Título: Os processos culturais e a economia criativa: entrelaçamentos e

June 7, 2017 | Autor: R. Giannotti | Categoria: Communication, Intercultural Communication, Creative Industries
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Título: Os processos culturais e a economia criativa: entrelaçamentos e implicações

Resumo de Regina Helena Giannotti

Com o objetivo de qualificar o país para enfrentar os desafios da chamada economia do conhecimento, os processos culturais vêm adquirindo não apenas visibilidade nacional e internacional como também elevada importância na construção de estratégias políticas. A perspectiva da inclusão adquire contornos decisivos tanto para definir políticas quanto objetivos de desenvolvimento econômico. O Plano Nacional de Cultura (PNC), criado em 2005 e aprovado em 2012, é um exemplo claro do entrelaçamento existente entre os processos culturais e as estratégias políticas numa tentativa de recuperar a dimensão simbólica, um dos vetores capazes de pluralizar os discursos culturais. Ainda que PNC abarque as dimensões simbólica, cidadã e econômica, tem sido no campo simbólico que as demais dimensões encontram espaço de materialização. Partindo da compreensão que esse entrelaçamento entre as diferentes dimensões acarreta sobre as decisões políticas e econômicas pretende-se analisar como as notícias que versem sobre os resultados da implantação do "Vale Cultura", veiculadas no caderno de Cultura do jornal O Estado de São Paulo, enquadram-se nesse entrelaçamento proposto pelos moldes da "nova economia". Pretende-se também observar a migração do discurso das "identidades/memórias" para a "economia criativa" visto que a cultura tem assumido o papel de eixo estruturante do desenvolvimento econômico. A fundamentação teórico-bibliográfica será fornecida por uma Teoria da Comunicação voltada para a América Latina com autores como Martin-Barbero, e outros cujos temas de pesquisa são o barroco, a mestiçagem e a cultura como Amálio Pinheiro, Roy Wagner, etc.









Título: Os processos culturais e a economia criativa: entrelaçamentos e implicações
Regina Helena Giannotti

Considerações iniciais

Os especialistas em política e em economia afirmam que os conceitos "clássicos" como de soberania e de hegemonia, associados ao Estado-Nação como centro de poder, começam a sofrer reformulações porque as forças - sociais internas e externas, nacionalistas e imperialistas, capitalistas e socialistas - que operam na ordem mundial dos dias de hoje estão dominadas pela economia capitalista de cunho neoliberal cuja essência acabou por reduzir o próprio espaço dos Estados-nação, obrigando-os a reformularem seus projetos nacionais. Como sugere Ianni (1997), para esclarecer esse problema no que se refere à hegemonia e à soberania é preciso analisar o que é ou o que pode ser o globalismo.
As forças que estavam em curso no século XX atravessaram as nações e as regiões conformando-as numa realidade geopolítica e histórica de caráter global. Ianni (1997) asseriu que entre as categorias do pensamento político que pareciam estar desafiadas pelos dilemas que se abriram com a globalização mereciam destaque: a sociedade civil, a cidadania, a soberania, a hegemonia entre outras. Vale ressaltar que tanto hegemonia quanto soberania não ocorrem sem que exista um construto preexistente; é preciso existir condições de construção e realização de hegemonia. O que, de fato, o autor questionava era, se o século XX, com todos os seus acontecimentos (guerras e revoluções, golpes e contragolpes, revoltas,etc) reunia as condições e as possibilidades do Estado-nação. Como provou a história há uma crise generalizada do Estado- Nação, pois a crescente transnacionalização da economia tanto reorientou quanto reduziu a capacidade decisória do governo nacional.
Nesse sentido, o Plano Nacional de Cultura (PNC), criado em 2005 e aprovado em 2012, é um exemplo claro do entrelaçamento existente entre os processos culturais e as estratégias políticas numa tentativa de recuperar a dimensão simbólica, um dos vetores capazes de pluralizar os discursos culturais. Ainda que PNC abarque as dimensões simbólica, cidadã e econômica, tem sido no campo simbólico que as demais dimensões encontram espaço de materialização. Partindo da compreensão que esse entrelaçamento entre as diferentes dimensões acarreta sobre as decisões políticas e econômicas o presente capítulo pretende analisar como as notícias que versem sobre os resultados da implantação do "Vale Cultura", veiculadas no caderno de Cultura do jornal O Estado de São Paulo, enquadram-se nesse entrelaçamento proposto pelos moldes da "nova economia".

