Tradução de O TRÁGICO (de Karl Jaspers)

July 13, 2017 | Autor: R. Alberti da Rosa | Categoria: Karl Jaspers, Trágico, Filosofia
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Piper Verlag, 1958 Dritter Abschnitt: Vollendung des Wahrseins 3. Vollendung der Wahrheit in ursprünglichen Anschauungen (Beispiel: das Tragische Wissen) S. 915-960

O Trágico Karl Jaspers Tradução: Ronel Alberti da Rosa

Sumário

INTRODUÇÃO. AS CONCEPÇÕES ORIGINÁRIAS: RELIGIÃO, ARTE, POESIA

O SABER TRÁGICO Panorama histórico/ Consciência de Ser no saber trágico e salvação sem tragédia / O saber trágico na epopéia e na tragédia / Superação do trágico na interpretação filosófica do mundo e na religião da revelação / Características fundamentais do trágico / Correntes de interpretação do saber trágico OS TEMAS TRÁGICOS NA POESIA A atmosfera trágica / Luta e colisão / Vitória e derrota / Culpa / Grandeza do homem no fracasso / A questão da verdade A SUBJETIVIDADE DO TRÁGICO Conceito de redenção de forma geral / Tragédia e Redenção / Redenção no trágico / Redenção do trágico / A metamorfose do trágico em descompromisso estético INTERPRETAÇÕES BÁSICAS DO TRÁGICO A interpretação mítica / As interpretações filosóficas / Os limites das interpretações

INTRODUÇÃO.

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AS CONCEPÇÕES ORIGINÁRIAS: RELIGIÃO, ARTE, POESIA É próprio do homem como tal lançar o olhar no fundamento da verdade. A verdade está sempre nele e para ele por meio de uma linguagem, por mais tosca e obscura que ela seja. Com o filosofar metódico, deu-se um salto. Este salto, porém, não faz com que esteja errada a consciência de verdade que antes satisfazia o homem. Aí residem as originárias concepções espirituais que, partindo da mais imemorial tradição, transmitiram ao homem a verdade na forma de imagens, ações e histórias. A força dos mitos, a autoridade das revelações e a severidade da vida são realidades. Não em forma de reflexão, mas na de fatos inquestionáveis, são dadas respostas às perguntas fundamentais – ainda que estas também nem sejam trazidas com consciência racional: porque a natureza do homem é assim como é? (o pecado original e o mito de Prometeu respondem e, ao mesmo tempo, definem a tarefa humana); como atingir a pureza de minha essência, a redenção e a paz no Ser? Cultos dos mistérios, ritos e normas de comportamento dão resposta e mostram o caminho. Na mesma época em que a filosofia inaugura o raciocínio metódico, também a linguagem daquelas primeiras concepções atinge sua maior clareza, maturidade e vigor – entre os anos 600 e 300 antes de Cristo. A filosofia, ela mesma tocada em seu âmago por estas concepções, é delas inseparável, estimulando-as e desenvolvendo-as, combatendo-as e superando-as ou assimilando-as e delas se servindo. A filosofia as vê como sua outra face, resiste-lhes ou acolhe-as em si e as confirma; finalmente, posta-se diante de algumas delas como frente a algo incompreensível, que reconhece como um outro. O constante contato com estas concepções – seja em que sentido isto se tenha dado – faz com estas se tornem um instrumento do filosofar. Estas concepções, enquanto a linguagem da verdade, são originalmente um todo abrangente, uma unidade indivisível, que dá forma e preenche a vida do homem. No decurso da história, separam-se religião, artes plásticas, poesia. Esta separação faz com que

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o idioma da verdade última separe-se, porém através de todas as partes corre uma unidade, por meio da qual a originária indivisibilidade persiste em seus laços de união.

Religião: o que se revelou na religião como fundamento e limite, eficaz como poder da comunidade e apoio do indivíduo, permanece o espaço predeterminado do filosofar e portador dos conteúdos filosóficos. Devido à polarização, assume a forma de um inimigo da filosofia, mas é, ao mesmo tempo, a resistência fecunda e penetrante. Como fundamento da própria humanidade, a religião dá forma à alma, mesmo quando esta alma abandonou a determinada forma histórica da religião tendo, com isso, abandonado a própria religião. O fim e o esquecimento da religião significaria também o fim da própria filosofia. Surgiria então o irrefletido desespero – não mais consciente de si próprio – um mero viver o momento, um nihilismo e, daí, uma superstição caótica. Com o tempo, também a ciência desapareceria. A questão fundamental do homem, o que o homem é e o que pode se tornar, o que será feito dele, não seria mais seriamente colocada nem respondida; acabaria efetivamente encontrando uma resposta em novas metamorfoses, resposta esta que não mais compreende um Dasein humano.

Artes plásticas: as artes plásticas fazem com que o visível fale por nós. Vemos as coisas da forma como a arte nos ensina a ver. Conhecemos o espaço por meio das formas que o arquiteto lhe empresta; vemos a paisagem como que concentrada por construções religiosas, moldada por intervenções, apropriada pelo uso. Apreendemos a natureza e o homem como são representados em sua essência nas esculturas, desenhos e pinturas. É como se recém a partir daí tudo ganhasse forma, reveladas sua visibilidade e sua alma até então ocultas. Devemos diferenciar entre arte como representação de um determinado ideal de beleza e arte como linguagem simbólica metafísica. Ambas são uma apenas onde a beleza é o Ser transcendente, onde este Ser é o belo, onde tudo é realmente belo porque existe. Chamamos de “grande” a arte metafísica, que, com a visibilidade e por meio dela revela o próprio Ser. Basicamente, mera técnica artística - estranha à filosofia - é a forma não transcendente da cópia, da decoração, da produção de efeitos sensoriais, na medida em que isso tudo, em vez de ser momento no metafísico, se isola.

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Poesia: é um elemento da linguagem graças ao qual todos os conteúdos são apreendidos como representações, é a totalmente abrangente comunicação do revelado. Da magia das palavras no ritual de sacrifício passando pela invocação dos deuses em hinos e preces até a representação de destinos humanos, a poesia perpassa todas as expressões de humanidade. ela é a semente da própria linguagem, a primeira obra do expressar, do reconhecer, do emocionar. É em forma de poesia que surge a primeira filosofia. Poesia é o instrumento pelo qual apreendemos o cosmos e todos os conteúdos de nossa essência da forma mais natural e evidente. Levados pela linguagem, transformamonos a nós mesmos. Imperceptivelmente, a fantasia provocada pela poesia abre em nós o mundo das representações, graças apenas ao qual somos capazes de apreender expressivamente nossa realidade.

O SABER TRÁGICO Tudo o que foi exprimido pelas concepções originárias na unidade de religião, arte e poesia forma o conteúdo global de nossa consciência. Tomemos um único exemplo deste imenso campo: a tragédia e a redenção. Existe algo de comum nas ricas variações das tragédias. Assistimos em monstruosos detalhes ao que realmente é e acontece, e o que é possível ao homem é prometido e realizado em um final tranqüilo. Há filosofia oculta em meio a estas concepções, pois elas interpretam o aparente absurdo da desgraça. Mas esta filosofia não pode ser suficientemente traduzida em complexos racionais; podemos porém, com um trabalho de interpretação, torná-la mais nítida. Nós o fazemos através da repetição das concepções originárias. Este mundo é insubstituível. Como instrumento da filosofia, ele está como que inserido nela. Mas ele se apresenta então, como a própria realização de algo que transcende a filosofia e, por meio da filosofia, novamente é alcançado como um outro. As grandes manifestações do saber trágico são em forma histórica. Elas carregam os traços de sua época no estilo, no enredo de seu conteúdo, no material das tendências. Nenhum conhecimento em forma concreta é eterno e universal. O homem tem de continuamente voltar a adquiri-lo em sua verdade. As manifestações deste conhecimento são, para nós, em sua diferença, realidades históricas. Estas diferenças e os contrastes das

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formas históricas iluminam-se mutuamente. Elas nos preparam o fundamento de nossa própria possibilidade de conhecer, bem como o espelho onde nos miramos. Por meio delas, percebemos os graus da consciência trágica, as possibilidades de interpretações do Ser através do trágico e os conteúdos fundamentais, a partir dos quais encontramos a redenção na tragédia. A partir das manifestações históricas do saber trágico, desdobra-se a sistemática das possibilidades de interpretação.

Panorama histórico

Eis as grandes manifestações do saber trágico, como se exprimiram em obras e concepções: 1. Homero – O Edda e as sagas da Islândia – Sagas dos heróis de todos os povos do Ocidente até a China. 2. Tragédia grega: Ésquilo, Sófocles, Eurípides – apenas aqui a tragédia se expressou como poesia, da qual todas as posteriores foram inspiradas ou são dependentes (passando por Sêneca). 3. Tragédia moderna em três formas nacionais: Shakespeare, Calderón de la Barca e Racine. 4. Lessing: a tragédia do iluminismo alemão: Schiller e o século XIX. 5. Outros poemas do horror com sua pergunta ao Ser: O livro de Jó – alguns dramas hinduístas (que, no entanto, nunca são inteiramente tragédias). 6. O saber trágico em Kirkegaard, Dostoiévski, Nietzsche.

As sagas dos heróis mostram a visão trágica de mundo como algo natural. Ainda não ocorre nenhum conflito do pensamento, não há ímpeto de libertação. A desgraça pura, a morte e a ruína, o poder suportá-las e a glória são os objetos. A grande tragédia surge na transição das eras (no período helênico e na modernidade) como se fosse mesmo um processo de combustão – culminando finalmente em um fenômeno estético de ilustração. A tragédia grega era parte de um culto. Era a consumação de uma luta pelos deuses e pelo sentido das coisas, pela justiça. Primeiramente (Ésquilo e ainda Sófocles), ela existia

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ligada à fé na ordem e nas divindades, em instituições básicas e válidas, fé na Polis; finalmente, em dúvida acerca disso tudo, tornou-se histórica, mas nunca ligada à idéia da própria justiça, ao bem e ao mal (Eurípides). Shakespeare, ao contrário, surge sobre um palco laico; uma sociedade de espírito orgulhoso se reconhece em personagens encenados. A humanidade se comprende em suas possibilidades e em seus perigos, em sua grandeza e em sua futilidade, no que tem de humano e de diabólico, de nobre e de rasteiro, em seu júbilo pela felicidade no Dasein e em seu horror diante dos incompreensíveis erro e aniquilamento, em seu amor, abnegação, sinceridade e em seu ódio, pequenez e cegueira – e resumindo: na indissolubilidade de sua tarefa, no último fracasso de sua realização, no contexto das ordens válidas e da inequivocamente sensível oposição de bem e mal. Calderón e Racine são expoentes da tragédia cristã. Neles, a tragédia recebe novas tensões exclusivamente suas. Em vez de destino e demônios, providência e misericórdia ou também condenação. Em vez do perguntar e do calar, ao chegar ao limite tudo é cumprido pelo infalível fundamento do além e pelo Deus que, em seu amor, tudo abarca. Em vez de intermináveis disputas pela verdade (que o poeta cumpre na seqüência de suas obras) e em vez do jogo de símbolos, a consumação da verdade está presente na consciência da realidade do mundo, em sua queda com o pecado original, e da divindade. Porém, com estas tensões, o trágico na verdade se apaga diante da verdade cristã. Metafisicamente, estas tragédias estão ligadas ao fundamento da fé cristã e, ao mesmo tempo, ampliadas; porém, comparadas a Shakespeare, são limitadas em objetos e em questões, em emoções e em riqueza de personagens, em alcance e em desenvoltura de visão. Tragicidade absoluta como o inexorável no arcabouço geral da obra existe talvez em algumas tragédia de Eurípides, e depois só em dramas modernos do século XIX. Recém aqui é atingida, junto com o descompromisso estético, a categoria do insondável.

