QUANDO A TRADIÇÃO (INDÍGENA) É ENSINADA NA ESCOLA (INDÍGENA) ETNOEDUCAÇÃO COMO EXERCÍCIO DE AUTONOMIA
Adriana Russi Universidade Federal Fluminense e-mail:
[email protected] Adolfo de Oliveira Universidade Estadual de Santa Cruz RESUMO A presente discussão se circunscreve a partir de uma experiência na Amazônia brasileira, iniciada em 2012, na perspectiva de uma “etnoeducação” ou “etnoeducação patrimonial”. Vinculada a um programa de extensão da Universidade Federal Fluminense, concebido em 2008, a referida experiência se desenvolve no município paraense de Oriximiná, região do Baixo Amazonas. Tal perspectiva, ainda em fase de elaboração, é concebida nas fronteiras entre a Antropologia, a Psicologia e a Educação e, nesse sentido, tem caráter transdisciplinar. Nossas ações se voltam à formação continuada de educadores da rede pública municipal oriximinaense. Nelas, o patrimônio cultural (saberes tradicionais locais) é enfatizado em projetos realizados em algumas escolas de Oriximiná. Neste texto, analisamos a experiência realizada na perspectiva da etnoeducação entre os Katxuyana. PALAVRAS-CHAVE Patrimônio cultural. Etnoeducação. Katxuyana. ABSTRACT The paper discusses an experience in Brazilian Amazonia, initiated in 2012, on etho-education, or heritage ethno-education. The experience is vinculated to the community action programme of Fluminense Federal University (UFF) initiated in 2008 in the county of Oriximiná, Pará state, in the lower Amazon river. The approach adopted in this programme is still a work-in-progress, and is conceived betwixt and between the frontiers of anthropology, psychology and pedagogy, as a trans-disciplinary effort. Our actions are focused on the continued formation of teachers of the public school network in Oriximiná county. Those actions focus on cultural heritage (traditional knowledge), being developed in some of the schools of Oriximiná's public education authority. Here we analyze the experience in the context of ethno-education among the Katxuyana people. KEYWORDS heritage, ethno-education, Katxuyana. e-JESS. electronic Journal of Economic Sociology Studies ISSN 2237-0374
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INTRODUÇÃO Neste artigo, discutimos dados sobre a valorização do patrimônio cultural1 em projetos realizados em uma escola indígena na perspectiva de uma “etnoeducação”2 ou “etnoeducação patrimonial”. A ação que acompanhamos desde 2012 se vincula a um programa de extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF)3 e é relizada no município paraense de Oriximiná, região do Baixo Amazonas. Tal perspectiva, ainda em fase de elaboração, é concebida nas fronteiras entre a Antropologia, a Psicologia e a Educação e, nesse sentido, tem caráter transdisciplinar. Nossas ações se voltam à formação continuada de educadores da rede pública municipal oriximinaense, em que o patrimônio cultural (saberes tradicionais locais) é enfatizado em projetos desenvolvidos por professores e alunos de algumas escolas de Oriximiná. Entre as inúmeras escolas e professores participantes dessa experiência formativa, incluem-se educadores que atuam em distintos contextos socioculturais, como nas comunidades quilombolas, ribeirinhas, rurais de terra firme e também em algumas escolas indígenas. Neste artigo, nossa reflexão se volta ao caso observado numa escola localizada na aldeia dos Katxuyana, denominada Warahatxa Yowkuru (aldeia Santidade). Nessa aldeia, o professor indígena é o responsável pelo primeiro segmento da educação básica, pelas aulas de língua materna (katxuyana) e de cultura tradicional. Além de professor, Mauro Makaho assumiu o cargo de cacique (pata yotono) da aldeia, em 2011, e é, juntamente com alguns outros líderes Katxuyana, protagonista de uma interessante trajetória em defesa de seu patrimônio e de seus direitos. As práticas que observamos entre esse povo ameríndio podem ser compreendidas também como do domínio da gestão do próprio patrimônio cultural. Interessa-nos, aqui, analisar a relação entre o protagonismo desses ameríndios e de suas práticas voltadas ao patrimônio cultural, a partir da reflexão de seus projetos em etnoeducação na escola.
