxo será a prata e o ouro que, embora se encontrem nas mãos das nações, não obstante, estarão sob o controle de Deus e serão trazidos quando e como Ele o desejar”. 718 Assim entendeu Calvino: ... mas como a isso se segue imediatamente, Minha é a prata e meu é o ouro, o sentido mais simples é aquele que eu mencionei primeiro, que as nações viriam, trazendo com elas todas as suas riquezas, de modo que poderiam oferecer a si mesmos e todas as suas posses como um sacrifício a Deus.719

Cabe destacar também que duas ocorrências do termo no segundo livro do cronista mostram que ‫ ֶחמְדה‬era usado como referência aos objetos de valor do templo, incluindo “prata” e “ouro” (2Cr 32.27; 36.10). Assim, J. Barton Payne conclui que “quando Ageu prediz que ‘o desejo de todas as nações virá’ (2.7), ele provavelmente não está se referindo ao Messias (como no verso 9b), mas sim, às contribuições de coisas preciosas”.720 Eugene Merrill observa que o enchimento da glória de Yahweh no tabernáculo (Êx 40.34-35) foi precedido pela construção do edifício e pela colocação de sua mobília com objetos de “ouro” e de “prata” (Êx 25.1-9). Tal material precioso foi conseguido por meio do despojo dos egípcios (Êx 3.21-22; 11.2-3; 12.35). “Neste sentido, pelo menos, ‘as coisas preciosas’ das nações contribuíram para a adoração a YHWH”. 721 Isso reforça a própria

2.7. Alden também mostra as duas probabilidades de interpretação, mas não define se há de fato ambiguidade proposital no texto (Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 586). 715 J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 38. 716 Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 103. 717 Idem. p. 104; Peter R. ACKROYD, “Haggai”. In: J. L Mays (ed.), Harper's Bible commentary, p. 1996. 718 J. MCILMOYLE, “Ageu”. In: Francis DAVIDSON (ed.), O Novo Comentário da Bíblia, p. 910-911. Mcilmoyle parece crer que isso se cumpre parcialmente em Esdras 6.8-10. 719 John CALVIN, Commentary on the prophet Haggai, p. 42. 720 J. Barton PAYNE “‫”חמַד‬. In: DITAT, p. 481. 721 Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 41. 113

sequência de Ageu 2.7, em que Deus encherá “esta casa de glória” (‫)ּומִלאתִ י אֶת־ ַה ַבי ִת ַהז ֶה כבֹוד‬ após as “coisas preciosas” de todas as nações serem trazidas a ela. 722 Outra semelhança histórica que é conclusiva na compreensão do termo em seu uso impessoal se dá na própria construção do primeiro templo, que foi mobiliado com o tributo das nações. Ao conquistar as nações ao redor, Davi recolheu tributos de “ouro” e “prata” e os dedicou a Yahweh (2Sm 8.7-8, 10-11). Posteriormente, Salomão usou este material para embelezar o templo em Jerusalém (1Rs 7.51), preparando-o para que o Senhor ali habitasse e enchesse o local com sua glória (1Rs 7.5 – 8.11). “Assim, ‘as coisas preciosas’ das nações vieram ao Templo, mesmo que não de forma inteiramente voluntária, estabeleceram um protótipo para o tempo em que elas assim fariam numa época futura ainda mais gloriosa”. 723 Além disso, a vinda das nações até Jerusalém com seus tesouros e tributos para o Messias e para o templo tem forte paralelo com a profecia escatológica de Isaías 60.5-22.724 Ali também se fala das nações trazendo o material de ouro e prata para adornar o santuário de Deus (60.5-7, 14, 17), que é chamado de ‫“( ֵַ֫בי ִת‬casa” –v.7) como em Ageu 2.7 e 9. Deus glorificará (‫ ;כבד‬cf. ‫ כבֹוד‬em Ag 2.7, 9) o seu santuário e concederá a paz a Jerusalém (60.13, 17-18; cf. Ag 2.9). As promessas de Yahweh, “encherei esta casa de glória” (Ag 2.7), e ainda, “a glória desta última casa será maior do que a primeira” (2.9), apontam para a “continuidade essencial entre os templos”.725 Herbert Wolf afirma que “parte do cumprimento teve lugar com a primeira vinda de Cristo, que, como Deus encarnado e aquele que é ‘maior do que Salomão’ (Mt 12.42), trouxe glória ao templo sempre que o visitou”. 726 Mas, como escreveu Robert Chisholm: Ainda que o templo fosse menos glorioso que o templo de Salomão, o Senhor prometeu que a glória final do templo seria maior do que sua glória anterior. O Senhor também garantiu que traria paz para o lugar onde ficava o templo, Jerusalém. Nenhuma dessas coisas aconteceu ainda, de modo que o cumprimento deve ser futuro (milenar). Uma paz duradoura viria quando o Messias retornasse para governar e reinar (cf. Is 2.4; 9.6; Zc

Ver a frase semelhante repetida duas vezes em Êx 40.34-35: ‫ּוכְבֹ֣ ֹוד י ְהוה מלֵּ֖א אֶת־ ַה ִמׁשְכ ָּֽן‬ Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 41. 724 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 41-42. 725 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 781. 726 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 44. 722 723

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9.9-10). O adorno de Jesus Cristo do segundo templo ... com sua presença, dificilmente parece cumprir as exaltadas promessas desta profecia. 727

A glória que encherá o templo milenar certamente será refletida pelos adornos de prata, ouro, madeira preciosa e por todos os tesouros das nações ali depositados (cf. Is 60.5-7, 13; 61.6; Mq 4.13), mas certamente eles não a definirão, como pensa Verhoef.728 Pois, a única glória que encheu o santuário de Yahweh no passado e que o encherá no período milenar será a glória da presença divina (cf. Êx 40.34-35; 1Rs 8.10-11; Ez 43.1-12).729 “Ageu afirma que sua glória [do templo] consistirá não de prata nem de ouro, mas da presença de Deus (2.4-5), e que a glória que virá também será a da presença dele no templo e entre seu povo (2.7)”.730 Em seu estudo do termo ‫כבֹוד‬, John Oswalt contribui para a conclusão deste autor de que a palavra hebraica aponta para a gloriosa presença de Yahweh: A maior parte em que a glória de Deus é uma manifestação visível está relacionada ao tabernáculo (Êx 16.10; 40.34; etc.) e ao templo, na visão ezequeliana do exílio e da restauração (Ez 9.3, etc.). Essas manifestações estão diretamente relacionadas com a autorrevelação de Deus e seu desejo de habitar entre os homens. 731

Juntamente com a gloriosa manifestação de Deus entre seu povo, Jerusalém (“cidade da paz”) experimentará a “paz” concedida pelo próprio Yahweh dos exércitos (2.9). A paz definitiva que os judeus experimentarão virá quando o próprio Príncipe da paz vier e estabelecer seu reino firme sobre as nações (cf. Is 9.6; Zc 9.9-10).732 Quando o reino messiânico instaurar-se, a violência e a destruição terão fim (Is 60.8) e nunca mais os estrangeiros invadirão a terra de Israel (Jl 3.17, 20).733 v*lom (até hoje usado como saudação), resume todas as bênçãos da era messiânica, quando a reconciliação com Deus e seu governo justo assegurarão uma paz justa e

Robert B. CHISHOLM, “A Theology of The Minor Prophets”. In: Roy B. ZUCK, Theology of the Old Testament, p. 421. Apud Thomas L. CONSTABLE, Notes on Haggai, p. 13. Esta parte do ensaio teológico de Chisholm, curiosamente, não se encontra na tradução da obra em português (ver Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p. 452-456). 728 Pieter A. VERHOEF, The books of Haggai and Malachi, p. 104. 729 F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1542. Faz-se imprescindível observar que em todas estas quatro passagens que falam da glória da presença Yahweh enchendo o templo, são usados o verbo (“encher”) e o substantivo (“glória”), e ambos estão relacionados na construção das frases: ‫ּוכְבֹ֣ ֹוד י ְהוה מלֵּ֖א‬ ‫( אֶת־ ַה ִמׁשְכ ָּֽן‬Êx 40.34-35 – 2x); ‫( אֶת־בֵ֥ית י ְהו ָּֽה כִי־מלֵ֥א כְבֹוד־י ְהוֵּ֖ה‬1Rs 8.11b); ‫ְהוה הַבָּֽי ִת‬ ֵּ֖ ‫( ְוהִנָ֛ה מלֵ֥א כְבֹוד־י‬Ez 43.5); ‫אתִ י אֶת־ה ַ ֶַ֤בי ִת ַהזֶה כבֹוד‬ ָּׁ֞ ‫( ּומִל‬Ag 2.7). Já em Isaías 60.5-22, o verbo nem sequer aparece e o substantivo está relacionado à glória do Líbano (cf. 60.13). 730 Eugene H. MERRILL, Haggai, Zechariah and Malachi: an exegetical commentary, p. 42. 731 John N. OSWALT, “ ”. In: DITAT, p. 697. 732 F. Duane LINDSEY, “Haggai”. In: BKC, v. 1, p. 1542; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 781. 733 Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 44. 727

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duradoura. O templo era a fonte da qual todas as bênçãos haveriam de fluir (Ez 47.1), fazendo de Jerusalém o centro do bem-estar mundial, “a cidade da paz”.734

Em resumo, a mensagem de Ageu 2.6-9 é uma profecia sobre a ação escatológica de Yahweh, intervindo na história para julgar as nações, conduzi-las à adoração monoteísta ao Deus verdadeiro e estabelecer o seu reino sobre elas. Quando isso ocorrer, o templo desfrutará de beleza ímpar, enfeitado com os tesouros preciosos dos povos, como prata e ouro, e será cheio, de forma ainda mais plena que no passado, da gloriosa presença de Yahweh dos exércitos. Com essa encorajadora mensagem, o povo de “Israel foi, portanto, instruído a valorizar seu templo não apenas por sua aparência externa, mas pelo que ele significava para o plano eterno de Deus de substituir os reinos humanos rebeldes pelo seu reino de glória e paz”.735 Que grandeza profética nessa palavra, que nada esconde e sublinha a inexpressividade do recomeço de Deus! Ao religar Israel ao templo, Ageu não restringiu o seu universo; pelo contrário, o ampliou, pois com muita luta persistente conseguiu que os seus contemporâneos fizessem a sua confissão de adesão à obra escatológica de Javé. 736

734

J. G. BALDWIN, Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário, p. 38. Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 781. 736 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 702. 735

116

6.

O USO HERMENÊUTICO-TEOLÓGICO DAS CITAÇÕES E DA ALUSÃO DE DEUTERONÔMIO E DE AGEU EM HEBREUS 12.14-29 As homilias e rememorações históricas do Deuteronômio e a profecia escatológica de

Ageu não serviram apenas para alentar e alertar seus públicos contemporâneos, mas foram citadas em parte ou aludidas pelo autor da Epístola aos Hebreus em sua mensagem parenética aos cristãos do século I, que viviam o desafio de expressar sua nova fé num Sitz im Leben hostil. A presente seção da dissertação tem como objetivo, portanto, interpretar exegeticamente a porção literária de Hebreus 12.14-29 e observar o uso que o autor de Hebreus fez dos textos do AT, comparando-o com o sentido original apreendido na análise anterior de Ageu 2 e Deuteronômio 4, 9 e 29, e aplicando também os aspectos discutidos no capítulo dois deste trabalho. 6.1. A Hermenêutica do Autor de Hebreus e seu Milieu Teológico-Interpretativo Judaico Na busca por discernir o método hermenêutico que norteou a leitura do AT feita pelo autor de Hebreus, muitos estudiosos têm proposto várias possibilidades de influência dentro do milieu intelectual do século I. Dentre elas, encontram-se Filo, a comunidade essênia de Qumran, a hermenêutica rabínica, a apocalíptica judaica, o misticismo judaico merkabah e o gnosticismo pré-cristão.737 Dada a ênfase maior na discussão sobre Filo e a comunidade de Qumran,738 o presente subponto concentrará seus esforços na avaliação destas duas propostas, 737

Ver sumário dessas propostas em William L. LANE, Hebrews 1—8, p. ciii-cx; Kiwoong SON, Zion symbolism in Hebrews: Hebrews 12.18-24 as hermeneutical key to the epistle, p. 9-13. 738 Ver C. SPICQ, L’Épître aux Hébreux, v. 1, p. 25-91; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 10-15; Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 8-9, 16-18; Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 26-54; Idem, Early Jewish hermeneutics and Hebrews 1.5-13: the impact of Early Jewish exegesis on the interpretation of a significant New Testament Passage; Idem, “Two first-century messianic uses of the OT: Hebreus 1.5 and 4QFlorilegium 1.1-19”, p. 11-27; Eric F. MASON, “Hebrews and Dead Sea Scrolls: some points of comparison”, p. 459-479; Idem, ‘You are priest forever’: second temple Jewish messianism and the priestly Christology of the epistle to the Hebrews; Idem, “Hebrews 7.3 and the relationship between Melchizedek and Jesus”, p. 41-62; Cf. Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 97-100; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p.37-40; F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. xlviii-lii; Angela RASCHER, Schriftauslegung und Christologie im Hebräerbrief, p. 7ss; James W. THOMPSON, “The new is better: a neglected aspect of the hermeneutics of Hebrews”, p. 550, nota 10. 117

conferindo certa atenção à relação de Hebreus com a literatura judaica apocalíptica também.739 A relação entre Hebreus e Filo recebeu grande atenção e apoio com o lançamento do maciço comentário de dois volumes de C. Spicq,740 no qual ele argumentou que o autor de Hebreus era um estudioso dos escritos de Filo, talvez até mesmo discípulo dele, que se converteu ao cristianismo.741 As evidências apresentadas por Spicq diziam respeito a metáforas e ideias, métodos e temas bíblicos, estilo literário e vocabulário específico da epístola aos Hebreus que tinham íntima conexão com os escritos do filósofo platônico judeu. Posteriormente, a proposta de Spicq fora questionada e refutada pelo estudo meticuloso de Ronald Williamson, que mostrou diferenças marcantes e fundamentais entre os métodos exegéticos e as perspectivas do autor cristão e de Filo. 742 O próprio Spicq, após as descobertas dos manuscritos de Qumran, acabou mudando de posição e defendendo que o autor era Apolo, o que explicava algumas semelhanças com Filo, mas o grupo destinatário era composto de sacerdotes que tiveram contato com a comunidade Qumran e que haviam fugido de Jerusalém para Antioquia.743 Apesar da teoria da influência de Filo não receber mais tanta atenção atualmente, a proposta de Spicq gerou certo interesse nos estudos posteriores da Epístola aos Hebreus. O comentarista H. W. Montefiore adota a proposta de Spicq e diz que o autor de Hebreus teve um contato anterior à sua conversão com Filo, apresentando assim similaridades de vocábulos e de temas (mas não de teologia): [...] o homem que escreveu a epístola não era um plagiador. Suas convicções cristãs alteraram profundamente o conteúdo e a direção de seu escrito. O seu filonismo tinha sido adaptado para interpretar a encarnação no espírito de um genuíno biblicismo. Após

739

Deve-se reconhecer a grande atenção que vem sendo dada à relação entre Hebreus e a perspectiva apocalíptica judaica. Ver William L. LANE, Hebrews 1—8, p. cix-cx; Kiwoong SON, Zion symbolism in Hebrews: Hebrews 12.18-24 as hermeneutical key to the epistle; CHARLES, J. Daryl. “The angels, sonship and birthright in the letter to the Hebrews”. p. 171-178; Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p.434-436. Dada à falta de espaço, não se discutirá muito a comparação da metodologia exegética rabínica com Hebreus. Para isso, ver observações interessantes feitas por William L. LANE, Op. cit., p. cxix-cxxiv e por George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 923. 740 C. SPICQ, L’Épître aux Hébreux, 2 v. (cf. a relação entre o autor cristão e Filo no v. 1, p. 25-91). 741 C. SPICQ, Op. cit., v. 1, p. 88-91. Deve-se observar que antes de Spicq, B. F. Westcott já havia demonstrado certa relação entre Hebreus e Filo, ao longo de seu clássico comentário (Brooke F. WESTCOTT, The epistle to the Hebrews: the Greek text with notes and essays), mas não chegou a propor uma teoria como a de Spicq. 742 R. WILLIAMSON, Philo and the Epistle to the Hebrews. 743 C. SPICQ, “L’Épître aux Hébreux, Apollos, Jean-Baptiste, les Hellénistes et Qumran”, p. 365-390. 118

examinar a evidência, é quase impossível negar... que nosso autor era ‘um filonista convertido ao cristianismo’. 744

Mesmo depois de analisar as sugestões mais recentes em favor da literatura de Qumran, Montefiore conclui que “nossa epístola parece mais próxima de Filo do que de Qumran”.745 Ao longo do comentário, ele mostra ligações de fraseologia e vocabulário: a frase “o tabernáculo foi construído” (σκηνὴ γὰρ κατεσκευάσθη) de Hebreus 9.2 é idêntica à de De Vita Moysi, 2.89;746 a construção usada pelo autor de Hebreus para interromper a descrição dos objetos do tabernáculo (9.5) se assemelha à frase empregada por Filo para interromper sua descrição do templo (Quis Rerum Divinarum heres sit, 221);747 o verbo μεσιστευειν (“negociar”, “interceder”) é utilizado com o sentido de “garantir” tanto em Hebreus 6.17 como em De Specialibus Legibus, 4.31.748 Montefiore também observa que ambos dão considerável atenção aos objetos do tabernáculo/templo, ainda que o autor de Hebreus evite a interpretação alegórica do filósofo judeu.749 A própria discussão sobre o juramento em Hebreus 6.13-15 leva Montefiore a perceber outro paralelo com Filo (De Specialibus Legibus, 2.10)750 e um distanciamento de Qumran: “Nosso autor, como deve ser notado, não compartilha do ódio dos essênios por todos os juramentos (com exceção do juramento de iniciação) ... Essa consideração acrescenta força à visão de que esta epístola não tinha qualquer relação direta com Qumran”.751 Outra abordagem que vê ligações de terminologia entre a Carta aos Hebreus e Filo é a de Robert W. Thurston.752 Ele argumenta que o autor cristão usa termos e ideias comuns ao filósofo alexandrino, como o conceito da “palavra” de Deus “penetrando” e “perfurando” em Hebreus 4.12 e a imagem do Logos de Filo como o “divisor de tudo” (Quis Rerum Divinarum heres sit, 225), 753 e como os vários termos associados ao Logos nos escritos filonistas que são semelhantes àqueles associados a Cristo em Hebreus,754 por exemplo, o Primogênito (1.6; De Agricultura, 51),755 a imagem de Deus (Hb 1.3; De Specialibus Legibus, 1.81)756 e o grande

744

Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 8-9. Idem, p. 18. 746 PHILO, p. 499; cf. Hugh W. MONTEFIORE, Op. cit., p. 144. 747 PHILO, p. 294; cf. Hugh W. MONTEFIORE, Op. cit., p. 146. 748 PHILO, p. 619; cf. Hugh W. MONTEFIORE, Op. cit., p. 115. 749 Hugh W. MONTEFIORE, Op. cit., p. 146-147. 750 PHILO, p. 568-569; Hugh W. MONTEFIORE, Op. cit., p. 114. 751 Hugh W. MONTEFIORE, Op. cit., p. 114. 752 Robert W. THURSTON, “Philo and the epistle to the Hebrews”, p. 133-143. 753 PHILO, p. 295; Robert W. THURSTON, Op. cit., p. 134-135. 754 Robert W. THURSTON, Op. cit., p. 135. 755 PHILO, p. 178. 745

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sumo-sacerdote (Hb 2.17; 3.1; 4.14—8.1; De Fuga et inventione, 108).757 Mas, apesar de usar uma terminologia comum àquela encontrada em Filo, o autor bíblico combate uma antiga heresia cristã filonista que equiparava Cristo a um anjo, o qual se manifestara em Moisés, no sumo-sacerdote Josué e em Jesus. 758 O escritor cristão refutou tal ensino herético mostrando que Jesus Cristo era superior a Moisés e que ele era sumo-sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, não podendo ser o sumo-sacerdote Josué, descrito em Zacarias 3, que era descendente de Levi. 759 Apesar de bem elaborada, a tese de Thurston carece de maior comprovação histórica. Por exemplo, sua suposição de que havia um grupo herético cristão liderado por Cerinto, que estava ligado a Filo, é construída sobre afirmações patrísticas de que Cerinto baseava seus ensinos nas ideias dos egípcios, mas não há qualquer afirmação direta a Filo, nem mesmo a Alexandria.760 A própria coleção de textos gnósticos descobertos em Nag Hammadi (possivelmente já existentes desde o séc. II), no Egito,761 oferece outro pano de fundo para a construção das ideias gnósticas de Cerinto, que não estão relacionadas a Filo ou à comunidade judaica. O próprio Thurston reconhece que “infelizmente, a evidência patrística sobre as doutrinas de Cerinto não é tão confiável quanto gostaríamos; há grande evidência de que as fontes patrísticas algumas vezes confundiam uma seita ebionita com a outra”. 762 No que diz respeito à relação das ideias de Filo com as de Hebreus como expostas por Montefiore, pode se admitir certa semelhança de linguagem, mas não necessariamente uma ligação direta entre ambos, visto que as afinidades ocorrem mais provavelmente pelo contexto conceitual e linguístico judaico-helenista que os envolveu.763 As diferenças teológicas e hermenêuticas entre os dois são “fundamentais”, como reconhece o próprio Montefiore, o qual alista uma série de distinções significativas entre o escritor cristão e Filo.764 Enquanto a interpretação de Filo a respeito das personagens e dos eventos do AT é 756