Consciência de Ser no saber trágico e salvação sem tragédia

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A maior distância existe entre as culturas nas quais o saber trágico – e, assim, a tragédia, a epopéia e o romance como manifestação deste saber – está ausente bem como o potencial de manifestação do trágico na consciência de Ser, a qual regula a atitude diante da vida. Equivale a uma ruptura entre as épocas em nossa memória histórica quando divisamos o homem em seu saber trágico. Isto não é necessariamente um produto de culturas desenvolvidas, pode ser também primitivo: e, ainda assim, o homem atua neste saber como se ele, na verdade, recém houvesse despertado. Acontece que, em vista das situações-limite, ele se encontra inquieto, e isto o impulsiona. Nenhuma situação estável pode perdurar, pois nenhuma lhe corresponde à altura. Com o saber trágico, tem início o movimento histórico, que sucede não apenas em acontecimentos externos, mas no âmago da própria humanidade. O saber pré-trágico é, em si, circular e perfeito. Ele olha para o sofrimento do homem, sua infelicidade e sua morte. Uma tristeza profunda adequa-se tão bem a este saber quanto um júbilo profundo. A tristeza compreende-se no conhecimento do eterno ciclo de viver e morrer, de morte e ressurreição, da eterna metamorfose. O deus que morre e retorna, as festas das estações do ano como manifestações deste morrer e renascer, é a realidade fundamental. São quase universais sobre a Terra as concepções míticas da deusa mãe como doadora da vida e deusa da morte que reina sobre tudo, que tudo nutre e cuida, que a tudo ama e faz germinar, mas que também a tudo toma de volta em seu seio e desapiedadamente faz com que pereça, que aniquila em catástrofes monstruosas. Estas concepções não são ainda saber trágico, apenas saber consolador da efemeridade que sabe que está a salvo. É um saber essencialmente a-histórico. É sempre a mesma realidade. Nada é especialmente importante, tudo tem a mesma importância e, como se estivesse sempre presente, existindo total e desmedidamente como algo que é. O historicismo faz parte do saber trágico. O movimento circular é mero pano de fundo. O verdadeiro é único e se encontra em movimento progressivo. Ele é resolvido e não retorna mais. Mas o saber pré-trágico não é apenas substituído pelo saber trágico. Talvez este pretensamente apenas pré-existente possa se afirmar enquanto individualmente verdadeiro

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contra a concepção trágica fundamental. Esta, apesar de saber de toda a desgraça, permanece alheia, desde que consiga uma interpretação harmônica do mundo e uma realidade de vida consumada de acordo com esta interpretação. Isto acontecia muito na China antiga e, de forma mais pura, no período pré-budista. Toda miséria, infelicidade e todo o mal não passam de interferências passageiras, que nem têm necessidade de existir. Não há nenhum horror do mundo, nenhuma rejeição ou justificativa do mundo, nenhuma acusação contra o Ser e contra a divindade, há apenas o lamento. Não existe o desequilíbrio do desespero, apenas o sereno suportar e morrer. Não há drama sem solução nem tramas obscuras: na realidade, tudo no fundo é claro, belo e verdadeiro. Sofreremos o terrível e o pavoroso, e isto não é menos conhecido que as culturas iluminadas pela consciência trágica. Mas a disposição vital permanece serena, não irrompe nenhum conflito, nenhuma obstinação. A partir de uma profunda consciência historicista, a solidariedade para com o fundamento imemorial suporta todas as coisas, mas não se trata de buscar um movimento historicista, e sim apenas do contínuo restabelecimento do eternamente verdadeiro, que existe na ordem e no bem. Onde entra em cena a consciência trágica, perde-se algo extraordinário: uma salvação sem tragédia e uma humanidade natural, sublime, um estarem-casa no mundo e uma riqueza de concepções concretas, que na China eram reais. Na fisionomia média, já quotidiana, temos uma serena e despreocupada China ao lado de um Ocidente rabugento e perturbado.

O saber trágico na epopéia e na tragédia

Na consciência mítica, divisamos a incoerência fundamental do mundo na pluralidade dos deuses: não é possível satisfazer igualmente a todos; servir a um deles prejudica, de alguma forma, o serviço aos outros – os deuses disputam entre si, e esta disputa se reflete no destino do homem; os próprios deuses não são todo-poderosos, sobre eles, da mesma forma que sobre os homens, reina a sinistra Moira. As perguntas “Porque? De onde?” comportam, segundo a situação, muitas respostas e nenhuma resposta definitiva. A riqueza do mundo, a variedade das possibilidades humanas se comove, vai conhecer os extremos. Porém, não é com incondicional vigor que se busca a unidade do todo, daí

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também não se concentra a pergunta fundamental em um desejo incondicional de conhecimento. O saber trágico nesta forma – no caso de Homero – se realiza no prazer da concepção, no culto aos deuses, no inquestionável poder suportar e resistir. A mesma capacidade de suportar esta mesma obstinação serena diante do destino toma consciência de si no Edda e nas sagas, de forma mais pobre que em Homero, mas com mais paixão e sem medida. É como um saber trágico recém pela metade: ainda não faz diferença entre as maneiras de fracassar e o que há de mais insondável na desgraça trágica. Ainda não aspira à libertação da alma, já que esta se basta no puro poder suportar. É como um parar saltando à frente do perguntar, um agarrar o mundo como que pelo fim, em inquestionável naturalidade que, no período pré-trágico, só se separa porque nenhum idílio lhe oculta a desarmonia fundamental do mundo. Na tragédia grega, este mundo mítico continua sendo o material. A novidade é que, agora, não é mais a paz que prepondera no saber trágico: a questão é levada adiante. As perguntas e respostas se consumam na transmutação dos mitos. Só agora os mitos atingem sua plena maturidade e profundeza, mas não podem mais permanecer estáveis em nenhuma forma. O próximo poeta filósofo continua a transformá-los, até que eles se consumam no sublime processo de incineração de uma apaixonada luta pela verdade – através deste diálogo do poeta com a divindade – até que restem apenas suas cinzas na forma das ainda encantadoras mas descompromissadas imagens poéticas. As perguntas – já filosóficas e, mesmo assim, ainda de forma plenamente estética, apesar de que não filosóficas no sentido metódico racional – dirigem-se agora aos deuses: Porque é assim? O que é o homem? O que o conduz? O que é culpa, o que é destino? Qual é a ordenação do mundo dos homens, e de onde ela vem? O que são os deuses? Procura-se o caminho que leva aos deuses justos e bons, ao deus único. Nesta trajeto, porém, cada vez mais a tradição vai se desintegrando. Ela não consegue se manter diante dos parâmetros do pensamento progressivamente racional de direito, bondade e onipotência. O fim desta orgulhosa busca é o ceticismo, que, em seu caminho, continua se nutrindo de valores da tradição, estes levados à mais bela pureza.

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Todo este certificar-se, porém, na visão do poeta – consumada na sagrada festividade de Dioniso – pretende mais e produz mais que o antigo prazer na eterna representação de mundo, homens e deuses. A respeito deste prazer, disse Hesíodo (Teogonia, 98), louvando as Musas: “Assim como alguém suporta no coração novas angústias e se aflige em sua alma, e o cantor, servo das Musas, celebra em hino os feitos dos homens, dos heróis de outrora e dos serenos Deuses, os habitantes do vasto Olimpo, logo esquece ele o pesar, e nem recorda os sofrimentos: assim as asas das Deusas em dádivas os transformaram.” A tragédia quer mais: a catarse da alma. O que, porém, seria esta catarse, Aristóteles não esclarece. De qualquer maneira, seria algo que diz respeito ao ser-si-mesmo do homem. É uma abertura para o Ser, provocada pela experiência não apenas de assistir , porém de comover-se, uma apropriação do verdadeiro graças à purificação de nossa experiência de Dasein, que nos vela, turva e especialmente restringe e cega.

Superação do trágico na interpretação filosófica do mundo e na religião da revelação O saber trágico se manifesta sob estas duas formas: no saber mítico inquestionado, graças a uma visão de mundo adotada e já existente (na epopéia) e no saber mítico questionante do penetrar na divindade (na tragédia). Delas, resultam duas superações do trágico: a interpretação filosófica de mundo da Aufklärung e a revelação religiosa, ambas insuficientes. Não a polarizada certeza especulativa do Ser dos pré-socráticos e de Platão, pertencente à tragédia, mas a sensata filosofia universal - que brota da Aufklärung - das épocas pós-aristotélicas é que vai reagir ao desconhecimento atingido com o processo de criação de tragédias, por meio da desmoralização de todas as falsas idéias tradicionais de deus. É esboçada uma harmonia do todo, a partir da qual qualquer incongruência é entendida meramente como relativa desarmonia. Esta filosofia vai relativizar a importância do destino individual e enxergar no Selbstsein, no ser-si-mesmo do indivíduo algo de inabalável, que aceita e desempenha o destino do mundo apenas como um papel, sem tornar-se com ele idêntico. A última postura fundamental do saber trágico – agora roubado de seu peso -

não é nem a obstinação do herói que se afirma nem a catarse da alma

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prisioneira do mundo, e sim a apatia, a imperturbável ausência de padecimento da indiferença. Diante do saber trágico, a apatia filosófica é uma libertação insuficiente. Ela é, em primeiro lugar, um mero suportar – pode se reconhecer na obstinação heróica da era mítica, sem possuir a mesma paixão –, é pobre em conteúdo e se desmonta em um ínfimo ponto de auto-afirmação carente de conteúdo. Em segundo lugar, ela é, na verdade, dificilmente realizável para o homem. Apesar de toda sua grandeza, permanece sendo uma teoria que, na prática, fracassa na grande maioria das pessoas. Por isso o homem exige, do saber trágico e do vazio filosófico, uma libertação mais profunda. Esta é prometida pela religião da revelação. O homem quer ser redimido, e ele o será. Mas não o será por obra exclusivamente sua. O fardo da tarefa irrealizável foi-lhe retirado. O sacrifício da morte de Cristo e a mensagem do Buda estendem-lhe não apenas a mão, mas realizam - sendo que basta-lhe participar – a sua libertação. Na religião judaico-cristã da revelação, a incoerência do Dasein e do homem e tudo o que se manifesta como trágico está inserido na origem do homem: o pecado original tem sua raiz na queda de Adão. A redenção emana da morte de Cristo na cruz. As coisas do mundo enquanto tais são corrompidas, sobre o homem pesa uma culpa insuperável, antes mesmo que ele, como indivíduo, receba uma culpa. Ele faz parte de um processo único de culpa e redenção que a tudo funda; ele participa de ambos através de si mesmo e, ao mesmo tempo, não de si mesmo sozinho. Ele é culpado já pelo pecado original, e é redimido pela misericórdia. E ele toma para si a cruz quando não apenas deixa que caiam sobre ele o sofrimento do Dasein, a incoerência e o desequilíbrio, mas quando os escolhe. Não é mais uma tragédia: em toda sua majestade, refulge o brilho da translúcida beatitude da misericórdia. Vista desta forma, a redenção cristã se opõe ao saber trágico. A própria possibilidade de redenção aniquila a inexorabilidade trágica. Por isso não existe tragédia cristã verdadeira: porque, no teatro cristão, o mistério da redenção é a base e o espaço dos acontecimentos, e o saber trágico está, desde o princípio, libertado na experiência da perfeição e da salvação pela misericórdia.

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Desta forma, o trágico como tal torna-se descompromissado: comove o homem mas não o atinge. Para os cristãos, o essencial da tragédia nem pode vir à cena. A verdadeira religiosidade cristã priva-se da poesia, pois só pode realizar-se existencialmente, e não ser contemplada esteticamente. Neste sentido, um cristão não deve compreender Shakespeare: Shakespeare representa tudo, ele mostra de todos os ângulos o que o homem é. Mas a religiosidade – e ela apenas – nega-se a isto. O cristão sabe, em toda sua profunda experiência no que tange às obras de Shakespeare, que elas não lhe dizem – nem se aproximam disso – o que a fé lhe concede. Parece que só de forma indireta Shakespeare o leva – em meio aos horizontes fendidos de sua obra - através da irredenção, impelindo-o, sem o ter dito nem desejado, à possibilidade de redenção. Ao cristão escapa-lhe a substância deste saber trágico. Porém, à sua maneira, isto é – se permanece filosófico e se desdobra de forma puramente filosófica – uma forma de transcender, uma libertação dele característica, que não é compreendida pelo aspecto cristão e que perdeu seu conteúdo na apatia filosófica. Enquanto cristã, nenhuma experiência fundamental do homem é mais trágica. A culpa torna-se uma culpa felix, uma culpa feliz, que torna possível a redenção. A traição de Judas possibilita a morte de Cristo na cruz, fundamento da bem-aventurança de todos os crentes. Ainda que Cristo seja o mais profundo símbolo do fracasso no mundo, ele não é trágico, pois no fracasso é consciente, realizada, perfeito.

