\"Tipologia e caraterização codicológica dos manuscritos hebraicos portugueses do século XV\", Luís Urbano Afonso; Adelaide Miranda (ed.), O livro e a iluminura judaica em Portugal no final da Idade Média, Lisboa: BNP, 2015, pp. 41-52 (ISBN 978-972-565-552-8)

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Tipologia e caraterização codicológica dos manuscritos hebraicos portugueses do século XV TIAGO MOITA A centralidade do livro na vida judaica foi garantida pela revolução farisaica-rabínica há cerca de dois mil anos, possibilitando que o judaísmo, até então um sistema ligado ao Templo, se pudesse transformar numa cultura religiosa com capacidade para sobreviver e florescer nos mais diversos contextos. Desde então, os livros encontram um significado essencial «na disseminação e propagação da religião, das tradições e valores do povo judaico disperso» (Tahan, 2007: 7), especialmente o livro da Torah, com a Lei dada por Deus a Moisés no monte Sinai. A centralidade do livro na cultura judaica é significativamente expressa no gesto dos judeus portugueses, que se adornavam com o rolo da Torah para receber o monarca quando este entrava em determinada localidade (Kayserling, 1971: 28). Talvez por esta razão, o judeu representado no célebre Painel da Relíquia de Nuno Gonçalves ostente em suas mãos um códice manuscrito, aparentemente bíblico, escrito com caracteres que simulam letras hebraicas e notas massoréticas, o qual desdobra à maneira semita, contrastando com o modo como S. Vicente folheia o livro, no mesmo retábulo1. Naturalmente, estes livros hebraicos, em formato de códice ou de rolo, consoante o contexto para o qual eram copiados, são obra de copistas judeus, que por si próprios ou encomendando a outros, se dedicaram à produção, iluminação e encadernação dos mesmos. Na sua grande maioria os manuscritos hebraicos tardo-medievais portugueses desapareceram, restando-nos hoje cerca de 60 volumes produzidos ao longo do século XV em cidades como Porto, Leiria, Torres Vedras, Lisboa, Elvas, Moura, Évora, Loulé e Faro, entre outras. No presente estudo, procuramos distinguir que conteúdos foram privilegiados na cópia destes manuscritos e caraterizar, do ponto de vista codicológico, este núcleo remanescente, seguindo para o efeito uma abordagem comparativa.

1.Caraterização tipológica A classificação tipológica dos manuscritos hebraicos portugueses do século XV aqui considerada assenta essencialmente no conteúdo dos livros. Com efeito, dentre o núcleo hebraico português 1

Numa obra relativamente recente dedicada aos Painéis de Nuno Gonçalves, da autoria de Jorge Filipe de Almeida e de Maria Manuela Barroso de Albuquerque, os autores procuram identificar o texto contido no livro ostentado pelo judeu, que consideram tratar-se de um passo do Livro de Tobite (Almeida e Albuquerque, 2003: 136-138). Devemos referir, no entanto, entre outras incoerências relativas à cultura e religião judaicas expressas neste estudo, que o Livro de Tobite não pertence ao cânone dos livros que compõem a Bíblia hebraica, mas tão-só da Bíblia cristã, pelo que a sua representação neste contexto não tem sustentação.

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FIG. 1. Bíblia, Ocaña-Évora, 1491 e 1494. Zurique, Braginsky Collection, MS 243, ff. 445v-446r.

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tardo-medieval remanescente destacam-se várias tipologias de livros, especialmente Bíblias (31 manuscritos), textos científicos (11 manuscritos) e livros litúrgicos (8 manuscritos). Em número menor, encontramos também textos legais (3 manuscritos), comentários bíblicos (2 manuscritos), tratados gramaticais (2 manuscritos), miscelâneas (2 manuscritos) e textos filosóficos (1 manuscrito). Nesta análise, optámos por considerar apenas as três tipologias com maior número de manuscritos disponíveis. a) Bíblias A esmagadora maioria dos manuscritos hebraicos portugueses que chegaram aos nossos dias são códices bíblicos. Estes compreendem Bíblias completas (9 manuscritos), Bíblias litúrgicas (14 manuscritos), Bíblias rabínicas (1 manuscrito) e Saltérios (5 manuscritos)2. Encontramos ainda manuscritos que apresentam apenas uma das secções bíblicas, como os Profetas (1 manuscrito) ou os Hagiógrafos (2 manuscritos). Na sua origem, estes volumes poderão eventualmente ter pertencido a uma Bíblia completa, com vários volumes, que entretanto se perderam. Como o próprio nome sugere, as Bíblias completas incluem a Tanakh completa, ou seja, os livros da Torah (Pentateuco), os Neviim (Profetas), e os Ketuvim (Hagiógrafos), num total de 24 livros. Na generalidade dos casos, são manuscritos de grandes dimensões e aparato decorativo, com ornamentação micrográfica e profusa iluminura. A Bíblia de Lisboa, de 1481-82 (Londres, British Library, Or. 2626-2628) (CAT. 03), é um dos seus exemplos mais significativos, assim como a Bíblia de Ocaña-Évora (Zurique, Braginsky Collection, MS 243), originalmente escrita em dois volumes, com as datas de 1491 e 1494, cada um (FIG. 1). Por seu lado, a Bíblia litúrgica compreende o Pentateuco, as haftarot (excertos dos livros dos Profetas lidos na sinagoga) e as cinco megillot (que correspondem aos livros do Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, e Ester, lidos nas principais solenidades ao longo do ano)3. Conforme refere David Stern, dado que os conteúdos destes manuscritos se parecem corresponder com as secções da Bíblia que se liam na sinagoga ao sábado e durante as festas 2

