Tio Joe Stalin vai à Hollywood: o cinema americano pró-soviético (1941-45)

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TIO JOE STALIN VAI À HOLLYWOOD: O CINEMA AMERICANO PRÓ-SOVIÉTICO (1941-45) 1 Gelise Cristina Ponce Martins2 Moisés Wagner Franciscon3

Resumo: O cinema soviético tende a ser visto e analisado pela ótica da teoria do totalitarismo, segundo a qual, seria apenas propaganda ideológica do regime. Um instrumento dos mais importantes para o funcionamento da moderna máquina do Estado totalitário durante o século XX. Um de seus atributos, uma vez que não passaria de um meio de se controlar a consciência da massa, seria o de manipular a História constantemente e em sentidos opostos, segundo os interesses políticos do momento. Entretanto, essa teoria demonstra ser falha. Essa mesma prática pode ser facilmente encontrada no cinema que deveria ser tão autônomo quanto o livre mercado. O cinema americano tentou remodelar a imagem da URSS durante a Segunda Guerra. A sóciohistória do cinema, de Marc Ferro, pode demonstrar essa similaridade, concedendo ao cinema soviético uma nova compreensão. Palavras-chave: Totalitarismo; Cinema; Estados Unidos; Segunda Guerra; URSS. Abstract: The Soviet cinema tends to be seen and analyzed from the perspective of the theory of totalitarianism, according to which, it would only ideological propaganda of the regime. One of the most important instruments for the functioning of the modern totalitarian state machine during the twentieth century. One of his attributes, since not pass a means of controlling the mass consciousness, would be to manipulate history and constantly in opposite directions, according to the political interests of the moment. However, this theory proves to be failure. This same practice can be easily found in film should be as autonomous as the free market. The American cinema tried to reshape the image of the USSR during World War II. The socio-cinema history, Marc Ferro, can demonstrate this similarity, granting the Soviet cinema a new understanding. Keywords: Totalitarianism; Cinema; USA; Second World War; USSR.

Se lançarmos nossas vistas sobre o cinema americano pró-soviético, podemos demonstrar que muitos dos aspectos que se costuma caracterizar como necessários e oriundos do totalitarismo – por exemplo, a crença (ou para os adeptos da teoria, a 1 2 3

Recebido em 06/04/2014. Aprovado em 16/06/2014. Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá

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Gelise Martins/Moisés Franciscon certeza) do Estado em seu poder para moldar a mente de seus cidadãos – podem ser encontrados no mesmo país que deveria constituir seu inverso. Como podem os Estados Unidos, antes e depois da guerra, produzirem um cinema antissoviético, mas durante a vigência do conflito, buscar apoio popular interno para os aliados de última hora? A crença de que a memória coletiva ou a mente das massas pode ser facilmente envergada para qualquer lado que o poder do Estado deseje não é a essência do totalitarismo? Há um ponto nevrálgico nessa questão: o cinema soviético era produzido por estúdios estatais, e o americano, privado. Porém, havia o impulso por uma política de amizade vinda do governo americano, que produziu, de um lado, a figura do Zé Carioca, para o público brasileiro, ou o galo Panchito, para o mexicano. Mas também desenvolveu o “tio Joe”, Stalin da URSS, para consumo do público interno americano. A produção de filmes elogiosos ao regime stalinista pode ser explicada apenas dentro da expectativa de controle da informação e da história, bem como do poder de remodelação ideológica. As palavras do cientista político e ex-Conselheiro de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski, são dirigidas para a caracterização do regime totalitário soviético: A revolução totalitária não teria significação sem uma justificativa para induzir a maioria atuante da população. Consequentemente, a ideologia não é senão um guia histórico. Ela se torna uma dose diária de perpétua doutrinação. O impacto social dos esforços totalitários para modelar a realidade de acordo com sua doutrina, incluindo terror e doutrinação, cria uma diferença quantitativa entre os sistemas atuais e as antigas ditaduras, que é suficientemente grande para tornar-se uma diferença qualitativa. [...] Outro aspecto do papel da ideologia é o esforço quase, por assim dizer, frenético, do regime para doutrinar as massas. Não será exagero afirmar que a doutrinação tomou o lugar do terror como traço mais característico da relação do regime com a sociedade, e talvez mesmo do sistema propriamente dito, em relação a outros (BRZEZINSKI, 1963, p.20; 68).

Ou seja, para Brzezinski, o sistema totalitário existe mesmo que na ausência de uma política de terror político. O poder do partido comunista residiria na união entre ideologia e ação, na tentativa de fazer a realidade coincidir com a utopia social e suas teorias de desenvolvimento histórico da humanidade. A força de sua “história cientifica”, repleta de verdades absolutas, constituiria a base primordial para essa ideologia e fonte de fanatismo. Este, necessário para o vigor do regime. Assim, o controle sobre a história passada e de suas relações com o porvir é um elemento necessário do poder totalitário. Moshe Lewin (1988, 2007) já lembrara a inadequação da teoria totalitária à realidade dos países que pretende analisar. Mais do que um instrumento analítico que 368

Tio Joe Stálin vai à Hollywood permita antecipar os desenvolvimentos daquelas sociedades, sempre se demonstrou falho e incapaz de explicar suas transformações – coisa que, em tese, sequer deveria ocorrer, uma vez que não seria do interesse do Estado todo poderoso. Slavoj Žižek comenta a motivação e sentido prático do conceito de totalitarismo como mecanismo de controle dos dissidentes internos dos sistemas liberais (ŽIŽEK, 2013, p.7; 9). Pode-se afirmar que, como o faz Fernandes (2000), o conceito de totalitarismo apresentou uma nova onda de adeptos a partir de meados dos anos 1980. Momento em que os reformistas do Kremlin passaram a utilizar tal conceito para atacar seus oponentes no campo político e social, e a demarcar o alvo de suas reformas. Como ferramenta, é ótimo para políticos, jornalistas, novelistas ou para a projeção de uma plataforma políticoeconômica interessada. Contudo, como ferramenta analítica para as disciplinas sociais é mais do que insuficiente. Assim sendo, a melhor descrição do controle absoluto da informação, da propaganda e da vontade popular encontra-se na literatura (ORWELL, 1996, p.169-171), e não nas Ciências Sociais. Richard Overy mostra que o cinema era um dos meios prioritários para levar a “nova história” ou a versão única e verdadeira da história para as massas. O autor percebe em Alexandr Nevsky, de Eisenstein, uma obra panfletária contra traidores internos, além, é claro, da ameaça externa à URSS. Lembra as palavras de Eisenstein sobre o filme, de que seu objetivo era o patriotismo. Portanto, vê o diretor como parte da máquina de propaganda de Stalin, e não como dissidente oportuno. Seu Ivan, o Terrível, seria a prova cabal do poder e da sujeição ao totalitarismo (OVERY, 2009, p.569). Uma das características essenciais da propaganda totalitária seria a capacidade de reescrever, mitificar ou ficcionalizar a história, com a finalidade de legitimar o próprio poder. Característica presente tanto na adulteração de fotos com personagens decaídos do regime posando ao lado de ícones do mesmo, quanto no cinema, em condições similares. Assim o próprio Stalin, em 1927, teria insistido em analisar Outubro de Eisenstein, eliminando 900 metros de filme que continham um discurso liberal da fase em que Lenin preconizava a NEP e cenas com a presença positiva do desafeto Trotsky (FIGUEIREDO, 2004, p.176). Além da censura e da eliminação de trechos de filmes que discordavam da história oficial do momento, existia ainda a possibilidade de rodar películas que fantasiavam a participação e importância de Stalin durante a revolução. Evgeny Dobrenko (2008, p.1-3) afirma que a história se constitui de imagens do passado construídas de forma a servir ao Estado stalinista. Inicialmente, essas