Características fundamentais do trágico O trágico, antes do conceito, existe como um acontecimento que mostra o horror do Dasein, mas do Dasein humano, e este nas malhas do humano em sua abrangência. O conceito de trágico, porém, acontece por obra de uma libertação do trágico, por uma espécie de purificação e redenção. O Ser se apresenta no fracassar. No fracassar, o Ser não está perdido, porém justamente aí mostra-se inteiro e firmemente perceptível. Não existe tragicidade sem transcendência. Na obstinação da nua auto-afirmação sendo vencida por deuses e pelo destino, existe um transcender: transcender rumo ao Ser que o homem realmente é e que ele, no fracassar, conhece como sendo a si mesmo.

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A consciência do trágico, tornada fundamento da consciência de Ser, chama-se atitude trágica. Devemos diferenciar a consciência da efemeridade da verdadeira consciência trágica: O homem contempla a efetiva ação rumo ao fracasso e o caráter da vida enquanto acontecimento temporalmente efêmero como ciclo da gênese e do perecer e da nova gênese. Ele avista a si próprio na natureza e uno com ela como natureza. para o homem, há aqui um segredo que o faz arrepiar-se. O que é a alma, que atravessa o tempo sabendo-se eterna, se ela, afinal, existe na finitude do seu Dasein e, como tal, de qualquer forma definha na morte? Contudo, não chamamos de trágico este fato e este segredo. A verdadeira consciência do trágico, onde o trágico, ao mesmo tempo, recém se dá, abarca não apenas sofrimento e morte, a mera finitude e a transitoriedade. Para que isso tudo seja trágico, o homem tem de agir. Só com sua própria ação é que o homem tece a trama e, graças a esta inexorável necessidade, a destruição. Não é apenas a ruína da vida enquanto Dasein, mas o fracasso de toda manifestação de perfeição. É a essência espiritual do homem que fracassa em uma imensurável riqueza de possibilidades, onde cada uma delas, em virtude de uma peculiar realização, produz e ao mesmo tempo consuma o fracasso. Com a consciência do trágico liga-se, desde o princípio, o impulso para a redenção. O rigor do trágico é o limite, junto ao qual o homem não como por si só é acolhido em uma redenção geral: ele encontra, isso sim, a redenção no ato de seu ser-si-mesmo, ao desaparecer como Dasein. Ela acontece graças ao poder do inquestionável suportar na ignorância, no puro poder de resistir, no inabalável “apesar-de”; esta é a redenção em embrião e na mais pobre conformação. Ou, então, a libertação sucede pelo ingresso na concepção do trágico como tal que, graças ao esclarecimento, tem, ele mesmo, um efeito purificador. Ou, ainda, a libertação já ocorreu antes da concepção da ação trágica, quando a vida é antecipadamente levada por uma crença à senda da redenção, e o trágico, desde o início, apresenta-se diante da concepção como um trágico superado, superado no transcender rumo ao sobrenatural, pelo abranger de todas as abrangências.

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Correntes de interpretação do saber trágico

Não é possível, de forma alguma, reduzir a uma única fórmula o sentido das tragédias que nos chegaram em forma poética. Estes poemas são o trabalho no saber trágico. Situações, acontecimentos, forças sociais, crenças e caracteres são os meios graças aos quais o trágico é mostrado na manifestação. Nos grandes poemas, não é possível realizar uma interpretação até vislumbrar o seu fundamento. Neles, só podemos falar de linhas de interpretação. Onde, graças ao pensamento, é possível uma exegese completa, o poema é desnecessário, ou, mais que isso, não se trata, em princípio, de uma verdadeira criação poética. Onde a interpretação consegue revelar linhas claras, ela aumenta a possibilidade de resgate do fundo da indecifrada concepção, impossível de ser esgotada por qualquer exegese. Nos poemas, revela-se a construção racional do poeta. Porém, quanto mais o pensamento como tal se destaca sem materializar-se em formas, mais fraca torna-se a obra. Então, quem produz a obra é a tendência filosófica, e não a força da visão do trágico. Mas os pensamentos da poesia podem ser filosoficamente essenciais. Depois de termos examinado o saber trágico em sua totalidade, nossa interpretação vai agora responder de forma mais detalhadas três perguntas: 1. Como é a objetividade do trágico? Quem forma tem o Ser e o acontecimento trágico? Como ele é pensado? A resposta será dada pela interpretação de temas trágicos na poesia. 2. Como se dá a subjetividade do trágico? De que forma o trágico se torna consciente, como acontece o saber trágico e, nele, a liberdade e a redenção? 3. Que sentido tem uma interpretação básica do trágico?

OS TEMAS TRÁGICOS NA POESIA Sem prender o trágico em uma definição, tenhamos presente as formas imediatas como as manifestação do trágico se mostram, da forma como encontraram representação e forma na poesia.

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Nossa exegese se orienta por aquilo que o poeta tinha presente em sua visão, pelo que foi dito e já interpretado pela poesia; acrescentemos a isso o que na poesia reside ou pode residir como sentido, sem que o poeta o tenha necessariamente pensado de forma explícita. Na poesia, a consciência trágica descobre a encarnação de seu pensamento: a atmosfera trágica faz com que se tornem palpáveis a tensão e a desgraça nos acontecimentos presentes ou no ser-no-mundo. O trágico aparece na luta, na vitória e na derrota, aparece na culpa. É a grandeza do homem no fracasso. Manifesta-se na vontade incondicional de verdade enquanto a mais profunda desarmonia do ente.

A atmosfera trágica

A atmosfera trágica não está ainda no passado enquanto tal, no viver e morrer, no ciclo do florescer e murchar. O olhar pode tranqüilamente descansar sobre este acontecimento, no qual o próprio observador é captado junto, e no qual ele se encontra em segurança. A atmosfera trágica surge como o horripilante sinistro ao qual somos entregues. É algo de estranho que nos ameaça inapelavelmente. Onde quer que vamos, seja o que for que nossos olhos fixem, nossos ouvidos ouvem: todos sabem que, não importa o que façamos, o que desejemos, seremos aniquilados. Esta atmosfera aparece em dramas hinduístas como visão de um mundo que é o lugar de nosso Dasein, só que ali não estamos de forma alguma em segurança, somos dela prisioneiro. É o que sucede na “Ira de Kausika”: “O mundo inteiro parece como se fosse o necrotério do tempo, servo de Shiva: o céu avermelhado do crepúsculo representa o vermelho sangue dos executados, o débil luzir das brasas das fogueiras é o baço disco solar; as estrelas, jogadas como ossos humanos; e a Lua clara semelha uma caveira pálida.

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Atmosferas de horror preponderam em algumas obras de Breughel, de Hieronymus Bosch, no inferno de Dante. Ali, porém, esta atmosfera está em primeiro plano. Para algo mais profundo, temos que procurar, mas nada encontramos sem atravessar este terror. Na tragédia grega, a atmosfera trágica não é uma disposição geral de mundo, ela se refere à ação que está acontecendo, às personagens humanas, mais ou menos como a tensão que, antes de determinada ação e de um acontecimento em especial, tudo perpassa e aponta para a desgraça - ainda não se sabe qual. Algo assim incomparavelmente grandioso encontramos no Agamenon de Ésquilo. A atmosfera trágica assume as muitas formas do assim chamado pessimismo e de suas concepções de mundo, seja no budismo como no cristianismo, em Schopenhauer ou em Nietzsche, no Edda ou nos Nibelungos.

Luta e colisão

Verdade e realidade se separam. Em vista desta separação, complemento tem lugar em sociedade, e luta tem lugar em colisão. Surge para a consciência trágica do poeta a pergunta: quem participa da luta, o que realmente colide. A luta representada no poema é, de forma imediata, uma luta entre humanos ou uma luta do homem consigo mesmo. Interesses excludentes do Dasein, deveres, propriedades de caráter e impulsos estão lado a lado na luta. Uma análise psicológica e sociológica parece tornar estas lutas compreensíveis como realidades. Contudo, para o poeta que revela o saber trágico, todas essas realidades não passam de material. Neste é mostrado o que realmente está em luta. Ao mesmo tempo, a luta é compreendida como interpretação, seja pelos próprios personagens seja pelo poeta e, através dele, pelos espectadores. Estas interpretações da luta são, elas mesmas, realidades. Pois é deste significado que parte o mais poderoso ímpeto. O acontecimento da tragédia é uma revelar-se deste significado. Estas interpretações que se consumam na própria poesia são imanentes ou transcendentes. O trágico é imanente, por exemplo, como luta do indivíduo contra o universal (1) ou como luta de princípios historicistas do Dasein sucedendo-se em ordem cronológica (2). É transcendente uma luta entre homens e deuses (3) ou uma luta de deuses entre si (4).

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1. O individual e o universal: o indivíduo se opõe às leis, normas e necessidades universais; ele é atrágico como simples arbítrio contra a lei, é trágico como sendo ele mesmo uma exceção verdadeira contra a norma. O universal concentra-se nos poderes da sociedade, em postos, ordens, ofícios (tragédia da sociedade). Ou se concentra no interior do caráter humano enquanto exigência de leis eternas, que existem contra as forças e traços fundamentais dentro deste mesmo indivíduo (tragédia do caráter). A maior destas interpretações é, poeticamente, inerme. É verdade que forças meramente reais do Dasein e valores meramente abstratos chegam a propor uma problemática que pode ser desenvolvida racionalmente, mas não se mostram como formas explícitas em visões arrebatadoras da profundeza do Ser. sua transparência esgota o assunto. Se falta a infinitude do inapreensível, no final resulta apenas miséria, e não uma tragédia a ser representada. Esta maneira se adequa apenas a modernas tragédias desde a Aufklärung. 2. Princípios historicistas do Dasein em luta entre si: uma concepção históricofilosófica total vê a metamorfose dos estados humanos em uma sucessão coerente de princípios historicistas do Dasein, estes determinantes para o estado geral, as formas de ação e os tipos de mentalidade. Elas não se sucedem subitamente. O antigo continua a viver, enquanto o novo está se desenvolvendo. O irrompimento impetuoso do novo vai, num primeiro momento, fracassar diante da constância e da coerência ainda eficaz do antigo. A transição é o lugar do trágico. Segundo Hegel, os grandes heróis da história são figuras especialmente trágicas, nas quais a nova idéia se incorpora pura e incondicional. Eles nascem envoltos em brilho refulgente. O que eles estão realmente trazendo ainda não é, a princípio, percebido, até que o velho intui vagamente o perigo e, a partir daí, todas as suas forças se concentram visando aniquilar o novo na forma de seus mais poderosos representantes. Seja Sócrates ou César, a primeira personagem triunfante do novo princípio é, ao mesmo tempo, a vítima na fronteira entre as eras. O velho tem seu direito, pois ele ainda está lá, ele vive e se mostra em sua rica e acabada realização de vida, mesmo que a semente da ruína já tenha encaminhado sua morte. O novo tem seu direito, mas este ainda não está protegido pela ordem tornada realidade de um estado social e por uma cultura; ele é ainda provisório como que em uma sala vazia. Mas o que o velho, em um último espasmo

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de concentração de suas forças, consegue destruir, é apenas o herói, a primeira grande manifestação do novo. As tentativas subseqüentes, não mais trágicas, terão sucesso. Platão ou Augusto são os brilhantes vencedores, os que realizam, com obras que mudam o mundo, os que arquitetam um futuro – eles mesmos só vivem graças ao primeiro herói, que foi a vítima. Aqui, trata-se de uma interpretação histórico-filosófica que, em que pese a especulação permanecer imanente, ainda consubstancia em uma analogia para com a demonização as totalidades irreconhecíveis no agir. 3. Homens e deuses: a luta ocorre entre homens tomados um a um e as “forças”, entre homens e demônios. Estas forças são inapreensíveis. Se o homem quiser apreendê-las, remotamente entendê-las, elas se esfumam. Elas estão presentes e ao mesmo tempo não estão. O mesmo deus é prestimoso e malvado. O homem não sabe. Ignorante e inconsciente, ele torna-se presa dos poderes aos quais queria escapar. O homem se revolta contra os deuses, como Hipólito, o jovem e casto servo de Ártemis, contra Afrodite. Ele cai em luta com o mais forte. 4. Deuses entre si: esta luta é uma colisão dos poderes, uma colisão dos próprios deuses; o homem é nada mais que um joguete destas lutas, ou é cenário e seu meio; mas a grandeza do homem é justamente tornar-se este meio, que é quando ele ganha alma e se torna idêntico aos poderes. Na Antígona de Sófocles, tais poderes subterrâneos que lutam entre si são os deuses ocultos, de origem ctônica e política. Contudo o fator decisivo nas ações dos homens são os combates dos deuses: isto fica evidente - e mesmo em destaque - nas Eumênides, de Ésquilo. No Prometeu acorrentado, estes combates são representados como tal inclusive sem intervenção humana. Nas concepções trágicas, observamos combates a todo instante. Mas o combate é trágico por ser combate? Se não, por obra do quê torna-se trágico um combate? É indispensável continuarmos a examinar a concepção trágica.