1 A expressão “patrimônio cultural” não é termo “nativo” de uso corrente entre as comunidades de Oriximiná em geral e, em particular, entre os Katxuyana. O emprego desse termo como categoria analítica, decorre de teorias, como a de Godelier (2007), sobre processos de patrimonialização. Inúmeros são os debates acerca do patrimônio cultural. Muitos trabalhos, por exemplo, revelaram as necessárias mudanças no campo do patrimônio, quer no âmbito teórico e conceitual, quer em suas implicações políticas (VELHO, 1984; PELEGRINI, 2006; LIMA FILHO; BELTRÃO; ECKERT, 2007; ABREU, 2012). 2 Sobre considerações preliminares acerca do conceito da etnoeducação patrimonial, ver Rocha, Russi e Alvarez (2013). 3 Trata-se do Programa Educação Patrimonial em Oriximiná, abrigado no âmbito do Departamento de Artes e Estudos Culturais do Instituto de Humanidades e Saúde (UFF/Rio das Ostras) e do Departamento de Psicologia (UFF/Niterói). O programa é formado por docentes e discentes da UFF de diferentes cursos e congrega, ainda, pesquisadores de outras universidades parceiras, como a Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ). Mais informações no site oficial do programa, disponível em: .
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UM POUCO SOBRE OS KATXUYANA4 O povo Katxuyana é um grupo ameríndio karib que vive na região Norte do Brasil, falante do katxuyana, língua do grupo Parukotoano, ramo guianense da família linguística karib (Meira, 2006). Uma grande parte desse povo habita o oeste do Estado do Pará, na mesorregião do Baixo Amazonas. Atualmente espalhados em cerca de nove aldeias, eles ocupam a região dos rios Cachorro e Trombetas (nos limites da terra indígena Trombetas-Mapuera), do rio Nhamundá (na fronteira entre os estados do Amazonas e do Pará, nos limites da terra indígena NhamundáMapuera) e do rio Paru de Oeste (na fronteira entre os estados do Pará e Amapá, na Terra Indígena Parque do Tumucumaque). A região do oeste do Pará, onde se localiza o município de Oriximiná, está inserida na região da Guiana Ameríndia, lugar de povos indígenas muito diferentes. Para Melatti (2011), a região da Guiana Ameríndia, como às vezes é denominada a Guiana Oriental, compreende a ampla região da fronteira do Brasil e o sul da Guiana Francesa, o Suriname e a Guiana. Essa região é ocupada por ameríndios das famílias linguísticas tupi-guarani e karib, sendo estes últimos os que predominam na região. A dificuldade que se tem para organizar um quadro de referência sobre os povos dessa região decorre, em parte, do intenso processo espontâneo e deliberado de fusão e dispersão que ocorre entre eles (Melatti, 2011). Nesse sentido, Oliveira (2012, p. 15) afirma que: Os povos indígenas do oeste do Pará não apenas possuem identidades que cambiam com frequência: eles planejam estrategicamente a mudança ou a permanência destas identidades. Povos se fundem uns com os outros ou, a meio caminho da fusão, decidem pela retomada da antiga existência. […] Esta fusão não ocorre apenas por iniciativa, ou cálculo, dos povos indígenas envolvidos em si mesmos. Muito deste processo se dá pela pressão da sociedade envolvente, em especial na forma de concentração de vários povos em uma única aldeia/aldeamento, como medida administrativa para facilitar a evangelização, ou o acesso a serviços de saúde e a escolas. Em outros casos, no entanto, estas fusões são planejadas e executadas até a dissolução de povos originalmente distintos uns dos outros.
