Trabalho de \'bandido\' e trabalho de \'gente de bem\'

June 6, 2017 | Autor: Giancarlo Vay | Categoria: Juvenile Delinquency, Adolescentes
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Terça-feira, 5 de agosto de 2014

Trabalho de "bandido" e trabalho de "gente de bem"   

Por Giancarlo Silkunas Vay

Passados mais de 100 anos da 1ª edição do “A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo” (no original em alemão Die protestantische Ethik und der 'Geist' des Kapitalismus) de Max Weber, nem mesmo Karl Marx poderia ter negado com tanta veemência a máxima protestante de que o trabalho enobrece e dignifica o homem perante Deus, quanto o magistrado da ocasião em uma das audiências de processo socioeducativo (onde o ranço dos “bons costumes” impregna mais marcadamente) em que atuei recentemente. Ouvido o adolescente em juízo na audiência de apresentação, esse foi questionado pelo magistrado sobre os fatos de que era acusado, bem como se fazia o uso de drogas, se estudava e se trabalhava. O interrogatório é expressão do direito de audiência de que dispõe o acusado, manifestação do direito de autodefesa, consectário do direito constitucional de ampla defesa e contraditório, onde o réu de um processo pode, querendo, se fazer ouvir e, com isso, interferir na decisão judicial ao levar ao conhecimento do magistrado a sua versão dos fatos. Não é isso o que acontece na grande maioria dos processos socioeducativos em que, em razão da proteção do “segredo de justiça”, devassa-se as garantias processuais duramente conquistadas nos processos de imposição de sanção corporal, sem o receio de serem expostos ao ridículo em meio a bancos de jurisprudências e, portanto, dos olhares dos pesquisadores e doutrinadores que poderiam se valer de tal material para elaborar críticas. O que podemos verificar, no mais das vezes, é que a audiência de apresentação é um momento em que o magistrado tem a possibilidade de extrair fatos preciosos para justificar a decretação de uma internação provisória, colher elementos comprobatórios para futura condenação e, também, para passar um pito tanto no adolescente quanto em seus pais. O adolescente, mais uma vez,é reduzido à condição de objeto, algo menor, digno de intervenção direta e cujo silêncio, senão passível de imediata repreensão, será visto como confissão ficta, ainda que a lei disponha o contrário. E havendo a possibilidade de passar um sermão longe das câmeras, estenotipia ou de qualquer outro meio de transcrição aos autos, faz-se com a certeza de que o faz em razão do superior interesse do menor. Sobre o termo “menor”, leia mais no link.

Pois bem, prossigamos. Após o adolescente expor sua versão dos fatos, bem como sua situação de estudante, foi a vez de expor que trabalhava como ajudante em lava-rápido de carros. Nova pausa. Inquieta-me a inquirição a respeito do trabalho do adolescente. Conforme dispõe o art. 7º, XXXIII, da Constituição, é direito do trabalhador a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. Sendo assim, a constatação de adolescente exercendo atividade laborativa deveria ser exceção (apenas após os 16 anos) e, constatada a sua realização antes disso, tal situação deveria ser considerada como exploração infantil, excetuada a hipótese do trabalho na condição de aprendiz. Novamente, não é isso o que acontece no dia-a-dia dos fóruns, considerando-se tal proceder para avaliar o “risco” que o adolescente apresenta para a sociedade ao retornar à rua, leia-se: para poder responder ao seu processo em liberdade. Ao ser noticiado ao magistrado que o adolescente trabalha em lava-rápido de carros, esse, de forma natural, me ensinou uma coisa muito importante: existem trabalhos honestos e trabalhos de bandidos. Nunca, nunca vá trabalhar como entregador de pizza ou em um lava-rápido, pois, assim o sendo, há grande chance de estar envolvido com o que não presta... Não sei se tal fator foi preponderante, mas o adolescente na ocasião, mesmo ausentes indícios sobre eventual intenção de deixar o local dos fatos, muito menos sobre ele representar ameaça à instrução probatória, acabou internado provisoriamente naquele momento, ainda que não apontada outra razão para a “necessidade imperiosa da medida” (art. 108, ECA). O adolescente, em regra, não pode trabalhar. Quando trabalha, por necessidade ou por pressão da sociedade que lhe impõe uma vida de mini-adulto, ignorando sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, acredita estar se “enobrecendo” ou se “dignificando”, como impõe-lhe a ética capitalista de nosso tempo. Todavia, esqueceram de lhe ensinar que existem alguns trabalhos que, de fato, enobrecem e dignificam e outros que trazem uma pecha: a da pobreza, da marginalidade. Talvez se dissesse que era estagiário em e-commerce ou artista mirim (de televisão, é claro), seu trabalho fosse reconhecido como digno, a contar favoravelmente. Percebe-se, novamente, que o processo socioeducativo, próximo do processo penal, está ali para a manutenção de certas estruturas de poder em que, se você ocupa uma posição subalterna na lógica de exploração capitalista, tal qual um lavador de carros, um entregador de pizza, um ajudante de pedreiro ou de pintor, você corre maiores riscos de ser institucionalizado precocemente.

Rusche, Kirchheimer, Foucault e Pavarini são mais atuais do que nunca! Que o processo de reeducação sirva aos interesses do capital: de tornar a mão de obra desqualificada em mão de obra produtiva, em uma triangulação perfeita entre escola-trabalho-prisão, passando, eventualmente, pela instituição hospitalar. Melhor tomar cuidado na hora de mandar seu currículo, nesses tempos, encaminhá-lo para o lugar errado já pode ser razão suficiente para levantar “fundadas suspeitas” em seu desfavor...

Giancarlo Silkunas Vay é Defensor Público no Estado de São Paulo.

http://justificando.com/2014/08/05/trabalho-de-bandido-e-trabalho-de-gente-debem/

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