Toda criança desenha... Toda criança desenha?!...

September 23, 2017 | Autor: Gwavira Gwayá | Categoria: Cultural Studies, Arts Education, Drawing, Visual and Cultural Studies, Educação Infantil, Desenho
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Toda criança desenha... Toda criança desenha?!... Alice Fátima Martins1

A princípio, toda criança desenha. Desenha com qualquer instrumento que lhe sirva de prolongamento para o corpo, deixando registrado nalguma superfície o seu gesto. Desenha deslocando-se no espaço, traçando etéreos caminhos, fugazes construções, imaginárias estruturas que se compõem e recompõem no brincar desde si em direção ao mundo. Desenha interagindo com os objetos nos quais projeta o próprio corpo, que vai sendo descoberto e reconhecido aos poucos, na medida da construção das relações consigo, com os outros, com o seu meio. Toda criança desenha a si mesma enquanto rabisca, quando esboça quaisquer figuras, enquanto grafa os elementos do seu universo explorado, e os nomeia, e compõe intermináveis histórias a partir deles... Toda criança cresce enquanto brinca com outras crianças, com os objetos, enquanto experimenta seu corpo, pesquisa o tempo, o espaço e as relações no meio sócio cultural em que se encontra; enquanto se expressa através do gesto, do traço, da cor, do grito, do riso, do jogo, do canto, do sonho e da fantasia. Toda criança é lúdica em seu desejo por saber, descobrir, construir... Toda criança é lúdica enquanto aprende a complexa teia de códigos, signos, significados dos caminhos que deve trilhar para tornar-se sujeito social, para estabelecer vínculos de pertencimento, identidades. Pillar (1990) chama a atenção para o fato de que, mais do que apenas impressões deixadas pela criança sobre materiais, superfícies e espaços, os desenhos, as pinturas, as construções evidenciam o seu processo de elaboração cognitiva, emocional e perceptiva do mundo, no qual é agente. Em seu trabalho, a criança constrói noções a partir das vinculações que estabelece com o que foi percebido nas suas experiências sensoriais, motrizes, em suas aventuras pelos jogos das relações socioculturais.

Gente pequena desenha o que sabe de si mesma e de outras gentes de todos os tamanhos Desde os primórdios da vida, a criança constrói sua autoimagem a partir da percepção e das relações que estabelece com os estímulos de origem externa e interna ao seu corpo, ajustando-se, em maior ou menor grau, ao ambiente sociocultural do qual

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Doutora em Sociologia (UnB), Mestre em Educação (UnB), Arte Educadora. Docente permanente do Programa de Pós Graduação em Cultura Visual (FAV/UFG). Atualmente desenvolve projeto de pesquisa no Programa de Pós Doutorado em Estudos Culturais (PACC/FCC/UFRJ).

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faz parte. A percepção de si mesma se dá a partir da diferenciação entre os estímulos e necessidades e a sua satisfação ou saciedade. Nessa diferenciação reside a base da formação da autoimagem. As relações estabelecidas entre estímulos e necessidades, de um lado, e sua satisfação ou saciedade, do outro, dependem da atuação de um terceiro elemento, “aquele que não sou eu”, o “outro”, cuja contraposição é condição para o início do esboço da própria identidade. O outro, outros, com quem a criança interage, iniciam-na pelas veredas de ser, ao mesmo tempo, verso e reverso, subjetividade e objetividade, indivíduo e coletivo, desejo e tensão, impulso e coerção, pulsão e repressão, solidão e multidão... Dessa forma, a imagem que cada pessoa elabora sobre si, de modo sempre dinâmico, resulta da sua história de vivências desde o próprio corpo, que é o espaço que cada um ocupa no universo, na relação com os demais e o meio em que vive, o que envolve conquistas, tensões, frustrações, desejos, ambiguidades, dúvidas... Se cada corpo é único e tem uma história igualmente única, se cada pessoa manifesta-se no mundo com o seu corpo e sua história, ao mesmo tempo, cada corpo conta uma história que também é social, coletiva, cultural, histórica. Assim, além de suas construções individuais e únicas, a cada um cabe participar da caminhada que a humanidade cumpre, produzindo conhecimento, fazeres, símbolos, modos de vida, visões de mundo, formas de expressão coletivas. Ou seja: se a autoimagem, em contínua constituição, pelo indivíduo, no decurso de sua história, traz suas marcas digitais de vivências, ela também reflete suas interações com o meio, com os outros indivíduos, com vários níveis e formas de pertencimento a diferentes grupos sociais, cujas construções iniciam-se desde a mais tenra idade. Nos processos de descoberta de si nas relações com os outros e o meio, no princípio, é grande o poder expressivo do gesto: a criança movimenta-se corporalmente, aceitando,

rejeitando,

repousando,

alegrando-se,

denunciando

desconforto,

reivindicando. “A atividade motora (...) é a base da criatividade, dessa busca constante onde nada jamais é fixo, onde nada se repete” (LAPIERRE & AUCOUTURIER, 1988). Mas o gesto é também efêmero: findado o movimento que o produz, acaba-se. Se repetido o movimento, já é outro: outro gesto, num outro tempo... O próprio corpo já se terá modificado em relação ao momento anterior. No entanto, a despeito de sua efemeridade, o gesto pode deixar marcas. A descoberta, pela criança, de que pode fixar ao menos parte da trajetória do gesto ao