Os Katxuyana, por outro lado, vivem um processo inverso, ao decidirem reocupar seu território tradicional. Antes de discutirmos esse aspecto que, em grande medida, se articula com a gestão do próprio patrimônio cultural pelos Katxuyana, apresentamos um breve histórico sobre esse povo. Na literatura, a formação desse povo remonta ao século XVI, quando diferentes grupos indígenas teriam migrado de outras localidades e se encontrado na região dos rios Cachorro e Trombetas (FRIKEL, 1970; GRUPIONI, 2010, 2011). Ao longo dos séculos XIX e XX, o contato que os 4 Em oficina sobre a língua katxuyana promovida pelo IEPÉ (Instituto de Pesquisa e Formação Indígena) em agosto de 2014 em Oriximiná/PA, os Katxuyana decidiram grafar seu etnômio com a letra “t” antes da letra “x”. Essa maneira de escrever o nome deste povo indígena já era corrente entre linguistas desde meados dos anos de 1990. Antropólogos e outros pesquisadores usavam Kaxuyana, como o leitor observará nas referências.
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Katxuyana tiveram com não indígenas lhes trouxe diversas doenças. Uma epidemia de sarampo, registrada nas primeiras décadas do século XX, é indicada como das mais devastadoras desse povo. Muito adoentados e com restritas possibilidades de casamento, conforme seu sistema de organização social, esse povo viveu um difícil período. O ano de 1968 é indicado na bibliografia como o momento em que o reduzido grupo de pouco mais de 60 indivíduos abandonou seu território natal na região do rio Cachorro5 e vivenciou um dramático processo de separação em duas frentes migratórias6. Uma desceu sentido sul (para o rio Nhamumdá) e lá viveu com outro povo karib – os Hixkaryana; a outra subiu em sentido leste (para a terra indígena Parque do Tumucumaque), onde conviveu com os Tiriyó, também outro povo karib. Em ambas as localidades, os Katxuyana se misturaram a esses outros povos com quem estabeleceram alianças e casamentos e também passaram a viver em áreas de atuação de missões religiosas: católica, na primeira delas, e protestante, na segunda. Hoje, esse povo soma cerca de 418 pessoas (IBGE, 2010) e parte dele voltou a ocupar sua terra natal, na região do rio Cachorro. Em um processo autorreflexivo de sua própria cultura (Sahlins, 1997a, 1997b; Carneiro da Cunha, 2009), os Katxuyana vêm demonstrando que o prognóstico disseminado por pesquisadores em meados do século XX, de que a cultura katxuyana desapareceria, não se confirmou. Ao contrário disso, viramos a primeira década do século XXI com a cultura dos Katxuyana presente, viva e ativa. Abordar o tema da autovalorização cultural e do protagonismo indígena, portanto, é significativo não apenas devido ao fato de, neste século, a “linguagem dos direitos” ter se tornado o meio por excelência da relação entre povos indígenas e o Estado nacional, como também devido à própria situação específica dos Katxuyana que impulsiona um processo de autoinstrumentalização da cultura como forma de autonomia (Oliveira, 2002). PROTAGONISMO INDÍGENA E DIALOGIA COM O ESTADO Convivendo com os Tiriyó, no Tumucumaque, muitas práticas culturais dos Katxuyana foram silenciadas, predominando as do povo anfitrião. A adaptação dos Katxuyana foi difícil e seu sistema de organização social sofreu modificações. Os filhos dos casamentos interétnicos entre Katxuyana e Tiriyó, nascidos no Tumucumaque, frequentaram a escola formal onde se ensinava a língua tiriyó. Entretanto, sempre ouviram de seus pais e avós que o lugar dos Katxuyana era no rio Cachorro. Eles também ouviam relatos de suas memórias acerca de práticas culturais que os diferenciavam dos Tiriyó. Ao longo de décadas, no Tumucumaque, alguns líderes Katxuyana procuravam mostrar que viviam de uma forma diferente em sua terra natal e abriram aldeias katxuyana. Eles buscaram 5 O rio Cachorro está localizado no município paraense de Oriximiná e integra a bacia do rio Trombetas, afluente da margem esquerda do rio Amazonas. 6 Uma análise da migração Katxuyana foi elaborada por Caixeta de Queiroz e Gonçalves Girardi (2012).