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Gelise Martins/Moisés Franciscon imagens pertenciam ao quadro da literatura. O cinema as constituiu em imagens literais, visuais. “Na era da revolução da mídia, a literatura é transformada em filme”, manipulando e transformando as imagens históricas. O cinema era a mais constitutiva e avançada prática artística na cultura stalinista, servindo à produção da história oficial, de uma mitologia. A força do mito tornaria a realidade “irrelevante” para seu adepto. O cinema totalitário possui a necessidade de criar imagens de um passado literal, ou, citando Sorlin, “a História não é pré-existente ao filme, ela é produzida por ele [...]; a realidade não é usada pelo filme; ela é reconstruída e o resultado da reconstrução nunca é confi|vel”. O historiador do cinema soviético, Peter Kenez, tenta demonstrar que o grau de doutrinação e de crença no poder da propaganda sobre as massas, foi muito maior sob o totalitarismo soviético do que o nazista. E este estava a uma grande distância do cinema produzido sob o regime democrático dos Estados Unidos, uma vez que no primeiro, a ingerência e financiamento do Estado eram acentuados, enquanto que no segundo, desprezíveis ou inexistentes. Para Kenez (1992b, p.147-149), o cinema soviético não era mais do que um apêndice da política do regime. Unicamente, voltado para uma ideologia simplificadora e desenraizada da realidade. Os mandatários e, mesmo os diretores, analisariam a produção fílmica segundo sua capacidade em proporcionar a difusão da propaganda. O cinema soviético seria não uma forma de arte, mas mera propaganda política vazia (KENEZ, 1992a, p.243). Marc Ferro, pai da sócio-história do cinema, pensa de forma diferente (1992). A linguagem própria do cinema soviético sob Stalin era o gênero cinematográfico do realismo socialista, que criara uma linguagem própria, porém laudatória e, sob pressão do regime. Kenez se opõe a visão de Ferro (KENEZ, 1992a, p.181-182; 249). Mais do que diferenças, Ferro (1992) percebe similaridades entre o que Pereira (2012, p.14-15) chama de “cinema democr|tico” e “cinema totalit|rio” – a produção fílmica de regimes liberais, como os Estados Unidos, ou totalitários, como a Alemanha Nazista. O mesmo se pode dizer das concepções de um exclusivismo ideológico soviético em Kenez. Ainda em 1939 um filme americano, Sky patrol, explicitamente antissoviético, fora exibido em Paris (FERRO, 1992, p.32). A URSS foi mostrada como agressora e belicosa, ao atacar a Finlândia. Para tentar refazer a imagem do país, decidiu-se por grandes películas, que ficaram a cargo da Warner. Em Missão a Moscou, de 1943, “os bons sentimentos formam toda a ossatura desse filme que tenta, em menos de duas horas, desarmar-se de 370

Tio Joe Stálin vai à Hollywood qualquer suspeita contra o regime stalinista”. Em North Star, os problemas da coletivização foram transformados em sucessos, como a propaganda stalinista o fazia (FERRO, 1992, p.37-38). Os atuais estudos sobre cinema na Rússia conduzem a crítica à representação da história soviética em termos negativos de mitos e de realidade (TAYLOR; SPRING, 2013, p.93). E toda uma onda de filmes que punham em cheque qualquer legitimidade do regime (BEUMERS, 2009, p.196). Os autores preferem falar em “aspiração ao controle totalit|rio”. Historiadores ocidentais têm se empenhado em seu próprio debate sobre a natureza e o significado do stalinismo, que girava em torno dos rótulos da “escola totalitária”, “revisionistas” e o “novo grupo” de historiadores sociais [...]. O cinema foi importante como um moderno meio acessível de comunicação de massa, um dos instrumentos que permitiram um impulso do tradicional controle autoritário na história russa para atingir os seus extremos em formas stalinistas. O estudo do cinema é de interesse tanto para o que ele revela sobre os esforços do regime para manipular e criar uma nova consciência na sociedade e para a análise do que era novo nessa consciência e que, de fato, era retrógrado e enraizado no passado. Também é importante, uma vez que levanta questões sobre a intelligentsia criadora, a extensão e as formas de sua maleabilidade e manipulação, e da extensão da sobrevivência das aspirações individuais em condições stalinistas, intenções e independência dos autores e diretores de cinema. O estudo de cinema também é particularmente importante para uma avaliação do impacto da mídia manipulada de propaganda sobre os vários níveis de público. As produções do cinema eram limitadas em números, em 1930 e 1940. Praticamente todos no público que iam ao cinema assistiram a todos os filmes. Aqueles que controlavam o cinema tinham uma estratégia particular e objetivos em mente na criação e nas mensagens de filmes. Mas o cinema era muito bruto e um instrumento imperfeito de propaganda, que não conseguia levar em conta a multiplicidade de consciências, de conhecimento e experiência na sociedade soviética, desde o despossuído morador rural experimentando a cultura urbana pela primeira vez até os remanescentes da intelligentsia “burguesa” e os herdeiros de suas tradições. O exame do stalinismo e do cinema soviético, portanto, pode, em um nível relativamente micro, ajudar a fornecer insights sobre as macro questões do stalinismo (TAYLOR; SPRING, 2013, p.1; 2-3).