1. Papéis invertidos: a cultura como eixo fundante do desenvolvimento econômico e como resgate das dimensões econômica e cidadã

As injunções externas são essenciais para que os governos adotem diretrizes políticas, econômicas e sociais. Mas, os efeitos imediatos da globalização e dos interesses que estão por trás desse fenômeno impedem que os projetos nacionais calcados prioritariamente em interesses nacionais sejam mantidos. Não é de causar espanto que esses projetos estejam em fase de reformulação.
O que estamos presenciando no século XXI é o caos que uma crise estrutural representa porque as oscilações típicas desse período além de serem imprevisíveis também têm proporções consideráveis. Wallerstein pondera que essas oscilações são visíveis nos dias de hoje quando observamos os altos e baixos das economias, das moedas, das alianças geopolíticas, do desemprego, etc. Os governos estão, de fato, sob pressão de todos os lados, pois na medida em que há aumento do desemprego há um aumento na demanda por serviços sociais como seguro desemprego e uma redução nos rendimentos, o que os obriga a lidarem com essa pressão adotando medidas de austeridade. Apesar de haver a crença de que essas solucionem os problemas, o que estamos presenciando é que tais medidas têm levado à resistência.
A financeirização a que estamos assistindo nos dias de hoje está em curso há quarenta anos. O maior problema da financeirização como alertou Wallerstein (2014) é o fato de não haver criação de valor, e sim especulação calcada na pretensa ampliação de crédito. É nesse sentido que os ciclos hegemônicos, hoje representados por corporações transnacionais e organizações multilaterais, são necessários para assegurar a lucratividade e a longevidade do próprio ciclo capitalista. Mas, para que o ciclo hegemônico possa ser operado é preciso haver relativa "ordem mundial" visto que guerras e violência prejudicam o desenvolvimento do capitalismo na medida em que destroem os capitais fixos e interferem no fluxo de comércio. O autor ressaltou que é somente com a presença de um Estado forte, capaz de assegurar a ordem, que os ciclos hegemônicos podem ser estabelecidos, ou seja, são asseguradas as condições mínimas de construção e de realização de hegemonia.
Frente ao choque dessas forças, os Estados passaram a desenvolver estratégias políticas que visam tanto a manutenção das condições de construção e de realização de hegemonia quanto de políticas públicas de Estado que ultrapassem conjunturas e ciclos de governos. O Plano Nacional de Cultural (PNC) é um exemplo de política pública que cria o cenário propício à ocorrência das manifestações culturais assegurada pelo Estado. Entre os objetivos e metas contidas no PNC, "a cultura é um eixo do desenvolvimento que possibilita que os brasileiros avencem cultural e economicamente - com justiça social, igualdade de oportunidades, consciência ambiental e convivência com a diversidade"(Cultura, 2011, pág 11). A reflexão que deve ser feita aqui é como os processos culturais têm sido utilizados para a construção de estratégias políticas e de inclusão, tão explorada pelos Estados, para a definição de políticas públicas e determinação de objetivos econômicos. Nesse sentido, o Vale Cultura, da forma como fora concebido e com os resultados que vem alcan ando, apresenta-se como a materialização dessa articulação: políticas públicas e objetivos econômicos. A seção a seguir apresenta os resultados que o Vale Cultura vem alcançando desde sua implantação e de que forma ele articula o resgate entre as dimensões políticas e econômicas por meio da cultura.