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David Stern, num estudo dedicado às tipologias das Bíblias hebraicas medievais europeias, distingue entre Bíblias massoréticas, Bíblias litúrgicas e Bíblias de estudo; os Saltérios são considerados pelo autor como uma sub-tipologia bíblica (Stern, 2012). Não obstante, consideramos que esta terminologia não é suficientemente adequada, particularmente no que se refere ao termo “Bíblias massoréticas”, usado para descrever as Bíblias completas, e “Bíblias de estudo”, para referir as Bíblias rabínicas. Na verdade, todas as Bíblias com masorah são Bíblias massoréticas (o que sucede com qualquer tipo de Bíblias, sejam completas, litúrgicas, de estudo, ou saltérios); por outro lado, e em última análise, todas as Bíblias são consideradas Bíblias de estudo, pelo que o termo não revela a especificidade dos manuscritos a que se refere. O Cântico dos Cânticos é lido na festa da Páscoa (março/abril), Rute na festa de Pentecostes (maio/junho), Lamentações no 9 de Av (julho/agosto), Eclesiastes na festa dos Tabernáculos (setembro/outubro), e Ester na festa do Purim (fevereiro/março).

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FIG. 2. Saltério. Vaticano, Biblioteca Apostólica do Vaticano, MS Vat. ebr. 463, f. 63v.

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anuais, é possível que tivessem uma funcionalidade prática, na sinagoga ou fora dela, embora o seu uso específico permaneça obscuro (Stern, 2012: 295-297). Além do seu conteúdo, estes manuscritos distinguem-se pelo seu formato médio, em razão da função para a qual se destinavam. Na sua maioria, as Bíblias litúrgicas portuguesas encontram-se ricamente decoradas, como se observa na Bíblia de Moura, de 1470 (Oxford, Bodleian Library, Canon. Or. 42), e na Bíblia de Moscovo, de 1491 (Russian State Library, Guenzburg 662). A única Bíblia rabínica portuguesa conhecida é datada de 1491 (S. Petersburgo, Institute of Oriental Studies of the Russian Academy of Sciences, C25 e C27). A sua cópia foi realizada provavelmente em Lisboa, onde funcionava uma escola de estudos rabínicos. O manuscrito contém o Pentateuco, com Targum (tradução aramaica da Bíblia) e comentários exegéticos de Rashi e Naḥamanides. A disposição destes textos na página assemelha-se à das Bíblias glosadas na tradição latina, apresentando o texto hebraico ao centro da página, em escritura quadrada de tamanho grande, e nas margens o Targum e os comentários exegéticos. Finalmente, vários são os Saltérios copiados em Portugal no final do século XV, alguns profusamente decorados (FIG. 2). Os seus códices apresentam um formato oblongo de pequena dimensão, possivelmente para uso individual na sinagoga ou fora dela. Na verdade, a prática da recitação litúrgica ou devocional dos Salmos é muito antiga na cultura hebraica, atribuindo-selhe, por vezes, poderes teúrgicos (Stern, 2012: 268). b) Livros científicos Depois dos códices bíblicos, os livros científicos são os que apresentam maior número de exemplares sobreviventes. Na sua generalidade, consistem em traduções hebraicas de tratados de medicina, farmacologia e astrologia, de autores gregos, árabes e latinos (Ptolomeu, Hipócrates, Avicena, Nicolau de Salerno, Gerardus de Solo). Os autores judeus estão menos representados, destacando-se a cópia astrológica do Yesod Olam, de Isaac Israeli (Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Gaddi 158). Significativamente, no campo dos livros científicos, os judeus portugueses não consomem apenas traduções já dadas, mas participam também neste movimento, realizando traduções de autores latinos para língua hebraica. Com efeito, em 1388, Tobiel ben Samuel de Leiria terminava na cidade de Coimbra a tradução do Comentário ao Livro IX do Almansor, de Rhazes, de Gerardus de Solo. Este labor fora solicitado pelo seu mestre, Moisés de Leiria, rabi-mor e físico de D. João I. Os livros científicos, devido ao seu carácter essencialmente prático e de estudo, só raramente foram decorados, com exceção do volume que contém os Aforismos Médicos de Hipócrates e o Centiloquium de Ptolomeu (Nova Iorque, Jewish Theological Seminary Library, MS 8241), ricamente iluminado. Este manuscrito conjuga um texto de medicina e outro de astrologia, duas ciências profundamente unidas neste período, às quais os judeus especialmente se dedicaram (Avelar de Carvalho, 2011).