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fazer uso de algum instrumento que registre o movimento do seu corpo tem sabor e valor inestimáveis: batons, canetas, lápis, alimentos sobre superfícies diversas abrem campo para experimentações as mais diversificadas, quantas vezes inesperadas. O prazer gestual na produção de marcas é fonte de grande motivação para a criança pequena que começa a desenhar. O gesto da mão que traça inicia-se no corpo todo, envolvido no ato de expressar-se no desenho. Essa conquista ocorre quando a linguagem verbal também está sendo descoberta e, diariamente, um grande número de palavras e estruturas frasais são incorporadas ao repertório em franca expansão. Desenhar e falar são ações que possibilitam o estabelecimento de correspondências e complementaridades: “A ação gráfica no papel sugere figuras. A palavra representa o objeto, a pessoa, o fato” (DERDYK, 1989, p. 97). As primeiras manifestações gráficas são rabiscos aos olhos do adulto. Lowenfeld & Brittain (1977) denominam esse como o estágio das garatujas. Pillar (1996), com base nos estudos de Luquet e Gardner, refere-se a esse desenhar aleatório como atividade motora não simbólica. Em outras palavras, o desenho é entendido como um jogo em que a criança expressa gestos motores e descobertas perceptivas, sem o necessário compromisso com o registro ou a comunicação com o outro.

Desenho de Yasmin, 4 anos

Os traços, inicialmente marcados ao acaso, vão sendo controlados pela criança no domínio gradativo das relações entre o movimento do braço e as marcas produzidas, cujos resultados ela aprende a confirmar com o olhar. Para tanto, impõe-se o desafio de

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coordenar as complexas relações entre o traçado que vê, o traçado que pretende, a ação da mão e o movimento que produz o desenho. Aos poucos, os rabiscos se modificam, incorporando intencionalidades, sentidos, ampliando, portanto, as possibilidades representacionais. A criança descobre a possibilidade de produzir marcas, registros que podem significar coisas, evocar fatos, pessoas e objetos, e mais, podem ser decodificados por outras pessoas. É o ingresso no mundo da linguagem. Mas o que é falar? O que é internalizar os sistemas de comunicação culturalmente articulados? O que significa dominar a escrita, ser capaz de produzir imagens reconhecíveis no coletivo? Ao possibilitar a vivência de questões como essas, o exercício do desenhar entrecruza a expressão individual da criança com as construções de sentido no contexto da cultura. Assim considerado, o ato de desenhar é individual e coletivo, tem marcas espontâneas de experimentação, e ao mesmo tempo observa conjuntos normativos do viver em sociedade. Ao perceber-se diferenciado em relação ao meio em que se encontra, a criança inicia a estruturação da representação gráfica da figura humana, cuja célula básica é a forma arredondada, a cabeça, à qual são acrescentados braços, pernas, tronco. Nesse processo, ganha registro toda informação descoberta e vivenciada pela criança sobre o próprio corpo, em graus crescentes de complexidade. A esse respeito, Derdyk (1990) comenta: Do eu mesclado e mimetizado com a natureza, surge, aos poucos, um eu mais fortalecido e comprometido com a noção de um corpo, forma finita, que entra em relação com o mundo. O eu se diferencia das coisas. No desenho, similarmente, uma forma existe na medida em que se diferencia de outras formas (p. 107).

A figura humana – seu detalhamento, expressão, movimento, localização no espaço e nas paisagens – vai tomando formas de representação cada vez mais ricas, tanto do ponto de vista das informações que porta, quanto dos recursos de linguagem usados. Além da estrutura corporal representada, as idéias de localização espacial, de movimento nesse espaço, de identidades, vão tomando forma, bem como papéis sociais e temáticas gerais de interesse para a criança e o adolescente, que envolvam esse estar no mundo. Em síntese: a criança desenha, pinta, constrói, com o seu corpo, o seu espaço de existência no mundo, em interação com ela mesma, com os outros e com o meio, nas dinâmicas de construção de suas identidades.

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Desenho de Yasmin, 4 anos

Reitero, no conjunto de reflexões aqui proposto, que escolho não me ater às discussões sobre os quantos modelos e quadros que tratam dos estágios de desenvolvimento das representações gráficas elaboradas pelas crianças. Também escolho não estabelecer relações entre os possíveis estágios do desenho e etapas do desenvolvimento cognitivo, propostas por quantos estudiosos da área. Prefiro me aproximar dos complexos processos de perguntas e buscas de respostas, nos quais o ato de desenhar tanto amplia as indagações, quanto contribui para a busca de respostas que logo se abrem em novas indagações, no contínuo confronto entre o sujeito e a sociedade, nos embates da cultura, da qual tomam parte as visualidades que habitam o quotidiano de cada um. Entendendo que o ato de desenhar, pela criança, integra as múltiplas aprendizagens das veredas de se fazer sujeito social, nas dinâmicas de construção de sentidos da cultura.

O interesse pelos desenhos das crianças O interesse pelos desenhos das crianças não tem muito mais que 100 anos. De fato, ganhou espaço entre artistas, educadores, e outros profissionais, nas primeiras décadas do século XX, a partir das influências dos estudos emergentes da psicanálise, da psicologia afirmando-se como campo de estudos do comportamento humano. Pela vereda psicológica, os desenhos eram vistos como janelas que poderiam possibilitar o acesso a conteúdos emocionais das crianças, abrindo frentes diversas de uso e interpretação de suas manifestações.