2. O Vale Cultura e seus resultados

A Presidência da República, no uso de suas atribuições regulamentou a Lei 12.761 de 27 de Dezembro de 2012, que instituiu o Programa de Cultura do Trabalhador e criou o Vale-Cultura. O cartão é oferecido a todo trabalhador com vínculo empregatício cujos rendimentos não ultrapassem cinco salários mínimos. O fornecimento do Vale-Cultura depende da aceitação por parte do trabalhador podendo seu uso ser interrompido a qualquer momento. Mensalmente, os trabalhadores dispõem de um valor de R$ 50,00 (cinquenta reais) para utilizarem na compra de quaisquer produtos ou serviços oriundos da cadeia produtiva da cultura do entretenimento. Apesar de claras as regras de concessão e de uso, os cartões só entraram no rol de benefícios das empresas empregadoras em Janeiro de 2014, ou seja, 180 dias após o momento em que a lei fora publicada no Diário Oficial da União. Do total de R$ 50,00 do Vale-Cultura, R$ 45 reais são subsidiados pelo governo federal brasileiro, via renúncia fiscal aos empregadores e, os outros R$ 5,00 faltantes pagos pelas empresas ou pelos trabalhadores. Estimou-se na ocasião que esse subsidio totalizaria aproximadamente R$ 7 bilhões de reais. Os incentivos para adesão de empresas ao programa continuam: além do abatimento no Imposto de Renda, os empregadores que aderem ao Programa de Cultura do Trabalhador têm isenção do governo federal de encargos sobre o valor do benefício concedido.
Segundo dados da Folha de São Paulo de 07 de julho de 2014 em sua matéria intitulada "Livros são produtos preferidos de quem recebe o Vale-Cultura", entre os produtos mais procurados pelos beneficiários do Vale-Cultura estão os livros, os jornais, as revistas e os artigos de papelaria. Apurou-se que até junho de 2014 R$ 12,11 milhões de reais havia sido gastos com esses itens. Os ingressos de cinema representavam 9% das arrecadações seguidos pelos 1,3% de gastos com a aquisição de instrumentos musicais. Especulava-se que a sua criação injetaria na cadeia produtiva do entretenimento algo em torno de R$ 11 bilhões de reais.
Segundo pesquisas encomendadas pelo Ministério da Cultura, o acesso da população à cultura ainda é incipiente. Estima-se que apenas 13% dos brasileiros frequentem salas de cinema, ao menos uma vez ao ano; outros 92% da população nunca foram a um museu ou à uma exposição; e, 78% da população nunca assistiu a um espetáculo de dança ou teatro.
Em levantamento realizado pela Caixa Econômica Federal e pelo governo federal, o Vale-Cultura já havia alcançado 339,6 mil trabalhadores brasileiros. Estima-se que os beneficiários tenham utilizado R$ 47,47 milhões de reais no acesso a eventos, compra de produtos e pagamentos de mensalidades de cursos. Desde a sua criação, as possibilidades culturais apenas têm aumentado: os trabalhadores têm acesso a teatros, museus, cinemas, shows, circos. Podem ser adquiridos ainda CD's, DVD's, livros, jornais, revistas e jornais além da possibilidade de custear a mensalidade de cursos de artes, audiovisual, dança, circo, fotografia, música, literatura ou teatro. Os valores gastos com esses itens, em 2015, quase dobraram quando comparados aos valores de 2014. Foram mais de R$ 35 milhões de reais gastos no setor de livros, jornais e revistas.
Segundo a Caixa, esse valor corresponde a 74% do consumo total dos beneficiários do Vale-Cultura. Apurou-se também que outros R$ 8,1 milhões foram gastos em ingressos no cinema enquanto os demais setores culturais representaram cerca de 10% do consumo com o cartão. Desse percentual, 2% está concentrado nas lojas de instrumentos musicais e 1% para os teatros.
Em matéria publicada no Estado de São Paulo, Caderno Cultura, intitulada "Vale-Cultura movimenta R$ 13,7 bilhões em vendas, aponta balanço", a então ministra da Cultura, Marta Suplicy, ao apresentar os primeiros resultados do Vale-Cultura no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, enfatizou que em um ano, o trabalhador passou a dispor de R$ 600,00 (seiscentos reais) para utilizar com cultura e lazer; entre as possibilidades que o Vale-Cultura pode trazer aos trabalhadores, a ministra destacou: "Com isso pode-se consumir 40 sessões de cinema, 35 peças de teatro, 28 livros, 50 entradas em eventos de arte e 12 shows musicais. É bastante. Isso muda a vida de uma pessoa".
Na mesma matéria divulgou-se as regiões com maior concentração de usuários/beneficiários do Vale-Cultura: 65% estão distribuídos na região Sudeste; 11% nas regiões Nordeste e Sul; Norte 7% e Centro-Oeste com 5% de distribuição de cartões. Segundo a ministra, para aumentar esses percentuais seria preciso intensificar o trabalho de convencimento de empresas e de trabalhadores. Na ocasião da publicação dessa matéria havia 712 mil trabalhadores inscritos e aguardando a emissão dos Vale-Cultura.
No Portal do governo federal sobre o Vale-Cultura empresas interessadas em aderir ao programa encontram as informações de que precisam e os benefícios fiscais a que poderão utilizar ao ingressarem no Programa de Cultura do Trabalhador. Há, por parte do governo, um esforço de comunicação muito grande para que fomente-se o consumo dos produtos culturais. Resta saber quanto vale o show?
A FECOMERCIO/RJ, em parceria com a IPSOS, realiza desde 2007 uma pesquisa para mapear os Hábitos Culturais dos brasileiros. O levantamento da FECOMERCIO RJ/IPSOS entrevista mil pessoas em 70 cidades incluindo nove regiões metropolitanas e, tem como objetivo acompanhar o acesso do brasileiro às atividades culturais mais populares no país e gerar subsídios para aumentar essa adesão. Em seu último relatório publicado em 2013, os idealizadores da parceria afirmam que as atividades culturais mais praticadas naquele ano foram a leitura de livros (35%), cinema (28%) e shows de música (22%). Em seguida, com menor adesão estão as peças de teatro (11%), as exposições de arte (8%) e os espetáculos de dança (7%). Entre as principais conclusões do estudo pôde-se concluir que todas as práticas culturais avaliadas pelo projeto ganharam espaço no país. Os recentes sucessos editoriais que se popularizaram no ano de 2013 somados a promoções culturais e parcerias entre as empresas do segmento cultural foram as que contribuíram para que a leitura de livros, por exemplo, alcançasse destaque nos hábitos culturais dos brasileiros.
Por um lado, a pesquisa também traz dados relevantes sobre os motivos pelos quais quase metade da população brasileira não frequenta atividades culturais: a falta de hábito e o fato de não gostar estão entre os principais motivos para o distanciamento dos brasileiros das atividades culturais. O preço, por incrível que possa nos parecer, não é o principal motivo para o não consumo. Por outro, dos 49% dos brasileiros que não usufruíram de nenhum programa cultural, os principais meios de lazer citados foram: assistir TV (53%) seguido de ir ao centro religioso (15%), fazer almoço com amigos (8%) ou ir a bares e jogar futebol ambos com 6%.
Diante desse levantamento torna-se possível compreender a razão pela qual a então ministra da Cultura Marta Suplicy afirmava que a ocupação do Ministério da Cultura era o de "alimentar almas". A afirmação está calcada no entendimento do Ministério acerca das dimensões simbólica, cidadã e econômica em que apóia-se o Plano Nacional de Cultura (PNC). A dimensão simbólica é o aspecto da cultura que considera que todos os seres humanos têm capacidade de criar símbolos: "tais símbolos se expressam em práticas culturais diversas, como nos idiomas, costumes, culinária, modos de vestir, crenças, criações tecnológicas e arquitetônicas, e também nas linguagens artísticas" (Cultura; 2011; pág. 16). Resta saber se no bojo desse entendimento levou-se em consideração o fato de o Brasil ser uma dessas culturas que privilegiou tanto antes, durante quanto depois as interações entre a multiplicidade, a variação e o menor, ativadas pela mútua pertença entre natureza e cultura; é o convite que Pinheiro (2013) nos faz ao descrever os estudos teóricos e as análises concretas sobre as culturas e seus textos, em regiões ou processos civilizatórios onde não vigora o conceito progressivo e linear de sucessão.
Para além dessa reflexão, o PNC também está apoiado entre outras duas dimensões: a cidadã e a econômica que exigem entendimento. O entendimento acerca da dimensão cidadã recai sobre o fato de a cultura ser um direito social básico, previsto na Constituição Federal, ao lado de outros direitos básicos como educação, saúde, trabalho, moradia e do lazer. A materialização desse direito é materializada por meio de políticas públicas que assegurem e ampliem o acesso aos meios de produção, de difusão e fruição dos bens e serviços da cultura. Nesse sentido, o Vale Cultura desempenha um papel fundamental de ampliação e de difusão de bens e serviços culturais como comprovam os resultados alcançados. O que preocupa, de fato, é a pecha de inclusão que recai sobre os usuários do Vale-Cultura. Para o Ministério da Cultura, o PNC reflete o esforço coletivo para assegurar o total exercício dos direitos culturais brasileiros e das brasileiras de todas as situações econômicas, localizações, origens étnicas e faixas etárias, afirmou a então Ministra da Cultura Ana de Hollanda em 2011, por ocasião da apresentação do PNC.
Como comprovam os resultados apresentados no início da seção, a concentração de usuários do Vale-Cultura está na região Sudeste, local em que a concentração de atividades econômicas e de investimentos não altera, significativamente, o acesso nem a difusão dos bens e serviços culturais. Ao menos é a inferência que pode ser feita ao considerar os hábitos de consumo cultural dos brasileiros em 2008, anos antes da criação do Vale-Cultura:

Fonte: FECOMERCIO/RJ/IPSOS - Hábitos Culturais dos Brasileiros, 2008. Disponível em: http://www.fecomerciorj.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=fecomercio2008&sid=90, acesso em 06 de dezembro de 2015.
Para alcançar os objetivos propostos no PNC, o governo federal brasileiro deve capitanear a promoção, a difusão e a ampliação do acesso à cultura nas regiões mais pobres e de difícil acesso do país. Os dados coletados pela FECOMERCIO-RJ/IPSOS apenas corroboram a desgastada trilha da inclusão social do Brasil: as regiões Sudeste e Sul juntas reúnem 54% do total do consumo de atividades culturais do país; os consumidores de atividades culturais ainda concentram-se nas classes AB, com maior nível de escolaridade entre os 16 e 34 anos de idade.
Por ordem de preferência, as principais atividades culturais declaradas pelos brasileiros em 2008 eram: a leitura de livros (65%), ir a algum show de música (55%); ir ao cinema (39%), assistir a um espetáculo de dança (17%), assistir a uma peça ou espetáculo de teatro (13%) e, visitar alguma exposição de arte (12%).

Fonte: FECOMERCIO/RJ/IPSOS - Hábitos Culturais dos Brasileiros, 2008. Disponível em: http://www.fecomerciorj.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=fecomercio2008&sid=90, acesso em 06 de dezembro de 2015.