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c) Livros litúrgicos Depois da Bíblia, os livros de orações (siddur, pl. siddurim) encontram-se entre os mais populares e necessários à vida religiosa judaica, pois em cada dia o judeu piedoso é chamado a dirigir preces a Deus pela manhã (shaḥarit), pela tarde (minḥah) e pela noite (arbit). Os siddurim portugueses, com o seu fluxo ordenado de orações para a liturgia diária, para o sábado e para as principais festividades do ano, são livros portáteis, de pequeno formato, destinados para uso individual. O significado destes manuscritos é patente no facto de todos se encontrarem ricamente iluminados, como o Siddur de Paris, de 1484 (Bibliothèque nationale de France, Hébreu 592) (CAT. 04), ou o Siddur de Jerusalém (Ben-Zvi Institute, MS 2048).

2. Caraterização codicológica A caraterização material dos manuscritos hebraicos portugueses do século XV encontra-se plenamente justificada pelo contributo que pode fornecer à identificação dos contextos de produção, sendo um dos meios auxiliares para a identificação de escolas de copistas hebraicos (Sed-Rajna, 1974). Como referimos, a metodologia seguida neste estudo enquadra-se na chamada codicologia comparativa, através da qual procuramos reconstruir a gramática do códice hebraico português, plenamente integrada no mundo de Sefarad. Os manuscritos serão analisados tendo em conta os suportes de escrita, os cadernos, o regramento, a escritura e a encadernação. a) Suportes de escrita A análise comparativa dos dados obtidos permite verificar que o pergaminho é o suporte de escrita mais frequente na produção dos manuscritos hebraicos portugueses, material que é considerado como o mais nobre e apto para receber textos sagrados, como a Bíblia (Sed-Rajna, 1970: 93; Sirat, 2002: 102-103). Em geral, a membrana usada nestes códices é de grande qualidade, distinguindo-se sem dificuldade ambos os lados do pergaminho4, como é comum na tradição codicológica sefardita (Beit-Arié, 1981: 26).

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Excetua-se a Bíblia de Oxford (Bodleian Library, Or. 414) que apresenta um pergaminho muito fino, bem trabalhado, dificilmente distinguindo-se o lado carne do lado pelo, e a Bíblia de Paris (Bibliothèque nationale de France, Hébreu 15), onde só raramente se pode distinguir ambos os lados do pergaminho. Este tratamento do pergaminho aproxima os referidos manuscritos da tradição codicológica hebraica italiana.