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Artistas modernistas também se interessaram pelo modo como as crianças expressavam-se, desenhando ou fazendo uso de outros recursos. É célebre a frase de Pablo Picasso, já na maturidade de seu percurso artístico: – “Precisei de uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças...” Reconhecidamente, Max Ernst, Miró, Paul Klee, dentre outros, encantavam-se com os traçados feitos por crianças, buscando exercitar esse espírito, de diferentes modos, em suas obras. Não faltaram artistas modernistas que tenham aberto espaço, em seus ateliers, para o trabalho com os pequenos, inspirando-se em sua disposição para experimentar, descobrir, expressar-se... Como fez, por exemplo, Anita Malfatti, na cena brasileira dos anos 30. Tais motivações, aliadas ao ideário educacional da Escola Nova, que reivindicava o deslocamento do foco, no processo de ensinar e aprender, do professor para o aluno, forneceram as bases para propostas de ensino de arte, e nelas de desenho, orientadas pela liberdade de expressão, pelo direito de manifestação espontânea da criança. No Brasil, o Movimento das Escolinhas de Arte tem destaque como iniciativa nessa direção. No ambiente escolar regular, por sua vez, o desenho marca presença há bem mais tempo, mas sem a ênfase na expressão; ao contrário, prevalece a reprodução de imagens, treino da mão, produção de formas geométricas, além da ilustração de outros conteúdos, e adornos de eventos institucionais, dentre outras atividades. Se de um lado, a educação escolar, marcadamente mais conservadora no tocante à inserção do desenho em suas atividades, deixou como herança a concepção do desenho como cópia, treino, reprodução, as experiências desenvolvidas em ambientes extra-escolares – ateliers, escolinhas de arte, e outros – legaram os ideais da liberdade para expressar-se, do desenho espontâneo, da inocência do traço infantil, bem como referencias ao conteúdo psicológico dessa produção. Mais recentemente, tem ganhado visibilidade a dimensão cultural do ato de desenhar. O sujeito que desenha interpreta o que vê e age sobre o mundo produzindo signos, marcas, sentidos. Nesses termos, visualidades, dentre as quais os desenhos, não são neutras, inocentes, espontâneas: elas portam sentidos, refletem relações, tensões, expectativas... Os desenhos das crianças, desde suas primeiras elaborações, também dialogam com seu meio, estabelecendo relações de tensão, desafios, fazendo acordos, acolhendo normas, estruturando linguagem. Assim, supera-se a idéia de desenho espontâneo, na direção da noção de produção que resulta das complexas relações entre o indivíduo e os contextos culturais em que ele se manifesta. Em se tratando da educação infantil, há que se ter em conta as

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peculiaridades dos modos como as crianças estabelecem as relações entre as informações de que dispõem sobre o mundo, como elaboram as sínteses, como explicam os fatos, a cada etapa de suas aprendizagens, em constante transformação. Ao desenhar, a criança não está só expressando tais processos, ela também os está elaborando, e neles articulando mais que informações cognitivas e afetivas, também dados do meio sócio-cultural em que ela se encontra.

Na escola, brincando de desenhar... Em meados dos anos 90, eu lecionava na rede pública de ensino, em Brasília, trabalhando com crianças de cinco e seis anos, além dos estudantes dos primeiros anos do ensino fundamental, na faixa dos sete aos dez anos. A escola era muito grande2. O acesso às salas de aula distribuídas por setores exigiam dos estudantes boas caminhadas nas trocas de atividades, quando passavam, por exemplo, da aula na Biblioteca à de Artes Plásticas. Essa caminhada parecia interminável sobretudo para os estudantes menores, cuja estatura não permitia que vislumbrassem o final do pátio, por trás de tantos obstáculos interpostos: bancos, jardins, objetos de arte, salas, salas, muitas salas... Mas a aventura valia sempre a pena, e os caminhos pelo pátio traçavam desenhos de conquistas. Quando chegavam à oficina onde eu os aguardava, as descobertas do mundo transbordavam por todos os poros em alegria e entusiasmo. Nesse período, as orientações institucionais para o planejamento das atividades apontavam que deveríamos, dentre outros conteúdos, desenvolver os conceitos relativos aos chamados elementos constituidores do desenho: ponto, linha, textura, dentre outros. Vale notar que essa referência, ao lado das solicitações de se incluir tópicos de História da Arte, significaram uma conquista em relação à década anterior, quando os planejamentos das aulas de artes eram montados em torno de atividades esvaziadas de sentido, reduzidas a exercícios repetitivos de recorte e colagem, colagem com palitos, desenho livre, etc. 2

Tratava-se de uma das Escolas Parque previstas no projeto de ensino concebido por Anísio Teixeira para Brasília. No projeto original, cada Escola Parque deveria atender, diariamente, numa estrutura de educação integral, aos estudantes de quatro Escolas Classe circunvizinhas, oferecendo aulas de Artes, Artes Industriais, Biblioteca e Educação Física. Não estava previsto o atendimento a crianças da educação infantil (na década de 60, denominada pré-escola, com atividades desenvolvidas nos Jardins de Infância), mas do ensino fundamental (à época, denominado primário e ginásio). No decurso do tempo, não só não foram construídas todas as Escolas Parque previstas, bem como sua organização e modo de atendimento foram muito modificados. No período referido em meu relato, a escola onde eu trabalhava passou a receber, também, crianças na faixa de 4 a 6 anos de idade (só posteriormente o ensino fundamental incorporou a idade de 6 anos, ampliando sua duração para 9 anos).