PHILO, p. 541. Idem, p. 330-331. 758 Robert W. THURSTON, “Philo and the epistle to the Hebrews”, p. 136-142. 759 Idem, p. 140-142. 760 Idem, p. 139. 761 Sobre a comunidade cristã gnóstica de Nag Hammadi e a antiguidade de seus textos, ver Allen C. (ed.) MYERS (ed.), Eerdmans Bible Dictionary, p. 743-744; Bruce TANKERSLEY, “Nag Hammadi”. In: Chad Owen BRAND, et al (eds.), Holman Illustrated Bible Dictionary, p. 1167-1169. 762 Robert W. THURSTON, Op. cit., p. 139. 763 Kiwoong SON, Zion symbolism in Hebrews: Hebrews 12.18-24 as hermeneutical key to the epistle, p. 23; Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 59-60. Quanto ao context cultural judaico-helenista do autor de Hebreus, ver discussão adiante sobre o Contexto Histórico. 764 Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 7-8. 757

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essencialmente alegórica, a fim de estabelecer princípios de ética e metafísica, o autor de Hebreus trata com seriedade o contexto histórico do texto bíblico. 765 Por exemplo, Filo alegoriza Melquisedeque como a Razão,766 ao passo que o escritor cristão o vê como uma pessoa real e tipo de Cristo, “feito semelhante ao Filho de Deus” (Hb 7.3). O expositor de Hebreus entende a mobília do tabernáculo de modo literal (Hb 9.1-5), enquanto Filo a interpreta de forma alegórica, compreendendo as sete ramificações do candelabro como os sete planetas com o sol no centro767 e o maná como representativo dos sentidos, da fala e da mente.768 Como destacado por Richard Longenecker, nas citações que faz de estudiosos, há uma grande diferença entre o emprego da tipologia pelo autor de Hebreus, que considera a moldura histórica da revelação, e a alegorização fantasiosa praticada por Filo, que desconsidera o sentido natural do texto em busca de um significado oculto. 769 Esse aspecto histórico da tipologia de Hebreus pode ser visto em seu conceito de antes e depois, na prefiguração e no cumprimento, quando ele fala sobre o “repouso” (κατάπαυσις) esperado pelos israelitas no deserto, mas não experimentado totalmente na época de Josué, passando pela época de Davi “depois de tanto tempo” (4.7) e chegando à época presente, quando ainda “permanece um repouso para o povo de Deus” (4.9).770 “A totalidade do seu argumento cairia por terra se a base histórica fosse negada”. 771 Além disso, Allen Fairhurst argumenta convincentemente que a moldura hermenêutica do autor de Hebreus é escatológica e redentiva, ao passo que a de Filo é cosmológica.772 Para o autor de Hebreus o que separa céus e terra, Deus e o homem, não é a diferença entre o fenômeno da experiência sensorial e o puro ser (como na visão platônica de Filo), mas a diferença entre santidade e pecado.773 O sacrifício de Cristo na esfera terrena não é a manifestação de algo eterno e atemporal, mas uma realidade física e cronológica, feita uma vez por todas (ἐφάπαξ) e com validade eterna (Hb 9.14, 24-26).

765

F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. li-lii; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 39-40. 766 Allegorical Interpretation, 3.82. In: PHILO, p. 59. 767 On Matting with the Preliminary Studies, 100. In: PHILO, p. 312-313. 768 Whos is the heir of Divine things, 225. In: PHILO, p. 295. 769 Richard N. LONGENECKER, Biblical exegesis in the apostolic age, p. 171-173. 770 F. F. BRUCE, Op. cit., p. lii. 771 Donald GUTHRIE, Op. cit., p. 39. 772 Alan M. FAIRHURST, “Hellenistic Influence in the Epistle to the Hebrews”, p. 17-27. 773 Idem, p. 22. Cf. A. W. ROBERTSON, El Antiguo Testamento en el Nuevo, p. 188. 121

Observadas as diferenças fundamentais entre o autor de Hebreus e Filo, ainda cabe a análise comparativa de outros atores do cenário hermenêutico-teológico judaico do século I. Os estudos comparativos entre a teologia e a hermenêutica de Qumran e da Apocalíptica Judaica com Hebreus vêm recebendo bastante atenção. Dois estudiosos em especial, Herbert Bateman IV e Eric F. Mason, têm desenvolvido pesquisas nesta área, o primeiro com o foco mais exegético e o segundo mais teológico. 774 Um artigo de Mason apresenta uma pesquisa comparativa entre Hebreus e Qumran/Apocalíptica em três aspectos que se destacam na discussão contemporânea: a cosmologia, o messianismo e as tradições de Melquisedeque. No aspecto cosmológico, ele ressalta a ênfase nas relações entre seres humanos e angélicos dispensada nas tradições do período posterior do segundo templo (167 a.C. - 70 A.D.) e comenta sobre o papel dos anjos como sacerdotes no santuário celestial em paralelo ao serviço litúrgico terreno.775 A relação que Mason percebe com Hebreus diz respeito à preocupação que o autor cristão tem em comparar Cristo com os anjos no capítulo1, reconhecendo, todavia, que o Filho é maior do que eles (Hb 1.5-13), os quais são apenas ministros dos que hão de herdar a salvação (1.14), não sacerdotes num contexto litúrgico celestial. Além disso, Cristo é o sumo-sacerdote contrastado com os sacerdotes levíticos terrenos (Hb 7—10), não com sacerdotes angélicos. 776 Todavia, ele nota que há uma relação conceitual da ligação entre o trono celestial e o serviço sacerdotal encontrados em Qumran e na Apocalíptica com a ideia de Hebreus de que Cristo se assentou no trono, à direita da Majestade, após realizar seu sacrifício (cf. Hb 1.3; 8.1ss.; 10.12-13).777 Na questão messiânica, Eric Mason observa vários textos de Qumran (1QS, CD, 1QM), e mostra como a comunidade chegou à conclusão de um sacerdote messiânico a partir da tradição levítica do comissionamento divino para o sacerdócio (cf. Êx 32.25-29; Nm 25.615; Dt 33.8-11) e da tradição do sacerdócio zadoquita.778 Ao comparar o pensamento judaico-

Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 26-54; Idem, Early Jewish hermeneutics and Hebrews 1.5-13: the impact of Early Jewish exegesis on the interpretation of a significant New Testament Passage; Idem, “Two first-century messianic uses of the OT: Hebreus 1.5 and 4QFlorilegium 1.1-19”, p. 11-27; Eric F. MASON, “Hebrews and Dead Sea Scrolls: some points of comparison”, p. 459-479; Idem, ‘You are priest forever’: second temple Jewish messianism and the priestly Christology of the epistle to the Hebrews; Idem, “Hebrews 7.3 and the relationship between Melchizedek and Jesus”, p. 41-62. 775 Ver o texto de 4Q400 em EWQ, p. 329-334; cf. 1En 14.15-23; Jub 31.13-15. 776 Eric F. MASON, “Hebrews and Dead Sea Scrolls: some points of comparison”, p. 460-462. 777 Idem, p. 461-464. 778 Idem, p. 464-471. 774

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essênio com Hebreus, ele diz que a “expectativa da comunidade de um sacerdote messiânico provê um contexto no qual o autor de Hebreus poderia desenvolver sua cristologia sacerdotal”,779 mas nota que há traços únicos dessa questão em Hebreus, como a necessidade da encarnação e sofrimento de Cristo para que ele fosse sacerdote perfeito da humanidade (cf. Hb 2.5-18; 4.14—5.10) e como o fato de que o sacerdócio de Cristo é de uma ordem e natureza totalmente distintas da ordem levítica, um conceito totalmente oposto à expectativa messiânica levítica da comunidade essênia. Este autor observa também que, enquanto a comunidade de Qumran desenvolveu a ideia de um sacerdócio messiânico a partir de promessas feitas a Levi,780 o escritor de Hebreus elabora a doutrina do sacerdócio messiânico a partir de promessas feitas a Davi, como rei messiânico da ordem de Melquisedeque, iniciando com ideia da filiação real e seguindo com o conceito de rei-sacerdote (cf. Hb 1.5-6, 13; 5.5-10; 6.20—7.28). O apelo mais forte para uma ligação entre Hebreus e Qumran se encontra no estudo de Eric Mason sobre a compreensão de Melquisedeque dentro de textos da tradição do Mar Morto. Ele mostra que outros textos judaicos, como Filo, Josefo ou o apocalíptico Jubileu, mencionam Melquisedeque, mas concentram sua atenção em Gênesis 14, sem fazer referência a Salmo 110.781 O pesquisador se volta, então, para três textos dos manuscritos do Mar Morto (4Q401, 4Q544, 1QMelq), indicando que Melquisedeque é entendido como um ser angélico e que desempenhará um importante papel no escatológico Dia da Expiação (Yom Kippur), julgando os inimigos de Deus e conferindo a bênção para o povo divino. Diante disso, Mason liga sua interpretação de Hebreus 7.3, pela qual entende que Melquisedeque é um ser angélico,782 com a compreensão semelhante nos manuscritos de Qumran, e também conecta a ideia de que Jesus oferece o sacrifício final dentro da imagem do Yom Kippur com a importância do papel que Melquisedeque desempenha, nos textos de Qumran, neste rito

Eric F. MASON, “Hebrews and Dead Sea Scrolls: some points of comparison”, p. 471. Esse conceito realmente parece ter seu traço desenvolvido mais claramente a partir da obra pseudoepigráfica Test. Levi (espec. Test. Levi 3—5) (cf. Eric F. MASON, You are priest forever’: second temple Jewish messianism and the priestly Christology of the epistle to the Hebrews, p. 111-116). 781 Eric F. MASON, You are priest forever’: second temple Jewish messianism and the priestly Christology of the epistle to the Hebrews, p. 146-163; Idem, “Hebrews and Dead Sea Scrolls: some points of comparison”, p. 471-473. 782 Esta interpretação de Hb 7.3 não é a única nem necessariamente a mais provável (Ver F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 139-140; Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 63-64; William L. LANE, Hebrews 1—8, p. 158-163). 779 780

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encarado de forma escatológica.783 Sua conclusão é que há “elementos-chaves consistentes” nas tradições melquisedequeana de Hebreus e de Qumran. Muitos estudiosos, todavia, discordam desta relação conceptual entre Qumran e Hebreus proposta por Eric Mason. William Lane chega a afirmar que “não há qualquer base segura para a afirmação de que Qumran oferece um pano de fundo conceitual para Hebreus”.784 A crença na existência de anjos e a importância dada a seu papel no mundo espiritual era generalizada entre os judeus (cf. Jo 5.4; 12.29; At 12.13-15; 23.8-9; Gl 3.19 com Sifrê Nm 102; Jub 1.29),785 e distorções quanto à adoração destes seres celestiais é percebida na heresia combatida por Paulo em sua carta aos Colossenses (cf. Cl 2.18). 786 O próprio kerigma cristão primitivo dispensa grande atenção aos anjos, desde os relatos dos evangelhos (e.g. Mt 1.20, 24; Mc 1.13; Lc 1.11, 13; et al) até o Apocalipse de João (Ap 1.1, 20; 22.8; et al). Na verdade, um dos pontos importantes de Hebreus 1, que é a superioridade do Filho em relação aos anjos e a sua dignidade exclusiva de receber adoração, não é sequer mencionado por Mason como um problema da comunidade de Qumran. Parece que a adoração a anjos não era uma preocupação dentro das principais correntes do judaísmo histórico no período do segundo templo: Quanto mais a ideia monoteísta tomou conta do povo, não permitindo que nenhum ser interferisse na supremacia absoluta de Yahweh, maior tornou-se a necessidade de personificar as forças em operação na vida e de agrupá-las hierarquicamente ao redor do trono celestial, a fim de formar sua corte real. A natureza transcendente de Deus requereu um sistema mais definido dos funcionários celestiais, que o serviam e aguardavam seu comando.787

Como a discussão messiânica em si revela a fragilidade de uma relação direta entre Hebreus e Qumran, a questão da tradição de Melquisedeque merece certa atenção. Grant Osborne afirma que “as diferenças entre 1QMelquisedeque de Qumran e Hebreus 7 pesam mais que as semelhanças”,788 e Koester apoia sua conclusão: “estudos ... deram pouca razão para pensar que Hebreus teve qualquer conhecimento das perspectivas de Melquisedeque

Eric F. MASON, “Hebrews and Dead Sea Scrolls: some points of comparison”, p. 473-479. William L. LANE, Hebrews 1—8, p. cvii. 785 A grande ênfase individualizada ao papel angélico como mensageiros divinos e à sua realidade no mundo espiritual invisível é perceptível já no período exílico e pós-exílico, com o profeta Daniel (cf. Dn 3.28; 6.22; 10.10ss.; 12.1ss.) “O processo começou em Daniel e continuou por toda a literatura apocalíptica, levando finalmente à suposição de uma hierarquia celestial de proporções estupendas” (Kaufmann KOHLER, “Angelology”, JE, v. 1, p. 590). 786 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 37. 787 Kaufmann KOHLER, Op. cit., p. 589. 788 Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 435. 783 784

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evidentes nos manuscritos”.789 O problema começa com a interpretação de Mason de que o autor de Hebreus compreende Melquisedeque como um ser celestial, devido à menção de que ele era alguém “sem pai, sem mãe, sem genealogia; que não teve princípio de dias, nem fim de existência” (Hb 7.3).790 Como observou Bruce, todavia, o texto neotestamentário não sugere “uma anomalia biológica nem um anjo disfarçado de humano”, mas um contraste entre a ordem araônica, que exigia um parentesco específico como qualificação ao sacerdócio, e a ordem de Melquisedeque, que foi sacerdote do Deus Altíssimo sem o requerimento de uma ancestralidade específica. 791 O silêncio da Escritura com respeito aos pais e à linhagem familiar de Melquisedeque é destacado pelo escritor para ampliar o conceito de singularidade do seu sacerdócio, e não para provar essa singularidade. Isso implica que o sacerdócio de Melquisedeque não era estabelecido com base em circunstâncias externas de nascimento e descendência. Ele era fundamentado no chamado de Deus e não no processo hereditário pelo qual o sacerdócio levítico era mantido (cf. 5.5-6; 7.14).792

No que tange à ausência de menção à genealogia, ao nascimento ou à morte de Melquisedeque em Gênesis 14 ressaltado em Hebreus, o alvo é apontar para outra verdade sobre Jesus, isto é, seu sacerdócio eterno: O escritor diz que Melquisedeque é ‘feito como’ (aph moi menos) o Filho de Deus, não que o Filho de Deus é como Melquisedeque. Portanto, não é Melquisedeque que estabelece o modelo seguido por Jesus. Antes, o registro acerca de Melquisedeque se harmoniza de tal forma que apresenta certas verdades que se aplicam mais plenamente a Jesus do que a Melquisedeque. Em relação ao último, essas verdades são apenas uma questão de registro; mas em relação a Jesus, elas não são apenas historicamente verdadeiras, mas também contêm dimensões espirituais significativas.793

Finalmente, apesar de Mason pressupor a realização da função sacerdotal por Melquisedeque em 11QMelq, o texto “na realidade não atribui nenhuma função sagrada a Melquisedeque ... Diferentemente de Hebreus, 11QMelq não faz alusão a Gênesis 14.17-20 ou a Salmo 110.4 nem chama Melquisedeque de sacerdote”.794

789

Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 63. Eric F. MASON, “Hebrews and Dead Sea Scrolls: some points of comparison”, p. 473-479. 791 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 139-140 (espec. nota 21). 792 William L. LANE, Hebrews 1—8, p. 166. Ver também Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 119. 793 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 63-64. Cf. Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 149. 794 Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 340. Ver também William L. LANE, Op. cit., p. 161: “Deve ser reconhecido, todavia, que em 11QMelq não há associação explícita de Melquisedeque com o sacerdócio, nem há qualquer conexão demonstrável entre 11QMelq e os textos bíblicos que mencionam Melquisedeque, Gênesis 14.18-20 e Salmo 110.4”. 790

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Após o exame das questões teológicas, há aspectos exegéticos ressaltados nos estudos de Bateman IV sobre Qumran/Apocalíptica e Hebreus que merecem atenção. Em um de seus ensaios, ele compara a exegese do livro de Hebreus com seis métodos exegéticos extraídos da literatura de Qumran e da Apocalíptica. O primeiro método é a exegese temática, que é exemplificada pelo manuscrito 4Q174, no qual o autor do texto liga duas passagens do Pentateuco, que falam de um santuário literal e de uma comunidade prévia a este santuário (Êx 15.17c-18; Dt 23.3-4), com outros textos que falam da aliança davídica e da restauração de sua dinastia (2Sm 7.10b, 11, 12b,13b-14a; Am 9.11), a fim de formular um ensino escatológico da comunidade a respeito da vinda iminente do rei davídico e de seu governo sobre o santuário. Este método é, então, relacionado ao modo como o autor de Hebreus lida com várias passagens do AT que se dirigem a Deus (Dt 32.43; Sl 104.4. 102.26-27) e ao governante davídico (2Sm 7.14; Sl 2.7; 45.6-7; Sl 110.1), para mostrar que o Filho está no presente governando à direita de Deus como rei-sacerdote e aguardando a completa subjugação de seus inimigos.795 Outros métodos hermenêuticos extraídos de seu estudo são: a exegese do textoprova, no qual uma fórmula introdutória é seguida de um texto bíblico que fundamenta a afirmação de um princípio (CD 10.14-17a e Hb 10.15-18; 13.5-7); exegese harmonizadora, em que o texto bíblico é reescrito ou inserido dentro do argumento do autor, sem uma fórmula introdutória (Jub; CD 4.10-12 e Hb 10.35-39; Hb 12.12-13); exegese do ‘já, mas ainda não’ interpreta o texto bíblico como cumprido parcialmente no presente, mas tendo um elemento que ainda aguarda a consumação futura (1QpHab 7.17—8.3 e Hb 2.5-9); exegese alegórica, as palavras do texto são entendidas não de acordo com seu sentido histórico-gramatical, mas conforme um significado mais profundo escondido por trás do texto (CD 6.3b-11 e Hb 7.2-3); e exegese suplementar, pela qual o autor supre a ausência de alguma informação no texto bíblico ou busca embelezá-lo (a descrição de Sara em 1QapGen 20.2-8a; o acréscimo do advérbio temporal em Gn 9.22 na LXX; Hb 1.8-9).796

Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 29-32. Em outra ocasião, Bateman IV dedica um ensaio inteiro analisando as correspondências exegéticas entre 4Q174 e Hb 1.5-13 (Ver Idem, “Two first-century messianic uses of the OT: Hebreus 1.5 and 4QFlorilegium 1.1-19”, p. 11-27). Na conclusão deste segundo artigo, ele diz que o uso dos textos messiânicos pelo autor de Hebreus (1.5-13 com Sl 2.7; 2Sm 7.14; Sl 110.1) reflete o mesmo uso feito deles pela tradição judaica (p. 26-27). 796 Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 32-51. 795

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Apesar de Bateman IV afirmar com convicção que o autor de Hebreus empregou “todas as formas comuns disponíveis de exegese do primeiro século para demonstrar a partir da Escritura hebraica a importância de um remanescente comprometido com o Filho exaltado de Deus”,797 deve-se questionar a dependência direta e consciente do autor de Hebreus destes métodos, especialmente pelo foco maciço de Bateman IV nos exemplos da hermenêutica de Qumran.798 Não se questiona o fato de o autor de Hebreus lidar com o texto bíblico, em alguns aspectos, de forma semelhante ao judaísmo do primeiro século, mas como Koester observou adequadamente: A leitura cristológica do AT pelo autor de Hebreus se distingue de outros tipos de interpretação bíblica do judaísmo do primeiro século. O autor realmente usa métodos que os intérpretes judeus usaram. Como os escritores dos Manuscritos do Mar Morto, o autor de Hebreus compreende que os sentidos dos textos bíblicos para os últimos tempos têm sido desvendados a ele; mas em contraste com os autores de Qumran, o autor de Hebreus insiste que o elemento que define o fim dos tempos é a morte e a exaltação de Jesus. 799

Algumas comparações de Bateman IV são válidas, como a exegese temática, a suplementar, a harmonizadora e a exegese de texto-prova, porém elas não são exclusivas da comunidade do Mar Morto. Como ele mesmo reconhece em outro artigo, havia uma relação de semelhança entre a prática exegética de Qumran com a prática rabínica estabelecida nas sete middôt de Hillel. 800 A comparação de metodologia com a exegese judaica do primeiro século lança luz sobre a prática interpretativa do autor de Hebreus,801 ajudando a entender o que o autor faz com o texto da Escritura e o porquê ele lida de tal forma.802 Entretanto, deve se tomar cuidado com a abertura demasiada com paralelos de fora do cristianismo, no sentido de não se deixar levar por uma falta de consideração maior pelo próprio contexto original do texto citado803 nem se perder a percepção de como certos conceitos se desenvolveram dentro do próprio cânon.

Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 52. 798 A maior parte dos exemplos fornecidos por Bateman IV se concentra na exegese dos Manuscritos do Mar Morto. 799 Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 118. 800 Ver Hebert W. BATEMAN IV, “Two first-century messianic uses of the OT: Hebreus 1.5 and 4QFlorilegium 1.1-19”, p.16-20. O texto de Jacob Zallel LAUTERBACH, “Talmud Hermeneutics”, JE, v. 12, p. 32-33 oferece uma explicação mais detalhada das middôt (cf. também Klyne SNODGRASS, “The Use of the Old Testament in the New”. In: G. K. BEALE, The right doctrines from the wrong texts?: essays on the use of the Old Testament in the New, p. 43). 801 George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 923; Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 122-123. 802 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 194. 803 Darrel BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New”, p. 117-118. 797

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Isso é visto no excesso de preocupação por parte de Bateman IV em observar semelhanças entre Hebreus 1.5-13 com 4Q174 1.1-19,804 que o desloca da relação entre os Salmos 2.7 e 110.1 com 2Samuel 7.14 dentro do próprio contexto canônico, no qual a aliança davídica de 2Samuel 7 ganha expressão na proclamação esperançosa dentro dos Salmos 2 e 110.805 A expectativa messiânica não nasce em Qumran nem com o rabinismo do segundo templo, mas dentro do próprio AT, e é a partir da reflexão dessas conexões canônicas que o autor de Hebreus reconhece a posição real de Cristo e seu futuro governo.806 A compreensão da exegese do autor de Hebreus precisa começar não em Qumran, mas nas Escrituras Hebraicas e na própria leitura paradigmática oferecida por Cristo, à luz de sua morte e ressurreição (cf. Lc 24.44-47), para então percorrer os métodos exegéticos do segundo templo. Como Darrel Bock afirmou corretamente, é adequado dizer que todas as “perspectivas hermenêuticas-chaves do NT emergem dos eventos da vida de Jesus (Cristologia) ou de perspectivas já presentes no AT (solidariedade corporativa ou uso de um padrão)”.807 6.2. O Contexto Epistolar e da Porção Literária de Hebreus 12.14-29 Uma compreensão adequada do contexto histórico que cercou a carta aos Hebreus e do desenvolvimento do argumento literário-teológico do autor é extremamente necessária para a interpretação correta da passagem em análise.808 Portanto, este subponto oferecerá uma exposição geral dos aspectos introdutórios de Hebreus e desenvolverá uma visão panorâmica do argumento construído pelo autor ao longo do livro. 6.2.1.

O Contexto Histórico da Carta aos Hebreus Donald Guthrie observou que o livro de Hebreus “apresenta mais problemas do que

qualquer outro livro do Novo Testamento”.809 A questão da autoria, por exemplo, permanece insolúvel com várias propostas feitas, mas nenhuma delas conclusiva, cabendo a este escritor Ver seu artigo supra citado “Two first-century messianic uses of the OT: Hebreus 1.5 and 4QFlorilegium 1.119”, p. 11-27. 805 Para um estudo mais detalhado de como as expectativas tipológico-messiânicas e messiânicas se desenvolveram nos Salmos 2 e 110 a partir de 2Samuel 7, ver Eugene H. MERRILL, História de Israel no Antigo Testamento, p. 277-281, 291-294. 806 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 18-19. 807 Darrel BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New: Part 2”, p. 313. Ele continua dizendo: “Assim, o elementos chaves na abordagem hermenêutica do NT , de acordo com Longenecker, não são encontrados na hermenêutica judaica, mas na história e teologia do Antigo Testamento e no primeiro advento de Jesus”. 808 Gordon D. FEE, Douglas STUART, Entendes o que lês?, p. 33-41. 809 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 13. 804

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a mesma confissão de Orígenes: “Mas quanto a quem realmente escreveu a epístola, Deus sabe a verdade da questão”.810 As sugestões são várias, desde Paulo, passando por Barnabé, Lucas, Apolo, Priscila, entre outros, até Clemente de Roma. 811 O que podemos afirmar, com muita probabilidade, é que o autor era um judeu helenista, com um profundo conhecimento do grego, que se converteu ao cristianismo, fazendo parte da segunda geração de cristãos (cf. 2.3ss.).812 Ele tinha uma grande familiaridade com o AT, especialmente o texto apresentado pela LXX, e meditou por longo período acerca da abordagem cristã à Escritura Sagrada.813 Além disso, ele conhecia bem seus destinatários e quando os exorta e os adverte, “o faz com fina sensibilidade e tato”.814 O título da carta “Aos Hebreus”, atestada desde cedo por Pantenus e Tertuliano, favorece o entendimento de que a comunidade destinatária era formada por judeus cristãos. 815 Mesmos assim, há comentaristas modernos que questionam a originalidade do título e argumentam em prol de recipientes cristãos gentílicos, dizendo que temas como “arrependimento de obras mortas”, “fé em Deus”, “juízo eterno”, só seriam “ensinos elementares a respeito de Cristo” (Hb 6.1ss., NVI – grifo do autor), caso estes cristãos fossem gentios.816 Apontam também para o fato de que a advertência para que os leitores não se afastassem do “Deus vivo” (Hb 3.12) indicaria mais prontamente destinatários gentios do que judeus.817

810Citado

por F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. xliii. Para uma exposição detalhada das várias posições da autoria, ver David L. ALLEN, Hebrews. p. 29-61. Os resumos destas várias perspectivas podem ser encontradas em Robert H. GUNDRY, Panorama do Novo Testamento, p. 371-373; F. F. BRUCE, Op. cit., p. xxxvi-xlii; Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 6-7; Myles M. BOURKE, “The Epistle to the Hebrews”. In: JBC, v. 1, p. 381-382; Werner Georg KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 526-528. A defesa de uma origem paulina para a carta, rejeitada maciçamente nos dias atuais (cf. Hb 2.3-4), é bem antiga na igreja primitiva, remontando a Orígenes (cf. Eusebius PAMPHILIUS, Church History, 6.14.2. In: Philip SCHAFF (ed.), Nicene and Post-Nicene Fathers, Serie 2, v. 1, p. 643). João Calvino entendia que tanto a autoria de Lucas quanto de Clemente eram bem prováveis (Ver John CALVIN, Commentaries on the Epistle of Paul the apostle to the Hebrews, p. 308-309); Zane Hodges defende a autoria de Barnabé (Ver Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 776-778); Hugh Montefiore argumenta em favor de Apolo como autor e a igreja de Corinto como a destinatária da epístola (Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 1-32). 812 D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 440; Myles M. BOURKE, Op. cit., p. 382. 813 George GUTHRIE, “Hebrews”. In: NLTSB, p. 2082; F. F. BRUCE, Op. cit., p. xlii; Donald GUTHRIE, Op. cit., p. 19. Este uso e familiaridade com a LXX pesa grandemente em favor de sua origem judaico-helenista (A. W. ROBERTSON, El Antiguo Testamento en el Nuevo, p. 188-189). 814 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 19; cf. Robert H. GUNDRY, Op. cit., p. 374. 815 Leon MORRIS, Op. cit., p. 4. Ver Eusebius PAMPHILIUS, Op. cit., 6.14.8, p. 644. 816 Werner Georg KÜMMEL, Op. cit., p. 524-525. 817 Idem, p. 525. 811

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Em contrapartida, deve ser dito que o peso maior da evidência apoia a sugestão de uma comunidade judaico-cristã destinatária. Primeiramente, todo o argumento do autor se move, de forma consistente, dentro do contexto do AT e do ritual levítico. 818 Ainda que os gentios cristãos reconhecessem o AT, especialmente a LXX, como escritura sagrada e estivessem familiarizados com ele, os recipientes da carta demonstravam uma forte tendência a apostatar da fé cristã (cf. 2.1-4; 3.6-14; 5.11 – 6.12; 10.19-39),819 não fazendo sentido a construção de um argumento sobre a superioridade de Cristo em relação ao tabernáculo, ao sacerdócio e aos sacrifícios para leitores cuja tentação era o retorno ao paganismo. 820 Em segundo lugar, a insistência do autor de que a antiga aliança deixara de ter vigência diante da inauguração da nova aliança, pressupõe cristãos que ainda estão pensando em voltar a viver sob a primeira aliança, isto é, judeus.821 Referências incidentais tais como “ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de Abraão” (2.16 - grifo do autor), e o argumento de que Cristo é superior a Moisés (3.1ss.) são apelos muito mais significativos para judeus do que para gentios.822 Aparentemente, este grupo de judeus não vivia na Palestina, pois, o autor da epístola reconhece que seus destinatários “ajudaram os santos” em suas necessidades (Hb 6.10; cf. 13.16), enquanto a igreja da Judéia era pobre, sempre carecendo do apoio financeiro de outras igrejas (At 11.27-30; Rm 15.26; 2Co 8 - 9).823 Além do mais, o fato de que os leitores não viram Jesus pessoalmente, mas receberam a mensagem do evangelho de “segunda mão”, da parte dos apóstolos (2.3-4), indica uma comunidade judaico-cristã da diáspora, pois dificilmente membros da igreja de Jerusalém não teriam visto ou ouvido Jesus. 824 O próprio uso extensivo da LXX corrobora a compreensão de um público alvo que vivia num ambiente helenista.825

Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 2; Myles M. BOURKE, “The Epistle to the Hebrews”. In: JBC, v. 2, p. 381-382. 819 George Eldon LADD, Teologia do Novo Testamento, p. 529. 820 D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 447; Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 778. 821 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. xxvi. 822 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 4. 823 Paul ELLINGWORTH, The Epistle to the Hebrews: a commentary on the Greek text, p. 29. Zane C. HODGES, Op. cit., p. 779. 824 Robert H. GUNDRY, Panorama do Novo Testamento, p. 373; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 23. 825 Thomas L. CONSTABLE, Op. cit., p. 3. 818

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Alguns comentaristas têm buscado identificar de forma mais específica o tipo de grupo judaico para quem a carta fora dirigida, ligando-os especialmente com a comunidade de Qumran.826 Neste aspecto, F. F. Bruce oferece uma importante observação: De todos os modos, o máximo que se pode dizer neste aspecto é que os destinatários desta epístola foram, provavelmente, judeus crentes em Jesus, cujo pano de fundo não era tanto o judaísmo normativo, representado pela tradição rabínica, mas o judaísmo não conformista, cujos representantes mais proeminentes eram os essênios e a comunidade de Qumran, ao quais não eram os únicos.827

A localidade em que se encontravam os primeiros leitores da carta constitui outra incógnita. Descartada a opção de que eles viviam na Palestina, o leque se abre para inumeráveis possibilidades e propostas, dentre elas: Alexandria, Éfeso, Colossos, Galácia, Corinto, Cesaréia, Cirene 828 e Roma. 829 Esta última localização parece ser a mais provável, ainda que permaneça como uma possibilidade. Os fatos de que, desde bem cedo, o livro de Hebreus é atestado na Primeira Carta de Clemente de Roma endereçada aos Coríntios (1Clem 36)830 e de que, em ambos os escritos, os líderes da igreja são referidos como ο ἡγουμένοι (cp. Hb 13.7, 17 com 1Clem 1.3; 21.6),831 fazem de Roma um destino bem provável para a carta.832 A própria saudação no final da epístola daqueles que são “da Itália” (ο ἀπὸ τῆς Ἰταλίας - Hb 13.24) é mais naturalmente entendido como um grupo de origem italiana, vivendo em algum outro lugar do império, que envia saudação para irmãos conhecidos de seu antigo lar.833 Todavia, a frase grega dá abertura para se entender a Itália como o local de onde o autor redigiu sua carta,834 “e, assim, Roma ou alguma outra comunidade italiana como destinatária da epístola aos Hebreus permanece apenas como uma possibilidade”. 835

826

E.g.: Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 10-15. F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. xxix. Ver apoio para esta compreensão em D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 447-448. 828 Esta localização pouco conhecida foi recentemente proposta por Zane Hodges. Ele argumenta em favor de uma igreja antiga na cidade com base em textos de Atos e da estreita ligação de missionários provindos daquela região com Barnabé (cf. At 11.20 e 13.1). Hodges busca apresentar, ainda, evidências linguísticas e alusivas como base para seu argumento (ver Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 779-180). 829 Ver a listagem de destinos e seus respectivos defensores em F. F. BRUCE, Op. cit., p.xxxii-xxxvi; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 24-25. 830 Clement of ROME, “The First Epistle of Clement to the Corinthians”. In: Philip SCHAFF (ed.), Ante-Nicene Fathers, v. 1, p. 47. 831 Idem. p. 11. 832 Werner Georg KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 526. 833 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 5; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 128; Robert H. GUNDRY, Panorama do Novo Testamento, p. 373. 834 F. F. BRUCE, Op. cit., p. xxxv. 835 Werner Georg KÜMMEL, Op. cit., p. 526. 827

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A data da composição da epístola aos Hebreus continua sob discussão, porém, evidências internas e externas contribuem para uma compreensão aproximada dela. Como afirmado anteriormente, estudiosos do NT têm identificado uma relação de dependência entre a Carta de Clemente de Roma aos coríntios e a Epístola aos Hebreus (cp. 1Clem 36.1-5 com Hb 1.3-5, 13; 4.14-15). Desde que a Primeira Carta de Clemente é reconhecida, de forma geral, como escrita cerca de 96 A.D., a redação de Hebreus precisa ter ocorrido antes deste período.836 O modo como o autor lida com o sistema de culto e de sacrifícios levítico sugere fortemente a existência do templo em Jerusalém. Mesmo que ele não faça referência direta ao templo, mas ao tabernáculo (cf. Hb 8.2, 5; 9.2-3, 8; 13.10), e ainda que se possa afirmar que o tempo presente do verbo grego na abordagem dos sacrifícios e do ofício sacerdotal seja apenas um recurso literário, sem importância para a datação, o silêncio quanto à destruição do templo de Herodes pelo general Tito, em 70 A.D., corrobora fortemente para uma datação antes deste evento.837 Pois, “o autor está argumentando que o judaísmo é superado pelo cristianismo e, especificamente, que os sacrifícios do antigo sistema não têm proveito algum agora, desde que o sacrifício de Jesus foi oferecido”. 838 Assim “teria sido um clímax convincente caso o autor pudesse indicar que o templo e tudo que o acompanhava cessaram de existir”.839 Se o autor não aponta para a destruição do templo como evidência conclusiva de que o antigo pacto se tornou inútil e superado, isso se dá porque tal destruição não ocorreu.840 Além disso, há trechos que reforçam a existência presente do sistema cultual da antiga aliança: “Quando ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido está prestes a desaparecer” (Hb 8.13); “... visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem.

Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 776; D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 441-442. 837 Robert H. GUNDRY, Panorama do Novo Testamento, p. 375. 838 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 8. 839 Idem. Ibid. 840 Zane C. HODGES, Op. cit., p. 776. 836

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Doutra sorte, não teriam cessado de ser oferecidos, porquanto os que prestam culto, tendo sido purificados uma vez por todas, não mais teriam consciência de pecados?” (Hb 10.1-2).841 Por fim, o fato de que a comunidade dos destinatários da epístola não sofrera por sua fé a custo de suas próprias vidas (Hb 12.4) indica que uma perseguição generalizada como a de Nero (64 A.D.), em que muitos cristão romanos morreram, 842 ainda não ocorrera.843 Portanto, parece que uma data dentro da década de 60, porém antes de 64 A.D., seja o período mais provável para a redação de Hebreus. 844 6.2.2.

O Contexto Literário-Teológico da Epístola e de Hebreus 12.14-29 Estudiosos do NT têm discutido sobre a natureza literária do livro de Hebreus, se este

deve ser considerado uma extensa homilia ou uma epístola como as de Paulo ou de João. 845 Uma análise comparativa vem demonstrando que não havia um padrão único de se escrever cartas no contexto greco-romano e que as epístolas do NT possuem semelhanças com aquelas que circulavam no mundo de sua época, ao mesmo tempo em que apresentam diferenças importantes.846 Parece adequado classificar o livro de Hebreus como uma epístola/carta, especialmente porque seu fim é tipicamente epistolar, com uma bênção, notas pessoais e despedida final (Hb 13.22-25).847 Mas sem dúvida alguma, a obra é principalmente uma homilia, ou uma “palavra de exortação” (13.22), por meio da qual o autor desenvolve extensa argumentação teológica e traz exortações práticas decorrentes de seu ensino.848 A temática de Hebreus é “a total supremacia e suficiência de Jesus Cristo como revelador e mediador da graça de Deus”.849 O autor enfatiza a superioridade do cristianismo em relação ao judaísmo, o 841

D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 443-444; F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. xliv-xlv. 842 Sobre a sangrenta perseguição de Nero aos cristãos, ver: Kenneth Scott LATOURETTE, A history of christianity: beginnings to 1500, p. 85; Justo L. GONZÁLEZ, Uma história ilustrada do cristianismo: a era dos mártires, v. 1, p. 54-58. 843 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 26-27. 844 F. F. BRUCE, Op. cit., p. xliii. 845 Ver Myles M. BOURKE, “The Epistle to the Hebrews”. In: JBC, v. 2, p. 382; Donald GUTHRIE, Op. cit., p. 28-29; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 3-4. 846 D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Op. cit., p. 262-264. 847 Robert H. GUNDRY, Panorama do Novo Testamento, p. 375; D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Op. cit., p. 432. 848 Thomas L. CONSTABLE, Op. cit., p. 3-4; Werner Georg KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 521-522. Ver a breve análise acerca das várias perspectivas sobre a retórica do autor de Hebreus em James W. THOMPSON, Hebrews, p. 10-12. 849 John WERNER, Philip E. HUGHES, “Hebreus”. In: Kenneth BARKER (Org.), Bíblia de estudo NVI, p. 2092. 133

qual foi superado pelo primeiro, e adverte àqueles que abraçaram à nova ordem sobre as consequências perigosas de retornar à antiga. 850 O prólogo da carta destaca o caráter superior, perfeito e definitivo da revelação de Deus por meio de Jesus Cristo, que transcende as palavras pronunciadas pelos profetas no passado, porque o Filho é a expressão exata do ser divino (1.1-4).851 O verso 4 serve de dobradiça para a sequencia do argumento, em que o autor aponta para a superioridade do Filho em relação aos anjos mediante uma série de passagens do AT, que indicam seu governo celeste e universal como também sua dignidade em ser adorado (1.5-14).852 Em seguida, o autor apresenta uma exortação, advertindo seus leitores acerca da imensa seriedade de se rejeitar a revelação do Filho, desde que o castigo veio sobre aqueles que rejeitaram a lei dada por anjos, seres cuja dignidade é inferior ao Filho (2.1-4).853 A continuidade na comparação entre Jesus e os anjos abre uma nova janela argumentativa e o autor, então, mostra que Cristo é aquele que haverá de reinar sobre todas as coisas (2.4-8), mas para isso, ele “foi feito pouco menor do que os anjos”, identificando-se com a condição humana e sofrendo como homem, a fim de se tornar o “sumo sacerdote misericordioso e fiel” capaz de socorrer os seres humanos em sua condição pecaminosa e culpada (2.5-18).854 A fidelidade de Jesus como sumo sacerdote introduz uma nova seção que mostra a superioridade do Filho em relação a Moisés. Este foi fiel como servo de Deus e construtor de sua casa, mas Jesus é fiel como Filho sobre a casa de Deus, o que o faz superior a Moisés e requer dos cristãos a confiança e esperança em Cristo para que continuem a ser membros desta casa (3.1-6).855 Outra seção parenética surge quando o autor da carta exorta seus leitores a se cuidarem, mediante o encorajamento mútuo, para não se tornarem como o povo de Deus da época de Moisés, cujo coração endurecido pela incredulidade os levou a rebelar-se contra Deus, receber a punição devida e não entrar no descanso da terra prometida (3.7-14).856 O “descanso” é usado na carta como a dobradiça para um novo ensino, isto é, a demonstração da existência de um descanso reservado para o povo de Deus, o qual não se F. F. BRUCE, “The Structure and Argument of Hebrews”, p. 6. Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 781; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 2; John WERNER, Philip E. HUGHES, “Hebreus”. In: Kenneth BARKER (Org.), Bíblia de estudo NVI, p. 2092. 852 D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 435; F. F. BRUCE, Op. cit. p. 6. 853 George GUTHRIE, “Hebrews”. In: NLTSB, p. 2085-2086. 854 Buist M. FANNING, “Teologia de Hebreus”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 418-422. 855 F. F. BRUCE, Op. cit., p. 7. 856 Werner Georg KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 512. 850 851