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O uso do papel encontra-se igualmente documentado, sobretudo em manuscritos com comentários bíblicos, tratados filosóficos ou textos científicos, mas nunca em Bíblias (Matos, 2011: 33-35). O papel pode ser usado como material exclusivo de escrita ou em combinação com o pergaminho num mesmo caderno. Neste último caso, os cadernos são construídos maioritariamente em papel, adicionando-se-lhes um bifólio exterior, ou um bifólio exterior e outro central, em pergaminho, proporcionando maior solidez e durabilidade ao conjunto. Por outro lado, os cadernos mistos, além de testemunharem a passagem gradual de um suporte a outro em contexto português, afiguram-se como uma solução de compromisso por parte do copista, que assim conjuga um material mais barato, mas menos durável, como o papel, com outro mais dispendioso, mas de maior estabilidade, como o pergaminho, economizando os gastos. A análise das marcas de água aponta para uma proveniência maioritariamente italiana do papel empregue nestes volumes. b) Os cadernos O estudo da organização fascicular dos manuscritos hebraicos assume uma elevada importância, pois a sua construção encontra-se frequentemente associada a áreas geoculturais específicas. A composição do quaterno é a prática mais usual nos códices portugueses de pergaminho (SedRajna, 1970: 93). Pelo contrário, nos manuscritos em papel ou em papel e pergaminho, prevalece uma composição de sénios. Esta prática codicológica, que faz corresponder uma estrutura quaternária a cadernos compostos exclusivamente por pergaminho e uma estrutura senária a cadernos constituídos apenas por papel ou por papel e pergaminho, encontra-se amplamente documentada no mundo sefardita, sendo-lhe mesmo caraterística (Beit-Arié, 1981: 48-49). Em todos os manuscritos hebraicos portugueses, a colocação do pergaminho segue um ordenamento que respeita a conhecida Lei de Gregory, segundo a qual a sequência dos fólios de um códice deve pôr em contacto duas faces do lado da carne, seguidas de duas faces do lado do pelo e assim sucessivamente. Esta organização verifica-se regularmente tanto na sequência dos fólios como na dos cadernos, quer dos manuscritos de pergaminho, quer dos códices em suporte misto. É no lado pelo do pergaminho que abrem os cadernos, uma prática também comum à tradição sefardita (ibidem: 41). Nos sistemas usados pelos copistas hebraicos portugueses para assegurar a ordem correta dos cadernos, deteta-se a preferência pelo uso de reclamos e só raramente de assinaturas (Sed-Rajna, 1970: 93). Com efeito, os reclamos – que consistem na primeira palavra com que se inicia o texto do caderno seguinte colocada no final do caderno anterior – registam-se em todos os manuscritos portugueses, com exceção da Bíblia do Balliol College (MS 382), na qual a ausência de qualquer sistema de ordenação é devida, provavelmente, ao seu total desaparecimento no processo de encadernação, pois as margens foram aparadas.

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FIG. 3. Comentário de Gerardus de Solo ao Livro IX do Almansor, de Rhazes. Tradução de Tobiel ben Samuel de Leiria. Birmingham (Alabama), Reynolds Historical Library, MS 5087, f. 7v. Fotografia de Tiago Moita.

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Na sua esmagadora maioria, os reclamos são escritos horizontalmente, em letra semicursiva sefardita, no verso da margem inferior esquerda, por baixo da linha da justificação vertical, no último fólio de cada caderno; nos manuscritos em papel ou em papel e pergaminho, porém, os reclamos comparecem em todos os fólios dos manuscritos. A decoração dos reclamos não é prática frequente, consistindo, quando é detetada, na colocação de pequenos pontos sobrepostos à palavra, desenhados com a tinta da escrita, formando triângulos simples. Excetua-se a ornamentação de um reclamo existente no manuscrito com o Comentário ao Livro IX do Almansor, de Rhazes, de Gerardus de Solo (Birmingham, Reynolds Historical Library, MS 5087), com um cartucho decorado com motivos mudéjares, de entrelaçados e folhagens, em torno da palavra (FIG. 3). c) O regramento Entre todos os manuscritos hebraicos portugueses tardomedievais verifica-se uma prática relativamente homogénea no que se refere ao regramento das linhas que guiam a escritura. A técnica mais utilizada é a ponta seca, o que significa que as linhas não possuem em todo o manuscrito qualquer vestígio de substância colorida (Sed-Rajna, 1970: 95). Na maioria dos casos, o regramento ocorre fólio a fólio, no lado verso. Os orifícios do picotado que auxiliaram os copistas a traçar as linhas do regramento só raramente se encontram visíveis, ocorrendo exclusivamente nas margens de goteira. Além do regramento das linhas de escrita, os manuscritos bíblicos apresentam, ainda, um regramento marginal, tendo em vista a escritura da masorah magna (duas linhas na margem superior e três linhas na margem inferior) e da masorah parva (inscrita verticalmente nas margens externas e nos intercolúnios). O esquema usado no regramento, quando o fólio é justificado a duas colunas, corresponde ao modelo de Tipo C definido por Michèle Dukan, com as linhas retrizes curtas (Dukan, 1988: 30, última fila, ao centro); quando o fólio é justificado com uma só coluna de texto, as linhas verticais também são curtas, além das linhas retrizes (Dukan, 1988: 34, primeira fila, ao começo). d) A escritura Conforme refere Malachi Beit-Arié, a escrita sefardita, que se desenvolveu provavelmente no século IX a partir da escrita hebraica oriental, em Cairuão, Tunísia, é caraterística da região do Magreb e da Península Ibérica, mostrando influências da escrita árabe (Beit-Arié, 1992b: 286287). Nos séculos X e XI são já evidentes as diferenças morfológicas entre as escritas do al-Andaluz e do Magreb, vindo esta a ser suplantada pela primeira (ibidem). Desde finais do século XIV, em manuscritos de origem italiana, mas, sobretudo, depois da expulsão dos judeus ibéricos, em 1492

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FIG. 4. Bíblia, Lisboa, 1475. Cincinatti, Hebrew Union College, Klau Library, MS 2. Fotografia de Tiago Moita.