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Por essa razão, não é difícil encontrar, nos diários escolares daquele período, e em muitos ainda hoje, registros dos conteúdos ministrados, nos quais os professores listam tópicos tais como ponto, linha, textura, ao lado de arte na pré-história, semana de arte moderna, e outros, para crianças cuja experiência de vida não tinha muito mais que a metade de uma década... As noções que tinham construído de tempo e duração, não as ajudavam a projetar a imaginação muito além dessa temporalidade. Além disso, em geral, os professores quase nunca avançavam muito além de abordar esses conceitos de modo aligeirado, em atividades pouco estimulantes e destituídas de significado. São bom exemplos as aulas em que as crianças deveriam preencher desenhos colando bolinhas de papel crepom coloridas, ou cobrir formas com pontos fazendo uso de canetas hidrocor. Muitas vezes, fazendo pesquisa de campo, ouvi relatos dos pequenos aprendizes, quando eram submetidos a tarefas como essas, queixando-se de cansaço nas mãozinhas. No exercício de meu papel como professora, em especial professora de artes, sempre tive muitas dúvidas quanto ao acolhimento dessas orientações, principalmente pelas inquietações que me moviam sobre as aprendizagens que fizessem sentido para as crianças, em seus modos de perceber, sentir e pensar o mundo, em seus contextos de viver. Por essa razão, preferia brincar com algumas idéias, para construir possibilidades, partindo de vivências das próprias crianças, na direção de ampliar a complexidade de suas interpretações e formulações. Ao iniciar conversas sobre os conteúdos que deveríamos desenvolver, lembro-me do entusiasmo de algumas crianças, por exemplo, tentando definir o que lhes sugeria a idéia de ponto: – “quando a gente se corta, o médico dá pontos para fechar o machucado...”, ou linha: – “quando eu quero telefonar p’ro meu amigo, eu escuto no telefone p’rá saber se tem linha...” As idéias de ponto e linha que desfiávamos nessas conversas, fazendo associações diversas, nos permitiam pensar em muitas coisas, elaborar idéias, propor muitas brincadeiras... aprender... Por vezes, imaginávamos que éramos pontos nos deslocando no espaço, cumprindo trajetórias, deixando marcas, estabelecendo elos e relações com outros pontos e trajetórias... A partir daí, eu pedia às crianças que, depois das aulas, observassem os caminhos que elas percorriam entre os diversos lugares-pontos pelos quais transitavam: a escola e a casa, a casa e o parque, o parque e a casa de um amigo, o retorno para casa... E pedia, também, que observassem como cumpriam esses percursos:

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de carro, ônibus, a pé, de bicicleta. Que marcas cada um deixava pelo caminho? Que paisagens abriam-se a cada passo? Quais cores mais lhes chamavam a atenção? Depois, ouvíamos os relatos de cada sobre as impressões desses caminhos, as linhas com que costurávamos nossos trajetos pelo mundo, fixando na memória retalhos de sensações, emoções, pensamentos, idéias... Muitas vezes, sentávamo-nos no chão, juntinhos, e olhávamos fotografias, imagens diversas, que incluiam reproduções de obras de artistas, ou trabalhos de outros estudantes da escola. Eles faziam muitos comentários, falavam de coisas que lembravam vendo aquelas imagem; eventualmente eu lhes contava histórias ancoradas naquilo que víamos... Passávamos, então, às superfícies do chão, dos papéis, levando linhas a passear com o auxílio de lápis, carvão, giz, barbantes, a recontar histórias, a refazer percursos, limites, a montar mapas. E, pelos caminhos, as linhas iam parando para olhar, “se admirar” com o que viam, em pausas por vezes breves, outras vezes mais demoradas. A cada passo, uma pausa, um ponto, um laço... Às vezes, um escorregar mais longo e prazeroso, noutras a linha ficava delgada, para depois se alargar, vestir-se de outra cor, quantas vezes “se acabar” nas bordas de alguma superfície, à beira de algum abismo... As crianças de uma das turmas mais jovens acostumaram-se a trabalhar debaixo das mesas e outros móveis, fazendo esconderijos, cavernas mágicas, cabanas, casas, escolas... Reuniam-se em pequenos grupos, organizavam as carteiras de modo a abrigarem-se confortavelmente durante sua produção, para a qual levavam consigo tudo de que precisavam: papéis, lápis, tesouras, colas, tintas, caixas, tecidos, etc. Trabalhavam secretamente, protegidas de quaisquer invasões que as pudessem ameaçar. Por vezes uma ou outra criança saía, para fazer uma pergunta, mostrar um desenho em processo, pedir algum objeto, estabelecer contato com outro grupo recolhido em outro abrigo... Ao final de certo tempo, a magia dos esconderijos cessava, e as crianças começavam a se retirar. Traziam, consigo, suas produções. Nos sentávamos, novamente, no grupo grande, para ver o que tinham feito. Seus poucos anos de vida lhes provia de doses variáveis de paciência para esse e os demais exercícios; muitas vezes sua atenção era rapidamente arrebatada por outros estímulos. A possibilidade de dispersão espreitava nossas atividades. Mas, aos poucos, elas aprendiam a comparar seus trabalhos com os trabalhos dos outros, a relacionar o que haviam feito com nossas

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conversas anteriores. Ou a explicitar outras relações. Falar sobre o que haviam feito era sempre um exercício enriquecedor da própria produção, e aos poucos ampliava seu repertório para dar sequência às aprendizagens.