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manter alguns rituais, como o Wotxaykano, de iniciação à vida adulta (RUSSI, 2014). Talvez as exigências durante este período de mais de 30 anos fora de seu território tenham suscitado, entre os Katxuyana, uma forma de ação, resistência cultural, adaptação e de reação conscientes sobre seu patrimônio cultural. A partir do final dos anos de 1990, quando algumas famílias começaram a regressar à terra dos Katxuyana, no rio Cachorro, foi se evidenciando cada vez mais o protagonismo deste grupo em defesa de seus direitos e de seu patrimônio cultural. Exemplo disso foi a construção de um tipo de casa comunal circular de telhado cônico, denominada tamiriki. Construída entre os anos de 2009 e 2010, essa edificação foi financiada com recursos do Prêmio Culturas Indígenas. A construção de uma casa como esta ficou em desuso entre os Katxuyana pouco tempo depois de sua chegada ao território dos Tiriyó. De volta à sua terra natal, assim que abriram sua aldeia em 2003, ou talvez até mesmo antes disso, os Katxuyana decidiram também erguer esse tipo de casa que não era mais construída há décadas. A construção da tamikiri ilustra bem o empenho dos Katxuyana em torno de aspectos de sua cultura que julgam importante evidenciar entre os jovens e entre os não indígenas. Neste sentido pode ser interpretada como aquilo que denominamos de patrimônio cultural. Contudo, essa defesa consciente de seu patrimônio, ou melhor, do jeito de ser e viver katxuyana (seu kwe’toh kumu) precisa ser apreendido em um contexto ampliado, qual seja, o movimento dos povos indígenas no Brasil. Correlaciona-se ainda ao movimento das chamadas “comunidades tradicionais” e outros grupos sociais antes invisibilizados no Brasil, em defesa de seus direitos. Para Abreu (2012), vemos ocorrer no país, nas últimas décadas, a participação cada vez mais ativa dos “novos sujeitos de direito coletivo” em políticas públicas e projetos que lhes dizem respeito. Oliveira (2002) aponta que a fragmentação do indigenismo no Brasil se fez evidente com a retomada da democracia e a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Até então, o órgão público centralizador das ações do Estado brasileiro para os povos indígenas era a Fundação Nacional do Índio (Funai). Com essa fragmentação, surgiu um espaço de dialogia na relação entre povos indígenas e Estado nacional, como apontou o autor. Ações como o Prêmio Culturas Indígenas podem ser compreendidas como desdobramentos de políticas públicas voltadas para a preservação do que se convencionou denominar patrimônio cultural. Para entender o contexto sócio-histórico de ações, editais e prêmios promovidos pelo governo brasileiro, em prol da valorização das tradições indígenas, é necessário compreender seus vínculos com o que se denomina política indigenista. Historicamente, missões religiosas, inicialmente católicas e depois também protestantes, se encarregavam do trabalho de assistência junto aos índios. Com a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), durante a ditadura militar, em 1967, foi criada a Funai. Entretanto, somente depois do processo de democratização do Estado brasileiro, e-JESS. electronic Journal of Economic Sociology Studies ISSN 2237-0374
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nos anos de 1980, houve ampla discussão da questão indígena pela sociedade civil e pelos próprios índios que começaram a se conscientizar e a se organizar politicamente, participando cada vez mais das discussões de seus interesses, somando-se a eles, organizações não governamentais (ONGs) e organizações religiosas. A Constituição de 1988 mudou concepções ideológicas acerca dos povos indígenas e reconheceu a diversidade e especificidade dos milhares de índios que ocupam o território nacional. Em sua análise sobre a política indigenista brasileira no século XXI, Oliveira (2002) identifica as mudanças ocorridas em razão da fragmentação do indigenismo estatal e de sua disseminação por vários órgãos públicos, ONGs e outras instituições. Conforme expõe o autor, o que marca o indigenismo atual é sua pulverização e transformação