A pergunta que merece resposta é: em que medida o Vale-Cultura conseguirá ampliar o acesso e a difusão das atividades culturais entre os brasileiros? A coleta de dados realizada pela parceria FECOMERCIO/IPSOS em 2008 já sinalizava o desejo latente pelo consumo de tais bens pela classe C. A implantação do Vale-Cultura é recente, tem pouco mais de um ano e ainda pode alterar esse cenário de forma positiva. Entre os brasileiros da classe C, por exemplo, pode-se afirmar que houve um aumento significativo de consumo de bens e serviços culturais. Outra observação importante recai sobre os tipos de bens e de serviços culturais preferidos entre as regiões brasileiras. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, ir a um show de música é tão desejado quanto ler um livro; inferências como essa podem suscitar em inúmeras pesquisas. Não é possível balizar o consumo de bens e de serviços culturais medindo apenas a quantidade de produtos e serviços que o benefício anual de R$ 600,00 (seiscentos reais) pode trazer para a população. Não serão 40 sessões de cinema, 28 livros ou 35 peças de teatro que garantirão o acesso à cultura e a fruição de bens culturais. A diversidade cultural brasileira não pode e não deve ser mensurada com base nestes bens e serviços culturais apenas. Deve-se incluir no bojo das preocupações o diálogo que as três dimensões em que assenta-se o PNC articula, quais sejam:
"a criação e fruição, da circulação, da difusão e do consumo; da educação, pesquisa e produção de conhecimento; de espaços culturais; do patrimônio; da gestão pública e articulação federativa; da participação social; de desenvolvimento sustentável da cultura; e de fomento e financiamento" (Cultura, 2011, pág 09).
Compreender como a dimensão econômica apropria-se dos processos culturais para promover o desenvolvimento econômico é fundamental para que o leitor possa fazer algumas inferências. A seção a seguir adensa e aprofunda a discussão.
3. Os processos culturais e o desenvolvimento econômico: a importância que a cultura adquire na elaboração de estratégias políticas dos Estados em pleno século XXI.
Como constatou-se até aqui é sobre a dimensão econômica em que apóia-se o PNC que a cultura adquire contornos decisivos. Nesta dimensão, segundo o Ministério, a cultura é definida como um agente ou vetor econômico enquanto potencial para gerar dividendos, produzir lucro, emprego e renda, assim como estimular a formação de cadeias produtivas que se relacionam às expressões culturais e à economia criativa. Mas afinal, qual é a relação entre cultura e desenvolvimento econômico? A maior parte dos estudos sobre economias criativas e processos culturais sugere uma rearticulação entre a cultura, a economia e a sociedade na medida em que a criatividade torna-se a chave para um novo desenvolvimento, socialmente inclusivo, ecologicamente sustentável e economicamente sustentado. Entre as diversas inferências produzidas pelos estudos sobre economia criativa, a capacidade de produzir inovação a partir de saberes locais é apontado como principal razão para que a cultura passasse a ser o eixo fundante do desenvolvimento econômico. A noção de criatividade quando é transposta para o contexto dos Estados exige que se faça uma revisão da abordagem do Estado com relação ao campo da cultura, incluindo nessa revisão as intenções de cada governo que tornam a equação entre crescimento econômico e inclusão social características distintas nos mais diversos países.
No Brasil do século XXI cujas estratégias políticas incluem o PNC e o Vale-Cultura, por exemplo, a cultura adquire um caráter ampliado quando é compreendida tanto como um "modo de vida" quanto como o elemento central do projeto de desenvolvimento do país. O papel que a cultura assume na sociedade brasileira amplia-se no momento em que esse capítulo é escrito, mas nem sempre foi assim. O início da institucionalização da cultura pelo Estado brasileiro teve início com o projeto do Estado-Nação de Getúlio Vargas; houve a criação de instituições que protegessem o patrimônio histórico e pela ação educativa via rádio e cinema com a criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo, por exemplo. A ditadura militar e sua intelligentsia concebia cultura como elemento estratégico para a consecução da Doutrina da Segurança Nacional (Skidmore, 1994). Em 1973, a criação do primeiro Plano Nacional de Cultura é também considerado a primeira política cultural pública do país incluindo o domínio da cultura entre as metas da política de desenvolvimento social do governo.
No período democrático de 1985 a 1990 a criação do Ministério da Cultura marca o entendimento do Estado de que a cultura não é apenas um locus, mas uma força propulsora de reconstrução democrática da política nacional a partir do apoio às práticas criativas dos cidadãos (Furtado, 2008). O autor fora, no âmbito doméstico, um dos primeiros a compreender que a cultura de um povo representava a força fundamental para a ativação da criatividade, definida aqui como a inventividade de uma sociedade sobre o excedente adicional que lhe permite não mais se preocupar com a reprodução material - a escalabilidade; mas, com a ampliação das possibilidades já existentes. Para Furtado (2008), seria somente a partir da liberação dessa criatividade que o crescimento econômico e a inclusão ocorreriam, pois essa tônica criativa permitiria um novo tipo de desenvolvimento baseado nas necessidades reais das populações libertando-os tanto da dependência tecnológica e cultural quanto econômica dos países desenvolvidos. Porém, como se sabe, não foi essa a opção feita pelos governantes neoliberais do Estado brasileiro.