Ao contrário de totalitaristas mais ortodoxos, como Brzezinski ou Hanna Arendt, Kenez e Overy não enxergam relações de forças partindo unicamente do alto para baixo, do Estado para as massas. Aceitam que há alguma transfusão de energia e de vontade no sentido oposto. Porém, em intensidade muito menor, cabendo ao regime a remodelação nos mínimos detalhes da sociedade, segundo seu projeto ideológico, caracterizando um poder absoluto. Portanto, estão inseridos no paradigma da escola totalitária.

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Gelise Martins/Moisés Franciscon É importante lembrar, como faz Pinheiro Pereira (2012), que a liberdade do cinema americano não é total, como se imagina. Não havia legislação federal impondo a censura à produção artística. Mas havia legislações estaduais, como a do Tennessee. Em 1921, nada menos que 30 projetos de lei circulavam em Washington para implantar a censura prévia unificada para a produção e distribuição em todo o país. Se os estúdios quisessem evitar gastos enormes com a edição dos filmes, para se enquadrar às legislações que impunham censuras diferentes em cada estado da União, ou problemas legais com a mesma, caso novas leis de censura de caráter federal fossem aprovadas, era necessária a adoção de um Código de autocensura. O lobby do advogado William Hays e das companhias de cinema conseguiu evitar, em 1934, a intromissão do Estado em seus negócios e consequentes processos na justiça, ao custo de controlarem mais de perto o trabalho de roteiristas, atores e diretores. O modelo privado nos EUA se estendeu também ao sistema de censura. O que já podia se inferir pela iniciativa dos estratos médios da sociedade de constituir a “Liga da Decência”, para fiscalizar a produção dos estúdios, pressionando os empresários do setor e o Estado para que a censura fosse aplicada de acordo com sua lista de exigências (PEREIRA, 2012, p.204). Production Code Administration, ou Código Hayes, não estabelecia apenas normas para que os filmes se enquadrassem às exigências de censura em cada estado, mas também recomendações de como deveriam ser as produções. Nesse sentido, as 12 seções do código que tratavam de desfechos das tramas (PEREIRA, 2012, p.205), não se afasta muito, em sua essência, das diretrizes do realismo socialista. Com a eclosão da Segunda Guerra, o setor teve medo de ser incorporado ao esforço de guerra. O direcionamento de toda sua produção para a propaganda e treinamento de tropas constituiria um prejuízo enorme. Porém, o presidente Roosevelt deu sinais de que não queria arcar com as dificuldades e com a oposição de uma política de controle estatal do cinema. Novamente, a fórmula particular, que salvaguardava a imagem liberal e democrática do Estado e a de independência e o lucro dos empresários, foi adotada. Em 1940, um ano antes do início da guerra, o Hays Office, que já havia se consolidado como o intermediador entre Estado e estúdios, criou o Motion Picture Committee Cooperating for Nationial Defense, com a finalidade de produzir especificamente para as necessidades da propaganda do Estado. Com o ataque do sete de dezembro de 1941 à Pearl Harbor, o comitê foi renomeado para WAC, ou War Activities Committee, e manteve-se sob controle formal dos magnatas do cinema. 372

Tio Joe Stálin vai à Hollywood O início da campanha americana deixava a desejar, e o Estado preferiu uma fórmula mais dirigista e efetiva. Em 13 de junho de 1942 foi criado o Office of War Information, ou OWI, presidido por um radialista, Elmer Davis. Suas finalidades eram: Aumentar o entendimento público sobre a guerra no front interno e no exterior, coordenar as atividades de informação do governo e servir de contato com a imprensa, o rádio e o cinema. Com filial tanto no país quanto no exterior, a OIW assumiu virtualmente o controle de toda informação doméstica e de propaganda. Compartilhava suas responsabilidades exteriores com o Escritório do Coordenador de Assuntos Interamericanos (Office of the Coordinator of Inter-American Affairs), chefiado pelo neto de John D. Rockfeller [...] e com a Secretaria de Serviços Secretos (Office of Strategic Services - OSS) (PEREIRA, 2012, p.232).

Outros órgãos governamentais importantes eram o Bureau of Motion Pictures, ou BMP, que era responsável pela produção de filmes e por manter os contatos com o setor privado da indústria do cinema, e a Secretaria de Censura, Office of Censorship, que controlava os filmes estrangeiros exibidos no país e que filmes americanos poderiam ser exportados. O OCIAA possuía sua própria cartilha sobre como deveria ser feito um filme com destino { “Política da Boa Vizinhança”, na América Latina (PEREIRA, 2012, p.236). Como também, sobre como os aliados deveriam ser tratados nas telas (PEREIRA, 2012, p.279). Por isso, parece estranho o autor falar em “cinema democr|tico” para o caso americano e em “cinema totalit|rio” para o caso da Alemanha nazista. É no contexto da aliança inesperada entre Estados Unidos e União Soviética que aparecem os filmes americanos pró-soviéticos. Essa é a definição usada por Hall e Silva (2010, p.271) e por Fried também (1990, p.73). Falk prefere o termo “filmes russos” (2001, p.30). Como o próprio nome indica, trata-se do conjunto de películas produzidas por estúdios americanos sobre seus aliados soviéticos, no período entre 1941 e 1945 (período da vigência de sua aproximação), imbuídos de forte sentimento positivo junto ao regime stalinista. Fazem parte desse ciclo obras Mission to Moscow, North Star, Song of Russia, Three Russian girls, Miss V from Moscow, Counter-Attack, The boy from Stalingrad, The Battle of Russia, Days of Glory, Our Russian Front, além de animações de curta-metragem. Apesar da aproximação com o regime stalinista (após um quase conflito, especialmente com a Inglaterra, durante a Guerra de Inverno na Finlândia) ter se iniciado, tão logo o país foi atacado pela Alemanha hitlerista, em 22 de julho de 1941. E ela só toma impulso após o ataque japonês à Pearl Harbour, em 07 de dezembro do