Na escola, aprendendo... a copiar... Nessa escola, as paredes transformavam-se em enormes painéis onde se expunham muitos desenhos e pinturas de crianças, fotografias, e eventualmente trabalhos de adultos – artistas, professores, professores-artistas... Mas esse não era, e não tem sido o cenário que prevalece nas escolas regulares de ensino, dedicadas ao início da escolarização, tampouco à educação infantil. Os primeiros anos na escola estão repletos de apelos que pretendem conquistar a atenção e a motivação dos pequenos frequentadores. Dentre esses, os elementos visuais integram os ambientes, bem como os recursos metodológicos adotados para a promoção das aprendizagens pretendidas. Uma das marcas dessas visualidades é que, em sua maioria, são produzidas por adultos cuja intenção é reproduzir traçados supostamente relacionados a um certo gosto infantil... Nesse trabalho, adultos empenham-se em copiar modelos, tentando reproduzir figuras, personagens, ambientes gráficos veiculados por meios de comunicação, livros didáticos, indústria do entretenimento, ou mesmo reunidos em arquivos escolares, disponíveis para esse fim. Alguns professores e funcionários aperfeiçoam-se nos processos de fazer cópias e reproduções. Muitos orgulham-se disso. É importante ressaltar que, raramente, desenhos de criança fazem parte desses repertórios imagéticos. Considerando-se que a principal missão da escola, desde os últimos anos da educação infantil, ao início do ensino fundamental, seja iniciar as crianças no mundo da palavra escrita, a utilização de imagens, ilustrações, exercícios de desenho, em auxílio do processo de alfabetização, ganha versões as mais variadas, que vão de exercícios para aumentar o controle do movimento da mão, a cartazes e ilustrações diversas que ajudam a memorizar palavras, letras, sonoridades. Descrevo, em seguida, um conjunto de episódios comuns, que acontecem quotidianamente em muitas escolas. Os aqui descritos foram observados em campo, com crianças de educação infantil sendo preparadas para a alfabetização.

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Episódio 1 A professora identifica, com os alunos, a letra M no alfabeto colocado acima do quadro de giz. Depois, desenha a letra no quadro. Distribui um material impresso, no qual está desenhada a letra M maiúscula e minúscula. Ela pede que os alunos cubram a linha da letra com bolinhas de papel crepom colorido.

Episódio 2 A professora conversa com os alunos sobre as coisas que existem numa fazenda. Os alunos contam histórias, fazem observações. Ela explica: – “nós vamos fazer um trabalho que é colorir uma ilustração, para depois criarmos, juntos, uma historinha”. Ela distribui uma folha com uma ilustração. – “Cada um vai olhar tudo o que tem aí no desenho. Vão observar o que ‘tá acontecendo...” Um aluno comenta: – “o menino tá em cima do boi...” Outro questiona: – “Tia, não é gado, não?” Ela explica: – “gado é quando tem muitos bois e muitas vacas. Vocês vão colocar o nome de vocês. Caprichem!”. A professora percorre as carteiras, observando os alunos trabalhando. Pergunta a um deles: – “que cor que é a vaca?! Preto e branco?” O menino não responde. Ela prossegue: – “conserta a cor dessa vaca, viu? Você já viu alguma vaca azul?” O menino sorri timidamente. Outro colore o boi com a cor cinza: – “ninguém lava ele...” e acrescenta pontinhos escuros usando a caneta hidrocor: – “é pulga”. Coloca pontinhos na figura da menina sentada sobre o boi: – “ela pegou pulga porque montou nele. Tem até uma que pulou lá em casa...”

Episódio 3 A professora fixa, no quadro de giz, o desenho de uma cesta com flores coladas. –“cada um vai ganhar uma cestinha, vai pintar, vai recortar. Depois vão fazer aquelas florzinhas para colar nela. Vocês é que vão fazer!”. Ensina a fazer a flor, desenhando no quadro: – “faz uma bolinha, põe as pétalas em volta, e vai fazendo uma flor... pode ser assim também...” Um menino pergunta: – “tia, posso fazer um monte de laranjinha?” Ela responde: – “eu pedi para fazer laranjinha? É claro que não!”. Distribui retalhos de papel colorido para as crianças fazerem as flores. Um menino pergunta: – “ hoje é dia das mães?” A professora responde que não. Ele então continua: – “então p’ra que é que eu vou levar isso p’ra casa?” Uma menina decide colar flores naturais na cesta, em lugar das flores de papel. Para isso, chama a professora: – “tia, eu

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vou colar flor de verdade!” A professora responde: – “Não, não fica bom!”. A menina desiste. Uma colega adota sua idéia, colando as flores no seu trabalho. Finalizando, várias crianças colam as flores na cesta.