Os época em que os neoliberais estavam no governo, as políticas culturais públicas limitaram-se apenas à incentivos fiscais sem qualquer preocupação com a continuidade ou retomada do PNC. Apresentada como um bom negócio e capaz de gerar lucros, a cultura eximia o Estado de qualquer responsabilidade. Ora, agindo dessa maneira, a iniciativa privada tratou de concentrar seus investimentos nas atividades culturais do eixo Rio-São Paulo. Ao fazer isso, esses mesmos investidores foram os que contribuíram para alargar as diferenças entre as regiões brasileiras no que tange a oferta de bens e serviços culturais.
A esse respeito, Martin-Barbero (2009) já havia externado sua preocupação acerca das transformações a que a cultura estaria sujeita quando os interesses de mercado utilizassem-na como uma "máquina produtora de bens simbólicos" cujos interesses ajustariam-se aos interesses de seus públicos consumidores. E, ao fazerem-no o caráter autônomo da produção popular seria eliminado, destituindo o povo de seu sentido político. Na esteira dessa preocupação, os objetivos e metas contidos no PNC (assegurar o exercício dos direitos culturais dos brasileiros em quaisquer situações econômicas) preocupam, pois podem transformar esse organismo vivo - a cultura em um mero produtor de bens simbólicos, especialmente se entre estados, municípios e cidades traduções muito diferentes daquelas propostas no plano forem produzidas, ou pior: diferente daquilo que, de fato, é produzido popularmente.
É difícil imaginar a transformação de um trabalho manual produzido por uma rendeira, por exemplo, em uma produção em escala. O trabalho dela, assim como de muitos outros artesãos, se dá de forma singular e sem possibilidade de ser reproduzido aos moldes industriais porque possui algumas peculiaridades que o tornam único: uma das singularidades de sua produção é o fato de a rendeira estar inserida em um contexto relacional cuja paisagem e os processos culturais ali estabelecidos ocorrerem em constante interação; em marchetaria. Ao tentar reproduzí-lo em um ambiente estéril de relações culturais, como o ambiente industrial, a renda de bilro deixa de ter seu valor sócio cultural e histórico para ser apenas um bem qualquer, sem relação com as pessoas e com os locais a que pertencem.
Além do fato de os bens culturais (de qualquer natureza) dependerem das relações entre a paisagem natural e os processos culturais, uma cultura só se torna "visível" diante do choque cultural. Roy Wagner (2014 (Vale Cultura movimenta R$ 13,7 bilhões em vendas, aponta balanço 2014)) em seu livro intitulado "A invenção da cultura" explica os significados que os contextos adquirem quando estão em contato uns com os outros. Como argumento de seu livro, Wagner (2010) conclui que "os povos descentralizados e não estratificados" (fruto da mescla e de inúmeras influências) realizam aquilo que chamamos de processos tradutórios com maior facilidade, sem recair sobre as categorias de análise ou dicotomias tradicionais que pautam o pensamento ocidental: sociedade/natureza; sujeito/objeto; espírito/matéria; digital/analógico. O autor afirma que toda vez e onde quer que algum conjunto de convenções estrangeiro (ao seu) seja posto em relação com o sujeito [...] transforma a mera pressuposição de cultura numa arte criativa" (Wagner, 2014, pág 56-57). Daí compreende-se a tônica e a relevância que o ato criativo adquire quando alguém tenta compreender a cultura do outro. Por consequência, acaba por enriquecer sua própria cultura.
Considerações finais
Face a esse entendimento, a criatividade e a inovação tornam-se meios estratégicos para alavancar o crescimento econômico e promover a inclusão social. O PNC tem em seus objetivos essa intenção: a de promover o desenvolvimento econômico de forma sustentável e que possibilite a inclusão social. Apesar de o Brasil ser reconhecido internacionalmente por sua diversidade cultural e por sua capacidade criativa, ele não figurava entre os principais países exportadores de bens e serviços culturais apurados pela ONU em seu relatório anual sobre Economias Criativas. Vale ressaltar, no entanto, que a importância econômica das chamadas indústrias criativas é recente e o planejamento cultural é tardio quando comparado à administração pública. Em grande medida esse atraso no planejamento cultural explica-se quando compreende-se a cultura como um elemento constitutivo da sociedade. Ortiz (2008) afirma que quando a noção de política é introduzida à noção de cultura, a discussão passa a ser marcada por outros parâmetros. Tanto a ideia de política quanto a de cultura quando associadas acabam fraudadas porque a primeira delas vincula-se à ideia de racionalidade.
Em outras palavras, os vínculos criados pela política são de natureza distinta dos vínculos produzidos pelos processos culturais. Num país das mediações, como é o caso do Brasil, resta saber se a Economia Criativa calcada sobre a dicotomia entre o interno e o externo cujo sucesso depende da articulação entre a política e os processos culturais resultará em um cenário de ampliação de acesso aos bens e serviços culturais ou se isso apenas alargará as diferenças regionais. O Vale-Cultura é uma das apostas do Ministério da Cultura para promover e ampliar o acesso à cultura.