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Gelise Martins/Moisés Franciscon mesmo ano. Ainda assim, o fornecimento de ajuda material aos soviéticos, como alimentos, munição, combustível e motores de caminhão, esteve condicionado à comprovação de que poderiam resistir aos nazistas. O que se deu com a contraofensiva a partir de Moscou, no inverno de 1941-1942, e na defesa de Leningrado. Todas as produções começaram a vir a público em fins de 1942 (Miss V from Moscow) e 1943. Mission to Moscow e The boy of Stalingrad estrearam em maio de 1943. The North Star em novembro e Three Russian girls, em dezembro. Foram filmes produzidos sob o impacto da resistência e posterior vitória soviética sobre a Wehrmacht, e do sentimento de que a reviravolta na guerra começada de fato naquele momento. Manter as entregas de materiais dos acordos de Lend-lease – na rota mais perigosa para os comboios, como era a rota para Murmansk, passando pela Noruega ocupada pelo inimigo e o Mar Branco, repleto de “matilhas” de u-boats alemães – era importantíssimo em vista da exaustão do aliado soviético. Ao mesmo tempo, setores conservadores da sociedade americana se opunham à ajuda ao regime comunista. Muitos, inclusive, percebiam Hitler, antes do 07 de dezembro, como um aliado possível ou desejável, e não um inimigo. Os acordos precisavam ser legitimados, e levar para as telas e para a opinião pública o esforço e a importância da participação soviética. Tratava-se não apenas de uma campanha de “informação”, mas sim da pretensão de mudar a opinião e a memória da maioria dos americanos. Mission to Moscow, da Warner Bros, dirigido por Michel Curtiz, entrou em cartaz apenas dois dias depois. O filme é baseado no livro do embaixador americano em Moscou, entre 1936 e 1938, Joseph Davies. Hall e Silva (2010) afirmam que sua narrativa foi produzida a partir das correspondências entre Moscou e a embaixada americana. Mais do que isso, o filme e o livro traziam para o público americano nada mais do que a versão oficial do governo soviético para sua história recente. Afirma, como Stalin, que o Pacto de Não-agressão com a Alemanha foi provocado pela recusa ocidental em firmar um acordo antifascista, o que teria levado a política de Chamberlain e à Munique, com a consequente partilha da Tchecoslováquia. Que a França estava compromissada com a defesa desta, mas a traiu, apesar dos apelos soviéticos. Afirma que a URSS ficou sozinha quando Inglaterra e França firmaram pactos de não-agressão semelhantes com a Alemanha. E que ela precisava de tempo para se armar melhor, e que arrumaria um “jeito de se proteger a sua maneira”. Que “elementos reacion|rios da Inglaterra” planejavam lançar a Alemanha contra a URSS, destruindo a ambas e impondo 374

Tio Joe Stálin vai à Hollywood uma paz vantajosa para si mesmos. Que seu militarismo era necessário e meramente defensivo, uma vez que se encontrava cercada por nações hostis (e pelo que o filme indica, as únicas nações hostis seriam o Japão e a Alemanha). Lembra que ao Báltico foram oferecidas compensações pela instalação de bases, e que no caso da Finlândia, essa compensação seria também territorial, com a troca de territórios no istmo da Karélia, vizinhos à Leningrado e vitais para a proteção soviética, com territórios maiores na península de Kola. Que, quando estes países se recusaram a paz soviética pela aproximação com o Eixo, restou à Stalin apenas a ocupação militar. Os Processos de Moscou foram justos, verdadeiros tribunais onde se desmascarou o plano de Trotsky, Bukharin, do marechal Tukhachevisky e de seus asseclas dentro do governo soviético de matar Stalin num ato terrorista e de dividir a URSS entre seus novos donos e regimes fascistas que apoiassem o golpe. Davies (Walther Huston) faz questão de frisar que seria impossível aos réus terem decorado todas as falas, ou agido assim sob coerção (HALL; SILVA, 2010, p.285; 288). Que se a embaixada americana estava com seus telefones grampeados e com microfones ocultos em suas instalações, era algo a se entender, já que a URSS sentia-se sitiada e precisava de informação. Que a fome do começo dos anos 1930 era propaganda de pessoas mal-intencionadas e que a população, graças ao sucesso da coletivização e da mecanização agrícola, possuía acesso ao que bem entendia. Que a industrialização acelerada, ao invés de constituir-se numa prisão da economia e do trabalhador, permitiu a ascensão social e melhor renda. Que ambos os processos eram incentivados pela política do stakanovismo, sob o lema da “maior igualdade possível” e do pagamento segundo a qualidade e a quantidade de trabalho. Mas que a coletivização-mecanização e a industrialização encontravam-se ameaçadas por terroristas e sabotadores que precisavam ser reprimidos. Que se o país tendia para a indústria pesada e a conversão bélica – de tratores em tanques, por exemplo – era pela necessidade de estar preparados para tudo, mas dentro do espírito pacifista. O filme mostra o embaixador Davies com passe livre para conhecer qualquer canto da URSS que deseje (!) e de Odessa a Kharkov, de Baku a Dnepropetrovsk, a única queixa é que há muito maquinário antiquado, principalmente na extração de petróleo. Ainda assim, “esses resultados são surpreendentes para uma nação que saltou da Idade Média para os métodos modernos”. Stalin é chamado por Davies, em um encontro particular, de “um grande construtor para o bem da humanidade”. Sua inteligência, organização e a plena devoção da vida para reger o país são ressaltadas. Que enquanto a

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Gelise Martins/Moisés Franciscon Alemanha nazista oprime a mente humana (o que Davies teria experimentado pessoalmente em sua passagem a caminho da URSS – mais um erro já que não foi por trem, mas por mar, desembarcando no Mar Negro), a URSS colocar-se-ia do lado dos Estados Unidos como terra da democracia e da liberdade. Como argumentam Hall e Silva (2010), chega-se a um ponto do filme em que é necessário ressaltar que o capitalismo é melhor que o comunismo, para que o apelo não seja excessivo. A fórmula empregada é a de que o comunismo é um sistema tipicamente russo, e não algo de aplicação universal. Como Davies, Stalin e um operário ressaltam, cada povo escolheu um sistema seu, que possui seus benefícios e que por isso merece ser respeitado. Uma questão de gosto, e não um embate ideológico irreconciliável e mortal. Quando o imperador da Abissínia, Haile Selassie discursa na Liga das Nações, em Genebra, e não é ouvido, seguido do Comissário de Assuntos Estrangeiros, Maxim Litvinov, que o é, tampouco, Davies, como narrador, diz que não foram ouvidos o fundador da Liga (com close sobre o busto de Woodrow Wilson) e seus herdeiros – Litvinov era quem acabara de falar – assim, a URSS era a herdeira das propostas pacifistas americanas do pós-Primeira Guerra. A representação da URSS feita pelo filme é reforçada por uma narrativa semidocumental, com o uso de muitas cenas de documentários soviéticos, das máquinas operadas pelos camponeses aos desfiles de equipamento avançado na Praça Vermelha. Davies aparece em pessoa no início. Tenta convencer o espectador de que se trata da verdade oculta, sem deturpações, por ele ter visto aquela realidade por anos. Seu discurso inicial impõe sua autoridade, sinceridade e patriotismo americano. E o dever moral de ajudar amigos que combatem lado a lado, como os soviéticos. Fala da “integridade e da honestidade dos líderes soviéticos” (MCLAUGHLIN, 2006, p.159-160). No fim do filme, diz o que o povo soviético deu aos americanos ao custo de suas cidades e vidas: “tempo”. O personalismo não está ausente dos filmes americanos. Porém, está ocultado. Roosevelt, ainda vivo, e na presidência, não aparece. Mas sim seu retrato e sua voz. O discurso dos adversários políticos de Roosevelt é usado para enaltecer as posições deste último. A acusação de inconstitucionalidade da lei do serviço militar, que seria necessária. Que a guerra não justificava que a vida privada ou econômica fosse perturbada. Que o isolamento geográfico dos EUA, impedi-lo-iam de ser envolvido na guerra. Contra esses argumentos, compondo uma transição com a imagem de seus