Desenhos de Marcela e Maiko, ambos com 6 anos

Episódio 4 A professora trouxe uma flor impressa para trabalhar com os alunos. – “Hoje nós vamos pegar esta flor. Vocês vão pintar, com muito amor e carinho. Eu vou dar um palito de picolé para vocês colarem e ser o caule, o cabinho da flor. Presta atenção. Nós temos três folhas aqui para a flor. Vocês vão pintar as folhas, e vão colar as folhas desse jeito: duas folhas na florzinha e outra no cabinho, no palito do picolé”. Desenha no quadro para mostrar como eles devem colar as folhinhas, – “por trás das pétalas da flor”. Continua a explicar: – “depois nós vamos aprender a música do jardim e vocês vão balançar as flores. Mas para isso vocês vão ter que estar com ela pronta”. As crianças começam a colorir. Inquietam-se durante a execução do trabalho, em parte pela necessidade de troca de materiais, o que os leva a levantarem-se e caminharem pela sala. Conversam entre si, comparam os desenhos. Muitas vezes, distraem-se com outros assuntos. A atividade é interrompida pelo horário do lanche. Nem todas as crianças concluem a flor. A professora não ensina a “música do jardim” para eles. Ao final da aula, muitas flores são jogadas na lixeira da sala.

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Algumas questões podem ser levantadas a partir dos episódios descritos. Inicialmente, vale observar que desenhos

de crianças, em

geral, diferem

substancialmente das ilustrações de livros destinados ao público infantil, de livros didáticos, e também das coletâneas de desenhos pedagógicos que circulam nos ambientes escolares. Estas ilustrações são desenhos de adultos que visam o público infantil, com traço e estilos próprios. Em geral, as imagens veiculadas nos ambientes escolares observados tendem à simplificação do traço, uma estilização da forma, o que, contudo, não subentende a busca de sua essencialidade visual. A simplificação e estilização da forma observadas, muitas vezes, devem-se às interferências no traçado feitas por quem executa a cópia, o que determina alterações na imagem entregue para as crianças, se comparada com a imagem original, de que é copiada. Essas alterações acabam por criar um caráter quase expressionista, a partir da deformação da imagem. Desse modo, a sua significação fica condicionada às convenções estabelecidas em sala de aula entre professor e crianças: determinada imagem significa determinada palavra. Finalmente, a baixa qualidade quanto à programação visual e impressão dos desenhos impressos, em sua maioria, tem sido superada com o uso dos novos recursos tecnológicos disponíveis para professores, que contam com scanners, impressoras, além da possibilidade de busca de imagens diversas na rede de computadores. No tocante à escolha das figuras para serem reproduzidas, as questões estéticas não tem relevância prioritária, em favor da funcionalidade das imagens. Muitas vezes, as ilustrações de textos, os desenhos para serem coloridos, os cartazes são trazidos ao ambiente de sala de aula para substituir a realidade, simulando a interação do aluno com o concreto. Algumas professoras explicam que a utilização de desenhos tem maior incidência no período que antecede e durante a alfabetização, por haver a necessidade “de se trabalhar mais o concreto com o aluno”. Entenda-se: o “concreto” por elas referido é a representação visual de coisas, cenas, ambientes... Ou seja, a idéia de promover aprendizagens a partir da interação com a realidade, na relação com objetos, pessoas, fatos, continua não sendo realizada, posto que o desenho, independentemente de sua qualidade gráfica e estética (ou da falta dela) não substitui a coisa desenhada: tão somente a representa visualmente. Mas é importante notar que as crianças absorvem informações por meio da observação e exploração ativas de seu meio, e do processamento contínuo do conhecimento anteriormente organizado. E, afinal, visões de mundo não são

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comunicadas apenas nos textos e composições visuais das imagens, mas, sobretudo, nos contextos culturais de interação comunicativa. Nos episódios descritos, é possível constatar que as respostas das crianças às atividades com desenho reproduzido não são marcadas pela passividade. Ao contrário, se algumas crianças mostram-se mais disponíveis para observar as instruções da professora, outras estabelecem uma relação mais ativa com os desenhos, alterando-lhe o traçado, descobrindo novas possibilidades de execução. Mesmo quando não tem suas iniciativas aprovadas pela professora. De toda sorte, a ênfase na cópia, na reprodução, redunda, quase sempre, em atividades destituídas de sentido para as crianças. Para que fazer uma cesta com flores se não é Dia das Mães? Essa pergunta permanece sem resposta. A lixeira fica cheia de desenhos mal concluídos ao final da aula, e esse fato também não é trazido à pauta das discussões sobre planejamento. Perguntadas sobre se gostam ou não de desenhar, algumas crianças revelam, timidamente, que gostam, mas em seguida afirmam não saber desenhar: – “Quem sabe, mesmo, é a professora.” E, por considerarem que nunca conseguirão desenhar como a professora, elas preferem apenas colorir os desenhos que recebem durante as aulas... Ocorre que a professora também “não sabe desenhar”. Na verdade, ela é habilidosa para copiar, ampliar, colorir, recortar, colar... Os materiais pedagógicos são preparados por ela, cuidadosamente, por meio da cópia e reprodução, fazendo uso dos diversos recursos técnico-tecnológicos disponibilizados, de acordo com o perfil sócio-cultural da escola e da comunidade na qual está inserida: mimeógrafo, máquina fotocopiadora, scanner, internet... Os fluxos das visualidades nas escolas, portanto, desde a educação infantil, apresentam-se carregados de sentidos, tensões, intenções... significam e orientam ações, escolhas... Quase sempre, ensinam a não desenhar, a copiar... Quando assim, ensinam, também, que o desenho das crianças “não é bom”... E, desde as atividades preparatórias para a alfabetização, priorizam, majoritariamente, a especialização do movimento da mão para o exercício da escrita... Talvez a profusão com que as crianças pequenas costumam desenhar reflita a urgência que elas pressentem, ante o esgotamento iminente do tempo de que dispõem para desenhar tudo quanto estão em vias de descobrir e aprender... Chama a atenção como essas mesmas crianças, tão rapidamente, em seus percursos escolares, perdem o gosto por desenhar...