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concretizou com a geração que entrou na terra prometida com Josué, mas ainda aguarda seu cumprimento derradeiro no desfrute que os crentes terão do “descanso” do próprio Deus (4.111).857 A palavra de Deus que adverte contra a incredulidade e apresenta o caminho para o descanso, também, perscruta o coração humano e revela as intenções e pensamentos verdadeiros por trás de uma confissão de fé (4.12-13).858 Em suas fraquezas, expostas pela própria Palavra de Deus, os leitores cristãos da carta poderiam recorrer ao sumo-sacerdote Jesus, o Filho de Deus, que compreendia as suas tentações, por ele mesmo ter sido tentado, e que cumpriu a sua missão sacerdotal possibilitando o acesso dos crentes ao trono de graça e de misericórdia divino (4.14-16).859 Jesus é sacerdote de uma ordem diferente da levítica, ele foi designado por Deus como sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque e cumpriu o seu ofício mediante o sofrimento, disponibilizando assim a salvação eterna a todos que lhe obedecem (5.1-10).860 O autor da epístola abre parênteses em seu argumento e expressa sua preocupação pela morosidade no caminhar da fé cristã de seus leitores, que demonstravam infantilidade espiritual quando deveriam ser maduros (5.11-14). Diante de tal situação, ele exorta os destinatários a avançarem no seu conhecimento e vivência do evangelho e os adverte sobre as tristes consequências da apostasia (6.1-8).861 Quanto a seus leitores, porém, o escritor de Hebreus espera uma atitude diferente, que reflita a salvação em Cristo, evidente na vida deles pelas boas obras que praticaram, e os chama a manterem sua esperança firme nas promessas de Deus, como fez Abraão no passado (6.9-20). No capítulo 7, o texto de Hebreus apresenta vários paralelos tipológicos entre Melquisedeque e Jesus, como o fato de ser chamado “rei de justiça” e “rei de paz” e não possuir indicação de nascimento nem de morte, como o Filho que é eterno, demonstrando que o sacerdócio de Cristo é superior ao sacerdócio levítico da antiga aliança. Tal superioridade é 857

D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 435-436. Robert H. GUNDRY, Panorama do Novo Testamento, p. 376; James W. THOMPSON, Hebrews, p. 18. 859 F. F. BRUCE, “The Structure and Argument of Hebrews”, p. 7-8. 860 Werner Georg KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 512. 861 Quanto à discussão polêmica sobre o significado da passagem de Hebreus 6.4-8, ver uma exposição resumida das várias posições em: Robert H. GUNDRY, Op. cit., p. 378-379; Buist M. FANNING, “Teologia de Hebreus”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 450-452. Este autor crê que a passagem se relaciona com crentes em Cristo (ver expressões como “provaram o dom celestial”; “foram iluminados”; “participantes do Espírito Santo”; cf. Hb 10.32; 3.1, 14) que resolveram viver deliberadamente em seus pecados, a tal ponto que Deus os entrega ao engano de seus próprios corações, como medida corretiva e disciplinar, de forma que eles não mais se arrependem nem voltam a desfrutar de comunhão com Deus nesta vida, ainda que sejam salvos no futuro (cf. 1Co 5.1ss.; 1Jo 5.16-17). Como apoio a esta posição ver Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 53-58. 858

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reforçada pelo fato de que Abraão, bisavô de Levi, deu o dízimo a Melquisedeque e foi por ele abençoado (7.1-10).862 O próprio fato de que o Salmo 110 indicava a existência de um novo sacerdócio segundo a ordem de Melquisedeque evidenciava a imperfeição do sistema levítico e a superioridade do sacerdócio do Filho que garantiu uma aliança superior à primeira (7.11-22). A superioridade do Filho ainda se evidencia por seu sacerdócio permanente, já que ele não morre como os demais sacerdotes levitas, e por ele ser santo e inculpável, sem necessidade de oferecer sacrifícios por si como os sacerdotes instituídos pela lei precisavam (7.23-28).863 O tabernáculo celestial em que Jesus serve, bem como o seu ministério, são superiores ao tabernáculo e ministério terreno dos outros sacerdotes (8.1-6). Da mesma forma, a nova aliança prevista em Jeremias 31.31-34, da qual o Filho é o mediador, é superior à antiga aliança e a torna antiquada (8.7-13). No capítulo 9, o autor descreve brevemente a composição do tabernáculo com sua mobília, mostrando quão restrito era o acesso a Deus na antiga aliança, pois toda a pompa e todo o ritual do tabernáculo, com seus sacrifícios de animais, eram incapazes de conceder uma consciência limpa para o adorador (9.1-10).864 A superioridade do sacrifício de Cristo se dá pelo derramamento de seu próprio sangue, mediante o qual ele é capaz de purificar a consciência e conceder redenção eterna para aqueles que nele creem (9.11-15).865 Este mesmo sangue do autossacrifício do Filho ratificou a nova aliança e estabeleceu de uma vez por todas a salvação dos pecados (9.16-28). A antiga aliança servia apenas como sombra da realidade maior da nova aliança, que possui caráter definitivo e eficácia permanente por meio do sacrifício de Cristo, sendo confirmada pela própria entronização do Filho que não necessita mais oferecer sacrifícios, ao contrário, aguarda a derrota final de seus inimigos (10.1-18).866 Por isso, o autor de Hebreus encoraja seus leitores a se aproximarem de Deus com suas consciências limpas pelo sangue de Cristo, a apegarem-se firmemente à esperança que professaram e a cultivarem a comunhão na congregação local com a finalidade de exortarem-se mutuamente (10.19-25). 867 A opção por rejeitar a nova aliança e seus benefícios, mediante uma vida de pecado deliberado, traria severo castigo da parte do Deus vivo (10.26-31). Com imensa sensibilidade pastoral, o autor 862

George Eldon LADD, Teologia do Novo Testamento, p. 536. Werner Georg KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 513. 864 F. F. BRUCE, “The Structure and Argument of Hebrews”, p. 9. 865 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 7-8. 866 D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p. 436. 867 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 89. 863

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evoca na mente de seus leitores a lembrança de seus primeiros dias na fé e do quanto sofreram por causa de Cristo, chamando-os novamente a perseverarem em sua confiança no evangelho, certos de que receberiam a salvação que Deus prometeu (10.32-39). A definição de fé apresentada no capítulo 11 como “a certeza daquilo que esperamos e a convicção de fatos que não vemos” (11.1) serve como introdução para a galeria da fé, que relembra a confiança perseverante de personagens importantes da história da salvação de Deus, as quais esperaram nele, mesmo sem receber plenamente suas promessas (11.2-40).868 A passagem segue a forma de um exempla (lista de exemplos), mecanismo retórico empregado pelos autores antigos para desafiar seus leitores à ação.869 O exemplo maior de entrega a Deus é Jesus, autor e consumador da fé, que experimentou a vergonha por esperar pela alegria que o Pai lhe prometera (12.1-2).870 Tudo isso deveria renovar o vigor espiritual dos leitores da carta e ajudá-los a compreender que as provas pelas quais passavam, faziam parte do plano do seu Pai amoroso, que os disciplinava como demonstração de amor, visando santificá-los (12.3-13).871 O autor então desafia seus leitores a se esforçarem na corrida da fé, cultivando a paz nos relacionamentos e a santidade, e os adverte com o exemplo de Esaú, que negociou e perdeu de forma irrevogável seu direito de primogenitura por causa de um bem-estar momentâneo (Hb 12.14-17).872 O contraste na descrição da cena do Sinai e do monte Sião é feito de uma forma “bela e bem estruturada”, a fim de mostrar que os privilégios maiores da nova aliança trazem consigo responsabilidade maior,873 implicada na disposição de ouvir a voz de Deus e obedecê-la até o fim do mundo 874 e expressada no serviço aceitável a Deus em firme apego à graça de Deus e em temor a ele (Hb 12.18-29).875 O capítulo final traz um apelo à comunidade destinatária para “mostrar um estilo de vida que reflita a adoração a Deus e uma identificação sem reservas com a comunidade de fé”. 876 Uma série de exortações lida com os deveres individuais de cada cristão de viver o 868

Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 52-53; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 9. 869 George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 984. 870 F. F. BRUCE, “The Structure and Argument of Hebrews”, p. 11. 871 D. A. CARSON, Douglas J. MOO, Leon MORRIS, Op. cit., p. 436-437; Buist M. FANNING, “Teologia de Hebreus”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 450. 872 Philip Edgcumbe HUGHES, Op. cit., p. 9. 873 Thomas HEWITT, The epistle to the Hebrews: an introduction and commentary, p. 198-199. 874 William L. Vander BEEK, “Hebrews: a doxology of the Word”, p. 17. 875 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 143-144. 876 William L. LANE, Hebrews 1—8, p. ci; cf. Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 121. 137

amor de forma prática, cultivar a pureza de vida e o contentamento (Hb 13.1-6).877 O exemplo dos antigos guias da comunidade, que haviam terminado sua jornada terrena, deveria permanecer em suas mentes como encorajamento à firmeza na fé, tendo consigo a presença do guia que nunca morreria nem mudaria, Jesus Cristo (13.7-8).878 A imutabilidade de Cristo e a superioridade de seu sacrifício serviriam de inspiração para que os leitores da carta se recusassem a ir atrás de ensinos novos e estranhos à tradição cristã879 e para que seguissem o modelo de Jesus, abandonando decisivamente a cidade e o santuário transitórios e se concentrando na cidade permanente que está por vir (13.9-14).880 Como ofertantes da nova ordem estabelecida por Jesus, os cristãos devem oferecer sacrifícios de louvor a Deus e de obras de amor (13.15-16).881 A exortação para que os cristãos obedeçam a seus líderes, a fim de que exerçam o seu trabalho com alegria, leva o autor a pedir que a igreja ore por sua vida e por sua libertação da cadeia, o que sugere que ele mesmo fosse um de seus líderes (13.17-19).882 Na doxologia final, vários temas da epístola são relembrados (paz, sangue, aliança, Pastor e aperfeiçoamento) como expressão de confiança de que Deus realizará sua obra na vida dos destinatários por meio de Cristo (13.20-21).883 A conclusão epistolar inclui vários traços comuns das cartas cristãs antigas, um comentário sobre o que foi escrito, um compartilhar de informação pessoal e a menção de uma futura visita, saudações finais e a expressão do desejo de despedida de que a graça divina esteja com aquela comunidade (Hb 13.22-25).884 6.3. Análise Exegética e Intertextual das Citações e Alusões de Hebreus 12.14-29 Como observou Victor Rhee, a porção de Hebreus 12.14-29 está estruturada numa forma quiasmática, em que as subseções inicial e final trazem apelos hortatórios, e as outras duas subseções do centro apresentam o contraste entre a aproximação de Deus na antiga e na

877

Thomas HEWITT, The epistle to the Hebrews: an introduction and commentary, p. 204-205. F. F. BRUCE, “The Structure and Argument of Hebrews”, p. 12. 879 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 149. 880 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 10. 881 F. F. BRUCE, Op. cit., p. 12. 882 Leon MORRIS, Op. cit., p. 153. 883 Zane C. HODGES, “Hebrews”, BKC, v. 2, p. 813. 884 Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 86. 878

138

nova aliança.

885

Assim, a forma literária da passagem pode ser representada da seguinte

maneira: A. Exortação: Não falhem em se apropriar da graça de Deus (12.14-17) B. Os cristãos não se aproximaram do Monte Sinai (12.18-21) B’. Os cristãos se aproximaram do Monte Sião (12.22-24) A’. Exortação: Não rejeitem aquele que fala dos céus (12.25-29) 6.3.1.

Exortação: Não falhem em se apropriar da graça de Deus (Hb 12.14-17) Na primeira subseção, há uma ordem para que os leitores busquem uma vida pacífica

para com todos (Ε ρήνην διώκετε μετὰ πάντων), já que o caráter pacífico é marca dos filhos de Deus (12.14; cf. Mt 5.9; Rm 12.18).886 O autor provavelmente tenciona evocar a injunção do Salmo 34.14: “busque a paz com perseverança” (NVI). “Nós não devemos fazer isso meramente para desfrutarmos de uma existência pacífica, mas para que a bênção da paz de Deus flua por meio de nós para as vidas de outros. Os efeitos do evangelho devem ser sentidos na sociedade como um todo”.887 Além da paz, os leitores também deveriam buscar a santificação (καὶ τὸν ἁγιασμόν), o que implica em pureza de vida e conformidade à vontade divina, elemento essencial para se contemplar a glória de Deus (12.14; cf. Mt 5.8). Tal contemplação deve ser uma referência à presença futura perante o Senhor, como o tempo verbal no futuro sugere (ὄψεται; cf. 1Jo 3.2-3).888 “Ver ao Senhor é a bênção mais alta e gloriosa que os mortais podem desfrutar, mas a visão beatífica está reservada para aqueles que são santos em seu coração e vida”. 889 No verso 15, o autor exorta ainda os leitores a cultivarem entre si o cuidado ou a supervisão de uns pelos outros (ἐπισκοποῦντες)890 com um propósito em vista. Eles deveriam zelar para que ninguém “falhasse em alcançar a graça de Deus” (ὑστερῶν ἀπὸ τῆς χάριτος τοῦ θεοῦ),891 deixando de se apropriar dos recursos disponíveis por ela para perseverar na corrida Ver Victor (Sung-Yul) RHEE, “Chiasm and the concept of faith in Hebrews 12.1-29”, p. 278ss; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 115. Rhee vê esta porção de Hebreus de forma conjunta, como uma seção parenética e estruturada em forma de quiasma. 886 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 367. 887 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 536. 888 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 241. 889 F. F. BRUCE, Op. cit., p. 368. 890 O particípio grego é usado com um sentido imperativo (Ver R. J. D. UTLEY, The Superiority of the New Covenant: Hebrews, p. 129). 891 BAGD, p. 849. 885

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proposta aos cristãos (Hb 4.14-16; 12.1). “Deus não é mesquinho em oferecer sua graça. Ele dá a seu povo tudo o que eles precisarão se apropriar. Portanto, é importante que eles não falhem em fazer uso das oportunidades que têm”. 892 A falta em perseverar no uso dos benefícios da graça divina levaria um cristão a se afastar de Deus e se tornar uma raiz de amargura, que contaminaria outros irmãos dentro da comunidade. 893 A “raiz de amargura” remonta à advertência dada por Moisés, em Deuteronômio 29.18, contra o surgimento de membros da assembleia que poderiam se afastar do Deus vivo para seguirem outros deuses, tornando-se uma semente venenosa no meio do povo de Deus.894 Apesar de não ser uma citação direta de Deuteronômio, as palavras usadas para construir a frase “que não haja alguma raiz de amargura que, brotando, vos perturbe” (μή τις ῥίζα πικρίας ἄνω φύουσα ἐνοχλῇ) (Hb 12.15b) são em grande parte tomadas da LXX de Deuteronômio 29.17[RA 18], “que não haja entre vós alguma raiz que brote895 com amargura e com rancor”(μή τίς ἐστιν ἐν ὑμῖν ῥίζα ἄνω φύουσα ἐν χολῇ καὶ πικρίᾳ), com pequenas alterações, pois o autor faz uma alusão ao texto 896 e sua mensagem, sem uma introdução formal. Como o realce acima demonstra, o escritor de Hebreus mudou a ordem de algumas palavras, mantendo em grande parte o sentido da LXX e do TM. A ausência de ἐστιν ἐν ὑμῖν em nada modifica o significado básico da construção, já que ἐστιν é naturalmente subentendido, e a expressão ἐν ὑμῖν, que indica um discurso direto, é pressuposta pelo imperativo de Hebreus 12.14. Alguma alteração é percebida entre ῥίζα πικρίας ἄνω φύουσα (Hb 12) e ῥίζα ἄνω φύουσα ... πικρίᾳ (Dt 29 LXX), porém desde que o genitivo πικρίας é interpretado como objetivo aqui (“raiz que produz algo amargo”),897 e não descritivo, a ideia do produto ou do fruto amargo é mantida. 898

Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 139. Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 68. Ver a exortação similar em Hebreus 3.12-13, em que o encorajamento e o cuidado mútuo é o antídoto contra um coração incrédulo e perverso no seio da comunidade cristã. 894 George GUTHRIE, “Hebrews”, NLTSB, p. 2106; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 116. 895 O particípio presente é traduzido aqui no subjuntivo por sofrer a mesma modificação que o verbo presente ἐστιν experimenta, causada pelo advérbio negativo μή. Ver a tradução de SVOTE, que traduz apenas a primeira frase no subjuntivo e mantém o particípio. 896 George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 988. 897 Carlos Osvaldo PINTO, Fundamentos para a exegese do Novo Testamento, p. 14 (C). 898 Ver Brooke F. WESTCOTT, The epistle to the Hebrews: notes and essays on the Greek text, 3ed., p. 409. Westcott observa que “‘raiz de amargura’ expressa o produto e não simplesmente a qualidade da raiz em si mesma”, e cita o comentário de Crisóstomo em apoio à sua interpretação. Cf. Leon MORRIS, Op. cit., p. 139140. Apesar de Christian Maurer pontuar que o uso de φύουσα na LXX é intransitivo, enquanto no TM é transitivo (cf. Christian MAURER, “ ίζα”. In: TDNT, v. 6, p. 987), parece que o sentido do hebraico é preservado na LXX (Ver Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 539, nota 143). 892 893

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A diferença principal está nos dois termos em vermelho. Enquanto em Hebreus 12 é ἐνοχλῇ (“cause perturbação”), na LXX de Deuteronômio 29 é ἐν χολῇ (“com rancor”). Apesar da leitura de Hebreus contar com o apoio de um códice alexandrino da LXX, não é a leitura principal, 899 e a semelhança grande na grafia dos dois termos tem levado alguns comentaristas a proporem que o texto atual de Hebreus passou por um erro de copista, uma metátese,900 que alterou o texto original dessa parte da epístola, a qual seguia a LXX. 901 Todavia, visto que esta proposta não conta com nenhum apoio textual902 e a passagem do Pentateuco é apenas aludida, mas não citada pelo escritor cristão, o mais natural é compreender que tal raiz de amargura causará perturbação (ἐν χολῇ) no meio da comunidade cristã,903 seja na perturbação e destruição que o pecado causa por si mesmo 904 como também na contaminação de outros com o mesmo coração incrédulo e perverso (διʼ αὐτῆς μιανθῶσιν πολλοί).905 O sentido do verso 15b, portanto, diz respeito ao perigo de alguém que diante das dificuldades encontradas ao longo da jornada cristã, endurece seu coração em pecado e rebeldia, “afastando-se do Deus vivo” (3.12-12), e corrompe outros com o mesmo coração incrédulo e apóstata.906 Dado o constante apelo para que os destinatários permanecessem fiéis a Cristo e à aliança ratificada por ele (e.g. 10.26ss.; 12.1-3; 13.11-14) e lutassem contra a incredulidade, confiando nas promessas divinas (Hb 3.12-13; 6.9-20; 10.22-23; 13.7), a “raiz de amargura” é alguém que deixa de perseguir a paz e a santidade alicerçadas na graça de Deus (vv. 14-15a), e adota a postura profana de Esaú para com os privilégios dados por Deus (v. 16).907

899

Ver LXXApp Dt 23.18, v. 1, p. 404. A metátese é uma mudança linguística que consiste na troca de lugares de fonemas ou sílabas dentro de um vocábulo. 901 Ver Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 539, n. 143; F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 365, n. 92. 902 Ver aparato crítico da UBS4 que não remete a nenhum problema textual aqui e o da NA 27 que apresenta a proposta de ἐν χολῇ apenas como conjectura. Ver a discussão em William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 439, n. h. 903 Talvez o autor de Hebreus use propositadamente este termo em sua advertência como uma espécie de trocadilho com o termo do texto da LXX. Sem dúvida alguma, ele pensa nos efeitos destrutivos em massa, causados por alguém que é infiel à aliança, descritos no contexto de Dt 29.18 (vv. 19, 22-24). 904 Ver a desgraça que a raiz que produz fruto amargo traz para toda a comunidade em Dt 29.19c (Cf. J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 270; Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21.10 – 34.12, p. 721). 905 Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 224; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 241; Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 140. 906 Philip Edgcumbe HUGHES, Op. cit., p. 539. 907 William L. LANE, Op. cit., p. 454. 900