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Tio Joe Stálin vai à Hollywood defensores, a bandeira japonesa e uma reconstituição em maquete do ataque no Havaí. A absorção da versão soviética estaria presente nos demais filmes do período. Em 04 de novembro, foi a vez de The North Star, da RKO, aparecer nas telas. Foi dirigido por Lewis Milestone. Estrela do Norte é o nome da fictícia aldeia ucraniana em que se passa a história. Pelos diálogos, não ficaria muito longe de Kiev. A aldeia é uma representação da sociedade soviética. Possui seus camponeses trabalhando no campo ou com carroções, sua intelligentsia constituída por um professor colegial e um médico escritor, os proletários do centro de tratores e maquinários, seu militar – no pilotocadete da VVS, seu comissário político. Ao invés do holodomor apregoado pelos nacionalistas ucranianos do passado e do presente, bem como pela imprensa ocidental, o que se vê é uma aldeia, como Ferro (1992) diz, com tantos patos, porcos, ovelhas e galinhas quanto os mercados de Moscou. De vacas, mais do que isso. Entre os cenários, pode-se constatar que Ferro acertou ao compará-la com o centro-oeste americano. Há currais para o sistema de confinamento de gado – o que sugere que de fato o filme teve locações na região, já que gado confinado não era prática disseminada na Califórnia. Homens e mulheres põem-se alegremente a caminhar para o trabalho na fazenda cooperada, ou kolkoz. A bondade, a ingenuidade e a vida do interior formam um estereótipo do que os americanos das cidades imaginam sobre seu próprio interior. As crianças da escola cantam versões em inglês dos cantos revolucionários do Grande Outubro, falando sobre a liberdade, o futuro, a esperança e o progresso. É o único musical do ciclo de filmes pró-soviéticos. O filme pode ser dividido em duas partes. A primeira é constituída por música e dança (composição de Aaron Copland e letra por Ira Gershwin). O clímax dessa etapa é o festival da colheita. Após abarrotar um trem com alimentos, os aldeões conservam o suficiente para um grande banquete, animado por acordeões e danças folclóricas – descrevendo os prazeres da vida camponesa, da produção agrícola e amores – envolvendo toda a comunidade, das crianças aos idosos. As ucranianas aparecem com seus trajes típicos, e sua tradicional forma aguda de cantar. Lembram que a URSS não era o país sombrio e cinzento das neves eternas, como comumente era retratada, mas que durante o verão são comuns temperaturas acima de 30 Celsius, como efeito de seu clima continental. A segunda parte do filme se inicia com o ataque surpresa alemão, que não poupa nem a coluna de carroças que levava alimentos e o grupo de jovens protagonistas para Kiev. Não há mais canções. Apenas a trilha sonora. Os stukas, em seus bombardeiros em picado, arrasam a aldeia. Mas o comissário

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Gelise Martins/Moisés Franciscon político e operário organizam seus habitantes, coordenam a guerrilha, e elevam a moral cantando A Internacional, enquanto a câmera foca corpos com a cabeça dentro do rio. Kolya, o cadete, instrui o grupo de jovens e o idoso carroceiro para levar armas e munições até os guerrilheiros, antes de partir para Kiev e tomar parte numa missão suicida. Na aldeia, os camponeses que punham fogo à colheita e suas casas são assassinados, e a família de membros do partido, torturada. O doutor Kurin (Walter Huston) presencia médicos nazistas retirando até a última gota de sangue de crianças ucranianas para fazer transfusões de sangue e plasma em soldados alemães. O doutor Von Harden é o personagem característico do inimigo nazista de alta cultura, que o cinema americano já construíra em outros filmes ambientados, longe do front Leste: frio, calculista, brilhante e, por isso mesmo, esguio, pronto a se desculpar superficialmente em um contratempo. Como Ferro (1992) alega, sua educação apenas o torna ainda mais culpado. Novamente, mostrar crianças e idosos lutando voluntariamente como partisans em meio a atos de heroísmo servia para criar vínculos emotivos, humanizadores e de identificação entre o público, os personagens e o que se desenrolava nas planícies e florestas soviéticas. Em fevereiro de 1944, estreou Song of Russia, da MGM, dirigido por Gregory Ratoff. A identificação entre a plateia americana e os personagens soviéticos se dá por meio de uma contribuição importante da Rússia: sua música, em especial, a de Tchaikovsky. Ela prossegue com a caracterização do kolkoz como propriedade dos camponeses, enquanto mostram a agricultura mecanizada, que poderia passar pela americana se, ao invés do trator Stalinets estivesse um Ford. As conquistas da coletivização são realçadas com o celeiro cheio de sementes selecionadas de trigo, que fazem encher os olhos do maestro vindo de uma pequena cidade de economia rural. Em Moscou, o maestro americano John Meredith (Robert Taylor), em turnê pela URSS, decide conhecer a cidade juntamente com a camponesa e música Nadya Stepanova (Susan Peters). Os dois se apaixonam enquanto conhecem o metrô de Moscou, as balsas do rio Moscou, as ruas da cidade. Para isso, se faz uso de imagens de arquivo. Inclusive de imagens que não eram de Moscou, mas de Paris, durante a Feira Mundial de 1937, com o pavilhão da URSS exibindo as maiores conquistas da arquitetura e ciência soviéticas. Ao visitar o kolkoz de Nadya, a aldeia de Tchaikovskoye, encontra uma população educada, saudável, feliz, religiosa – o casamento entre John e Nadya é feito na Igreja Ortodoxa, com todos os ritos tradicionais. Nas casas, os quadros são ícones dos 378