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Vitória e derrota

Quem, ou o quê, vence na tragédia? homens e forças encontram-se em rota de colisão. Na decisão, parece ter sido tomada uma posição a favor do vitorioso. Quem é derrotado não tem razão. Mas isto não confere de forma alguma. Podemos apontar que no trágico, isso sim, aparecem os seguintes aspectos: a) A vitória não está no que afirma o Dasein, mas no derrotado. Ele vence na derrota. O vitorioso, por meio de uma vitória efêmera e ela mesma ilusória, é inferior. b) É o universal que vence, a ordem do cosmo, a ordem moral, a vida universal, o atemporal – no reconhecimento deste universal, porém, reside ao mesmo tempo uma censura: o universal é relativo ao caráter, de forma que se torna necessário o fracasso da grandeza do homem que a ele se opõe. c) Na verdade, não há vencedor. Ao contrário: tudo é discutível, tanto o herói como o universal. Diante do transcendente, é tudo finito e relativo, digno de ser aniquilado, tanto o indivíduo com o universal, a exceção e a regra. O homem extraordinário e a nobre lei: ambos têm seus limites, que é onde fracassam. O transcendente vence na tragédia – ou também não vence, pois ele fala apenas através do todo, mas não domina e não se submete, porque simplesmente é. d) Na vitória e derrota, no processo de uma solução, funda-se uma ordem nova mas, de sua parte, historicista, e que, num primeiro momento, é a que tem validade para o saber trágico. A posição do poeta trágico determina-se pelo conteúdo que ele faz brotar da vitória e da derrota e de sua solução.

Culpa

O trágico é entendido como conseqüência da culpa e como a própria culpa. A derrota é expiação da culpa. O mundo, entretanto, está cheio de derrotas inocentes. O mal oculto aniquila na invisibilidade, ele age de onde ninguém o ouve; nenhuma instância no mundo fica sabendo (como, no calabouço de um castelo, um homem solitário é torturado até a morte). Homens morrem como mártires sem serem mártires, basta que ninguém tome seu testemunho e

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nunca se saiba deles. Os tormentos e a ruína dos indefesos acontecem sobre a Terra todos os dias. Ivan Karamazov fica ao máximo indignado diante do bebê que, na guerra, é assassinado pelos turcos para sua diversão. Nada desta realidade horripilante e de partir o coração é trágica, desde que a desgraça não seja expiação de uma culpa e não tenha relação com o sentido da vida. Mas a questão da culpa não se restringe à ação e à vida do indivíduo humano: ela se refere à humanidade como um todo, à qual cada um de nós pertence. Onde está a culpa nesta desgraça inocente? Onde está o poder que arruína inocentes? Quando os homens entenderam esta questão, surgiu também a noção de cumplicidade. Todos os homens são solidários. A razão disso é a raiz comum de sua origem e o seu objetivo comum. Um sinal disso – não uma justificativa – é a sua perplexidade diante da idéia que, para uma inteligência finita, apresenta-se como absurda: sou culpado do mal que acontece no mundo se não fiz tudo o que pude, até o sacrifício de minha vida, para impedi-lo; sou culpado porque estou vivo e continuarei vivendo enquanto isso acontece. Dessa forma, todos têm parcela de culpa pelo que acontece. Falaremos de culpa, então, no sentido mais amplo de uma culpa do Dasein pura e simplesmente, e no sentido mais restrito de uma culpa desta ação que é destinada a cada um. Onde a própria culpa não se limita às ações injustas concretas de um indivíduo, porém é considerada de forma mais profunda, no fundamento do Ser do Dasein, aí o sentimento de culpa é mais abrangente. As formas de culpa, como elas se mostram ao saber trágico, são, portanto, as seguintes: Primeiro: O culpado é o Dasein. Culpado, num sentido mais amplo, é o Dasein enquanto tal. O que Anaximandro já havia pensado, retorna – ainda que com um sentido bem diverso – em Calderón: a maior culpa do homem é ele ter nascido. Isto se expressa também pelo fato de, através do meu Dasein enquanto tal, eu causar o mal. A ilustração para tal é o pensamento hinduísta: a cada passo, a cada respiração, eu aniquilo minúsculos seres vivos. Não importa que eu faça algo ou nada faça, com meu Dasein, limito o Dasein de outros. Tanto no sofrer com no executar da ação, estou entregue à culpa do Dasein. a) Um Dasein determinado é culpado em sua origem. Eu mesmo, na verdade, desejei tão pouco o Dasein quanto o próprio Dasein. Contudo, sem vontade, sou culpado,

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porque eu sou eu, eu que tenho esta origem. É a culpa na mácula pela linhagem culpada de meus antepassados. Antígona nasce à revelia da lei (como filha de Édipo e de sua mãe) – nela age a maldição da linhagem - , mas esta sua exclusão da norma relativa à descendência é, ao mesmo tempo, motivo de especial grandeza e humanidade: ela detém o saber mais seguro e inabalável acerca da lei divina; ela morre porque é mais que os outros, porque sua exceção é verdade. E ela quer morrer; para ela, há redenção no morrer; em todo o processo de seu agir, ela está de acordo consigo mesma. b) O caráter respectivamente determinado é a culpa do Sosein, o ser-assim. O próprio caráter é um destino – desde que eu me separe do meu caráter, como se eu estivesse diante dele. O que eu sou como espécie infame, como fonte de maus desejos, como teimosa obstinação de minha ruindade: nada disso foi desejado por mim e nem fui eu que criei. Mas sou disso culpado. Desta culpa resulta meu destino, se vou morrer contra a vontade, irredimido, ou se fracassarei ao converter-me, superando minha linhagem de origem mais baixa, em virtude de que renego o que fui sem chegar a ser o que desejaria. Segundo: A ação é culpada. Há, na ação que executo como uma ação determinada, uma culpa no sentido restrito, e isto porque ela é livre para não precisar ocorrer e, mesmo, poderia ocorrer de outra forma. a) A ação culpável é desrespeito à lei por arbitrariedade; é teimosia consciente contra o universal sem outro motivo senão a própria teimosia; é conseqüência de ignorância culpável, de transposição semi-consciente e encobrimento dos motivos. Aqui, não se trata de outra coisa senão da ruína da infâmia e do mal. b) diferente é a culpa da ação que se revela ao saber trágico. O fracasso é conseqüência de uma ação que, enquanto moralmente necessária e verdadeira, resulta claramente da origem da liberdade. O homem não pode escapar da culpa agindo de forma certa e verdadeira: a própria culpa tem um caráter de inocência. O homem a aceita, não foge à culpa, ele a assume, não por obstinação teimosa, porém pela verdade que tem de fracassar em sacrifício.

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Grandeza do homem no fracasso

O saber trágico não tem como aprofundar-se sem ver o homem maior. O fato de não ser Deus faz com que o homem seja pequeno e pereça; sua grandeza é levar aos extremos as possibilidades humanas e poder perecer consciente nestas mesmas possibilidades. Daí ser essencial, no saber trágico, de que o homem sofre e porque fracassa, o que ele assume, em vista de quais realidades e em que formas ele abandona o seu Dasein. O herói trágico – o homem elevado – é ele mesmo no bem e no mal, realiza-se no bem e aniquila-se no mal, e nos dois fracassa enquanto Dasein por obra das conseqüências, sejam estas do verdadeiro ou do suposto absoluto. Sua resistência, sua teimosia, sua audácia o impelem à “grandeza” do mal. Sua capacidade de suportar, seu “apesar de”, seu amor o conduzem ao bem. Ele sempre se eleva pela experiência de situações limite. O poeta vê este herói trágico como portador de uma transcendência que ultrapassa o Dasein, como portador de um poder, de um princípio, de um caráter, de um demônio. A tragédia mostra o homem em sua grandeza além do bem e do mal. O poeta vê como Platão: “Pensas que grandes crimes e a mais completa inquietude se originam de uma índole infame, e não, muito mais, de alguém bem-dotado,... enquanto que uma natureza fraca nunca poderá ser autora de algo grande, para o bem nem para o mal?” Das mais bem dotadas naturezas “saem tanto aqueles que causam as maiores desgraças aos Estados e aos indivíduos, como seus maiores benfeitores... De uma índole mesquinha, pelo contrário, não sai nada de grande, nem para o indivíduo nem para o Estado.”

A questão da verdade

Há tragédia quando cada um dos poderes que colidem é verdadeiro por si. A dissociação da verdade, ou a não unidade da verdade, é um achado fundamental do saber trágico. Por isso vive na tragédia a pergunta: O que é verdadeiro? E, na seqüência: Quem está com a razão? No mundo, vence a justiça? Vence a verdade? O processo da tragédia é a

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revelação da verdade agindo em tudo e, ao mesmo tempo, a limitação desta verdade, sendo, assim, a revelação da injustiça em tudo. Existem, entretanto, algumas tragédias (como Édipo e Hamlet) onde é o próprio herói quem pergunta pela verdade. A possibilidade de verdade torna-se tema e, com isto, torna-se o perguntar pela possibilidade, pelo sentido e pelas conseqüências do saber. Ressaltemos agora, destas duas inesgotáveis tragédias, este traço fundamental:

Édipo

Édipo é o homem que quer saber. Ele é o arguto e inteligente decifrador de enigmas que venceu a Esfinge. Por meio disto, ele tornou-se senhor de Tebas. Ele é, então, o homem que não está disposto a aceitar mistificações, é o homem que traz à luz o que quer que tenha cometido de terrível. Isto ocasiona sua ruína. Ele é consciente do bem e do mal de sua procura, e abraça a ambos porque quer a verdade. Édipo é inocente. Faz tudo o que pode para não cometer as ações más – parricídio e bodas com a mãe - que lhe foram vaticinadas pelo oráculo. Ele evita o país daqueles que toma por seus pais. Então, sem saber, em um outra país, ele mata seu pai verdadeiro e casa com sua mãe. “Nada disso fiz por vontade minha.” “Cometi-o inconsciente, e, pela lei, inocente”. A tragédia representa como Édipo, o senhor de Tebas, tentando combater a peste, de início inocentemente procura, em seguida horrorizado pressente, finalmente inexorável revela. Édipo ouve do oráculo: para afastar a peste seria preciso expulsar o assassino de seu pai, o qual encontra-se ainda no país. Mas quem é o assassino? O adivinho Tirésias é perguntado e não quer responder:

Ai! Terrível é ser sábio onde não existe recompensa para o saber!... Não passam todos de tolos, não revelarei nada, para que não tenha que revelar tua desgraça... Édipo insiste, insulta-o, força-o a falar e ouve: ele próprio é o criminoso que conspurcou o país. Édipo, horrorizado por esta impossibilidade, zomba do oráculo –

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astucioso e que não merece confiança – e agarra-se a seu próprio saber, racionalmente fundado, graças ao qual ele – e não Tirésias – pôde vencer a Esfinge. Realizou esta façanha “acertando pelo pensamento, e não guiado pelo vôo dos pássaros”. Mas o oráculo, agora irritado ao máximo, dá a entender a terrível verdade por meio de perguntas: Então falarei, já que zombas de minha cegueira: tens a visão e, vendo, não enxergas o quanto caíste... De quem descendes, sabes isto? Édipo, então, põe-se a procurar. Interrogando sua mãe, entende com clareza: querer saber, esmerar-se na busca e no entendimento – e, mesmo assim, inconsciente, cometer o que há de pior – onde vida e felicidade prosperam – até o saber por completo destruí-las; eis o embricamento de verdade e vida, que não se desata:

Quem queira dizer que um demônio feroz me enviou isso tudo, não teria razão? Horrorizado em conhecer toda a verdade, ele deseja a morte em vez de ouví-la definitivamente:

Que eu possa desaparecer da visão dos mortais, antes de ser forçado a enxergar que a horrível vergonha desta desgraça pesa sobre minha vida! Jocasta tenta, em vão, reconduzí-lo à ignorância sem questionamentos, que lhe devolveria a possibilidade de viver:

O que tem a temer o homem que é governado pelo acaso, sem a guia dum olhar seguro que o previna? O melhor é que viva sem aflição, como puder. Por isso, não teme o casamento com tua mãe! Pois, em sonhos, muitos homens já se viram em bodas assim; e quem com isso não se importa melhor agüenta o fardo desta vida. ...larga desta procura! Mas nenhum discurso consegue demover Édipo de levantar o véu da verdade, depois que já encontrou as pistas:

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Tenho de olhar sem véus.