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O uso da metáfora de Deuteronômio 29.18 [17] pelo autor de Hebreus mantém o sentido original, em ambos os textos a “raiz de amargura” faz referência a uma pessoa que adota uma postura de infidelidade a Deus/Cristo e à sua aliança (cf. Dt 29.18-19),908 que, como consequência, causa desgraça sobre toda a comunidade (Hb 12.14 – “vos perturbe”; Dt 29.19c - “a fim de destruir o irrigado com o seco”) e que “contamina a muitos” (cf. os efeitos corruptores da infidelidade da raiz de amargura sobre toda a comunidade em Dt 29.25-27).909 Ainda que a significância seja distinta, em um caso um membro da comunidade israelita prestes a entrar na terra prometida, no outro, um membro da comunidade cristã, que está “entrando no descanso de Deus” (cf. Hb 4.3), ambos são uma advertência contra a apostasia individual da aliança que contamina muitos e causa destruição sobre a comunidade de Deus. A ‘raiz de amargura’ mencionada em 12.15 alude a Deuteronômio 29.17 LXX, uma advertência contra a rejeição da aliança devido à idolatria ... Neste contexto do AT, Moisés renova a aliança antes da travessia para a terra prometida. O autor de Hebreus usa a mesma figura para desafiar seus ouvintes a não se desviarem da superior nova aliança oferecida por Cristo.910

O modo como o autor de Hebreus insere a metáfora e o fraseado de Deuteronômio 29.18 em sua advertência, sem uma fórmula introdutória e recontextualizados dentro do argumento da epístola, é equivalente ao primeiro tipo da exegese harmonizadora do segundo templo, explicada por Bateman IV (cf. Jubileu).911 Quando se compara, porém, o modo literal como o escritor neotestamentário usa a metáfora da “raiz de amargura” de Deuteronômio com o uso dela dentro de um texto do judaísmo do segundo templo, a diferença é marcante. No Manuscrito dos hinos de Qumran (1QH 4.14) aparece a frase “uma raiz está em seus pensamentos que produz frutos venenosos e amargos”.912 Primeiramente, a “raiz ... que produz frutos venenosos e amargos” não faz referência a uma pessoa (diferente de Dt 29.18), mas à intenção interior daqueles que são chamados de “profetas de falsidade” (1QH 4.16), pois eles buscam a Deus com um “duplo coração” ou “coração obstinado” (1QH 4.14-15).913 Ainda que o termo apareça num contexto de idolatria (1QH 4.15), a “raiz” não está relacionada a alguém da comunidade essênia que se torna infiel a Deus, mas a pessoas de fora “Haverá paz para mim, ainda que eu persista na obstinação perversa do meu coração” (Dt 29.19b) Ver apoio a esta percepção em Peter Rhea JONES, “A superior life: Hebreus 12.3—13.25”, p. 394-395; Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 541; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 539; Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 224. 910 George GUTHRIE, “Hebrews”, CNTOT, p. 988. 911 Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 36-38. 912 EWQ, p. 212. 913 Idem, Ibidem. 908 909

142

dela, na verdade inimigos seus, que se opõem e perseguem o Mestre da Justiça (1QH 4.5-12; cf. Dt 29.15-19). Essa comparação demonstra que a exegese e a teologia do autor de Hebreus, neste verso, estão enraizadas conceptualmente no próprio AT, sem qualquer relação conceitual com Qumran. Enquanto o intérprete cristão utiliza a metáfora de acordo com o sentido de Deuteronômio (uma pessoa, que é parte da comunidade, se torna infiel a Deus), o intérprete de Qumran redefine o sentido da figura e a usa com uma ideia distinta da Bíblia Hebraica (as intenções do coração de um infiel que não é parte da comunidade).914 Como ilustração de uma atitude falha em se apropriar da graça de Deus, cita-se o exemplo de Esaú, descrito como “imoral” (πόρνος) e “irreverente” (βέβηλος), que por “uma única refeição” vendeu o seu direito de primogenitura (Hb 12.16; cf. Gn 25.29-34). A atitude de Esaú refletia uma atitude comum de um coração que valorizava mais as vantagens materiais ou sensuais do que sua herança espiritual. 915 “Por um pequeno ganho imediato, ele negociou o que era de valor infinitamente maior”.916 No verso 17, o autor da carta liga o desprezo da primogenitura por parte de Esaú, em Gênesis 25.29-34, com a perda da bênção relacionada a ela em 27.1-40. Provavelmente, esteja implícito na narrativa de Gênesis que “se Esaú não tivesse vendido sua primogenitura, Jacó não acharia tão fácil roubar-lhe a bênção”.917 A consequência da atitude “irreverente” de Esaú foi a rejeição (ἀποδοκιμάζω) quando voltou do campo para receber a bênção de seu pai Isaque (12.13). Suas lágrimas foram incapazes de fazer o pai mudar de mente e reverter a bênção dada a Jacó.918 Como expressou Zane Hodges: [O autor] alertou os leitores a não cederem diante das pressões transitórias e perderem suas heranças. Se alguns assim fizessem, eles lastimariam, no final, por seu tolo passo e poderiam encontrar seus privilégios de herança irrevogavelmente perdidos, como ocorreu com Esaú. Isto seria, com certeza, verdade no caso de alguém que finalizasse a vida cristã num estado de apostasia, contra o qual o autor tem continuamente alertado. 919

Um termo parecido “raiz pecaminosa” ( ίζα ἁμαρτωλὸς) ocorre em 1Mac 1.10, em referência a Antíoco Epifânio IV, mas é diferente o suficiente para, provavelmente, não remontar a Deuteronômio 29. 915 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 242; John WERNER, Philip E. HUGHES, “Hebreus”. In: Kenneth BARKER (Org.), Bíblia de estudo NVI, p. 2112. 916 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 140. 917 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 371. 918 Idem, Ibidem. Na passagem talvez haja uma referência dupla do termo μετάνοια, apontando, também, para a impossibilidade de “arrependimento” da parte de Esaú, conforme o entendimento de Thompson e Hughes (cf. Hb 6.4-6; ver James W. THOMPSON, Hebrews, p. 260; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 541). 919 Zane C. HODGES, “Hebrews”, BKC, v. 2, p. 811. 914

143

6.3.2.

Os cristãos não se aproximaram do Monte Sinai (12.18-21) Andrew T. Lincoln destaca que a parte final da seção (12.18-29) contém todos os

principais traços de um peroratio, uma recapitulação da mensagem do sermão de Hebreus que dirige o argumento do livro para o seu momento final, carregada de um elevado apelo emocional aos leitores.920 Nos versos 18-21, o escritor do livro remonta ao evento do Sinai, como momento em que a aliança mosaica fora outorgada para o povo de Israel, a fim de lançar um claro contraste com a condição de vida que a nova aliança trouxera para os cristãos da comunidade destinatária (cp. vv. 18-21 com vv. 22-24).921 A descrição dos terrores do Sinai, como o “fogo palpável e ardente” (ψηλαφωμένῳ καὶ κεκαυμένῳ πυρὶ), “as trevas” (ζόφῳ), “tempestade” (θυέλλῃ), o “som da trombeta” (σάλπιγγος ἤχῳ), está baseada nos relatos de Êxodo 19.16-19; 20.18-21e Deuteronômio 4.11-17.922 A cena relembrada em Hebreus 12.18-19 enfatiza tanto a manifestação divina clara aos sentidos (cf. ψηλαφωμένῳ; σάλπιγγος ἤχῳ; φωνῇ

ημάτων) quanto à santidade

transcendente de Yahweh (cf. Dt 4.11ss.).923 A autorrevelação gloriosa do Senhor era tão terrível que os próprios israelitas rogaram “que nada mais lhes fosse dito” e que Moisés lhes servisse de mediador, pois se consideravam incapazes de ouvir sem que a morte lhes sobreviesse (12.19; cf. Êx 20.18ss.; Dt 5.24-27). A presença de Deus em toda sua santidade, no Sinai, se destaca ainda pela ordem: “Até um animal, se tocar o monte, será apedrejado” (Hb 12.20; cf. Êx 19.13). 924 Nenhum ser poderia se aproximar deste Deus que é mysterium tremendum et fascinans; tal ameaça de punição de morte, em caso de desobediência, aumentava ainda mais o terror provocado pela teofania.925 O próprio Moisés, com quem Yahweh falava “face a face” (Nm 12.7-8), confessou: “Sinto-me aterrorizado e trêmulo” (Hb 12.21). Aqui, há uma citação do discurso

Andrew T. LINCOLN, “Hebrews and biblical theology”. In: Craig BARTHOLOMEW, et al, Out of Egypt: biblical theology and biblical interpretation, p. 319. 921 George GUTHRIE, “Hebrews”. In: NLTSB, p. 2106; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 242-243; James W. THOMPSON, Hebrews, p. 260; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 118. 922 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 374. 923 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 141. 924 David L. ALLEN, Hebrews, p. 590. 925 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 543. 920

144

de Moisés em Deuteronômio 9.19, que não se relaciona diretamente à outorga da lei, mas está ligado a ela (cp. Hb 12.21 - Ἔκφοβός ε μι καὶ ἔντρομος com Dt 9.19 - καὶ ἔκφοβός ε μι...).926 O argumento frequente de que o escritor de Hebreus não poderia ter em mente o texto de Deuteronômio 9.19 porque sua descrição em 12.18-21 diz respeito à outorga da lei no Sinai e à teofania que a precedeu, enquanto Deuteronômio 9 focaliza no evento da idolatria de Israel com o bezerro de ouro,927 deixa de perceber que o escritor neotestamentário tem uma visão completa do pano de fundo contextual dos acontecimentos no Sinai, sendo capaz de estabelecer conexões entre eventos que ocorrem na mesma fase da história da nação israelita. 928 Além disso, George Guthrie observou corretamente que há pontos em comum entre Deuteronômio 4, que serve como pano de fundo da descrição epifânica em Hebreus 12.18-21, e Deuteronômio 9, que é citado em 12.21 (Dt 9.19). Nas duas passagens, as experiências ocorrem no Sinai (Dt 4.11; 9.8) e se focalizam nos dez mandamentos (4.13; 9.9-11); nas duas, o monte queima com fogo (4.11; 9.15) e Moisés fala com o Senhor ou o Senhor com Moisés (4.14; 9.18-19).929 O acréscimo da expressão καὶ ἔντρομος ao fraseado de Deuteronômio 9.19 levou Bruce a concluir que “nosso autor pode ter se familiarizado com um relato hagádico da teofania do Sinai, que fazia menção explícita do temor e tremor de Moisés também nesta ocasião”.930 Mas tal inferência é desnecessária, especialmente quando se observa o uso do termo ἔντρομος no contexto canônico da LXX, a versão com a qual o autor da carta estava familiarizado. Interessantemente, o Salmo 77.18 [76.19] usa o vocábulo ἔντρομος para descrever a terra tremendo (ἔντρομος ἐγενήθη ἡ γῆ) diante da epifania divina nos eventos libertadores do Egito, do mar Vermelho e na revelação do Sinai (cf. vv. 14-18).931 O “tremor”

O acréscimo do termo ἔντρομος, talvez seja fruto de alguma tradição hagádica com a qual o autor estivesse familiarizado e que, provavelmente, fosse do conhecimento de Estevão em seu discurso de Atos 7.32, pois a mesma palavra grega ocorre ali para a descrição do encontro solitário de Moisés com Deus no Sinai. Ver F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 375; Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 543; Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 244. Curiosamente, este termo ocorre para descrever a reação de Daniel diante da revelação trazida pelo ser celestial a ele (cf. LXX Dn 10.11). 927 Ver Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 229; Brooke Foss WESTCOTT, The epistle to the Hebrews: the Greek text with notes and essays, p. 412. 928 Ronald F. YOUNGBLOOD, “Old Testament Quotations in the New Testament”, In: Roy B. ZUCK (ed.), Rightly divided: readings in biblical hermeneutics, p. 203-204. 929 George GUTHRIE, “Hebrews”. In: CNTOT, p. 988. 930 F. F. BRUCE, Op. cit., p. 375. 931 Kidner apoia a ideia de que os eventos no Sinai também estão contidos na descrição do autor do Salmo: “Os eventos tremendos no mar Vermelho e no Sinai inspiram a mente do profeta enquanto se entrega aos 926

145

(ἔντρομος) é um efeito da automanifestação de Yahweh no Sinai dentro do ambiente canônico maior. O Salmo 18.7 está no contexto de um louvor declarativo do indivíduo,932 mas devese notar que o autor celebra os feitos de Deus em seu favor tendo como molde literário a própria intervenção divina na história da redenção de Israel, especialmente nos eventos ligados ao êxodo e ao Sinai (cf. 18.7-15 [8-16]).933 Os versos 8-16 são uma “descrição gráfica, que empresta seus traços literários da teofania do AT (e.g., Êx 19; Hb 3.4ss.); a enumeração dos fenômenos cataclísmicos (terremoto, tempestade e relâmpagos) serve para atualizar a teofania do Sinai”. 934 Novamente, é a terra que “treme” diante da manifestação de Yahweh (18.7 - ἔντρομος ἐγενήθη ἡ γῆ). Fica claro, portanto, que o vocábulo grego ἔντρομος está associado ao tremor diante da revelação gloriosa de Deus, especialmente no Sinai. Apesar de ser primariamente usado na personificação de eventos da natureza, o termo também pode descrever a reação de seres humanos (cf. LXX Dn 10.11). Essa relação de ἔντρομος com a epifania sinaítica explica a razão pela qual Estevão utiliza o adjetivo para descrever a reação de Moisés em seu encontro com Yahweh na sarça ardente do Sinai, quando ainda vivia com seu sogro (At 7.32; cf. Êx 3.1-6).935 Este também é o motivo mais provável para o uso do mesmo adjetivo pelo autor de Hebreus, ao descrever a reação de Moisés diante da ira de Deus contra a idolatria do povo de Israel no Sinai (Dt 9.7ss.), após sua revelação gloriosa e temível na concessão dos dez mandamentos (Dt 4.11ss.; Êx 19 - 20). Além disso, o acréscimo καὶ ἔντρομος a ἔκφοβός ε μι tem uma função complementar e intensificadora do sentimento expresso por Moisés, não sendo uma nova descrição de sua reação à presença gloriosa de Deus. 936A mudança no fraseado parece ocorrer,

pensamentos deles, e transmite aquilo que vê” (Derek KIDNER, Salmos 73-150: introdução e comentário, p. 308). Várias expressões no Sl 77.17-18 evocam a linguagem encontrada em Êx 19 e Dt 4, como as densas nuvens (Êx 19.9, 16), os relâmpagos (‫ – בְרקִים‬cf. Êx 19.16), o som do trovão (Êx 19.16) e o tremor da terra (Êx 19.18). 932 Carlos Osvaldo PINTO, , p. 32. Para uma explicação do que é o louvor declarativo do indivíduo, ver Idem, p. 25-26. 933 J. L., MAYS, Psalms, p. 92; Roland E. MURPHY, “Psalms”. In: JBC, v. 1, p. 578. 934 Roland E. MURPHY, Op. cit., p. 578. 935 William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 464. 936 Esse aspecto intensificador é destacado pela NET Bible (“I shudder with fear”) e pela Ave Maria (“Eu tremo de pavor”). 146

portanto, por causa do contexto literário maior que envolve o tema da passagem, fornecendo uma base bíblico-teológica mais ampla que o verso citado em si. 937 Tal solução para o acréscimo de ἔντρομος à citação de Deuteronômio 9.19 é mais satisfatória do que a suposta dependência de uma tradição hagádica. O exemplo comumente dado pelos comentaristas de Hebreus, que vem do Talmude babilônio, para esta conjectura é frágil, 938 pois nele o temor de Moisés se dá em relação aos anjos, não a Deus: “Eu estava com medo de que os anjos pudessem me consumir com o sopro de suas bocas”.939 Mais uma vez, o autor de Hebreus desenvolve sua exegese a partir do contexto canônico e da tradição cristã (cf. At 7.32) em lugar de uma dependência direta de alguma tradição do segundo templo, ainda que sua metodologia se assemelhe em forma com a última. 940 O uso que o exegeta cristão faz do relato de Deuteronômio 9.19 tem claramente o objetivo de reforçar sua ilustração sobre a transcendente e apavorante manifestação divina no estabelecimento da antiga aliança (Hb 12.21 - “Estou tremendo de pavor”). Mesmo utilizando uma narrativa que não estava diretamente ligada ao encontro inicial de Yahweh com os israelitas no Sinai (Dt 9.7-21; cf. cap. 4 e 5), ele cita uma fala de Moisés que pertencia ao momento em que o povo ainda estava no Sinai, e a aliança, apesar de ter sido ratificada com a decisão do povo em obedecer Yahweh e com a aspersão do sangue (cf. Êx 24), precisou ser renovada (cf. Dt 9.25—10.5). Ou seja, ele não estava pensando apenas na passagem citada especificamente, mas em todo o seu contexto.941 Em um tratamento semelhante ao qal wa omer942 das sete middôth de Hillel, o autor cristão busca demonstrar que se Moisés, aquele que havia sido o grande servo fiel sobre toda a casa de Deus (cf. 3.1-6) e que vira Deus face a face (Nm 12.6-8), tremera de medo diante da manifestação divina, quão mais terrível fora o pavor sentido pelo povo perante a teofania sinaítica, descrito nos versos 19-20.943

Ver Darrel BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New: Part 2”, p. 315 (ver também a nota 20 da p. 318). 938 Ver William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 464; David M. ALLEN, Deuteronomy and exhortation in Hebrews: a study in narrative re-presentation, p. 63. 939 Babylonian Talmud: Tractate Shabbath, folio 88b. Disponível em http://www.come-andhear.com/shabbath/shabbath_88.html. Acessado em 23/05/2012. 940 Sobre o Targum de Dt 9.19, ver subponto 3.1.4. 941 Ronald F. YOUNGBLOOD, “Old Testament Quotations in the New Testament”. In: Roy B. ZUCK (ed.), Rightly divided: readings in biblical hermeneutics, p. 203-204. 942 Inferência lógica do maior para o menor ou vice versa na interpretação de um texto (ver Jacob Zallel LAUTERBACH, “Talmud Hermeneutics”, JE, v. 12, p. 32; Klyne SNODGRASS, “The Use of the Old Testament in the New”. In: G. K. BEALE, The right doctrines from the wrong texts?: essays on the use of the Old Testament in the New, p. 43; Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 59). 943 Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 550. 937

147

6.3.3.