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Da educação infantil aos primeiros anos de escolarização, em algum lugar, o prazer de desenhar fica esquecido, em favor da internalização de todas as normas escolares e suas prioridades na agenda das aprendizagens: ler, escrever, contar... Perde-se de vista, nesse processo, que “não se alfabetiza fazendo apenas as crianças juntarem as letras. Há uma alfabetização cultural sem a qual a letra pouco significa. A leitura social, cultural e estética do meio ambiente vai dar sentido ao mundo da leitura verbal” (BARBOSA, 1996, pp. 26-27). Do desenho-criança ao traço adestrado... Do gesto amplo que traça linhas, à mão apoiada, que escreve palavras, no processo de alfabetização, pode ocorrer um esvaziamento do ato de desenhar. A esse respeito, Derdyk, muito pertinentemente, observa: O sistema educacional geralmente dá uma grande ênfase ao mundo da palavra. Dependendo da estratégia utilizada para a aquisição da escrita, existe um esvaziamento da linguagem gráfica como possibilidade expressiva e representativa. A aprendizagem escrita canaliza a descarga energética e expressiva da atitude gráfica que o desenho carrega para uma noção regulada de controle técnico na utilização do instrumento. A manifestação gráfica fica à margem. (1989, p. 103)

Em visitas a muitas escolas, foi possível constatar que, em geral, se privilegiam atividades de coordenação motora e visomotora no período anterior à alfabetização, quando são adotados exercícios que pedem o preenchimento de linhas pontilhadas e espaços delimitados, observando-se os limites, e apresentam figuras para serem completadas. Tais exercícios, baseados em desenhos reproduzidos, preparam as crianças para serem alfabetizadas. Nesse processo, as imagens copiadas auxiliam no processo de aprendizagem da escrita. Imagens para serem copiadas... palavras para serem treinadas... frases para serem montadas... linhas para serem trilhadas... A prontidão, entendida como um conjunto de habilidades mínimas necessárias para que o aluno aprenda a ler e a escrever, é um conceito criticado por vários estudiosos, que denunciam tais condições como artificialmente impostas às crianças. Ferreiro & Teberosky (1985), por exemplo, argumentam que a criança, em diferentes estágios, desenvolve diferentes hipóteses sobre o ato de ler e escrever. Cabe

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ao professor reconhecer tais hipóteses e estimular a criança a avançar na direção da escrita convencional, culturalmente produzida e socialmente aceita, e da leitura. O que significa dizer que não há um conjunto específico de habilidades que capacite a criança a ser alfabetizada, mas, em cada momento do seu desenvolvimento, a criança dispõe de um conjunto de esquemas de pensamento a partir do qual o professor deve propor suas estratégias de ensino.

Exercício de alfabetização feito por criança de 6 anos

O ensino organizado em torno do ato de copiar não leva em conta o potencial cognitivo e criativo, nem os referenciais socioculturais das crianças: “Fornecer um „modelo‟ para ser copiado exclui a possibilidade de a criança selecionar seus interesses e necessidades reais. No ato da seleção está inclusa uma leitura da realidade, que, em si, é um exercício reflexivo e criativo”. (DERDYK, 1989, P. 107). O que difere substancialmente dos processos de imitação nas relações de ensinar e aprender. Na imitação, a criança escolhe seus assuntos, para deles se apropriar, por meio da representação. Ao imitar, a criança elabora imagens mentais, para reapresentá-las sob a forma de linguagem, ampliando seu repertório. Na imitação, portanto, a criança se apropria daquilo que seja de sua escolha, imprimindo-lhe seu próprio traço. No ato da cópia, ao contrário, ocorre um distanciamento de si mesma, donde o esvaziamento de significado.

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A formação dos professores que atuam na Educação Infantil Essa discussão requer que se traga à pauta duas questões fundamentais. A primeira: qual a formação dos professores que atuam na educação infantil, e como as visualidades estão nela inseridas? A segunda: como as questões relativas à educação infantil integram a formação dos professores de artes? É necessário esclarecer que os grupos de crianças menores de 7 anos terem sido atendidos por mim consistiu situação de excessão, devida, tão somente, à especificidade da Escola Parque, onde professores licenciados em artes, educação física, letras, ensinam crianças de início de escolarização e, esporadicamente, da educação infantil. De acordo com a legislação vigente, é no segundo segmento do ensino fundamental que professores com essa formação devem atuar. Na prática, há muita carência de professores com formação específica para essa demanda, em especial na área de artes, o que justifica, muitas vezes, desvios de atuação, com professores lotados para ministrar aulas em campos do conhecimento para os quais não tem formação, ou cuja formação é precária. Tal quadro precisa ser modificado. Já as crianças menores tem aulas com professores cuja formação deveria ser feita nos cursos de Pedagogia, ou Normal Superior. Em geral, nos centros de formação desses professores, as orientações quanto à inserção do desenho e de outros meios visuais de comunicação no ensino não são restritas à área de artes, que, em geral, tem espaços mais ou menos tímidos nos currículos. Diferentes concepções e orientações sobre o trabalho com visualidades são veiculadas em um conjunto variável de disciplinas, formado principalmente pelas didáticas. Nas disciplinas voltadas para os recursos metodológicos, são tratados nos chamados materiais de ensino aprendizagem, que evolvem o desenho de letras, a utilização de cartazes, ilustrações, estampas, rótulos, maquetes e desenhos reproduzidos para serem utilizados como suporte para diversos conteúdos escolares. Ainda que disciplinas voltadas para o ensino de arte sejam previstas, e priorizem fundamentos e aspectos metodológicos da área para o início de escolarização, geralmente elas não chegam a integrar o chamado núcleo forte da formação, sendo consideradas periféricas, ou de apoio. Na outra via da questão, professores de arte, salvo excessões, não atuam na educação infantil e início de escolarização. Esse fato acaba por gerar uma espécie de desinteresse entre arte-educadores para aprofundar questões relativas a esse segmento