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e 1497, o uso da escrita sefardita difundiu-se amplamente por outras regiões do Mediterrâneo e do Médio Oriente, em especial nos novos locais onde os judeus exilados se vieram a estabelecer, tornando-se a escrita comum dos seus incunábulos (idem: 291-293). Encontramos três tipos de escrita hebraica em Sefarad: a escrita quadrada, semicursiva e cursiva. Esta última, porém, não está representada no texto principal dos manuscritos portugueses, ainda que possa aparecer em reclamos ou pequenas anotações litúrgicas nos siddurim. A escrita quadrada, com letras maiores e de mais fácil leitura, é a escritura destinada pela tradição à cópia dos textos sagrados (Sirat, 2002: 182). Dado que os manuscritos bíblicos se encontram numericamente entre as cópias mais destacadas do conjunto português, a escrita quadrada sefardita constitui a tipologia mais frequente, comparecendo também na Mishneh Torah, de Maimónides (Londres, British Library, Harley 5698-5699), e no Siddur de Paris (Bibliothèque nationale de France, Hébreu 592) (CAT. 04). A escrita semicursiva, por seu lado, que se encontra documentada na Península Ibérica desde a segunda metade do século X, onde se originou e desenvolveu, destina-se sobretudo à cópia de outros textos que não as Bíblias e aos livros de orações (ibidem). A sua utilização nos manuscritos portugueses é bastante generosa, encontrando-se presente em cópias com comentários bíblicos, tratados filosóficos, gramaticais ou científicos. Embora menos comum, esta tipologia de escrita foi usada excecionalmente em dois manuscritos bíblicos, nomeadamente numa Bíblia litúrgica (Londres, British Library, Add. 15283) e num Saltério (Vaticano, Biblioteca Apostólica, Vat. ebr. 473). Neste caso, a preferência por esta escritura deve-se, com probabilidade, a razões de ordem estética e funcional, pois o semicursivo, com o seu arredondamento típico do século XV, era considerado uma escrita de muita elegância e beleza, com uma utilização mais eficiente e rápida, não impedindo o fluxo da cópia. e) Encadernação Entre os cerca de 60 manuscritos hebraicos portugueses do século XV, apenas cinco conservam encadernações originais, três deles com uma invulgar tipologia em forma de caixa, que Leila Avrin identificou e analisou (Avrin,1989a; 1989b) (FIG. 4)5; os demais manuscritos do conjunto 5

Os manuscritos com encadernação em caixa são uma Bíblia litúrgica, copiada em Lisboa, 1475 (Cincinnati, Hebrew Union College, MS 2), outra Bíblia litúrgica, sem data (Jerusalém, Schocken Institute, MS 24360) e um volume com os Aforismos Médicos, também sem data (Nova Iorque, Jewish Theological Seminary Library, MS 8241). Os outros manuscritos com encadernação original são um livro com Responsa, copiado em Faro, em 1481 (Cambridge, University Library, Add. 503), um Siddur, copiado em Lisboa, em 1484 (Paris, Bibliothèque nationale de France, Hébreu 592), e uma Bíblia litúrgica, copiada em Lisboa, em 1496 (Roma, Tempio Maggiore di Roma, MS 18).

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apresentam encadernações modernas, dos séculos XVII ou XVIII, ou mais recentes, dos séculos XIX ou XX, adquiridas com a entrada nas novas instituições onde se encontram. As encadernações originais destes manuscritos são formadas em couro sobre tábua, com gravação a seco, numa linguagem decorativa mudéjar. Este tipo de gramática ornamental encontra-se amplamente difundida nas encadernações de inúmeros manuscritos (cristãos e hebraicos) copiados nos reinos ibéricos entre os séculos XIII e XVI, especialmente em centros como Toledo e Barcelona. Em Portugal, pelo contrário, esta linguagem ornamental parece estar menos presente nas encadernações latinas, documentando-se especialmente nas encadernações dos forais manuelinos, de começos do século XVI (Seixas, 2011). Por esta razão, e por apresentarem uma original forma em caixa, urge conceder aos códices hebraicos de Portugal um lugar de maior destaque na história da encadernação portuguesa.

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