em uma série de iniciativas semiautônomas. Simultaneamente, houve uma ascensão da autonomia indígena na forma de dialogia, forçada pelos próprios índios sobre o Estado e a sociedade nacional e internacional, por meio de seu acesso à mídia, entre outros canais de comunicação. Assim, as políticas públicas indigenistas, por oposição ao indigenismo “monolítico da Funai”, só passaram a existir nesse contexto. Segundo Oliveira (2002, p. 109-110), cada vez mais as ações dos povos indígenas procuram se estabelecer na qualidade de “interlocutores indispensáveis à formulação, gestão e avaliação das políticas públicas indigenistas.” Contemporaneamente, se por um lado existe a política indigenista oficial (formulada e executada pelo Estado), por outro, muitas ações vêm ocorrendo a partir de parcerias estabelecidas entre setores governamentais, organizações indígenas, ONGs e missões religiosas. Como consequência dessa longa e difícil luta em prol da causa indígena, uma série de políticas públicas foram criadas com esse propósito. O Prêmio Culturas Indígenas é apenas um entre inúmeros outros desdobramentos dessa trajetória. Processos como o dos Katxuyana, de valorização e defesa de seu patrimônio cultural, devem ser compreendidos nesse contexto. Assim, a reconstrução de uma casa como a tamiriki e outras ações que observamos nos projetos de etnoeducação, na escola dos Katxuyana, exemplificam as análises de Abreu (2012) e de Oliveira (2002, 2014). O caso que observamos entre os Katxuyana remete às reflexões de Abreu (2012) sobre o empoderamento de grupos sociais no Brasil e ilustra, ainda, as proposições de Oliveira (2014) sobre a promoção de uma “horizontalidade” nas relações entre os povos indígenas com o Estado ou com a sociedade civil. A CASA TAMIRIKI A mobilização dos Katxuyana pela “reconstrução” de sua cultura, expressão usada no título do projeto de construção da tamiriki, vencedor do Prêmio Culturas Indígenas (APITIKATXI, 2008), não remete a viver o passado, algo que sabemos impossível. Parafraseando Carneiro da Cunha (2009), não é possível pensar que formas culturais se mantenham inalteradas com o passar dos e-JESS. electronic Journal of Economic Sociology Studies ISSN 2237-0374
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tempos. Essa mobilização, ao contrário, indica que os Katxuyana (ou melhor, alguns deles, sobretudo os adultos maduros, apoiados na sabedoria dos anciãos e suas memórias) se ocupam com a valorização da cultura katxuyana no presente. Eles se ocupam com sua “cultura”, nos termos de Carneiro da Cunha (2009), ao falar sobre ela, ao mostrá-la aos jovens e também para mostrar a outros, indígenas e não indígenas, o “jeito de ser katxuyana”, seu kwe’toh kumu, num exercício de objetivação da cultura (Sahlins, 1997a). Contudo, a tamiriki erguida entre 2009 e 2010, resultante do prêmio, precisou da ajuda de outros. Em número insuficiente de homens adultos na aldeia e em decorrência de décadas sem colocar em prática os saberes construtivos para levantar uma casa de grandes dimensões, os Katxuyana se viram impelidos a pedir ajuda. Seus vizinhos Waiwai que constroem casas comunais circulares similares foram chamados naquele momento. Mas a casa construída ficou oktxe menho, ou seja, regular, nem boa nem ruim e foi criticada pelos velhos da aldeia por ser uma casa “modelo waiwai” e não “modelo katxuyana”. Insatisfeitos com o resultado dessa empreitada, anos depois, em 2013, os moradores da aldeia decidiram fazer outra tamiriki, de dimensão menor para funcionar como exercício de ensino-aprendizagem para os jovens adultos da aldeia. Os velhos, como certa vez disse um rapaz Katxuyana, são os “guardiães” da cultura katxuyana, são “eles quem sabem das coisas”, “eles são a nossa biblioteca” (RUSSI, 2014). Isso remete ao que Le Goff (1984) considera ocorrer entre os povos ágrafos e ao que Halbwachs (1994) explicita sobre a figura dos velhos e de seu papel como responsáveis pela manutenção da tradição e de seu ensino/transmissão aos jovens. Mas são os jovens que têm o poder, pois caberá a eles a responsabilidade de viverem e transmitirem sua própria cultura. Cientes