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do ensino. A mais, em sua formação, a prioridade é dada aos aspectos do ensino de arte de pré-adolescentes e adolescentes, faixa etária que frequenta o segundo segmento do ensino fundamental e o ensino médio. De modo que é pouca a familiaridade desses professores com as especificidades do trabalho com as crianças menores, sobretudo da educação infantil, seja para atuar com elas, seja para formar professores que atuarão nesse segmento. Esse descompasso tem repercussões diretas nos modos como o desenho e as visualidades em geral integram as atividades que precedem e durante o processo de alfabetização, bem como nos argumentos que sustentam essas orientações. Tais questões precisam ser pensadas, portanto, também a partir das relações entre a formação inicial e continuada dos professores que atuam com educação infantil, para a qual professores e pesquisadores na área do ensino de artes e cultura visual podem contribuir de modo efetivo.

Pelo direito de brincar, aprender, e se fazer agente de cultura ativo desde a infância Esses fatores entrecruzados, somados a outros que aqui não foram considerados, por certo, criam as condições nas quais as crianças tendem a abandonar, gradativamente, o exercício de experimentar e construir modos de representações por meio dos desenhos. No entanto, talvez caiba a pergunta: é mesmo importante para a criança que seja assegurado o espaço do desenhar? A esse respeito, é preciso notar que fala, desenho e escrita são sistemas de representação distintos, que dialogam, complementando-se, apesar das tensões que possam estabelecer entre si. O exercício de cada um deles envolve estruturas cognitivas, capacidade de representação, imaginação, sensibilidade, criação, e articulação da experiência pessoal com a coletiva, no âmbito da cultura. Não se pode perder de vista, também, que uma das características mais marcantes da cultura contemporânea está no aumento sem precedentes de circulação de informações visuais, bem como de acesso a equipamentos e tencologias que ampliam a um número cada vez maior de pessoas a possibilidade de produzir imagens as mais variadas. Atualmente, é cada vez mais precoce o acesso das crianças a essas tecnologias, em câmeras fotográficas e de vídeo, telefones celulares, computadores, jogos eletrônicos, dentre outras novidades que chegam ao mercado a cada dia.

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Nesse ambiente, a produção imagética ganha outras dimensões e códigos, passando do traçado sobre superfícies, das marcas deixadas pelo gesto, à operação de equipamentos que respondem aos comandos digitalmente. Ora, se à escola cabe parte significativa da formação de crianças e jovens para sua inserção ativa, criativa, nas teias das relações sociais, sem perder de vistas suas identidades sempre em construção, e se aos centros que trabalham com educação infantil cabe promover a passagem desde o ambiente familiar, doméstico, em direção ao mundo mais amplo, para a criança, então essas questões não podem deixar de comparecer de modo efetivo à pauta das reflexões, dos planejamentos, dos processos de ensinar e aprender deflagrados. Somos todos responsáveis, sim, em alguma medida, por assegurar aos pequeninos o direito de brincar, aprender, produzir sentidos no decurso de sua inserção progressiva na complexa malha das relações sociais e construções culturais. Desse processo, o desenhar, compreendido de modo amplo, é parte inalienável, e seu espaço deve ser preservado em todo o processo de escolarização, desde a educação infantil. Como condição para que possamos afirmar, sem sustos, que sim, toda criança desenha!...

Referência Bibliográfica BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996. DERDYK, Edith (1989). Formas de pensar o desenho. Série Pensamento e Ação no Magistério. São Paulo: Editora Scipione. (1990). O desenho da figura humana. Série Pensamento e Ação no Magistério. São Paulo: Editora Scipione. FERREIRO, Emília, e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. LAPIERRE & AUCOUTURIER (1986) A simbologia do movimento. Porto Alegre: Artes Médicas. LOWENFELD, V. & BRITTAIN, W. L. (1977). Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou. PILLAR, Analice Dutra (1990). Fazendo artes na alfabetização. Porto Alegre: Kuarup. ____ (1996). Desenho e construção de conhecimento na criança. Porto Alegre: Artes Médicas.

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Para citar este texto: MARTINS, Alice Fátima. Toda criança desenha... Toda criança desenha?!. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. (Org.). Cultura Visual e Infância. Santa Maria: Editora UFSM, 2010.

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