Quando se dá conta de tudo, arranca-se os olhos. Doravante olharão para a noite, já que nunca enxergaram:

Nem o horror que suportou, nem o que cometeu. O coro, porém, refere o desenlace à totalidade da existência humana – a vida é loucura, e fúria destruidora é ruína:

Ai, raças humanas! Viveis na luz, e mesmo assim Vos prezo tanto quanto o nada! Pois qual dos mortais Leva uma felicidade maior Que a parcela que a loucura lhe concede, Até afundar na demência? Advertido por tua horrível sorte, Por teu infeliz destino, Pobre Édipo, descreio Em felicidade sobre a Terra. Édipo, com sua vontade de saber e seu inteligente raciocínio, perde-se sempre por sendas indesejadas. Ele cai nas garras da desgraça do saber que ele nem imaginava:

Tu, desgraçado pela inteligência e pela sorte!

No fracassar, porém, esta vontade incondicionada de saber e este incondicional tomar-para-si são uma verdade diferente. A Édipo, desgraçado pelo seu saber e pelo destino, liga-se, por vontade divina, um novo valor. Seus restos mortais trazem a paz à terra onde está descansando. Os homens prezam o morto e honram seu túmulo. Consuma-se nele mesmo uma reconciliação interna e, no andar das coisas, a reconciliação acontece porque seu túmulo é doravante santificado.

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Hamlet Um crime perfeito foi cometido. O rei da Dinamarca foi assassinado pelo seu irmão que, em seguida, subiu ao trono e desposou a viúva da vítima. Isto foi revelado, sem testemunhas, por um fantasma, somente a Hamlet, o filho do rei assassinado. Ninguém com exceção do próprio criminoso, o rei, sabe do crime. Da forma como as coisas estão na Dinamarca, ninguém acreditaria em assassinato, dizem a Hamlet. O fantasma, por ser um fantasma, não serve de forma alguma a Hamlet como testemunha válida. O fato mais importante de todos não pode ser provado, e, mesmo assim, é sabido quase que com certeza por Hamlet. A vida de Hamlet, graças a esta ligação, recebe como única missão provar o impossível e, uma vez provado, agir. O drama em sua totalidade é a procura de Hamlet pela verdade. A verdade, contudo, não é somente a resposta à questão isolada da prova do crime – ela é mais: o mundo inteiro está de uma forma tal que foi possível que isso acontecesse, que pôde permanecer oculto e que agora escapa à revelação. No instante em que Hamlet compreende sua missão, ele sabe também:

O tempo saiu dos eixos: maldição e horror Que eu tenha vindo ao mundo para endireitá-lo! (I, 5) Quem sofreu o que Hamlet sofreu – quem sabe o que ninguém sabe e, ainda assim, não o sabe com certeza -, a este o mundo inteiro mostra-se novo e diferente. Ele guarda em si o que não pode contar. Todo homem, toda situação, toda lei se prova pela resistência, resistência esta que se torna um meio para ocultar a verdade, meio ele mesmo falso. Tudo é frágil. Até os mais bem intencionados fracassam, cada um a seu modo (Ofélia, Laertes). “Ser honrado significa – neste mundo do jeito que está – ser um eleito entre dezenas de milhares” (II, 2). O saber e o querer saber de Hamlet o separam do mundo. Estando no mundo, ele não consegue estar de acordo com ele. Hamlet interpreta o papel do demente. No falso mundo, a demência é a máscara que lhe possibilita não ser hipócrita com seu caráter, não fingir respeito onde ele não o tem nenhum. Na ironia, ele pode ser verdadeiro. O que diz – ambíguo para todos -, verdade ou não, ele consegue ocultar sob o manto da loucura. O demente é o papel adequado, que ele escolhe porque a verdade não permite nenhum outro.

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No momento em que Hamlet se dá conta de seu destino ímpar por estar excluído e, em seu abalo, entende de súbito tudo o que está acontecendo, fala a seus amigos, dando adeus a qualquer possibilidade de uma existência humana serena e, ao mesmo tempo, ocultando esta despedida: Seguis o que chamamos de ofício ou natureza – Pois cada homem tem ofício e natureza, Sejam elas quais forem -, eu, pobre de mim, Vede, vou sair para rezar. (I, 5) Mas a máscara é apenas um papel a ser interpretado. Hamlet tem de assumir um papel real, o de buscar a verdade em um mundo radicalmente inveraz e o de vingador do crime cometido. E este papel não pode ser assumido de maneira direta, indisfarçada. Hamlet tem que suportar o tormento da tensão entre sua natureza e o papel que lhe foi atribuído, de forma que não consegue mirar com nitidez a si próprio, mas como se, apanhado em flagrante, também devesse acusar. Só a partir daí conseguimos entender o julgamento que faz de si mesmo. Em algumas interpretações, Hamlet foi considerado indeciso, nervoso, hesitante e descuidado. Várias mortificações parecem confirmá-lo:

E eu, Um patife idiota e sem caráter, Me esgueiro como um João sonhador... (II, 2)

O saber faz-nos a todos covardes; A veia inata da decisão Se enferma da palidez dos pensamentos, E empresas cheias de ímpeto e decisão, Exiladas desta forma pelo hesitar, Perdem aí o nome de ação... (III,1)

Como a todo instante me acusa e atormenta A morosa vingança!... ... ou será uma dúvida horrível, que com exímia ciência trama a saída – um pensamento que, examinado em detalhe, possui apenas um quarto de verdade e sempre três quartos de covardia – não sei por que razão ainda vivo, para dizer:

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“Isto tem de acontecer”, já que disponho de razão, vontade, forças e meios para fazê-lo. (IV, 4)

Na verdade, Hamlet tem de aparentar inércia, sempre ele encontra um motivo para não agir. E ele apresenta-se desta forma a si mesmo. Pronuncia cada uma das palavras citadas para animar-se a agir. Mas este é o traço fundamental da tragédia: que Hamlet esteja sempre ativo visando a verdade e a ação verdadeira, e que suas razões para hesitar sejam total e absolutamente justificadas justamente em relação à medida real do verdadeiro. A situação a que o destino o forçou resulta nesta aparência de fracote paralisado pela reflexão. Hamlet não é, de forma alguma, covarde ou indeciso. Muitas e muitas vêzes revelase o contrário:

Minha vida não vale um alfinete. (I, 4)

Na verdade, sempre que entra em cena ele se arrisca de forma arrojada. Tem presença de espírito, toma decisões compatíveis num piscar de olhos (por exemplo, no tocante a Rosenkranz e Güldenstern). Ele é superior a todos, é valente, esgrima com o florete tão bem como com suas tiradas. Não é seu caráter que o paralisa. O que o faz hesitar é apenas a situação de homem que sabe e, ao mesmo tempo, não sabe – com a força segura de enxergar até o fundo. Quando, em um momento de afeto exacerbado, seu temperamento o domina por um instante e ele, pensando trespassar o rei, mata Polonius, Hamlet não está de forma alguma de acordo com sua ação, mesmo que o morto tivesse sido o rei. Pois o sentido de sua missão é que fique manifesto publicamente o que o rei cometeu, e não apenas que ele seja morto como vingança. Se quisermos medir pelo ímpeto drástico e cego do mediano homem “decidido”, então Hamlet não age – pelo menos não em irrefletida espontaneidade: ele está como que prisioneiro do saber e da consciência de seu não saber, ao passo que os homens que são pura decisão estão verdadeiramente presos na estreiteza de suas ilusões, com suas vigorosas afirmações, sua obediência cega, seus ataques irrefletidos, sua força brutal. Só um entusiasmo obtuso por esta culpa drástica e espontânea do homem passivo no ser-si-mesmo poderia querer acusar Hamlet de inércia.

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O contrário disto é verdadeiro. No momento em que compreende sua missão, Hamlet diz:

Meu destino chama E enrijece a menor veia deste corpo Como se fossem tendões do leão de Neméia. (I, 4)

A estas palavras ele permanece fiel até o fim, até os acontecimentos de sua rápida decisão na luta com Laertes, quando encontra a morte. Em cada nuance, esta tensão da ânsia mais ardente e de sacrifício ativo movimenta-se para um objetivo; só uma vez, na morte de Polonius, é interrompida por uma ação cega do afeto que não chegou a ser detida com plena lucidez. Mas que o agir e a máscara enquanto tais não representam toda a verdade, e que esta só se realiza em ligação com sua revelação ao conhecimento de todos – para onde se dirige sua vontade – é o que atestam as últimas palavras de Hamlet moribundo a Horácio, que quer morrer com ele:

Que nome mais ofendido, amigo, Se tudo permanecer assim oculto, viverá depois de mim! Se alguma vez me acolheste em teu coração, Exila-te agora da felicidade, E aspira com coragem neste mundo áspero, Para evitar destino como o meu. (V, 2) Pode ser que o destino de Hamlet, indissoluvelmente ligado ao desejo incondicional de verdade, não remeta ao justo, ao verdadeiro e ao bom em si. Finda em silêncio. Ainda assim, são sugeridos alguns pontos que, mesmo que não sejam a verdade em si, têm confirmação no processo do destino de Hamlet – não para ele, mas a partir dele para outros. É seu sim no mundo como afirmativa de homens que, na tragédia, como contraste que deles faz parte, elevam novamente suas excepcionais natureza e destino em uma altura quase insuficiente. Horácio é ligado a Hamlet por ser seu único amigo: homem sincero e leal, capaz de suportar e disposto a morrer. A ele Hamlet pode dizer:

Desde que minha cara alma fez-se senhora

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De suas escolhas, e distinguiu entre os homens, Ela te escolheu. Pois tu estavas como se não sofresses, enquanto sofrias; um homem que indiferente aceita bens e males do destino. Abençoado quem revela tal mistura de sangue e julgamento, e daí jamais ser flautim com que a Fortuna brinca. Mostrai-me o homem que não é escravizado Por suas paixões, e eu quero guardá-lo No fundo do coração, sim, no coração do coração, Assim como eu te guardo. Mas, agora, basta disso. (III, 2) Horácio é unido a Hamlet pela natureza e pelo caráter. Mas a missão e o destino conduzem Hamlet pela senda absolutamente solitária de uma experiência fundamental que ele não pode compartilhar com ninguém. Fortimbrás é o homem que vive sem questionar na despreocupada ilusão da realidade do mundo e agindo em relação a ela. Ele não tem aflições. Ele respeita a honra. Depois da morte de Hamlet, declara simplesmente:

No que me diz respeito, com dor abraço minha sorte; Tenho antigos direitos sobre este reino, Que, para minha vantagem, convém ora lembrar. (V, 2) Ele se aproveita do que ocorreu; respeita porém, com leve horror, o destino do morto, e, ordenando que se lhe prestem as maiores homenagens, confirma uma vez mais a condição de nobreza de Hamlet, como ele ter-se-ia mostrado ao mundo sobre o trono da Dinamarca:

. . . pois ele teria, se ao trono houvesse subido, certamente se mostrado um grande rei. (V, 2) Fortimbrás, este realista ignorante e inconsciente de sua ignorância, pode viver. Ele tem a força finita, tolhida pelos desígnios naturais de sua condição, nada adivinhando do desconsolo do Dasein finito. Contudo, para os propósitos finitos do mundo, ele recebe a anuência de Hamlet, o que sabe: “ele tem meu voto de moribundo” (V, 2).