Os cristãos se aproximaram do Monte Sião (12.22-24) A partir do verso 22, um contraste com os eventos descritos anteriormente é

destacado, a fim de mostrar “os terrores associados com a outorga da lei no Monte Sinai e as alegrias e a glória associada com o Monte Sião”,944 que nada mais são do que “metáforas para mostrar a diferença de qualidade entre o relacionamento com Deus sob a antiga e a nova alianças (cf. Gl 4.24-26)”.945 O apóstolo Paulo faz uso de um contraste semelhante em Gálatas 4.24-27, no qual o monte Sinai representa a aliança ligada à lei mosaica e a escravidão decorrente desta lei que controla o sistema religioso da “Jerusalém atual” (4.25). A Jerusalém terrena da época de Paulo se tornou “o lugar onde o Salvador foi rejeitado e onde a religião instituída se opôs ao evangelho da graça”. 946 A partir da imagem bíblica do monte Sião como o local da habitação e do governo divinos (Sl 20.2; 53.6; 78.68-69), Paulo então aponta para a Jerusalém “lá de cima”, que representa a liberdade desfrutada por aqueles que estão em Cristo (Gl 4.26-27), em contraste com os que seguem o legalismo escravizador da Jerusalém atual. 947 A conjunção adversativa ἀλλά (“porém”, “mas”), em Hebreus 12.22, põe ênfase sobre a distinção entre a cena (ou a situação) descrita anteriormente e a que será indicada agora.948 O realce fica ainda mais nítido quando o autor usa o mesmo verbo para traçar a diferença entre a situação à qual os leitores não participaram e a que eles agora desfrutam: “Pois, não tendes chegado...” (12.18 - Οὐ γὰρ προσεληλύθατε) com “Mas tendes chegado...” (12.22 - ἀλλὰ προσεληλύθατε).949 Os cristãos não experimentaram o distanciamento e a sensação de terror do Sinai, ao contrário, eles se aproximaram do “monte Sião, da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celestial” (12.22). O monte Sião, onde se localizava a cidade de Jerusalém, era símbolo da presença de Deus na literatura do AT, o lugar que ele escolheu para habitar e pôr o seu nome (2Sm 6.2; 1Rs 14.21; Sl 78.68-69).950 Com o passar do tempo, tanto no pensamento judaico como no cristão, desenvolveu-se a compreensão de que a Jerusalém terrena tinha seu modelo na Jerusalém celestial, a cidade santa e a permanente habitação de Deus (cf. Test. Levi 3.4-10;

Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 141. Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 118. 946 Richard T. FRANCE, “A tale of two mountains: mountains in biblical spirituality”, p. 122. 947 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 546; Richard T. FRANCE, Op. cit., p. 122-123. 948 Leon MORRIS, Op. cit., p. 142. 949 David L. ALLEN, Hebrews, p. 590. 950 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 376-377; David L. ALLEN, Op. cit., p. 590-591; 944 945

148

2Bar 4.2ss.; Gl 4.26; Ap 3.12; 21.2, 10).951 O autor de Hebreus ainda descreve Deus como o arquiteto e construtor desta cidade que há de vir (Hb 11.10; 13.14).952 Exatamente por receberem o direito à entrada nela, os crentes em Cristo anseiam por essa cidade fortemente e suportam o sofrimento e vergonha na vida presente (13.13-14). A nova comunidade de fiéis se aproxima também dos “milhares de milhares de anjos em alegre reunião” (NVI).953 Os seres angelicais que são “espíritos ministradores” (1.14) cercam o trono de Deus em adoração alegre, num claro contraste à cena transcendente e temível do Sinai. 954 “Deus já não é inabordável nem inspirador de temor. Habita no meio de uma sociedade de adoradores”.955 Junto a esta comunidade angelical está também “a igreja dos primogênitos arrolados nos céus” (12.23). Tal expressão tem gerado certa discussão quanto ao seu significado,956 mas, desde que verbos sinônimos e com raiz semelhante são usados para se referir aos nomes dos salvos inscritos no céu (ἐγγράφω – Lc 10.20) ou no livro do Cordeiro (γράφω - Ap 21.27), é mais natural que se entenda a frase como uma referência à comunidade total dos santos, tanto na terra como nos céus, cuja primogenitura se dá pela união com aquele que é o Primogênito por excelência (cf. 1.6; 2.13ss.; Rm 8.29; Cl 1.15).957 Deus, o juiz de todos (κριτῇ θεῷ πάντων – v. 23), também é objeto da aproximação dos salvos; o substantivo κριτής é uma lembrança de que ele perscruta os corações dos homens e julga seu próprio povo (Hb 4.12-13; 10.30-31).958 Os “espíritos dos justos aperfeiçoados” (πνεύμασι δικαίων τετελειωμένων) parece enfatizar a “natureza espiritual da nova ordem em que os ‘justos’ se encontram”. 959 Assim, não há necessidade de limitá-los

951

Quanto à perspectiva judaica sobre o Monte Sião e a Jerusalém celestiais, ver James W. THOMPSON, Hebrews, p. 261; F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 376-378. 952 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 546. 953 Desde que cada expressão grega é separada pela conjunção καὶ, a tradução da NVI é a que melhor reproduz o texto original. Ver Leon MORRIS, Op. cit., p. 142; Philip Edgcumbe HUGHES, Op. cit., p. 552-554. 954 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 546-547; James W. THOMPSON, Op. cit., p. 262-263. 955 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 245. 956 Ver um breve panorama da discussão em Philip Edgcumbe HUGHES, Op. cit., p. 554-555. 957 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 142; F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 379-380; Myles M. BOURKE, “The Epistle to the Hebrews”. In: JBC, v. 2, p. 402. Quanto à possibilidade da expressão fazer referência aos fiéis do AT ou à igreja triunfante, isto se mostra pouco provável, pois tornaria redundante a expressão final do v. 23: “espíritos dos justos aperfeiçoados”. 958 James W. THOMPSON, Op. cit., p. 263; Donald GUTHRIE, Op. cit., p. 245-246. 959 Leon MORRIS, Op. cit., p. 142. 149

apenas aos crentes dos dias pré-cristãos,960 mas compreendê-los como os “mortos que completaram sua jornada”,961 sendo a frase entendida da seguinte forma: [...] uma designação inclusiva, compreendendo todos aqueles que por meio da fé têm sido considerados justos por Deus (10.38), desde o começo do mundo em diante (cap. 11), e que agora, com sua peregrinação terrena completa, têm experimentado por si mesmos que Jesus não é apenas o pioneiro, mas também o aperfeiçoador da sua fé (12.2).962

O verso 24, de maneira climática, aponta para a aproximação maior que os crentes desfrutam, pois se achegaram “a Jesus, o mediador da nova aliança” (12.24). Como mediador desta nova aliança, Jesus promove a remissão de pecados por meio de seu sacrifício e garante promessas superiores àquelas encontradas na antiga (cf. Hb 8.6; 9.15).963 O sangue aspergido de Cristo, que inaugura o novo pacto, fala “melhor” (κρεῖττον λαλοῦντι) do que o sangue de Abel, que clamava por vingança pelo seu assassinato (Gn 4.10). A ligação com o sangue de Abel parece soar estranha aqui, mas há uma relação com Hebreus 11.4 em que Abel, por meio de sua fé, “ainda fala” (ἔτι λαλεῖ).964 “O sangue de Abel clamou por julgamento, mas o sangue de Cristo clama por misericórdia e perdão”;965 o sangue de Cristo fala de redenção eterna para os salvos (Hb 9.12), de aceitação (10.19), além de purificação da má consciência, e de aperfeiçoamento e santificação definitivos (10.11, 14).966 “Por que qualquer um dos leitores desejaria voltar para o Sinai? Retornar ao Sinai seria imitar Esaú, abandonar sua herança e voltar para a antiga aliança”. 967 6.3.4.

Exortação: Não rejeitem aquele que fala dos céus (12.25-29) Como conclusão parenética da seção maior de Hebreus 12.14-29, a passagem de

12.25-29 apresenta certos paralelos conceituais e linguísticos com o que fora desenvolvido até então. A exortação do verso 25, “Cuidado! Não rejeitem aquele que fala” (Βλέπετε μὴ παραιτήσησθε τὸν λαλοῦντα), tem seu paralelo conceitual e hortatório no verso 15, “Cuidem para que ninguém se exclua da graça de Deus” (ἐπισκοποῦντες μή τις ὑστερῶν ἀπὸ τῆς χάριτος τοῦ θεοῦ).968 O chamado à valorização do reino eterno e permanente diante daquilo 960

Como faz F. F. Bruce (ver F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 381-382). Ver resposta a tal ideia em Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 246. 961 James W. THOMPSON, Hebrews, p. 263. 962 Philip Edgcumbe HUGHES, Op. cit., p. 550. 963 Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 811; Donald GUTHRIE, Op. cit., p. 246. 964 James W. THOMPSON, Op. cit., p. 263. 965 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 552. 966 Idem. Ibidem. 967 Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 71. 968 Victor (Sung-Yul) RHEE, “Chiasm and the concept of faith in Hebrews 12.1-29”, p. 281. 150

que pode ser abalado (12.26-28) contrapõe o uso ilustrativo da atitude profana de Esaú que valorizou uma refeição mais do que o seu direito de primogenitura (12.16-17).969 O verso 25 inicia com uma expressão de advertência, em que o autor deseja chamar a atenção de seus leitores: Βλέπετε (“Cuidado!”; cf. Hb 3.12).970 O contraste entre a comunidade do Sinai e a comunidade cujo mediador é Cristo ainda está em voga, desde que o texto exorta os cristãos a não rejeitarem aquele que fala (μὴ παραιτήσησθε τὸν λαλοῦντα) e o verso 19 retrata os ouvintes da revelação do Sinai pedindo para que nada mais lhes fosse dito (ο ἀκούσαντες παρῃτήσαντο μὴ προστεθῆναι αὐτοῖς λόγον).971 Apesar do mesmo verbo grego ser usado com sentidos diferentes nas duas passagens (παραιτέομαι – “pedir” [19] e “recusar” [25]), e não existir condenação alguma quanto à solicitação do povo para que Deus não lhes falasse diretamente (cf. Dt 5.24-28), o autor da epístola indica que os israelitas “se recusaram a ouvir aquele que os advertia na terra” (ἐκεῖνοι ἐπὶ γῆς παραιτησάμενοι τὸν χρηματίζοντα; cf. Dt 5.29).972 Isto se encontra em consonância com as narrativas do Pentateuco que apontam para as diversas vezes nas quais os israelitas deixaram de ouvir a voz de Deus no deserto e sofreram as consequências. Tal Sitz im Leben de rebeldia foi referido no começo do livro de Hebreus, em 3.7ss., como base para advertência contra a rebelião e incredulidade. 973 Se os hebreus rebeldes que rejeitaram aquele que os advertia sobre a terra (ἐπὶ γῆς παραιτησάμενοι τὸν χρηματίζοντα), “não escaparam” (οὐκ ἔφυγον)974 do juízo divino, maior rigor haverá para aqueles que rejeitarem o que os adverte dos céus (πολὺ μᾶλλον ἡμεῖς ο τὸν ἀπʼ οὐρανῶν ἀποστρεφόμενοι). Essa equiparação do menor para o maior fez parte de um argumento paralelo anterior do autor de Hebreus, quando destacou a seriedade de se negligenciar a salvação revelada pelo Filho em contraste com a lei dada pelos anjos (Hb 2.14).975 O contraste entre “aquele que adverte dos céus” e “aquele que adverte da terra”, no texto em análise, não recai sobre pessoas diferentes como mediadores da aliança, mas sim, sobre os

969

Idem. Ibid. Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 71; F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 383, nota 179. 971 James W. THOMPSON, Hebrews, p. 268. 972 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 143-144. 973 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 385. 974 Aqui, entende-se a leitura do texto majoritário bizantino juntamente com 46 e vários unciais como a mais provável pela evidência externa e interna, desde que o verbo apresentado pela UBS4 e NA27 (ἐξέφυγον), parece ser uma adequação propositada de um escriba ao texto de Hebreus 2.3. 975 Myles M. BOURKE, “The Epistle to the Hebrews”. In: JBC, v. 2, p. 402; David L. ALLEN, Hebrews, p. 596; Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 811. 970

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dois modos distintos de revelação de Deus, a forma em que ele se deu a conhecer no passado e como ele se revela agora na nova aliança, por meio do sacrifício de Cristo (cf. 12.18-24).976 Quanto maior a mensagem, maior as consequências por recusá-la. 977 A expressão οὗ ἡ φωνὴ τὴν γῆν ἐσάλευσεν τότε no verso 26 relaciona-se com a φωνῇ ημάτων do verso 19, a voz divina que os israelitas não suportavam ouvir no Sinai, tamanho era o terror de sua glória. O advérbio temporal τότε confirma a referência do autor a uma voz manifesta no passado,978que abalou a terra (τὴν γῆν ἐσάλευσεν). Esta teofania por meio de um abalo sísmico no Sinai é indicada pela própria passagem de Êxodo, como também por trechos poéticos do AT (cf. Êx 19.18; Jz 5.4; Sl 68.8[9]; 77.18[19]).979 O texto então une a voz de Yahweh na manifestação poderosa no Sinai com a voz que faz a promessa citada de Ageu 2.6: “Ainda uma vez por todas, farei abalar não só a terra, mas também o céu”. O escritor de Hebreus preserva a ideia original de Ageu 2.6, pois o profeta anunciou um abalo universal futuro como indicação da intervenção divina escatológica, tendo como pano de fundo a intervenção semelhante (ainda que em menor escala) da outorga da lei durante a jornada israelita no deserto.980 Uma adaptação da profecia de Ageu 2.6 é feita na citação de Hebreus, em que o merisma “o mar e a terra seca” não aparece, sendo mencionados apenas “a terra ... e o céu”. Tal mudança em si não altera o sentido do oráculo veterotestamentário, pois a ideia de universalidade ainda é mantida com os dois elementos registrados pelo autor cristão.981 Aqui há, todavia, uma adaptação do texto original, tendo em vista o contraste entre a manifestação terrena da revelação divina no Sinai, e a manifestação celestial da revelação em Jesus na nova aliança (cf. 12.25 – “ἐπὶ γῆς ... ἀπʼ οὐρανῶν”).982 A perspectiva cristológica/escatológica do autor da carta o leva a perceber uma intervenção de Deus no futuro, maior do que aquela que os israelitas presenciaram no deserto,983 o que fica nítido com a adição de “não apenas a Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 143-144; David L. ALLEN, Op. cit., p. 596; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 120. A ênfase na descrição da revelação do Sinai está na voz de Deus, que não podia ser ouvida pelo povo; nada se fala de Moisés como mediador aqui (cf. 12.18-21). Esta mesma voz divina está conectada com a profecia de Ag 2.6, em Hb 12.26. 977 James W. THOMPSON, Hebrews, p. 263. 978 BAGD, p. 823. 979 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 385-386; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 120. 980 Cf. Robert L. ALDEN, “Haggai”. In: EBC, v. 7, p. 586; Herbert WOLF, Hageo y Malaquias: rededicación y renovación, p. 38. 981 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 558. 982 Ver um entendimento parecido do contraste entre céu e terra em Victor (Sung-Yul) RHEE, “Chiasm and the concept of faith in Hebrews 12.1-29”, p. 281-282. 983 James W. THOMPSON, Hebrews, p. 268. 976

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terra mas também o céu” (οὐ μόνον τὴν γῆν ἀλλὰ καὶ τὸν οὐρανόν) e com a ênfase na expressão da LXX, “Ἔτι ἅπαξ”, na interpretação dada no verso 27.984 Ainda assim, a compreensão da natureza escatológica da profecia de Ageu 2.6 está de acordo com seu Sitz im Leben original985 e de outras passagens do AT que usam a figura do tremor universal como símbolo da era escatológica do dia do Senhor (cf. Is 2.19, 21; 13.13).986 É provável que o escritor de Hebreus tivesse em mente a passagem de Isaías 66.22, em que uma nova condição de vida em um novo céu e uma nova terra é instaurada (cf. Ap 20.11; 21.1).987 O verso 27 “é um exemplo do método do autor ao lidar com a interpretação bíblica”. 988 Ele se atém à expressão “ainda uma vez” (Ἔτι ἅπαξ), a fim de apontar para o caráter decisivo e final da intervenção escatológica anunciada por Ageu. Ele interpreta (δηλοῖ - “significa”)989 o abalo universal como “a remoção das coisas abaláveis, isto é, as coisas criadas” (τῶν σαλευομένων μετάθεσιν ὡς πεποιημένων).990 Ao contrário de comentaristas que veem uma linguagem marcantemente platônica por parte do autor da carta,991 este compreende o mundo criado como transitório em seu estado de queda e em seu caráter passageiro.992 Isso confirma aquilo que o próprio autor já declarara no começo da epístola, citando o Salmo 102.25-27, de que céus e terra como “obras das tuas mãos” perecerão (Hb 1.10-12).993 Antes, “ele enfatizou a transitoriedade da ordem mundial em contraste com a eternidade do Filho de Deus; agora, a enfatiza novamente, a fim de contrastá-la com a eternidade dessa nova ordem na qual o Filho de Deus tem introduzido o seu povo”. 994 A ação cataclísmica, que causará a “remoção” (μετάθεσις)995 da ordem criada com a finalidade de que permaneçam (ἵνα μείνῃ)996 “as coisas que não podem ser abaladas” (τὰ μὴ

984

Quanto ao uso da LXX pelo autor de Hebreus no lugar do TM e as diferenças nos textos, ver a discussão do cap. 3 desta monografia. 985 Ver a análise exegética da passagem nas p. 34-41 desta monografia. 986 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 386. 987 Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 144. 988 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 248. 989 O termo grego significa “fazer algo evidente ou claro por meio da explicação” (J. P. LOUW, E. A. NIDA, Greek-English lexicon of the New Testament: based on semantic domains, v. 1, p. 405). 990 A expressão πεποιημένων é compreendida por este autor em seu sentido apositivo em relação a τῶν σαλευομένων, explicando o que são “as coisas abaláveis” (Ver Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 72). 991 E.g.: James W. THOMPSON, Hebrews, p. 269. 992 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 387; Donald GUTHRIE, Op. cit., p. 248. 993 Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 558. 994 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 388. 995 BAGD, p. 511. 153

σαλευόμενα), aponta para o estabelecimento de uma ordem eterna final, após o reino milenar, quando Deus fará nova todas as coisas na “recriação” de novos céus e nova terra, lugar onde habitará a justiça e o estado no qual os homens estarão para sempre diante do Todo-Poderoso (1Pe 3.10-13; Ap 21.1ss.; cf. Is 6.22-24).997 Esta interpretação de Ageu 2.6 proposta em Hebreus 12.27 parece não condizer com o sentido da profecia pós-exílica dentro de seu contexto de esperança da reunião universal das nações em adoração a Yahweh e o estabelecimento do reino messiânico.998 Diante disso, o início do verso 28, com sua referência ao “reino inabalável” (βασιλείαν ἀσάλευτον) que “temos recebido” (παραλαμβάνοντες) esclarece a perspectiva hermenêutica do autor de Hebreus e a sua consideração pelo sentido original da passagem citada de Ageu. Significativamente, o recebimento (παραλαμβάνω) de um “reino” (βασιλεία) que permanece “para todo o sempre” (ἕως α ῶνος τῶν α ώνων) faz parte da linguagem escatológica de Daniel 7.18, 27, na descrição da intervenção divina para a concessão do reino messiânico ao povo de Deus, que dele participará e nele reinará. 999 Desta forma, ao se referir aos cristãos recebendo um “reino inabalável”, percebe-se que o autor do século I vê este reino eterno e final de Deus como continuidade do mesmo reino divino manifestado na era messiânica e do qual o povo de Deus participará, ao qual Ageu faz referência quando menciona a gloriosa condição futura do templo e da reunião das nações para a adoração exclusiva ao Senhor. O reino que os crentes receberão é o reino milenar no qual eles reinarão e governarão como μετοχοι (companheiros) com o Messias-Rei (Ap 20.1-6) [...] A citação de Ageu 2.6 faz referência ao aspecto eterno do reino, após a destruição da antiga ordem do cosmos e a criação de novos céus e nova terra, mencionados em Ap 21.1. [...] Os leitores fiéis que perseverarem terão parte no reino escatológico – o milênio ... Este reino se tornará um reino eterno (12.27-28).1000

Portanto, a afirmação de que o escritor de Hebreus tomou a figura do abalo sísmico de Ageu 2.6 e “o modelou para os seus próprios propósitos práticos”1001 não faz jus à hermenêutica apresentada na passagem. O sentido de Ageu 2.6-9 é preservado em Hebreus

A conjunção ἵνα aponta para a finalidade ou propósito da remoção das coisas criadas (J. P. LOUW, E. A. NIDA, Op. cit., v. 1, p. 784). 997 Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 811; Thomas Kem OBERHOLTZER, Op. cit., p. 72; Philip Edgcumbe HUGHES, Op. cit., p. 558. 998 Ver explicação da passagem de Ageu 2.6-9 nas páginas 34-41 desta obra. 999 Ver esta mesma ligação observada em F. F. BRUCE, Op. cit., p. 387, nota 199. 1000 Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 73, 75. 1001 James W. THOMPSON, Hebrews, p. 269. 996

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12.26-28: Deus intervirá de forma sobrenatural e universal nos últimos tempos, a fim de estabelecer o seu reino glorioso. A significância em Ageu diz respeito à instituição do governo de Deus sobre os povos na história, por meio do Messias, julgando as nações, para então conceder paz real a elas e conduzi-las à adoração verdadeira no templo glorioso (Ag 2.6-9; cf. 2.21-23). A significância em Hebreus diz respeito ao estabelecimento do reino eterno e inabalável de Deus sobre os salvos, que terá seu início por meio da redenção do universo e da criação de novos céus e nova terra, onde a justiça habitará e os homens adorarão1002 a Deus continuamente (Hb 12.26-28; cf. Rm 8.18ss.; 1Pe 3.10-13; Ap 21.1ss.; 22.1ss.). Um dos apocalipses pseudoepígrafos de 2Baruque1003 faz alusão a esta passagem de Ageu 2.6 e demonstra uma compreensão basicamente literal dela. 1004 O texto usa a linguagem de Ageu (2Bar 32.1: “O Todo-Poderoso deverá abalar toda a criação”) como uma indicação de que o “Todo-Poderoso renovará sua criação” (32.6). Juntamente a esta renovação existe a expectativa de que o templo de Sião “será renovado em glória e aperfeiçoado para sempre” (32.4). A ideia da renovação do templo de Jerusalém segue as linhas gerais de Ageu 2.6, especialmente a expectativa de que sua glória será maior (cf. Ag 2.7-9), ainda que o autor pseudoepígrafo entenda tal templo escatológico como sendo eterno (“para sempre” – 32.4).1005 A renovação da criação na obra apocalíptica será o efeito da intervenção cataclísmica de Deus (2Bar 32.1, 6), uma compreensão que se assemelha em parte com Hebreus 12.26 (ver o comentário exegético de Hb 12.26; cf. 1Pe 3.10-13; Ap 21.1ss.; cf. Is 6.22-24). Mas, enquanto o autor de Hebreus fala de “reino inabalável”, o de 2Baruque fala de “renovação da criação divina”. O que chama a atenção é que ambos usam esta imagem da intervenção divina para se referir a um momento escatológico futuro que determinará o rumo do cosmos,1006 e os dois partem desta ação cataclísmica escatológica para exortar seus leitores a se apegarem àquilo que os manterá seguros quando “céus e terra” forem abalados. O autor de Hebreus exorta seus leitores a se “apegarem à graça” que lhes proporciona o “reino inabalável” (Hb 12.28), ao passo que o escritor de 2Baruque exorta seus ouvintes a que “semeiem” em “seus Observe a menção à “adoração aceitável” (λατρεύωμεν εὐαρέστως) na exortação de Hb 12.28. O livro parece ter sido contemporâneo a Hebreus, i.e., escrito na segunda metade do século I. Ver a introdução à obra em R. H. CHARLES, (ed.). The Apocrypha and pseudepigrapha of the Old Testament in English: with introduction, critical and explanatory notes to the several books, v. 2, p. 470-471. 1004 Ver Idem, p. 499, nota crítica de 32.1. 1005 George GUTHRIE, “Hebrews”. In: CNTOT, p. 989. 1006 Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 547. 1002 1003