Tio Joe Stálin vai à Hollywood santos – no interior ou no exterior. Há muita música, canto, dança e vodca na festa de núpcias. John se espanta com os camponeses, homens, mulheres, velhos e crianças, aprendendo com o comissário político a manejar metralhadoras maxins, mas lembra-se que é uma necessidade de segurança do país. Os soldados da fronteira – dragonas e outros emblemas que evidenciassem que tais tropas pertenciam à polícia secreta, NKVD na época, foram retirados dos uniformes – passam seu tempo compenetrados pela música dos grandes compositores russos, executada pelo casal e veiculada pelo rádio. As tropas alemãs os bombardeiam à traição. Tem início a Operação Barbarossa. Em seguida, uma representação do famoso discurso de Stalin, exaltando seus compatriotas à luta, à tática de terra arrasada. Às imagens do ator que interpreta um Stalin grandiloquente – e uma das coisas que Stalin não fazia era falar bem com sua voz contida – se sobrepõem a do povo soviético, que o ouve atentamente, ganha forças para agir, passa a ter um comando, se engaja no esforço de guerra, sente-se confiante. John segue sua esposa até a aldeia destruída pela selvageria fascista, vê-la incendiando os campos de trigo, enquanto seu pai e irmão pequeno são assassinados, mas a convence a ir para a América e a ajudá-lo, como artista, a convencer a opinião pública mundial da necessidade de socorrer a URSS, contando o que viram e sofreram. Há a intenção de desideologizar o regime, de mostrá-lo mais “burguês”, facilitando a impressão de que os soviéticos eram iguais aos americanos. Quando Meredith desembarca em Moscou, as autoridades soviéticas tratam-no polidamente por gazpadi, senhor, e não tovarish, camarada. Não se ouve essa expressão em todo o filme. O uso de gazpadi, e até de mister, que foi absorvido pelo russo, juntamente com várias locuções alemãs e francesas, era normal com estrangeiros. Mas não em filmes americanos representando soviéticos. As pessoas em Moscou vestem-se elegantemente e na moda ocidental. As ruas de Moscou mais parecem frequentadas por ingleses e americanos das áreas nobres de suas metrópoles. Mulheres com lenços na cabeça, apenas na pequena aldeia. Não se vê quadros de Lenin ou Stalin, mas sim de compositores russos – com a exceção de um busto de Stalin, discretamente colocado num canto da prefeitura de Tchaikovskie, e de algumas fotos suas em postes, no aeroporto. O narrador argumenta que tanto a Rússia quanto a Polônia foram invadidas pelos nazistas. Tenta-se criar um hiato em um assunto tão comentado à época, como a nova partilha da Polônia, em 1939.

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Gelise Martins/Moisés Franciscon Days of Glory teve sua estreia em junho de 1944. Foi produzido pela RKO e dirigido por Jacques Tourneur. Nele, um grupo de guerrilheiros, composto por diferentes segmentos sociais soviéticos (um engenheiro, ferreiro, camponês, velho carroceiro, uma menina, professor, comissário político, uma franco-atiradora, um jovem do Komsomol) se vê com a dupla tarefa de cuidar de uma bailarina de Moscou, cujo grupo de artistas, ao entreter as tropas, foi dizimado; e de preparar manobras diversionistas que permitissem a contraofensiva soviética. A bailarina se torna uma aguerrida partisan, enquanto o grupo é dizimado gradualmente pelos nazistas. O sacrifício final, diante do fogo da coluna de tanques alemães que precisavam ser desviados do front principal, é realçado com a declamação por parte dos sobreviventes de uma confissão de cidadania soviética, nos moldes da cidadania americana. De todos, o que teve a mais breve exibição foi Counter-Attack, da Columbia, dirigido por Zoltan Korda. Apareceu nos cinemas em 26 de abril de 1945. Duas semanas antes do fim da guerra. Em 1942, os soviéticos constroem uma ponte submersa, 50 cm debaixo da água de um rio (parece tratar-se do próprio Volga), que assim permanece invisível sob os olhos inimigos. Para que a contraofensiva tenha êxito, é necessário saber a localização do grosso do exército alemão e de suas forças blindadas. O grupo de Pavel Kulkov (Paul Muni), paraquedista e casaca-negra (a infantaria naval soviética), aprisiona sete soldados alemães. Ao ver uma pistola Walther, com as iniciais E.V.S., desconfia existir um alto oficial entre os prisioneiros. Por meio de um interrogatório e de pressão psicológica, tenta identificá-lo. Mas percebe que ele também está sendo testado pelos alemães, que pretendem descobrir por onde ocorrerá o ataque soviético. Os prisioneiros também representam elementos da sociedade alemã, como o arrogante e aristocrático general, o intelectual e refinado carrasco, o mineiro – que decide passar para o lado de Kulkov. Se, antes e depois da guerra, a URSS seria descrita no cinema americano como um lugar em que os direitos humanos não eram reconhecidos, o tratamento do comissário político partisan Kostyuk a prisioneiros de guerra, durante um interrogatório, enrubesceria os atuais interrogadores americanos que seguem as diretrizes legais. Ele usa de psicologia para conseguir que o prisioneiro comece a falar. É amigável, educado. Dá-lhe um cigarro para se acalmar. Usa indícios em suas botas e bolsos para colocá-lo em contradição, força-o a mentir para, a partir daí, inferir o tamanho e a movimentação de fato das tropas inimigas. Esse interrogador humanista, genial, por sua caracterização, não deixa dúvidas sobre quem representa. Cabelos 380