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O quanto, porém, é limitada em si e falsa uma tal vida votada à honra - apesar da nobreza de Fortimbrás - já foi mostrado antes, quando Hamlet se mede com Fortimbrás:

. . .ser verdadeiramente grande Não significa bater-se por grandes causas, Grande é quem luta até por uma palha, Quando em jogo está a honra... ...vejo, envergonhado, vinte mil homens prestes a morrer, que por um simples capricho, por vaidade, marcham para o túmulo como se para o leito fossem... (IV, 4) Hamlet não pode ser Horácio nem Fortimbrás. Será que lhe falta qualquer possibilidade de realização? No horror da questão da verdade que ora se apresenta parece não haver para ele outra realização que não a negativa. Uma única vez, porém, o poeta deixa a Hamlet, por um instante, uma possibilidade própria de sua realização – é quando ele escreve confiante a Ofélia:

Duvida da luz do sol, Duvida da luz das estrelas, Duvida que a verdade possa mentir, Só não duvida do meu amor. (II, 2) Hamlet sente dentro de si, em uma dimensão absoluta, algo de inabalável, algo que é mais que a verdade, mas que – e isto é o trágico nesta tragédia – também pode enganar em cada forma que assume, mas que Ofélia rejeita. A chance de Hamlet mergulha na mais terrível ruptura de sua alma. O caminho da verdade de Hamlet não tem redenção. É um âmbito da ignorância, um constante tatear dos limites que hospeda seu destino. Além do limite há o nada? Temos veladas insinuações de que os limites não prenunciam o nada, e sim que parecem conter o todo: Hamlet recusa a superstição – porém não pela clareza de seu saber, mas pela confiança em um algo indistinto que a tudo abarca: “Zombo de todos os preparativos: existe uma providência que zela até pela queda de um pardal. O que acontece agora

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não acontece no futuro... Estar em alerta é tudo. Já que nenhum homem sabe O que deixa, que importa deixá-lo antes?” (V, 2) E, voltando-se de forma mais incisiva à ação concreta: Faz-nos entender Que o desatino por vêzes nos ajuda, Quando planos profundos fracassam; e isso nos ensina Que uma divindade dirige nossos objetivos, Assim como nós mesmos também os afastamos. (V, 2) Não é o nada, mas a transcendência que torna-se perceptível na forma como Hamlet descreve sua ignorância:

Existem mais coisas entre o céu e a terra Do que pode sonhar nossa vã filosofia, Horácio. (I, 5) A postura do ignorar parece cumprir-se de maneira incompreensível, quando o fantasma que aparece a Hamlet recusa-se a dizer mais: Porém, esta descrição da eternidade Não é para ouvidos de sangue e carne. (I, 5) E nas palavras de Hamlet: O resto é silêncio. (V, 2)

Depois de toda a reserva, o toque final é dado indiretamente pela fala emocionada de Horácio para o morto: Aqui parte um nobre coração – Boa noite, meu príncipe! E que os anjos cantem para teu descanso! (V, 2) Shakespeare não tratou assim nenhum de seus heróis moribundos. Hamlet – comparado aos sábios estóicos, aos santos cristãos, aos eremitas hindús – não é um personagem que expresse uma filosofia de vida difundida. Mas Hamlet é único enquanto homem nobre, indissuadível em sua ânsia de verdade e grandeza humana; ele atira-se

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totalmente no mundo, não foge dele – ao contrário, por ele é excluído, é o homem em sua entrega absoluta ao destino, em seu heroísmo sem Pathos. É a situação do homem, a representada nas equações do drama de Hamlet. Podemos encontrar a verdade? É possível viver com a verdade? À esta pergunta responde a situação do homem: a força da vida brota da cegueira, na crença no mito e em seus substitutos feitos de pretenso conhecimento, em indubitabilidades, em restritivas inverdades. A questão da verdade na situação humana propõe uma tarefa inexeqüível: A verdade absolutamente revelada paralisa – se, como em Hamlet, um heroísmo inusitado não for capaz, sem disfarce, de, em meio ao constante movimento da alma abalada, encontrar o caminho. A reflexão ( a consciência) enfraquece, se, na claridade, não lançar-se justamente o inabalado impulso de um ser. Mas a força se consome sem realizarse e produz a imagem de uma grandeza sobre-humana, não desumana, mo fracasso. É a mesma coisa vista de outro ângulo: quando Nietzsche compreende que a verdade não deve ser incorporada, ao contrário, que o êrro é necessário (no tocante às verdades fundamentais, que são, por sua vez, condições vitais). Ou quando Hölderlin faz com que Empédocles atente contra a lei, ao querer revelar ao povo toda a verdade. É sempre a mesma pergunta que retorna: o homem tem de morrer graças à verdade? A verdade é a morte? A tragédia de Hamlet é o conhecimento horrorizado ante os limites do homem. Não há nela nenhuma advertência, nenhum conselho, e sim a consciência do Ser na ignorância da ânsia de vontade com a qual o Dasein fracassa, “o resto é silêncio”.

A SUBJETIVIDADE DO TRÁGICO O saber trágico não é uma contemplação apática, apenas cognitiva. É um reconhecer no qual me torno em mim mesmo graças à forma como penso reconhecer, ver e sentir. Neste saber, dá-se uma metamorfose do homem. Ela leva pela caminho da redenção, um impulso rumo ao Ser na superação do trágico. Ou ela leva pelo caminho da decadência pelo descompromisso estético da contemplação – que distrai o homem e retira-lhe a seriedade e o fundamento.

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Conceito de redenção

Jogado no mundo, entregue a toda sorte de desgraça, sem chance de escapar ao aniquilamento que o ameaça, o homem ansia pela salvação, seja esta um socorro neste mundo ou o bem na eternidade, seja libertação da aflição momentânea ou redenção de toda e qualquer miséria. A salvação é trazida pela atividade prática de cada homem em sua situação junto com os outros homens. Além disso, porém, desde eras imemoriais, homens especialmente dotados, ou possuídos, prestam socorro como mágicos, xamãs e sacerdotes, com práticas especiais só a eles acessíveis. Há um divisor de águas na história da humanidade (no último milênio antes de Cristo) quando a consciência pensa a universalidade da desgraça e encontra sua redenção através de profetas e redentores que se dirigem aos homens como homens, propõe exigências universais e querem auxiliar a todos. A aflição não é mais aquela diuturna do Dasein, não é mais apenas doença, velhice, morte, porém uma degenerescência básica do humano e do mundo (causada pela ignorância, pelo pecado, pelo desordenamento); desta forma, redentores, líderes e pacifistas não prestam um socorro particular no mundo para este momento, e sim com este socorro – ou até mesmo sem ele – trazem muito mais: eles apontam a salvação na totalidade. Esta salvação reside em um acontecimento objetivo que vem ao conhecimento do homem através da revelação, sendo que ele agora conhece na totalidade o caminho certo e pode se orientar sozinho por ele. A história pode ser concebida de forma a-histórica, como uma sucessão que sempre retorna ciclicamente ou como história única, com os grandes acontecimentos das derrocadas e dos ressurgimentos, passo a passo com a revelação. Em qualquer dos casos há algo de geral e de abrangente, sejam leis gerais ou leis de um decurso histórico geral. A partir desta abrangência, que se torna concretamente consciente, toda aflição é reconhecida e superada. O indivíduo toma parte nisso pela disciplina e pela ascese, com processos místicos de sua consciência; ele ascende graças à misericórdia, graças ao renascimento de sua essência em uma metamorfose.

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Há sempre na redenção mais que socorro para esta ou aquela desgraça. A própria desgraça e a sua libertação são vividas como um processo metafísico a partir do fundamento das coisas.

Tragédia e redenção A visão trágica é um modo pelo qual vemos ancorada metafisicamente a aflição humana. Sem fundamento metafísico há apenas miséria, lamento, infelicidade, ruindade e fracasso; o trágico só se mostra ao saber transcendente. Poemas onde é representado apenas o horror como tal, roubo, morte, intriga – enfim, todas as sensações do terrível – não são tragédias. Para tal é necessário que o herói seja colocado no saber trágico, e que o espectador seja levado a ele. Com isto surge a questão da redenção do trágico ou a pergunta pelo verdadeiro Ser. A questão é diferente para o herói trágico - que está realmente em uma situação limite - e para o espectador que, enquanto tal, experimenta-a (a situação limite) apenas como possibilidade. O espectador, porém, só está realmente presente quando se identifica: o que também para ele é possível, ele experencia como se já fosse verdadeiro, porque abandonou seu si-mesmo pelo si-mesmo do homem, na medida em que é um com todos os outros. Eu próprio estou nos homens que estão representados na tragédia. Do sofrimento éme falado: Este és tu! “Piedade” não no sentido de um terno lamento, mas do estar-elemesmo-ali-dentro, faz do homem um homem. Daí a atmosfera de humanidade nas grandes tragédias. Como o espectador, porém, encontra-se na verdade em segurança, ele pode facilmente

escapar

da

gravidade

da

perplexa

existência

humana

para

o

descomprometimento estético de sua emoção e, com isso, corrompê-la (a gravidade da perplexa existência humana) enquanto desumano prazer no horror e no terrível ou enquanto presunção moral ou auto engano com sentimentos baratos de valores irreais a propósito de si mesmo na identificação com nobres heróis. No herói da poesia consuma-se o saber trágico. Ele não apenas sofre a miséria, a ruína, a desgraça – ele tem disso consciência. E ele não apenas tem disso consciência: sua alma encontra-se no mais extremo desequilíbrio. A tragédia representa o homem em sua metamorfose pelas situações extremas. O herói, como Cassandra, compreende a atmosfera

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trágica; ele se volta, perquirindo, ao rumo das coisas; ele toma, na luta, consciência do poder ao qual pertence, e que não é tudo; ele fica sabendo de sua culpa e questiona-a; ele traz a questão pelo ser da verdade; ele consuma consciente o sentido de vencer e o de ser derrotado. A concepção do trágico significa, como o transcender, ao mesmo tempo uma libertação. No saber trágico, a busca da redenção não é mais apenas a busca da salvação da miséria e da desgraça, mas da redenção da condição trágica da Ser por meio do transcender. Aqui, entretanto, está a diferença radical se a redenção se dá no trágico ou se ocorre uma redenção do trágico. Ou o trágico continua a existir e o homem se liberta – na medida em que suporta o trágico e nele se transforma – ou a própria tragicidade, ao mesmo tempo, se redime, ele fenece, ela passa; o caminho que leva através dela tinha de ser trilhado, mas ela (a tragicidade) foi rompida, suprimida, preservada no fundamento e tornada fundamento para a verdadeira vida, que agora não é mais trágica. Seja no trágico como na superação do trágico, depois da perturbação desconcertante o homem encontra sua redenção. Ele não submerge na treva, não submerge no caos, mas como que aterrisa em um chão numa certeza de ser e numa satisfação trazidas por esta redenção. Mas ela não é inequívoca. Esta redenção só foi adquirida graças ao perigo do desespero radical. Ela permanece enquanto ameaça e possibilidade.