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corações” o “fruto da lei”, pois “isso os protegerá no tempo em que o Todo-Poderoso deverá abalar toda a criação” (2Bar 32.1). O insight hortatório de Ageu 2.6 apresentado pelos dois escritores tem sua origem mais provável não numa relação direta entre eles, mas no próprio discurso profético de Ageu, que aponta para intervenção divina futura, a fim de encorajar a geração pós-exílica a continuar seu trabalho de reconstrução do templo em obediência à Palavra de Yahweh (Ag 2.4-5; cf. 1.12 que define a postura de reconstrução do templo como “ouviram ... à voz de Yahweh, seu Deus” [ ‫בְקֹול י ְהוָה אלהֵיהֶם‬... ‫ׁש ַמע‬ ְ ִ ‫)] ַוי‬.1007 O uso de Ageu 2.6 no Talmude ocorre numa discussão de duração do mundo, dentro do Tratado sobre o Sinédrio 97b, e é proferida pelo rabino Akiba, mas não apresenta uma interpretação do texto, senão uma sequência cronológica de anos da dinastia macabeia, herodiana e do reino de Bar Kochba.1008 Ainda tratando do judaísmo do segundo templo, é interessante observar que o autor de Hebreus, ao afirmar que haverá a “remoção do que pode ser abalado, isto é, coisas criadas”, caminha na direção contrária do pensamento de Filo, que considerava o mundo “imortal pela providência do Criador” (de Decalogo 58).1009 Retornando ao fluxo do argumento de Hebreus 12.27-28, encontra-se, no início do verso 28, a conjunção διὸ, que tem aqui valor inferencial ou conclusivo (“portanto”, “por esta razão”),1010 mostrando que o recebimento deste reino eterno pelos cristãos, por direito, mesmo que ainda não de fato,1011 deve encorajá-los a “manterem a graça” ou “se apegarem à graça”,1012 a fim de que por meio dela sejam capazes de oferecer um culto agradável a Deus. “O escritor está lembrando seus leitores da necessidade de se apropriarem da graça de Deus. Tal apropriação é a maneira adequada de se aproximar dele a fim de adorá-lo”.1013

Cf. George GUTHRIE, “Hebrews”. In: CNTOT, p. 989. Este mesmo uso hortatório da passagem pode ser visto em Eclesiástico 16.19, que também alude a Ag 2.6, para mostrar que ninguém poderá escapar do juízo futuro divino e então exorta seu “filho” a lhe dar ouvidos e adquirir conhecimento (Ecles. 16.17-24). 1008 Bab Talm, v. 8, cap. XI, Mishná I-Gemará, p. 303-304. 1009 PHILO, p. 523. 1010 BAGD, p. 198. 1011 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 387, nota 199. 1012 Este parece ser o melhor entendimento da frase ἔχωμεν χάριν, desde que χάρις na maioria (ou todas) das vezes em Hebreus aponta para a “graça” de Deus disponível em Cristo (cf. Hb 4.16; 10.29; 12.15; 13.9[?], 25). Tal entendimento formaria um inclusio com o começo da seção, em que o autor exorta seus leitores a não falharem na apropriação da “graça” (12.15). As traduções da Bíblia de Jerusalém (BJ) e da ARA (“retenhamos a graça”) compreendem o termo como “graça”. A própria expressão διʼ ἧς λατρεύωμεν indica que χάριν é o instrumento pelo qual os cristãos prestam um “culto aceitável” a Deus. Provavelmente, há uma exortação final à apropriação dos recursos da graça, disponíveis aos crentes por meio do sumo sacerdote Jesus (cf. Hb 4.14-16). Cf. Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 811; Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 144145. 1013 Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 74. 1007

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Ao invés de rejeitarem “àquele que fala” e se desviarem daquele “que nos adverte dos céus” (12.25), os leitores deveriam responder à revelação divina com uma adoração agradável a Deus (12.28), que só é possível pela purificação da consciência por meio da obra sacrificial de Cristo, aproximando os salvos do Deus vivo (Hb 9.14).1014 Tal adoração só será “aceitável” a Deus, se for acompanhada de uma postura de “reverência e temor” (εὐλαβείας καὶ δέους), duas palavras que podem ser compreendidas numa construção de hendíade, “reverente temor”.1015 Essa postura reflete um sentimento adequado diante da majestade e santidade do Deus,1016 que é juiz dos infiéis, mas que também disciplina seu povo (12.29; cf. 12.4-13).1017 A passagem termina com a citação 1018 de Deuteronômio 4.24, que pertence ao relato da revelação no Sinai: “o nosso ‘Deus é fogo consumidor!’” (12.29). A conjunção γὰρ (“pois”) introduz o motivo para a exortação a que os leitores se mantivessem firmes na graça de Deus e o adorassem com o reverente temor do verso anterior. 1019 Deus continua sendo tão temível quanto foi na epifania da jornada no deserto, e a imagem do “fogo consumidor” lembra que ele disciplinaria aqueles de seu povo que rejeitassem a sua graça, disponível de forma plena e suficiente pelo sangue de Cristo na nova aliança (12.29; cf. v. 24).1020 A menção de Deuteronômio 4.24, como observado na crítica textual do capítulo 3, ocorre de forma parcial, sem a parte final (θεὸς ζηλωτής), com a mudança do pronome “teu” (σου) para “nosso” (ἡμῶν) num processo de atualização de mensagem. 1021 O πῦρ (“fogo”) divino já fora mencionado na carta como sinal da ira de Deus que irá consumir seus inimigos (10.27 - κρίσεως καὶ πυρὸς ζῆλος ἐσθίειν μέλλοντος τοὺς ὑπεναντίους) como também aquele

1014

James W. THOMPSON, Hebrews, p. 269. Cf. o mesmo verbo grego (λατρεύω) em Hb 9.14 para falar da adoração ao “Deus vivo”. 1015 David L. ALLEN, Hebrews, p. 598. 1016 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 388; Leon MORRIS, “Hebrews”. In: EBC, v. 12, p. 145. 1017 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Hebrews, p. 120-121. 1018 Ver em 3.1.2 desta monografia a razão pela qual se considera uma citação de Dt 4.24. A favor do texto como citação, ver NA27; NET Bible, Dt 12.29, s.n. 35; Thomas Kem OBERHOLTZER, “The Failure to heed his speaking in Hebrews 12.25-29”, p. 75; David M. ALLEN, Deuteronomy and exhortation in Hebrews: a study in narrative re-presentation, p. 66; Hugh W. MONTEFIORE, A commentary on the epistle to the Hebrews, p. 237; George GUTHRIE, “Hebrews”. In: NLTSB, p. 2107 contra A. W. ROBERTSON, El Antiguo Testamento en el Nuevo, p. 204 e Philip Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 560; William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 487. 1019 Donald GUTHRIE, Hebreus: introdução e comentário, p. 249; David L. ALLEN, Hebrews, p. 598. 1020 Thomas Kem OBERHOLTZER, Op. cit., p. 74. 1021 Ver exemplos de omissões e de mudanças gramaticais semelhantes em outros textos do NT em Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 294-297. Como observado por Douglas Moo, a mudança de pronome para adaptação ao contexto do argumento “não afeta de fato o sentido” do texto (Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 207). 157

que segue o caminho da apostasia, continuando “a pecar deliberadamente” (10.26). Tal pessoa é castigada porque “calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça” (10.29). A imagem do “fogo” retoma a temática do Sinai, do verso 18, e ressalta que “o Deus do Sinai é o mesmo Deus de Sião”, 1022 “o Deus da antiga aliança é também o Deus da nova”. 1023 “Sua graça é expressa mediante promessas de misericórdia, ainda que o fogo que ameaçou o povo no Sinai (12.18) continua a ameaçar aqueles que estão inclinados a pecar”.1024 O uso do texto do AT aqui tem como alvo confirmar sua exortação de que os cristãos deveriam adorar a Deus com uma postura de “temor reverente” (v. 28).1025 O sentido de Deuteronômio 4.24 é mantido, pois há um chamado para o compromisso total com o Deus da nova aliança que, em seu zelo por sua santidade e contra tudo aquilo que atrapalha o relacionamento com seu povo, derrama sua ira sobre aqueles que apostatam e são infiéis. 1026 Assim como Yahweh era um fogo consumidor contra aqueles que não dessem ouvidos ao pacto sinaítico e o abandonassem para adorar outros deuses (Dt 4.23), ele seria um fogo consumidor para com os membros da nova aliança que rejeitassem sua “fala” do céu, por meio do Filho (Hb 12.25; cf. 1.2). O modo como o autor liga a exortação de adoração em temor reverente com o fato de que Deus é “fogo consumidor” (12.28-29) encontra paralelo no segundo tipo de exegese harmonizadora de Qumran, exemplificada por Bateman IV, em CD 4.10-12 e em 11Q19-20. Nesse molde interpretativo se apresenta o argumento, que é reforçado mediante a integração de um texto da Escritura dentro dele, sem uma fórmula introdutória típica (“Deus diz” ou “Moisés diz”).1027 O próprio autor de Hebreus já usara esta metodologia em outros apelos e ensinos na carta (cf. Hb 10.35-39; 12.12-13). Lane cita esta mesma prática entre os rabinos, de “reforço” de uma exortação mediante a menção de um texto bíblico.1028 A abordagem hermenêutica do texto de Deuteronômio 4.24 no período posterior do segundo templo apresenta certas aproximações da interpretação literal do escritor 1022

Edgcumbe HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 560. Thomas HEWITT, The epistle to the Hebrews: an introduction and commentary, p. 204. 1024 Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 562. 1025 Ver exemplos deste objetivo em outras passagens do NT em Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 302. 1026 William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 487; Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 562-563. Ver a exegese de Deuteronômio 4.15-24 em 4.3 desta dissertação. 1027 Herbert W. BATEMAN IV, “Second temple exegetical practices: extra-biblical examples of exegesis compared with those in the book of Hebrews”, p. 38. 1028 William L. LANE, Hebrews 1—8, p. cxx. 1023

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neotestamentário. Em ‘Abod Zar 4.7, a Gemará apresenta dois diálogos envolvendo o rabino Gamaliel, um com um filósofo e o outro com um general romano.1029 Nos dois casos a passagem bíblica (Dt 4.24) é citada pelos dois pagãos e tratada em termos literais, isto é, falando sobre o zelo de Deus para com seu povo em não permitir a adoração a ídolos. Já em Qumran, o texto não aparece literalmente, mas é aludido em 1QS 2.15, quando se invocam as maldições na cerimônia de entrada da comunidade.1030 A frase é “Que a ira de Deus e o zelo de seu juízo o queimem em eterna destruição”.1031 A ideia de “queimar” e, portanto, de “fogo” aparece ligada com o “zelo de seu juízo”. O texto usa uma figura igual à de Deuteronômio 4.24 (“fogo”) para falar do juízo de Deus contra aqueles que são infiéis à aliança da comunidade feita com ele. A ideia de “queimar”, que em Deuteronômio tem um aspecto histórico, relacionado à terra prometida, em Qumran é ampliada para uma significância eterna.1032 Os pontos semelhantes entre a exegese da literatura do segundo templo posterior e de Hebreus se dá basicamente por um tratamento literal do texto bíblico. Não há nenhum conceito que se afaste de modo significativo do texto original, em Qumran ou na exegese rabínica, que seja imitado pelo escritor do NT. Assim, a seção de Hebreus 12.14-29 recebe o seu desfecho, no qual o autor mostra que “a reverência e o temor diante da santidade [de Deus] não são incompatíveis com a confiança agradecida e com o amor como resposta à sua misericórdia”1033 Os cristãos debaixo da nova aliança devem entrar em uma experiência de maturidade na qual toda a vida se torna uma expressão de adoração. A adoração autêntica é uma resposta grata pelas bênçãos da aliança já experimentadas e pela certeza do recebimento de um reino inabalável (v. 28). Isso é aprofundado pela consciência sincera do caráter aterrador da santidade de Deus, que foi revelado no Sinai (v. 29). A falha em ouvir atentamente o que Deus está dizendo à comunidade agora, no presente momento, só pode ser catastrófica.1034

6.4. Implicações na Construção de uma Hermenêutica Contemporânea: o Método Interpretativo do Autor de Hebreus e o Método Histórico-Gramatical

1029

Ver Bab Talm, v. X, cap. IV, Mishiná VII-Gemará, p. 120-121. Para mais informações sobre este texto, ver EWQ, p. 68-72. 1031 EWQ, p. 75. 1032 Este não parece ser o caso em Hebreus, que adverte que o “crente que se aparta de seus privilégios magnificentes trará sobre si a retribuição de Deus” (Zane C. HODGES, “Hebrews”. In: BKC, v. 2, p. 811), o que implica severa disciplina presente, mas não condenação eterna. 1033 F. F. BRUCE, La Epistola a los Hebreos, p. 389. 1034 William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 491. 1030

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A relevância da interpretação que o NT faz do AT é matéria de intenso debate no campo exegético e bíblico-teológico. De um lado há aqueles que negam categoricamente a possibilidade do intérprete atual reproduzir a exegese encontrada nos escritos canônicos neotestamentários, de outro, os que veem a possibilidade dos hermeneutas atuais emularem a prática interpretativa apostólica. A resposta negativa pode ser contemplada nos artigos e na obra de Richard Longenecker, que apesar de reconhecer a possibilidade de “se achar algumas exegeses literais e objetivas do texto bíblico” em “quase todos os autores do NT”, ele afirma que “o método pesher, todavia, domina certa classe de material” e que Paulo e o autor de Hebreus “podem ser caracterizados por um tipo midráshico de interpretação”.1035 A conclusão dele é: Da mesma forma, eu sugiro que nós não devemos reproduzir seu manuseio midráshico do texto, nem tentar reproduzir suas explicações alegóricas, nem muito da sua maneira judaica de argumentação. Tudo isso era parte de seu contexto cultural por meio do qual o evangelho transcultural e eterno foi expresso. [...] ‘Nós podemos reproduzir a exegese do Novo Testamento?’ ... Onde essa exegese é fundamentada sobre um ponto de vista revelatório, onde ela evidencia ser circunstancial ou ad hominem em natureza, ‘Não’ ... Nosso compromisso como cristãos é reproduzir a fé e a doutrina apostólicas, e não necessariamente as práticas exegéticas específicas dos apóstolos. 1036

Visto que, ao longo da presente dissertação, ficou evidente que não houve da parte do autor de Hebreus uma dependência direta de outros textos judaicos, ainda que se percebam aproximações legítimas sem qualquer desrespeito ou desconsideração pelo texto do AT, a conclusão de Longenecker com base em seu estudo da exegese dos autores neotestamentários não é consistente e é completamente refutável. Aqui cabe a observação de C. H. Dodd a respeito do uso do AT no NT: Eu tenho apenas sugerido a significância para a teologia cristã de um correto entendimento do tratamento do Antigo Testamento no Novo. Creio que este tratamento representa um empreendimento intelectual de marcante originalidade, demonstrando perspicácia na compreensão do sentido que repousa por trás da superfície do texto bíblico e um poder de síntese que reúne elementos aparentemente diferentes em um todo com muitos aspectos, não incompatíveis, para comunicar alguma ideia da “multiforme sabedoria de Deus”. 1037

Richard N. LONGENECKER, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New Testament’s use of the Old”, p. 8. 1036 Idem, Biblical exegesis in the apostolic period, p. 218-219. Ver também a mesma conclusão de Longenecker em outro artigo mais recente, “Can we reproduce the exegesis of the New Testament?”, p. 35-38. 1037 C.H. DODD, “The Old Testament in the New”. In: G. K. BEALE, The right doctrines from the wrong texts?: essays on the use of the Old Testament in the New, p. 180-181 (itálico acrescentado). 1035

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Aqueles que advogam a abordagem do ISPA1038 também afirmam que os exegetas modernos não podem reproduzir o mesmo tipo de exegese neotestamentária, visto que os autores do NT adicionaram um novo sentido inspirado àquele encontrado no AT mediante a interpretação histórico-gramatical, e fizeram uma aplicação “da passagem do AT além daquilo ela significou no contexto do AT”. 1039 “Nós não queremos reproduzir a hermenêutica dos autores do NT porque eles, em virtude da inspiração, conferiram autoridade a si mesmos por meios indisponíveis a nós. Buscamos apenas proclamar o que o texto, em sua autoridade, já revelou”.1040 O grande problema com a abordagem do ISPA é que ela propõe uma separação radical de sentido entre o contexto original do AT e a interpretação neotestamentária. Como Kevin Vanhoozer observou: A intenção divina não contesta a intenção do autor humano, mas sobrevém a ela. Da mesma forma, o cânone não muda ou contradiz o significado de Isaías 53, mas sobrevém a ele e especifica seu referente. Ao falar do Servo Sofredor, Isaías estava se referindo a Cristo (isto é, à misericordiosa provisão de Deus para Israel e para o mundo), da mesma forma que Priestly, falando de ar desflogisticado, estava se referindo ao oxigênio. 1041

Como Eliott Johnson destacou, os profetas do AT, apesar de compreenderem o sentido do que escreveram, não estavam conscientes de todas a referências implicadas em suas palavras.1042 “Se eles tivessem vivido no tempo de Jesus, eles poderiam identificar Jesus como o Príncipe que viria baseado no verdadeiro sentido do que escreveram. Isso é, de fato, o que os escritores dos evangelhos fizeram em referência às numerosas profecias do AT”.1043 Diante disso, a possibilidade de modelar a exegese do intérprete que se fundamenta no método histórico-gramatical1044 segundo o padrão encontrado no NT permanece aberta. G. K. Beale faz um apelo eloquente e acertado sobre esta questão: Além do mais, se Jesus e os apóstolos eram empobrecidos em seu método exegético e teológico, e apenas a inspiração divina poderia salvar suas conclusões, então o fundamento intelectual e apologético de nossa fé está seriamente erodido. Que tipo de fundamento intelectual e apologético para nossa fé é esse? ... Entretanto, a atmosfera polêmica e apologética do cristianismo primitivo aponta para uma intensa preocupação com a correta interpretação do AT (e.g., At 17.2; 18.24-28;1Tm 1.6-10; 2Tm 2.15). [...] 1038

Inspired Sensus Plenior Application. Ver Cap. 3.5. Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 87-88. 1040 John WALTON, “Inspired subjectivity and hermeneutical objectivity”, p. 76. 1041 Kevin VANHOOZER, Há um significado neste texto?, p. 324 (grifo original). 1042 Elliott E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 184-185. 1043 Idem, p. 185. 1044 Para uma definição do método histórico-gramatical, ver J. I. PACKER, “Hermeneutics and Biblical Authority”, p. 5-7. 1039

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Assim, eu creio que uma resposta positiva pode ser dada à pergunta, ‘Podemos reproduzir a exegese do Novo Testamento?’. 1045

Douglas Moo concorda com Beale, ao afirmar que, ainda que não tenhamos a mesma autoridade revelatória para fazer as identificações específicas que os autores do NT fizeram (e.g, Mt 2.17-18),1046 “nós podemos habitualmente observar a estrutura teológica e os princípios hermenêuticos sobre os quais repousa a interpretação do AT pelo NT; e podemos seguir o NT na aplicação de um critério similar na nossa interpretação”.1047 Dado o fato de que “o contexto ampliado do progresso da revelação não altera o sentido definido da passagem original”, pois o “sentido definido textual permanece fixo e inalterado”, parece razoável entender que o leitor contemporâneo pode perceber “as implicações adicionais de referência” no desvendar da revelação. 1048 Assim, a percepção de novos referentes na tarefa hermenêutica histórico-gramatical das passagens bíblicas continua sendo uma possibilidade, salvo em casos específicos de caráter revelatório como ressaltado por Moo, no parágrafo anterior. Em dois usos do livro de Deuteronômio (Dt 4.24 e 29.18) em Hebreus 12.14-29, o sentido do texto é basicamente mantido e apenas a significância é implicada aos leitores que viviam debaixo da nova aliança. Assim como em Deuteronômio 29.18, o autor de Hebreus (12.15) mantém a ideia de que a raiz de amargura significa uma pessoa constituinte do povo de Deus, que decide ser infiel ao Senhor e à sua aliança, contaminando outros no seio da comunidade. Apenas a significância muda, enquanto no texto do AT o referente era um membro da comunidade israelita que se deixou seduzir pela idolatria (cf. Dt 29.15-17), no livro de Hebreus era alguém que “deu às costas” para a graça recebida e assumiu uma atitude displicente para com as bênçãos recebidas em Cristo, deixando de buscar a santidade e a paz (cf. Hb 12.14-17). Igualmente, quando o escritor cristão adverte seus leitores de que “nosso Deus é fogo consumidor” (Hb 12.29; Dt 2.24), ele preserva o sentido de que o Senhor é santo e, portanto, julga àqueles de seu povo que não cultivam uma postura de adoração reverente a ele. No