dessa responsabilidade e motivados pelos homens maduros, os jovens participaram ativamente do aprendizado da construção da nova tamiriki, “modelo katxuyana”. Os rapazes participaram de todas as etapas de construção da recém-construída tamiriki, desde a coleta e preparação de matéria-prima à colocação da palha no telhado. Diferente da casa erguida em 2009, quando vários deles eram adolescentes, agora casados e com filhos pequenos, eles percebem a necessidade desse aprendizado. Os jovens compreenderam que, no futuro, a cultura katxuyana depende disso e conseguiram perceber que o dever de aprender com os velhos para assegurar o amanhã, é de cada um deles, estando cientes dessa responsabilidade. Portanto, eles precisam aprender, pois, no futuro, caberá a eles ensinar isso aos seus filhos. DE SUJEITOS PESQUISADOS A PESQUISADORES: OS SABERES TRADICIONAIS NOS PROJETOS DE ETNOEDUCAÇÃO Os Katxuyana têm dado continuidade a esse projeto de autovalorização cultural, ao experimentarem, entre outras iniciativas, participar de um programa de extensão universitária, voltado à formação continuada de docentes, como professores/pesquisadores em etnoeducação. e-JESS. electronic Journal of Economic Sociology Studies ISSN 2237-0374
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Trata-se do Programa Educação Patrimonial da UFF, mencionado no início deste artigo. Dele participam, de forma direta, o atual chefe da aldeia Warahatxa Yowkuru (aldeia Santidade), Mauro Makaho, na qualidade de professor em formação e os jovens da escola que estão no 2º segmento do ensino básico. Ao que parece, essa oportunidade possibilita um espaço formal de experimentação e pesquisa “etnográfica” por parte desses Katxuyana sobre seus saberes tradicionais. Para tanto, em comum acordo, estudantes da escola, professor e velhos da aldeia escolhem temas dos saberes tradicionais que desejam aprender. Divididos em grupos de gênero, como ocorre em seu cotidiano, rapazes e moças elegeram seus temas de pesquisa. Foi assim em 2012, quando os rapazes escolheram estudar práticas de caça e pesca, e as moças, a pintura corporal. Da mesma maneira, em 2013, organizados por gênero, pesquisaram diversos artefatos confeccionados por homens e mulheres . As pesquisas são inspiradas pela etnografia e seus resultados são compartilhados na escola e na comunidade. Assim, os jovens alunos e também o professor e líder da aldeia foram incentivados a registrar as etapas da pesquisa sobre saberes e fazeres tradicionais, através da escrita e do uso de novas mídias. Os registros audiovisuais são costumeiramente assistidos e compartilhados também com outros moradores da aldeia, incluindo aí os chamados “informantes”. Em muitas ocasiões, esses informantes são os anciãos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Talvez ainda seja muito cedo para supor quais os possíveis desdobramentos dessa e de inúmeras outras iniciativas nas quais os Katxuyana da aldeia Santidade estão envolvidos. Nesse momento, eles, tais como os Katxuyana que vivem em duas outras aldeias próximas dali (a aldeia Chapéu8, no rio Cachorro, e a aldeia Visina, no rio Trombetas), aguardam, com outros grupos indígenas (os Tunayana e os Kahyana), a demarcação de um território de ocupação coletiva. No entanto, sejam quais forem esses desdobramentos, os Katxuyana parecem estar consistentemente utilizando-se da autoinstrumentalização de sua cultura como forma de relacionamento com a sociedade envolvente, num processo de produção de autonomia que tende a abranger as diferentes esferas de sua vida atual. A gestão de seu próprio patrimônio cultural é apenas um exemplo disso. Nesse processo, os Katxuyana se apropriam de oportunidades, como a promovida pelo programa universitário da UFF, que motiva a prática de projetos na perspectiva da etnoeducação. Assim, eles têm logrado inserir sua cultura no currículo escolar “branco”, trans-
8 A aldeia Chapéu foi aberta pelos Katxuyana que, em 1968, migraram para o rio Nhamundá. Sobre o processo de migração do povo Katxuyana ver Frikel (1970), Grupioni (2010), Girardi (2011) e Caixeta de Queiroz e Gonçalves Girardi (2012).