Redenção no trágico O espectador toma conhecimento, em vista da poesia, do que lhe traz redenção. Não é mais essencialmente curiosidade, ânsia de destruição, desejo de estímulo e de comoção, porém algo mais profundo em tudo isto, que o domina ainda antes do trágico: o decurso de suas comoções, guiado por um saber crescente na intuição, leva-o ao contato com o próprio Ser de uma forma tal que, a partir daí, seu Ethos na vida real ganha sentido e impulso. O que sucede nesta concepção de um universal é, em todo caso, uma libertação, que sucede graças à total possessão pelo próprio trágico. Como, contudo, interpretar isto? Há uma série de respostas, das quais cada uma acerta em algum ponto importante sem que elas, ainda que tomadas todas juntas, satisfaçam a contento à realidade desta concepção fundamental no que concerne ao saber trágico:

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a) No herói trágico o homem vê sua própria possibilidade de resistir, aconteça o que acontecer. As provações heróicas, até a derrota, mostram a dignidade e a grandeza do homem. Ele pode ser valente e, enquanto viver, recompor-se inabalável em meio à metamorfose. Ele pode sacrificar-se. Onde todo sentido desaparece, onde toda condição do conhecer termina, aí emerge algo do fundo do homem: a auto-afirmação do Ser que se consuma no padecer – “Calado tenho de ir ao encontro de meu destino” – e se consuma na valentia da vida e na valentia de, na fronteira da impossibilidade, agarrar a morte com dignidade. Não é possível estimar objetivamente onde um ou outro é verdadeiro. Fisicamente imediato pode aparentar, como a teimosia da vida em viver a qualquer preço; aí, porém, pode residir a obediência: resistir sobre o lugar onde estou colocado, resistir apenas, sem questionar, sem perguntar. Fisicamente imediato pode, por outro lado, aparentar, como medo que foge da vida; aí, porém, pode residir a coragem de morrer, onde tem de ser vivida à força uma vida indigna e a esta vida se prende o medo da morte. Mas o que é corajoso? Não será a vitalidade enquanto tal, não a energia da mera teimosia, mas a libertação do vínculo para com o Dasein, o poder morrer, no qual, quando a alma suporta, é-lhe revelada, neste suportar, o Ser. A coragem é algo comum ao verdadeiro homem, ainda que os conteúdos de fé sejam distintos. É algo original, que, no homem trágico, que em liberdade soçobra, revela-se por livre vontade, é contemplado como aquilo onde a possibilidade do próprio Ser se mostra. Em vista da tragédia, o espectador costuma antecipar, possibilitar ou prender o que ele próprio pode ser e iluminou no saber trágico. b) No sucumbir do finito o homem enxerga a realidade e a verdade do infinito. O próprio Ser é o abrangente que a tudo abrange, diante do qual toda figura singular tem de fracassar. Quanto mais grandioso o herói e a idéia na qual ele vive tanto mais trágica a ação e mais profundo o Ser que se manifesta. Não é a valoração moral da justiça da queda do culpado – que não deveria ter-se feito culpado – que o trágico atinge; culpa e expiação formam uma relação estreita, mergulhada em moralidade. Só quando a substância moral do homem se desmembra em forças em rota de colisão é que cresce o homem até a grandeza heróica, cresce sua culpa até a inocente e

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plenamente característica necessidade, o sucumbir torna-se restauração, no qual está guardada a ação. O fato de todo o finito estar condenado diante do absoluto eleva o sucumbir casual e sem sentido à esfera da necessidade. Pois manifesta-se o Ser do todo, ao qual o indivíduo – justamente porque ele é grande – se sacrifica. O próprio herói trágico avança para sua queda obrigado pelo Ser. Hegel especialmente fez desta interpretação o conteúdo normativo da tragédia, simplificando-a em seu sentido de forma que este (conteúdo) fique prestes a roubar-lhe o elemento verdadeiramente trágico. A linha que ele vê está lá, mas ela tem validade apenas na polarizada correspondência com a irreconciliada auto-afirmação. Sem isso, a tragédia torna-se contemporizadora trivialidade e satisfação antecipada. c) Pela contemplação da tragédia, cresce no saber trágico o sentimento dionisíaco de vida, como Nietzsche o interpreta. Na desgraça, o espectador divisa o júbilo do Ser que, em meio à destruição, eternamente se conserva, que toma consciência de seu augusto poder na dissipação e na destruição, no ousar e no fracassar. d) A contemplação do trágico opera, segundo Aristóteles, uma Katharsis, uma purificação da alma. Piedade para com o herói e temor para consigo mesmo tomam o espectador que, vivenciando estes afetos, ao mesmo tempo deles se liberta. Da comoção brota o sublime. Uma liberdade de ânimo é a conseqüência dos afetos agora colocados em ordem. Comum a todas as interpretações é que a manifestação do Ser no fracassar é experenciada em vista do trágico. No trágico ocorre o transcender sobre miséria e horror, rumo ao fundamento das coisas.

Redenção do trágico A redenção emana da poesia quando tem seu peso na superação do trágico através do saber de um Ser, saber este diante do qual o trágico tornou-se o fundamento reconciliado ou o emergente primeiro plano. a) A tragédia grega: nas Eumênides, Ésquilo faz com que a ação trágica se torne passado – deste passado, na reconciliação de deuses e demônios com os institutos do Areópago e do culto às Eumênides, criou-se a ordenação do humano na polis. A trágica era

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dos heróis é sucedida pela era da lei e da ordem, do emprego da fé na cidade com o favor dos deuses. O que o trágico era na noite escura, tornou-se fundamento de uma vida luminosa. As Eumênides são a última parte de uma trilogia - a única a chegar até nós. Todos os outros dramas de Ésquilo que se conservaram são peças intermediárias de algum ciclo, portanto sem o desenlace final provavelmente constante na última parte. O Prometeu acorrentado também é parte central de uma trilogia, em cujo final possivelmente ocorresse a suspensão da tragicidade divina e a instauração de uma ordem divina. A fé dos helenos, que encontrou em Ésquilo sua maior perfeição, ainda dominava nele o trágico. Também Sófocles vive na fé. Comparando-se com Ésquilo, seu Édipo em Colônia termina até mesmo instituindo uma reconciliação. É sempre uma relação coerente a que se dá entre homem e deus, entre a ação humana e os poderes divinos. Se nesta relação, incompreensivelmente – e este é o tema da tragédia -, acontecer de o herói trágico sucumbir sem saber da sua culpa (como Antígona) ou com uma consciência aniquiladora dela (Édipo), ainda assim este herói leva um Ser do divino – ao qual ele se liga não pela razão, mas pela fé - à submissão aos desígnios divinos e a tornar-se vítima da própria vontade e do próprio Dasein; a acusação, que por momentos torna-se irresistivelmente forte, mergulha, ao final, no lamento. A redenção do trágico tem seu fim com Eurípides. O sentido se desfaz. Conflitos espirituais, combinações aleatórias de situações, intervenção dos deuses (deus ex machina) desnudam o trágico. Ao indivíduo

resta-lhe apenas a si próprio. Ganham ênfase o

desespero, o perguntar desesperado pelo sentido e pelo propósito, pela essência dos deuses; não apenas o lamento, mas a acusação ganha destaque. Em alguns instantes parece despertar a paz na oração, na razão divina, para em seguida perder-se em nova dúvida. Não há mais nenhuma redenção. Em lugar dos deuses surge a Tyche. Os limites do homem e sua pequenez são mostrados de forma horrorosa. b) A tragédia cristã: o cristão de fé não reconhece, na verdade, nenhuma tragicidade mais. Se a Redenção ocorreu e continua continuamente ocorrendo por obra da misericórdia, então transforma-se a miséria e a infelicidade de ser-no-mundo, talvez elevadas ao aspecto mais pessimista do mundo, nesta fé não trágica, em um lugar de provação do homem, por

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meio da qual ele conquista a salvação eterna da sua alma. O estar-no-mundo acontece por injunção da providência. Tudo aqui é apenas caminho e passagem, e não Ser definitivo. Assim sendo, toda tragicidade, tomada no transcender, é, enquanto tal, transparente: também o resistir e o poder morrer no nada consumam uma “Redenção”, só no trágico esta redenção se dá através dela mesma. O resistir e a auto-afirmação no fracasso também seriam sem sentido se não existisse nada afora pura imanência. Mas a imanência não é superada na auto-afirmação por um outro mundo, e sim apenas no transcender enquanto tal, no saber -limite e a partir do saber do limite. Apenas uma fé que reconheça o outro como o Ser imanente redime do trágico. Assim acontece em Dante, em Calderón de la Barca. O saber trágico, as situações trágicas o heroísmo trágico, tudo é radicalmente transformado, porque está colocado na representação no sentido da providência e da misericórdia, que redimem de todo este monstruoso ser-em-vão e autodestruir-se do mundo. c) A tragédia filosófica: a redenção do trágico por meio de uma postura filosófica não deve permanecer no trágico. Não basta que o homem resista calado. Também não basta que ele esteja, na verdade, preparado para outro fim, mas só o tome em sonhos de fantasia enquanto símbolo. A superação do trágico deveria dar-se, isto sim, em uma realização que, ainda que possível sobre o fundamento do saber trágico, nele não permaneça. Esta superação existe como caso único em um texto por isso mesmo único: em “Nathan, o sábio”, de Lessing, juntamente com o Fausto de Goethe a obra dramática alemã de maior profundidade. Goethe, porém, ainda que muito mais rico e intuitivo, não passa sem o poder de símbolos cristãos; Lessing restringe-se à indisfarçada humanidade enquanto tal, e só suscetível ao equívoco enquanto pobreza, carência de imagens e de forma se o próprio leitor não a preencher, coisa que o autor expressa com clareza. Lessing escreveu esta “poesia dramática”, como ele a chamava, no momento de maior desespero de sua vida (após a morte da mulher e do filho), ademais do total desgosto provocado pela querela com o abjeto pastor Götze. Acerca da possibilidade de esquecer como o mundo realmente é em tais épocas de desespero, disse Lessing: “De forma alguma: o mundo, como eu o imagino, é um mundo tão natural, e não deve depender apenas da providência o fato de que ele não seja tão verdadeiro” (13, 337). Um tal mundo natural, que não comanda e que assim mesmo não é irreal, Lessing nos mostra no “Nathan”.

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“Nathan, o sábio” não é tragédia. A tragicidade em Nathan, como é mostrado no início do drama, já faz parte do seu passado. Ela já passou: suas provações de Jó, a ruína de Assad. Da tragédia e do saber trágico brotou – primeiramente em Nathan – o que a obra quer representar. A tragédia não é superada, como em Ésquilo, pela concepção mítica de um mundo governado por Zeus, por Diké e pelos deuses. Também não é superada, como em Calderón, pela categórica fé cristã, na qual tudo se resolve; também não, como nos dramas hinduístas, através de uma ordenação do Ser, da qual não se pode nem duvidar. A tragédia é superada, porém, pela idéia do verdadeiro ser-homem. Esta idéia desdobra-se como devir, não como um estar-aí estipulado; ela não está na visão de um mundo perfeito, mas na ânsia abrangente que se realiza a partir do agir interno na comunicação destas pessoas. É como se a maturidade da alma racional de Nathan, vinda a si no mais terrível sofrimento, voltasse a reunir a humanidade tal uma família dispersa e que não mais se conhece, mas que afinal torna a se reconhecer (na obra, aparece simbolicamente como uma família verdadeira com laços consangüíneos). E, ainda assim, ele não age segundo um plano objetivo graças a um saber abrangente, e sim passo a passo, com o saber e a intuição adquiridos em cada situação, através de sua sempre presente caridade. Pois os caminhos do homem não são racionalmente objetivos, porém apenas possíveis pela força do coração, coração este que se utiliza da mais aguda razão. A partir daí é mostrado nesta obra como todas as complicações chegam a uma solução. Os atos de desconfiança, da suspeita e da inimizade dissipam-se diante da manifestação da essência destes homens. Resulta em salvação o que sucede por obra do amor no âmbito da razão. Liberdade traz liberdade. Da profundeza destas almas têm lugar os encontros, em meio a prudente discrição e súbita e inequívoca compreensão, em meio a cuidadoso planejamento e, afinal, rompante irreverência encontros nos quais se fundam as inabaláveis solidariedades, enquanto que os infames que não pertencem à família do ser-humano deslizam imperceptivelmente para a impotência. Os homens, contudo, não são vários exemplares de um único e correto ser humano, mas sim seres individuais específicos, originalmente assim formados, e que se agrupam não em razão de pertencerem a uma espécie comum (pois estas são tão distintas quanto possível: dervixe, monge, templário, Recha, Saladino, Nathan), porém em função de seu

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direcionamento comum rumo ao verdadeiro. Todos eles caem em suas próprias teias, pelas quais eles se diferenciam; todos podem desenlear estas teias, superar sua forma própria do ser-assim sem apagá-la; pois elas - as teias e a forma própria do ser-assim de cada homem cobram vida a partir de um fundamento profundo, no qual lançam juntas raízes. Cada uma delas é uma forma especial do poder-ser-livre e do ser-livre. Nathan, o sábio é a corporificação da “razão” em personalidades humanas. Mais ainda que cada uma das ações e das frases, mais que as comoções e as verdades, é a atmosfera do poema que nos fala como espírito do todo. Não é preciso prender-se ao enredo. A ambientação romântica na Terra Santa à época das cruzadas, quando se encontram e interagem todos os povos e homens, a idéia da Aufklärung alemã, no papel principal o judeu desprezado, nada disso é essencial, apenas material cronológico e inexorável plasticidade com o fim de representar o que se encontra no fundamento da obra. É como se Lessing tivesse querido o impossível, e é como se quase o houvesse conseguido. As objeções – de que se tratariam de abstrações não passíveis de serem colocadas em poema, ou de pensamentos da Aufklärung ou de tendenciosidades – dizem respeito a passagens isoladas e à trama. O aparentemente mais fácil é também o mais difícil de entender, não para a razão ou para os olhos – é verdade -, mas para a alma, que tem de alçar-se da própria profundeza para perceber o entusiasmo dessa filosofia, sua imperscrutável tristeza e sua serena e livre jovialidade: esta obra única de Lessing. “Quando é possível o equilíbrio, desaparece o trágico”(Goethe). Se este equilíbrio for pensado enquanto processo do mundo e da transcendência – na qual tudo chega por si à harmonia - então isto é uma ilusão que acaba fazendo com que o trágico se perca e não seja superado. Mas se o equilíbrio for a comunicação dos homens – consumando-se a partir da luta e sua ânsia de profundeza – e a relação que por meio dela se dá, então isto não é uma ilusão, mas tarefa existencial do humano na superação do trágico. Só a partir desta base são apreensíveis sem auto-engano as superações metafísicas do trágico.