G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: an examination of the presuppositions of Jesus’ and the apostles’ exegetical method”, p. 94. 1046 Ainda que a aplicação de Mateus da passagem fosse teologicamente profunda e apropriada. Ver Donald CARSON, “Matthew”. In: EBC, v. 8. 1047 Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”. In: CARSON, Donald A., WOODBRDIGE, John D. Hermeneutics, authority and canon. p. 206. 1048 Elliott E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 181. 1045

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contexto de Deuteronômio, a irreverência implicava o ato de fazer e adorar “alguma imagem esculpida, semelhança de alguma coisa que o SENHOR, vosso Deus, vos proibiu” (Dt 4.2324), ao passo que em Hebreus significava deixar de dar ouvidos, de crer e de obedecer à nova revelação de Deus por meio do Filho (“não rejeitem ao fala” – Hb 12.25; cf. 1.2), que era o único meio possível de aproximação e de adoração a Deus (Hb 12.28-29). Nos dois casos, a aplicação da mensagem do quinto livro do Pentateuco aos leitores de Hebreus, mantém o sentido do texto original e apenas estende seu referente. Este é um dos aspectos na exegese de implicação de referentes que Elliott Johnson define como “uma declaração com um referente particular em mente, mas no qual este referente histórico particular de alguma forma é representativo de outros casos”.1049 Visto que é também tarefa da interpretação bíblica “determinar a significância do texto”, consciente de que esta é “derivada do sentido original”, 1050 os intérpretes atuais podem seguir o modelo de como o autor de Hebreus lidou com o AT, nos dois exemplos supracitados, buscando discernir, primeiramente, o sentido do texto e então refletir sobre sua implicação/significância para o povo de Deus, hoje. Obviamente, há de se avaliar sempre quais são os princípios que subjazem ao texto e como eles devem (ou não devem) ser aplicados à igreja hodierna. 1051 Um exemplo clássico de como a significância do texto do AT pode ser percebida a partir de seu sentido original é visto na seção Explanation do comentário de Christensen sobre o livro de Deuteronômio.1052 Minha tese será a de que o Espírito está ligado à Palavra Escrita, da mesma forma que a significância está ligada ao significado. Com relação à hermenêutica, o papel do Espírito é servir como o Espírito da significância e, assim, aplicar o significado, e não mudá-lo. Ao mesmo tempo, a Bíblia está interessada em sua própria relevância, isto é, com a extensão de seu significado a novos contextos. 1053

A maneira como o autor de Hebreus lida com Deuteronômio 9.19 em 12.21 não apresenta nenhum problema com o sentido original do texto, e é utilizado com o propósito de 1049

Elliott E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 204-205. Johnson exemplifica este caso com o uso de Isaías 29.13 em Marcos 7.6 e cita Caird, que diz “Ele não estava sugerindo que Isaías estava olhando para o futuro através de oito séculos, mas sim, que ao falar de sua própria geração, Isaías poderia muito bem ter falado o mesmo acerca dos contemporâneos de Jesus”. 1050 Howard I. MARSHALL, “How do we interpret the Bible today?”, p. 9. 1051 Ver orientações importantes sobre como avaliar se um texto bíblico é aplicável ou não e como discernir os princípios de um texto bíblico em Grant OSBORNE, A espiral hermenêutica, p. 543-560; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 323-339; Elliott E. JOHNSON, Op. cit., p. 213-264. 1052 Ver, por exemplo, Duane L. CHRISTENSEN, Deuteronomy 1.1 – 21.9, p. 188-189, 276; Idem, Deuteronomy 21.10—34.12, p. 722. Ver também esta apreensão da significância para hoje no comentário de Constable (e.g., Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 33-34). 1053 Kevin VANHOOZER, Há um significado neste texto?, p. 325. 163

reforçar sua descrição da sensação de medo sentida pelos israelitas, em seu encontro com Yahweh no Sinai, indicando que todos os seres humanos presentes, sem exceção, experimentaram temor,1054 e quão grande deve ter sido o terror do povo, se o próprio mediador da aliança “tremeu de pavor” (Ave Maria) (qal wa omer).1055 Como já observado, ainda que a passagem não seja exatamente a mesma usada para a descrição da epifania no Sinai, nos versos anteriores (Hb 12.18-20; cf. Êx 19.16-19; 20.18-21; Deuteronômio 4.11-17), ela se refere ao mesmo evento e possui paralelos conceituais que permitem essa conexão.1056 O manuseio que o autor de Hebreus faz de Deuteronômio demonstra perspicácia exegética e profundo conhecimento do argumento do livro, destacando um detalhe que acrescentou maior “cor” à compreensão da narrativa. Esse mesmo procedimento ocorre dentro da exegese gramático-histórica, quando percepções de detalhes textuais deixam o quadro da narrativa ou o pano de fundo mais claro e provocam uma resposta de surpresa do leitor com a descoberta do detalhe. Um exemplo disso é a observação da ironia e da condição aguda nos dias dos Juízes no quadro apresentado pelo livro de Rute, em que havia “fome” em “Belém” (lit.“casa do pão”), e esta era tão grave que forçou uma família a sair dali (Rt 1.1). O argumento da narrativa traz outro toque de surpresa quando Yahweh voltara a dar “pão” para o seu povo (1.6).1057 A “casa do pão” que estava sem “pão”, voltou a receber o “pão” das mãos de Deus. Ou a percepção de que a narrativa de 1Reis 10.14—11.10 descreve de modo sequencial a falha de Salomão em observar exatamente os três aspectos advertidos em Deuteronômio 17.16-17 (“muito ouro”, “muitos cavalos” e “muitas mulheres”!) como a mola propulsora para a sua apostasia.1058 Por fim, como demonstrado na exegese dos versos 26-28 de Hebreus 12, o autor da epístola cita o texto de Ageu 2.6 e interpreta o seu sentido, mas o expande em sua significância, isto é, percebe que a referência à ação cataclísmica divina para instaurar o reino de Deus na terra mediante o Messias, no texto original (cf. Ag 2.6-9),1059 aponta para um referente ainda maior, o eterno “reino inabalável”, de forma que “permaneça o que não pode ser abalado” (Hb 12.28).1060 Certamente, o intérprete atual que compreende Ageu 2.6-9 como 1054

William L. LANE, Hebrews 9 - 13, p. 464. Craig R. KOESTER, Hebrews: a new translation with introduction and commentary, p. 550 1056 George GUTHRIE, “Hebrews”. In: CNTOT, p. 988. 1057 Ver José VÍLCHEZ, “De Belén a Moab: Rut 1.1-6”, p. 441-449. 1058 Cf. Thomas L. Constable, “1Kings”. In: BKC, v. 1, p. 507-508. 1059 Ver a exegese do capítulo 5. 1060 Tal uso pelos autores neotestamentários é observado por Darrel Bock: “A linguagem que era ‘terrena’ no Antigo Testamento foi expandida para incluir um ‘impulso celestial’. Por exemplo, o rei como ‘filho’ em um 1055

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o “reino milenar de Deus” não seria capaz de inferir tal significância por si mesmo, mas mediante as lentes do autor neotestamentário pode perceber a significância teológica última do sentido contido na profecia do AT.1061 Este é o caso em que “a progressiva revelação dos propósitos de Deus [funciona] como o contexto complementar no qual as implicações totais são percebidas exegeticamente”.1062 A interpretação cristológica ocorre mediante as lentes do “fundamento” lançado pelos “apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular” (Ef 2.20). 6.5. Conclusão O empreendimento do presente capítulo chega a seu fim após a investigação exegética dos aspectos históricos e literário-gramaticais da passagem de Hebreus 12.14-29, bem como depois de analisar questões hermenêuticas importantes, como a relação entre a exegese judaica do período posterior do segundo templo e aquela encontrada na carta aos Hebreus e o modo como o autor cristão utilizou os textos do AT em seu discurso parenéticoescatológico (Hb 12.14-29). O primeiro subponto do capítulo analisou as propostas de relacionamento hermenêutico-teológico do autor de Hebreus com Filo e com os escritos de Qumran e da Apocalíptica, e concluiu que não há fundamento para se defender uma dependência de qualquer uma dessas fontes judaicas, ao contrário, as evidências mostram que em muitos aspectos o autor cristão difere da teologia e hermenêutica desses grupos, ainda que use conceitos e formas de exegese comum a eles. Apesar de vários aspectos históricos que envolveram a carta não serem claros, concluiu-se que ela foi escrita a judeus que viviam num ambiente helenista e que precisavam de encorajamento para permanecer firmes na fé cristã, sem retornarem ao seio do judaísmo. Diante disso, o autor desenvolveu seu argumento apresentando a superioridade de Cristo sobre os anjos, sobre figuras importantes do AT, como Moisés e Josué, e sobre o ritual e os ministros do culto judaico, fazendo depois uma série de exortações para que os leitores se sentido não ontológico no Antigo Testamento é ‘o Filho’ num sentido ontológico no Novo Testamento (Hb 1); o ‘reino’ que ocorre junto com ‘Jesus como rei’, em alguns textos do Novo Testamento, refere-se a algo distinto de um governo terreno (Lc 17.20-21; At 2.32-36).” (Ver Darrel BOCK, “Evangelicals and the use of the Old Testament in the New: Part 2”, p. 310). 1061 Esta ampliação é percebida dentro do contexto canônico, em que certas imagens, expressões e palavras ganham uma significância mais profunda e atingem seu referente final (Ver Elliott E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 205-206). 1062 Elliott E. JOHNSON, Expository Hermeneutics: an introduction, p. 185. 165

mantivessem confiantes nas promessas de Deus e saíssem “para fora do acampamento, suportando a desonra” que Jesus suportou. O trecho de Hebreus 12.14-29 representa uma seção parenético-escatológica da carta, que exorta os cristãos destinatários a não desprezarem os recursos da graça de Deus, tendo em vista a superioridade da nova aliança. A primeira e a última subseções apresentam exortações pastorais para que os leitores não sejam negligentes com as bênçãos recebidas na nova aliança nem desprezem a palavra de Deus, enquanto que as outras duas subseções desenvolvem o contraste entre a antiga e a nova aliança, com a ilustração dos montes Sinai e Sião, indicando que o acesso a Deus e a sua revelação são maiores na aliança mediada por Jesus, cujo “sangue aspergido, fala melhor que o sangue de Abel”. Ao longo da análise exegética, o autor comparou o modo como o escritor de Hebreus utilizou os textos citados do AT, ficando claro que a exegese do intérprete cristão foi fiel ao sentido original das passagens de Deuteronômio e de Ageu, mostrando a significância dos textos para à comunidade cristã a quem escreveu. Ao comparar com o modo como as outras fontes judaicas lidaram com as passagens do AT, diferenças marcantes foram percebidas na interpretação, mas algumas semelhanças encontradas, cuja raiz básica foi o modo literal de tratamento do texto, especialmente no modo como a profecia de Ageu 2.6 foi tratada em Hebreus e no livro apocalíptico de 2Baruque. Finalmente, discutiu-se a possibilidade ou não dos intérpretes atuais seguirem os traços básicos da interpretação do AT feita pelo autor de Hebreus, em seu discurso parenéticoescatológico. Após examinar a proposta de vários teóricos e observar o tratamento literal da Bíblia Hebraica, mas com extensão de novos referentes, que ocorre em Hebreus 12.14-29, este autor concluiu que a metodologia do intérprete neotestamentário é válida dentro do plano histórico-gramatical, tanto na compreensão do texto original como na busca pela significância hodierna, ressaltando, porém, a importância de se usar as lentes cristológicas/escatológicas neotestamentárias, a fim de se entender a ampliação de significâncias que só são perceptíveis ao longo do progresso da revelação no cânon.

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7.

CONCLUSÃO Diante da investigação exegético-teológica dos aspectos pontuados na introdução

desta monografia, como a análise de abordagens hermenêuticas, o estudo da crítica textual, exame exegético das passagens bíblicas e a pesquisa de fontes extracanônicas, a proposta de pesquisa formulada na introdução deste trabalho chega à sua conclusão. No capítulo inicial, analisou-se as propostas mais populares, dentro da ortodoxia protestante, na abordagem do uso do AT pelo NT, chegando-se à conclusão de que a abordagem do Referentiae plenior é aquela que melhor satisfaz a compreensão normal da dinâmica hermenêutica do uso do AT pelo NT, devido a sua distinção entre significado e significância e pelo reconhecimento de que o Autor divino pode tencionar significâncias não percebidas pelo escritor humano do AT. As sugestões feitas por outras abordagens, como a abordagem Canônica, a abordagem da Hermenêutica Judaica e do Cumprimento Análogo, também trazem contribuições importantes, especialmente no destaque à leitura cristocêntrica neotestamentária, à importância da exegese que leva em conta o contexto do Cânon e ao estudo da influência conceitual que a literatura judaica desempenhou sobre o NT na interpretação de passagens bíblicas. No decorrer do capítulo 3, examinou-se o TM e a LXX de Deuteronômio 4.24, 9.19, 29.18 e Ageu 2.6, e constatou-se que, em Deuteronômio, o texto grego se mantém bem próximo ao hebraico, enquanto que, em Ageu 2.6, apresenta apenas uma diferença textual significativa, que é a ausência do indicador temporal de iminência (“dentro de pouco tempo”), o que não prejudica o seu uso pelo autor de Hebreus, cujo foco no uso do texto não se concentrou neste aspecto. As citações feitas pelo autor de Hebreus mantiveram basicamente a estrutura do texto da LXX, apresentando pequenas alterações, como um breve comentário (12.26) e a atualização do pronome (12.29), e o simples acréscimo de um adjetivo à fala de Moisés (12.21), cuja origem se dá pela relação do uso da palavra no contexto canônico maior com o evento do Sinai (Dt 9.19; Sl 77.18; 18.7). O quarto capítulo apresentou uma exegese das passagens dos versos de Deuteronômio citados em Hebreus (Dt 4.15-24; 9.15-21; 29.16-21), com a introdução respectiva do livro, mostrando que o ele é de autoria mosaica e sua forma literária espelha 167

aquela encontrada nos tratados de vassalagem do Oriente Antigo. O argumento do quinto livro da torâ revela todo o processo e o discurso de renovação e atualização da aliança, liderado e proferido por Moisés, com a nova geração de israelitas prestes a entrar na terra prometida. O primeiro subponto apresentou a exegese de Deuteronômio 4.15-21, mostrando que o sentido de “o teu Deus é fogo consumidor” estava ligado ao caráter santo de Deus e ao seu zelo por seu povo, não admitindo nenhum rival na adoração de Israel. Já em 9.15-21, uma passagem que traz a recapitulação histórica da apostasia do bezerro de ouro, o temor expresso por Moisés no verso 19 se deveu à consciência do caráter temível e grandioso do Deus do Sinai e ao medo por sua fúria contra o pecado da nação. O último texto observado, 29.16-21, mostrou a advertência contra a “raiz que produz fruto amargo e venenoso”, isto é, qualquer israelita que em seu coração decidisse ser infiel à aliança com Yahweh, achando que escaparia ileso de sua escolha, mas ao contrário, acabaria trazendo desgraça sobre toda a nação e contaminando muitos com sua apostasia. Na parte seguinte (cap. 5), analisou-se de forma ampla o sentido da passagem de Ageu 2.6-9. O estudo do contexto histórico e literário de Ageu revelou que o livro se constitui em um conjunto de oráculos de correção e encorajamento, cujo objetivo era conduzir o povo pós-exílico de Judá à devida atenção ao seu compromisso com Yahweh, evidenciado na proporção de seu engajamento na reconstrução do templo em Jerusalém. A porção de 2.69 é uma mensagem profético-escatológica que anunciava a intervenção futura de Yahweh sobre as nações, levando-as a adorá-lo no templo de Jerusalém, enchendo o local com sua gloriosa presença e estabelecendo seu reino e a paz messiânica universal. O propósito deste vaticínio era, portanto, encorajar os judeus a continuarem o trabalho de reconstrução do templo, compreendendo a si mesmos como participantes do plano de Deus para a história de seu povo. O capítulo final (cap. 6) apresentou um estudo exegético de Hebreus 12.14-29, considerando seu contexto literário e histórico maior, bem como o fluxo do argumento da passagem e seus aspectos linguísticos. Além disso, o autor examinou as propostas de relação direta entre a carta aos Hebreus e outros grupos do judaísmo contemporâneo, tanto no aspecto mais amplo da carta como de modo específico nas citações encontradas no discurso parenético-escatológico (Hb 12.14-29). Nas questões históricas, a identidade do autor da carta permanece uma incógnita, mas seus destinatários eram provavelmente judeus cristãos, que viviam na diáspora e que estavam recebendo pressão para retornar ao judaísmo, num período 168

que antecedeu a destruição do templo, provavelmente na primeira metade da década de 60. Por isso, o escritor de Hebreus desenvolve seu argumento para mostrar a superioridade de Cristo sobre os seres celestiais bem como sobre personagens importantes da história do AT e sobre os aspectos que compunham o ritual cultual no templo (sacrifícios e sacerdotes), levando seus leitores à conclusão de que a nova aliança é superior à antiga, de modo que os cristãos devem se apegar a ela e peregrinar com fé nas promessas de Deus. A análise exegética de Hebreus 12.14-29 mostrou o desenvolvimento do argumento do texto e estudou os seus aspectos gramaticais. Esta seção da carta se subdivide em quatro subseções, trazendo, primeiramente, uma exortação para que os leitores vivam em santidade e paz, apropriando-se das bênçãos da nova aliança sem caírem na mesma negligência observada na história de Esaú (12.14-17). Depois disso, as outras duas subseções apresentam um contraste entre o monte Sinai, que representa a antiga aliança e o distanciamento de Deus (12.18-21), e o monte Sião, que descreve a nova aliança ratificada pelo sangue Cristo, que garante e possibilita o acesso a Deus (12.22-24). A última subseção traz outra exortação do escritor para que seus leitores não negligenciem a palavra de Deus, revelada por meio do Filho, mas se apropriem da graça de Deus e o adorem em temor reverente, tendo em vista o caráter transitório deste mundo e o caráter santo e zeloso de Deus (12.25-29). Dentro das discussões hermenêuticas, o autor expôs a inviabilidade de se postular alguma ligação entre o autor de Hebreus e Filo, ou entre aquele e Qumran e a Apocalíptica, tendo em vista os pressupostos teológicos e hermenêuticos diferentes que distinguem cada um. Então, como um estudo de caso, esta pesquisa examinou o uso que o autor de Hebreus fez das passagens citadas do AT em comparação com o modo como os demais grupos judaicos lidaram com elas, dentro do discurso parenético-escatológico de Hebreus 12.14-29. Vários aspectos diferentes foram observados, como também as semelhanças, sendo que estas últimas se deram especialmente pelo tratamento literal que os demais grupos dispensaram ao texto, especialmente dentro da hermenêutica rabínica e da Apocalíptica (2Baruque). A observação do uso do AT em Hebreus 12.14-29 demonstrou também que o autor da epístola, da mesma forma que outros escritores do NT, lidou de forma séria e adequada com o sentido original das passagens bíblicas citadas por ele, respeitando o significado delas, mas destacando novas significâncias nos textos de Deuteronômio para os membros da igreja destinatária e apontando para o referente último da profecia de Ageu, “o reino eterno”,

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tencionado pelo Autor divino, mas não necessariamente percebido pelo escritor humano do AT. Por fim, o capítulo 6 concluiu com o debate sobre a possibilidade ou não dos intérpretes modernos seguirem o modelo exegético legado pelo NT em seu uso do AT. As fragilidades das propostas de Longenecker e dos proponentes do ISPA, juntamente com a percepção convincente e bem fundamentada de outros exegetas de que é possível utilizar a metodologia neotestamentária como orientadora para a exegese histórico-gramatical, levou este pesquisador a concluir que o modo como os autores do NT lidaram com o AT, especialmente o autor de Hebreus em 12.14-29, oferece um molde normativo para a exegese contemporânea. Especialmente, no que tange à interpretação literal do texto bíblico e na reflexão de sua significância mediante o evento Cristo para o povo de Deus atual. 1063 A pesquisa apresentada neste trabalho abre espaço para futuros estudos do uso do AT na carta aos Hebreus, que apresenta um campo interessante nesse sentido, especialmente em seu uso de outras passagens de Deuteronômio na carta, bem como de textos do livro de Salmos, que é a obra mais citada pelo autor cristão. A análise da ênfase no contraste entre Cristo e os anjos nos capítulos 1 e 2, à luz do contexto maior do judaísmo, também abre espaço para pesquisas frutíferas e importantes na relação do cristianismo e seu milieu conceitual judaico.

Klyne SNODGRASS, “The Use of the Old Testament in the New”. In: G. K. BEALE, The right doctrines from the wrong texts?: essays on the use of the Old Testament in the New, p. 49-50. 1063

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