Bibliografia
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Furtado, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda. Companhia das Letras, 2008.
Giannotti, Regina Helena. Marca-território Brasil: um vetor de poder para projeção comercial, cultural e política da Nação. Junho de 2013. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=15670 (acesso em 06 de dezembro de 2015).
Martin-Barbero, Jesús. Dos meios às Mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
Ortiz, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 11a. reimpressão, 2011.
Pinheiro, Amálio. América Latina. Barroco, Cidade, Jornal. São Paulo: Intermeios Casa de Artes e Livros, 2013.
São Paulo, Folha de. Livros são produtos preferidos de quem recebe o Vale-Cultura. São Paulo: publicado em 07 de julho de 2014, no caderno Ilustrada, por Guiliana Vallone. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/07/1481861-livros-sao-produtos-preferidos-de-quem-recebe-o-vale-cultura.shtml. Acesso em 06 de dezembro de 2015.
São Paulo, O Estado de. Vale-Cultura movimenta R$ 13,7 bilhões em vendas, aponta balanço. São Paulo: publicada em 07 de julho de 2014, no caderno Cultura, por Flavia Guerra. Disponível em http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,vale-cultura-movimenta-r-13-7-milhoes-em-vendas-aponta-balanco,1524649. Acesso em 06 de dezembro de 2015.