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formando-o, de alguma forma, em instrumento de promoção da autonomia cultural e material9. Nesse processo, consideramos paradigmático um convite feito pelos Katxuyana a um dos autores deste trabalho, para a produção de uma cartilha de termos de parentesco katxuyana, a ser utilizada por crianças no ensino fundamental. Tendo sido criadas entre os Tiriyó, os jovens e as crianças Katxuyana tendem a guiar-se pela lógica de parentesco daqueles nas suas escolhas matrimoniais, o que gera problemas quando esses casamentos são considerados a partir da lógica de parentesco katxuyana . Ao mesmo tempo, a retomada das práticas de relacionamento, implícita na terminologia e parentesco katxuyana, favorece a criação de alianças matrimoniais com povos vizinhos da atual-antiga aldeia, contribuindo em muito para a retorritorialização dos Katxuyana em seu território tradicional, ao reativar laços sociais com os vizinhos, de acordo com o padrão tradicional katxuyana. Dessa forma, a escola é usada como instrumento de reprodução social e cultural tradicional no seu sentido mais estrito, atuando, ao mesmo tempo, como instrumento de construção de uma nova forma de relacionamento com o Estado nacional, baseada na promoção da autonomia indígena.
9 É interessante chamar a atenção para o fato de que não apenas o “produto” concreto das ações do projeto – neste caso, material didático a ser utilizado nas escolas katxuyana – é instrumento de autonomia, mas também (e principalmente) a prática: é durante a produção do material didático em si, feita por estudantes katxuyana, por meio de treinamento e suporte dos membros do projeto, que as práticas tradicionais são transmitidas aos estudantes a cargo da redação do material descritivo de sua experiência. O projeto fornece, assim, um espaço institucional para a práxis de atualização contemporânea da tradição e autovalorização do patrimônio. 10 Sobre parentesco e organização social entre ameríndios da região das Guianas, ver obra de Rivière (2001) e a coletânea organizada por Gallois (2005).
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Adriana Russi; Adolfo de Oliveira Quando a tradição (indígena) é ensinada na escola (indigena): etnoeducação como exercício de autonomia
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Os autores: Adolfo de Oliveira (UESC) Tem PhD pela Universidade de St. Andrews sobre organização social, ritual e performance Caiapó e é professor da Universidade Estadual de Santa Cruz-BA. Trabalhou com comunidades remanescentes de quilombo na Bahia, Espírito Santo, São Paulo e Pará, e com povos Indígenas no Pará, Amazonas, Alagoas, Tocantins e Bahia, tendo sido antropólogo do Ministério Público Federal e feito laudos antropológicos para uma diversidade de instituições. Trabalha atualmente com saúde Indígena no Nordeste e com cinema documentário. É coordenador do Núcleo de Cinema e Audiovisual da UESC. Adriana Russi (UFF) Arte-educadora, mestre em Antropologia (PUC-SP) e doutora em Memória Social (UNIRIO). Tem experiência em pesquisa e mediação com comunidades tradicionais (caipiras, quilombolas, ribeirinhas, indígenas) em São Paulo e no Pará. Trabalhou por breve períoso com o povo Xavante (Mato Grosso) em exposições e atividades com público escolar. Na area museológica realiza curadorias e/ou montagem de exposições temporárias no Brasil e no exterior. Desenvolve pesquisas e/ou atividades na area de memória, patrimônio cultural, artesanato e coleções etnograficas. Realiza trabalho de museologia colaborativa com o povo Katxuyana (Pará). É docente da Universidade Federal Fluminense onde coordena o Programa Educação Patrimonial em Oriximiná.
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