Tio Joe Stálin vai à Hollywood negros, um farto bigode, o indefectível cachimbo, o macacão do partido. Ele é Stalin. O público americano é convidado a ver o líder soviético sob outra ótica, agora, de forma sutil e não consciente. Kostyuk possui ainda um papel civilizatório. Copiando seus métodos, Kulkov consegue identificar o general entre os prisioneiros sem recorrer à violência extrema – o que não o impede de, após quase ser morto juntamente com sua guia, Lisa Elenko, desferir coronhadas para enganar os nazistas. O filme apresenta os soviéticos usando equipamentos unicamente americanos: tanques Sherman, rifles Springfield, submetralhadoras Thompson. Assim, sem a ajuda americana, os soviéticos não poderiam levar a cabo a vitória sobre o Eixo, apesar de sua engenhosidade. As tropas receberam sua dose de propaganda especialmente por meio de documentários – em geral encomendados pelo exército – que mostravam a valentia dos aliados soviéticos. Our Russian Front estreou em 1942, sendo dirigido por Joris Ivens e Lewis Milestone. O narrador era Walter Huston. No ano seguinte, foi a vez de The Battle of Russia, de Frank Capra e Anatole Litvak. Capra trabalhou sob ordens diretas do general George Marshall (PEREIRA, 2012). Bennetti (2001, p.507) lembra que a OWI elogiou Mission to Moscow, por permitir entender melhor as motivações soviéticas na política externa, contribuindo para a paz entre EUA e URSS. O Exército emprestara equipamentos para a maioria desses filmes, quando não os coordenara – no caso dos documentários. Roosevelt teria pedido a Davies para participar das filmagens. Quando a guerra terminou e o democrata Harry Truman assumiu a presidência, a diplomacia sofreu uma guinada. Mission to Moscow foi obra tanto de seu diretor e produtor, quanto do embaixador Davies, que participou ativamente da produção. Afirmava-se fazer o filme o mais próximo possível do que de fato se passara na Rússia. Quando a máquina de repressão de McCarthy lançou-se contra a obra, acabou rejeitado pelo estúdio, diretor e escritor (HALL; SILVA, 2010, p.274-275). O macarthismo, ávido em podar o poder dos sindicatos laborais, em fortalecer o bipartidarismo, ao instituir a fórmula de que apenas dois partidos bastavam (“nós não precisamos mais do que dois partidos”), e que destruía a capacidade de competição dos demais partidos, identificou no cinema mais uma oportunidade. Os políticos conservadores que gravitavam em torno de McCarthy poderiam obter mais alguns pontos junto ao seu eleitorado republicano fiel – igualmente conservador, e que via sua visão de mundo defendida por tais homens públicos – se combatessem a “Gomorra” hollywoodiana, com suas cenas de pouca roupa, suas paixões desmedidas e insinuantes,

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Gelise Martins/Moisés Franciscon seus financistas judeus – que, assim como os católicos, formariam um elemento estranho à nacionalidade e deveriam ser combatidos – e, acima de tudo, a deslealdade para com a p|tria e a “infiltração comunista”. Os estúdios passaram a ser visados pela HUAC, a partir de 1947. Mission to Moscow e North Star “alarmaram” o comitê de McCarthy. Hollywood permitia ao seu grupo combater tanto a influência dos liberais e da esquerda presente no ambiente artístico, como também assaltar sindicalizados, como a Screen Writers Guild, uma união de roteiristas, ou a International Alliance of Theatrical Stage Employees, uma liga de atores, escritores e outros profissionais, ambas com forte presença de “radicais”, que passariam a ser perseguidos (FRIED, 1990, p.73-74). Mission to Moscow recebeu o seguinte coment|rio do embaixador Davies: “nunca o discurso stalinista se difundiu tanto nos Estados Unidos, estigmatizando os ‘traidores trotskistas’ e legitimando os Processos de Moscou” (PEREIRA, 2012, p.490). Em outubro de 1947, Jack Warner, da Warner Bros, foi convocado pela HUAC para prestar depoimento em Washington. Afirmou que jamais um comunista havia pisado em seus estúdios, e que saberia identificar um comunista, se o visse. Afirmou, igualmente, que jamais teria rodado ou distribuído material pró-comunista. Porém, o roteirista Ayn Rand acusou a Warner, citando Song of Russia. O filme enfurecia, descrevendo visualmente ruas “limpas e prósperas” e “crianças felizes”, não desabrigados famélicos. Mostrar russos sorrindo era uma mentira na vida real eles fariam isso apenas “em particular e acidentalmente”. Outras testemunhas disseram que os comunistas tinham manipulado vários grupos importantes, controlado a Screen Writers Guild, favorecido amigos, e impedido inimigos com obstáculos em Hollywood (FRIED, 1990, p.75).

Para o público americano deve ter sido surpreendente ouvir palavra por palavra das justificativas soviéticas para seus procedimentos nos anos anteriores à guerra. Principalmente porque, nas poucas oportunidades em que esse público pôde ter contato com outra versão dos fatos, estes sempre eram seguidos de desconstruções pela mídia americana como retórica política vazia e encobertadora das verdadeiras intenções soviéticas: o ateísmo, a destruição da família, da dignidade das mulheres, da propriedade privada, da liberdade de iniciativa, a incitação da revolução armada. A propaganda teria conseguido mudar a consciência da população americana? Alguns setores sim, como demonstra o aumento do número de filiados ao PCUSA. Outros não. A bilheteria indica que o resultado ficou aquém das expectativas (HALL; SILVA, 2010, p.276). Para o cinema americano, era mais fácil representar a União Soviética de Stalin como um Estados 382

Tio Joe Stálin vai à Hollywood Unidos um pouco menos abastado e com uma musicalidade distinta, do que a União Soviética de Lenin. Essa maior proximidade – ou menor distanciamento – deve-se às políticas sociais conservadoras elaboradas por Stalin (BROWN, 2010, p.94; 95). Em 1936, Stalin promoveu uma concordata com a Igreja Ortodoxa. Nesse mesmo ano, Moscou viu uma das mais belas construções do país, a Catedral de Cristo Salvador, ser dinamitada por ser a memória do local de batismo dos filhos da nobreza e, outra, de cunho popular, ser levantada na capital. Mission to Moscow apresenta o stakanovismo como versão soviética da livre iniciativa americana, ou a ascensão social do jovem administrador numa siderúrgica. O mesmo faz North Star ao mostrar o cadete do ar, filho de camponeses. A URSS seria também uma terra da oportunidade. A liberdade feminina e o trabalho feminino são vistos de forma positiva, como forma de autovalorização e de livre iniciativa. Mission to Moscow mostra russas preocupadas com sua feminilidade, ao entrarem em lojas de departamentos moscovitas para consumir produtos de beleza. São frequentes as citações de que EUA e URSS eram regimes parecidos e engajados na luta pela liberdade (MCLAUGHLIN, 2006, p.160-161). A expectativa de fim da aliança ou a relutância em pintar o comunismo apenas com tons rosáceos, fez com que alguns filmes deixassem transparecer algumas críticas. Em North Star os jovens deixam claro para suas namoradas que o romantismo acabou na nova sociedade. Song of Russia faz um paralelo entre exploração financeira e em volume de trabalho, como Meredith se sente explorado pelo simpático agente e na turnê pela URSS. Lembra-se dos compositores do século XIX, mas não do XX, mesmo a história tendo como foco a importância da música para o esforço de guerra e de que compositores como Shostakovich e Prokofiev serem famosos mundialmente. As casas noturnas de Moscou podem lembrar a vida noturna americana, mas também indicam que apenas alguns elementos sociais são admitidos. Que por mais que o regime tente criar um novo homem, com uma perspectiva ideológica realista, os russos permanecem sentimentais e melodiosos. Para não existir dúvidas sobre seu lado, a primeira música do filme é o hino nacional americano em tom marcial. Hall e Silva (2010) classificam como ambíguo Days of Glory. E sem dúvida é. Vladimir (Gregory Peck) é um exengenheiro que construía grandes obras e agora as destrói, para promover uma guerra sem quartel contra o inimigo. Sua vingança e ódio parecem cegos. Não muito diferente dos nazistas. Como também seus partisans, com a alma destroçada pela guerra. Sacha é o russo bêbado inveterado e irresponsável. Semyon, o professor, é insensível com os