Skidmore, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985; tradução Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
Wagner, Roy. A invenção da Cultura; tradução Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naif, 1a. reimpressão, 2014.
Wallerstein, Immanuel Maurice. Palestra organizada pelo CIDAC - Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral, em 14 de fevereiro de 2013 nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em https://vimeo.com/60835116, acesso em 18 de janeiro de 2014.



É doutoranda do Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Suas pesquisas sobre as estratégias políticas dos Estados no século XXI incluem discussões sobre o uso de marca-território e utilização dos processos criativos como eixo fundante para o desenvolvimento econômico nas chamadas economias criativas. Atualmente é diretora acadêmica de uma instituição de ensino superior na cidade de São Paulo. Possui mais de 10 anos de experiência no ensino superior (graduação e pós graduação latu sensu). Para mais informações acesse: www.economiacriativanow.com.br ou Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/0139238491052500

Como sugere IANNI (1997) tratam-se de categorias básicas de ciências políticas que parecem ter perdido a vigência ou precisam de reelaboração.

Injunções externas: é um termo utilizado pela economia para ordenar, expressamente, uma coisa; ordenar os investimentos externos.
Palestra organizada pelo CIDAC - Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral, em 14 de fevereiro de 2013 nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian com a presença de Immanuel Wallerstein
Publicada no Diário Oficial da União em 27/08/2013 a Lei 12.761 de 27 de Dezembro de 2012 decreta a criação do Vale-Cultura e dá outras providências.
Mais:http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,vale-cultura-movimenta-r-13-7-milhoes-em-vendas-aponta-balanco,1524649
http://www.cultura.gov.br/por-dentro-do-vale-cultura1/-/asset_publisher/cOdwpc5nCipt/content/para-empresas-recebedoras/10895, acesso em 29 de novembro de 2015.
Ipsos é a terceira maior empresa de pesquisa e de inteligência de mercado do mundo. Fundada na França em 1975, a Ipsos conta hoje com 16.000 funcionários e está presente em 87 países
"O povo quer mais do que comida, como diziam os Titãs. O Brasil fez progressos. As classes que ascenderam, além do celular, aparelho nos dentes, tênis novo e filho na faculdade, querem acesso à cultura. O alimento para a alma é a ocupação do Ministério da Cultura., artigo disponível em http://www.cultura.gov.br/artigos/-/asset_publisher/WDHIazzLKg57/content/-o-alimento-para-a-alma-e-a-ocupacao-do-ministerio-da-cultura-ministra-marta-/10883, acesso em 06 de dezembro de 2015
Roy Wagner (2010) afirma que uma cultura se torna visível quando há um choque cultural, ou seja, quando um indivíduo se coloca naquele contexto e precisa compreendê-la a partir de seu conjunto de valores. Tudo aquilo que for alienígena à sua cultural exigirá um esforço para conhecer a outra cultura que deve começar, no mínimo, com um ato criativo.

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