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Gelise Martins/Moisés Franciscon demais. Yelena (Maria Palmer) é a franco-atiradora que, mesmo com a dupla jornada típica da mulher, perdeu toda sua delicadeza e sentimento feminino. Olga é a menina que perdeu a infância. Ambas ficam perplexas com a chegada da encantadora bailarina Nina (Tamara Toumanova). São as velhas impressões do comunismo e dos russos na mídia americana. Ainda assim, pode-se afirmar que os produtores e agências americanas foram mais realistas que o próprio rei. Nem em filmes soviéticos, como o musical Volga-Volga (1938), de Grigori Aleksandrov, há tanta fartura e festa como em North Star. Como no regime soviético, não havia apenas pressão das agências para que os estúdios produzissem filmes seguindo a cartilha. Usava-se um sistema de premiações para impulsionar a adesão de diretores e artistas. Se na URSS existia o Prêmio Stalin, do sindicato, o Prêmio Estatal, do Conselho de Arte do Estado, nomeações em revistas importantes, como a Sovetsky ekran, nos EUA, grandes jornais escreviam sinopses positivas. Three Russian girls concorreu ao Oscar de melhor trilha sonora. North Star, tão perseguido posteriormente, que foi relançado em 1957 (com a primeira parte eliminada e um adendo sobre a Insurreição Húngara), recebeu seis indicações ao Oscar, entre elas, a de melhor roteiro original. Mission to Moscow, a dois prêmios. Todo grande estúdio rodou seu filme pró-soviético. Milestone, que dirigiu Our Russian front, ganhou o cargo para North Star. Huston foi o narrador deste documentário e de Why we fight:, além de estrelar em Mission to Moscow e em North Star (PEREIRA, 2012, p.279). Quando a repressão política se desencadeou, não foram os donos de estúdio ou aqueles que receberam instruções diretas do Estado que foram perseguidos, mas sim quem estava mais abaixo na hierarquia. Milestone teve que se exilar na Europa. Roteiristas foram proscritos. Uma vez que os filmes existiam, alguém precisava ser punido. Uma lógica similar à do stalinismo durante as purgas, segundo Lewin (2007). O Comitê da Câmara sobre Atividades Antiamericanas (House Un-American Activities Committee – HUAC, 1938-1975) decidiu atuar sobre o cinema revendo filmes antigos e fiscalizando os novos que foram produzidos durante os anos da Guerra Fria (PEREIRA, 2012, p.490). A intervenção não oficial do governo americano em sua produção fílmica continuou por longa data. Mas sobre essa intervenção, não há documentos acessíveis, uma vez que, publicamente, a relação dos empresários do cinema-Estado americano não existe. O que é tangível são os depoimentos de envolvidos, como a denúncia feita por Omar Sharif de que o filme Che!, de 1969, do qual foi o protagonista, teria sido produzido 384

Tio Joe Stálin vai à Hollywood não segundo a vontade do diretor, Richard Fleischer, mas sim das recomendações impostas pela CIA, que teria financiado todo o projeto. Sharif teria sido igualmente manipulado4. Uma vez que a edição final teria privilegiado uma história que “agradava aos cubanos de Miami”. Da mesma forma, os roteiristas, diretores e atores não eram livres e nem poderiam fazer arte livre. Além das exigências de produtores e patrocinadores e de não provocar a intervenção do Estado com a censura, no caso do filme bélico, geralmente precisam ainda da ajuda material das Forças Armadas, que também possuem suas imposições sobre o filme. A liberdade criativa é podada até mesmo pelas necessidades materiais ou por contratempos. A constituição de inimigos e aliados no cinema americano, e a transformação de uns em outros, é procedimento comum. Como é o caso de Rambo 3 e a representação dos insurgentes afegãos. Ambos os regimes compartilham intuitos e práticas similares, executados por meios diferentes – apesar de contarem com uma organização similar – e falharam igualmente nos resultados práticos. Democracia liberal e democracia popular são dois conceitos falhos, mas melhores que a oposição liberdade-totalitarismo. Nenhum dos dois sistemas é tão democrático e libertário quanto cada um se apregoava, nem tampouco expressão material do inferno, como suas máquinas de propaganda pintavam reciprocamente. Existem gradações, especialmente durante a vigência do stalinismo, mas ainda assim, há uma impossibilidade de hierarquização, já que um sistema oferece direitos sociais consagrados e o outro, segurança jurídica e política mais consistente. Mas nenhum deles abarca a ambos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENNETT, Todd. Culture, Power, and Mission to Moscow. The Journal of American History, Vol. 88, No. 2, p.489–518, Sept. 2001. BEUMERS, Birgit. A History of Russian Cinema. Nova York: Berg, 2009. BRZEZINSKI, Z. Ideologia e poder na política soviética. Rio de Janeiro: GRD, 1963. DOBRENKO, Evgeny. Stalinist cinema and the production of history. Edinburgo: Edinburgh University Press, 2008.

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Conforme entrevista concedida pelo ator, em 2007, distribuída pela EFE e publicada no portal G1 e em outros sites de entretenimento: http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL206273-7084,00-OMAR+SHARIF+ LAMENTA+TER+INTERPRETADO+CHE+GUEVARA+EM+FILME+MANIPULADO.html.

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Figura 1: À direita, Davies e Stalin, em Mission to Moscou, 1943. À esquerda, tanques Sherman cruzando a ponte submersa no Volga, em Counter-Attack, 1945.

Figura 2: À direita, o idílio camponês, em North Star. À esqueda, Yelena, Sacha e Semyon, em Days of Glory.

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Gelise Martins/Moisés Franciscon Figura 3: À direita, o milagre da mecanização, em Song of Russia. Á esquerda, a família soviética como uma versão da família americana, com o acréscimo do samovar no centro da mesa, em North Star.

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