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A transformação do trágico em descompromisso estético A tragédia grega era executada durante a festa de Dioniso, ela era um ato religioso. A inserção em um culto era característica também dos autos religiosos, os mistérios, em cuja tradição Calderón ainda escreveu tragédias em forma de mistérios. A introspecção de um mundo vigoroso, contudo, era a tragédia na Inglaterra de Shakespeare. Nos momentos de clímax ocorria, sem dúvida, um alívio interno que, imanente, era análogo de um ato religioso, em virtude do impulso que o espectador ali recebia. Os grandes poetas foram educadores de seus povos, profetas de seus Ethos. O público não apenas se comovia como transformava-se em si mesmo. Logo em seguida, contudo, acontece de o drama e o ato de assisti-lo decaírem a mera encenação. Ele se torna descompromissado. A gravidade original era uma forma de “redenção” no saber trágico, acontecia algo com o homem que assistia ao teatro. Entretanto, ao decair para um entretenimento geral humano ele perde sua seriedade, vira prazer de emocionar-se. É essencial que eu não apenas contemple, edificando-me “esteticamente”, mas que participe enquanto eu mesmo, que o saber que se revela na representação consume-se dizendo respeito a mim. O conteúdo se perde se eu me imagino em segurança e apenas assisto como que tudo acontecendo a um estranho, ou como a alguém que poderia ter sido eu, mas do que eu estou definitivamente a salvo. Então, de porto seguro, olho para o mundo, como se com meu destino não mais estivesse nele a procurar o fim a bordo de precários navios. Eu o vejo nas interpretações grandiosamente trágicas: o mundo se ergue sobre a desgraça dos grandes, e pelo fato disto ocorrer é que ali está, por deleite, o impávido espectador. A conseqüência é uma paralisia da atividade existencial. O que existe de desgraça no mundo não desperta, mas dá ensejo à postura interna: é assim, e porque assim é eu nada posso mudar, e devo ficar contente por não estar envolvido. Porém, da distância tenho o desejo de olhar: que alhures aconteça, desde que eu esteja em paz. Ao assistir, tenho as sensações, entrego-me à edificação da suposta grandeza de meus sentimentos, tomo partido, julgo, me horrorizo e, na verdade, mantenho-me à distância.

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A metamorfose do saber trágico em um fenômeno estético cultural deu-se já no final da Antigüidade (pela repetição dos dramas antigos) e repetiu-se na modernidade. Não apenas os espectadores, também o autor abandona a seriedade original. As novas tragédias do século XIX são, em sua maior parte, desempenhos virtuosísticos de um patos cativante, nascidos de construções feitas com a ajuda da razão. Se, outrora, a redenção no trágico era uma libertação operada pela contemplação através da tragédia até seu não dito e indizível fundamento, ela agora tornou-se um reconhecer das teorias filosóficas do trágico com a roupagem de personagens de teatro. Aqui há uma irrealidade pintada com o esplendor de uma encenação estética. Uma discrepância entre homem e obra faz com que, neste deturpado âmbito cultural, surjam geralmente criações pálidas, nas quais o ímpeto das comoções, a dramaticidade dos acontecimentos e a engenhosidade dos efeitos de palco não conseguem substituir o que nos dizem a infinita profundidade dos dramas gregos e de Shakespeare. Agora fica o pensado, o sentimental, o patético, ou também o talvez verdadeiramente compreendido, mas não mais realizado. A gravidade da cultura em vez da gravidade da existência faz cria em autores como Hebbel e Grillparzer – para citar alguns dos melhores - personagens que, afinal, se revelam vazias, se buscarmos por um núcleo verdadeiro em seu cerne.

Interpretações básicas do trágico Os heróis trágicos consumam, em suas situações extremas, a realidade trágica. Isto é mostrado no drama. Os heróis exprimem isto em frases universais acerca da tragicidade do Ser. o saber trágico torna-se um traço fundamental da realidade trágica. Mas o sistemático desdobramento de uma visão trágica de mundo (de uma metafísica trágica) é uma forma de pensar que só começa a ser experimentado na concepção contemplativa de tais drama e, com estes, do mundo. Toda tragédia deve ser compreendida a partir de um princípio e derivada a partir de suas ramificações. As auto-exegeses que ocorrem nos dramas trágicos, metodicamente alinhadas ao contexto, resultam em interpretações básicas do trágico. Estas são míticas ou abstratofilosóficas. O que já aconteceu acidentalmente nós agora representamos em um contexto.

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A interpretação mítica A interpretação mítica é um pensar em imagens, mas em imagens enquanto realidades. Ela prepondera na tragédia grega. Uma representação da tragicidade com uma consciência de deuses e demônios enquanto forças com poder de decisão só faz sentido no contexto da crença em tais deuses. Daí a distância da tragédia grega para nós. Nós não levamos oferendas aos altares de seus deuses, não acreditamos em seus demônios. Mas temos condições de entender que forças estavam ativas ali. Vivemos, de uma forma incomparável, cativados pela gravidade disto que foi aqui pensado, perguntado e respondido como personagens. A proximidade de Shakespeare para nós, por outro lado, se baseia na proximidade de sua atmosfera, que lhe permite, sobre um palco profano, falar em código em vez de em conteúdos de fé substanciados. Em Shakespeare não há Eumênides, Moira, Apolo e Zeus, mas há bruxas, fantasmas encantamentos; não há Prometeu, mas Próspero e Ariel; não há um culto como bastidor da representação teatral, e sim a nobre missão de mostrar o mundo em um espelho, mostrar o que ele é, zelar pela realidade, fazer com que se torne perceptível o que há por trás de sentido, ordem, lei, verdade e divino. Por isso é ilusória uma interpretação mítica da tragédia de Shakespeare. A interpretação mítica refere-se, acima de tudo, à condução das coisas: O homem com seus planos, imaginando-se ele próprio a conduzir as coisas, vai ficar sabendo que, com todos os seus planos, está subordinado a um outro plano maior e mais abrangente. Sua ignorância é a abertura de seu saber trágico para o velado: os acontecimentos trágicos seguem uma condução inexorável. No saber trágico, esta condução é conhecida como “destino”. Mas o destino toma no mito diversas formas: é a maldição anônima e impessoal como conseqüência de um ato mau e que se perpetua por novos atos maus de geração em geração – maldição sobre a estirpe – (em Ésquilo e Sófocles), executada por seres demoníacos (por exemplo, pelas Erínias), já sabida de antemão pelos deuses e prevista por oráculos e, por intervenções do próprio envolvido, aumentada ou detida. Não é de forma alguma sempre – e nem na maioria dos casos – culpa dos homens. Pelo contrário, o herói pode, com razão, dizer: As ações que cometi Foram mais sofridas que executadas por mim... Nada daquilo fiz por minha vontade!...

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Fi-lo inconsciente e, pela lei, inocente Do que involuntariamente fazia. Vale tão só a sentença: Quem jamais escapou da própria desgraça?...

Assim como existe a maldição há a promessa. Ela é tão confiável quanto aquela inexorável. (Édipo encontra seu prometido final feliz no bosque das Eumênides). O anônimo e impessoal é representado especialmente pela Moira, que reina acima dos próprios deuses e à qual eles têm de submeter-se, e que é até mesmo confundida com Zeus, o deus supremo (Ésquilo). É a Tyche, o acaso, que, sem relação com os deuses, governa segundo um arbítrio absurdo (aparecendo pela primeira vez em Eurípides), e então ela mesma divinizada ou demonizada como Tyche (na era helenística) e como Fortuna. Quem governa é a providência, que zela pela salvação das almas enquanto imperscrutável vontade divina (Em Calderón). Toda condução acontece através de mediação das ações dos próprios homens, que acabam provocando o que o homem não pensou e o que ele não deseja. O mundo, na concepção mítica, é uma dimensão de forças divinas e demoníacas. Elas se entrelaçam em resultados que se apresentam anônimos pela forma como se expressam nos homens, nos acontecimentos e nos fatos. Os homens os compreendem na medida em que consideram sua origem, nos deuses e nos demônios.

As interpretações filosóficas Em vez de imagens, o pensamento quer apreender por conceitos o que seja realmente o trágico. Há tentativas de interpretações universais: A tragicidade é colocada no Ser enquanto tal. O que é, é na negatividade (a dialética de todo ente), pela qual este se movimento e torna-se trágico. Deus é originalmente trágico; o deus que padece é o fundamento do Ser. O “Pantragismo” é uma metafísica da tragicidade universal a tragicidade do mundo é uma conseqüência da tragicidade no fundamento. O Ser é frágil.

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Dizer que o fundamento do Ser seja trágico, porém, parece-nos um absurdo. Em vez de transcender verdadeiro, consuma-se em um tal saber fictício e limitado uma absolutização de algo que pertence ao mundo: a tragédia reside na manifestação. O trágico deixa transparecer o Ser; por meio do trágico fala um outro que não é mais trágico. A tragicidade é colocada no mundo. A tragicidade do mundo é, então, a negatividade, universal na manifestação: a finitude de todas as coisas, a multiplicidade do que está partido, a luta de todo Dasein contra outro Dasein por existir e por superioridade, a casualidade. Com isso, ganha o nome de trágico o acontecer do mundo, a destruição universal de tudo o que nasce. Desta forma, porém, o trágico fica nivelado não apenas a toda sorte de mal, desgraça e sofrimento – que pressupõe sempre a experiência interior de um ser vivo – como fica nivelado à negatividade de modo geral. Da verdadeira tragicidade, contudo, falamos apenas no caso do homem. A tragédia do ser humano é considerada em dois planos: a) Toda vida humana, seus feitos, trabalhos e conquistas tem de fracassar no final. A morte, o sofrimento, a doença e a efemeridade podem ser disfarçadas, mas acabam triunfando. Pois a vida, enquanto Dasein, é finita, existe na pluralidade do que se exclui e resiste. Perece. O saber disso é já o trágico: de um fundamento abrangente do Dasein resulta toda forma especial do ser aniquilado e dos caminhos do sofrimento até a aniquilação. b) Tragédia mais profunda e verdadeira, porém, surge apenas onde a consciência do trágico compreende a ruína, como esta mesma ruína é construída sobre o verdadeiro e o bom e inevitavelmente se impõe: A cisão é também uma cisão em múltiplas verdades. Verdade frente a verdade, e que, por seu direito, tem de entrar em luta não só contra a injustiça, mas contra o outro direito da outra verdade. É trágico porque é um antagonismo de impossível equilíbrio. Seja através de uma expressão mítica a serviço de muitos deuses – onde o serviço a um prejudica ou até exclui o serviço a outro – ou, sem interpretação universal explícita, tornando-se presente enquanto combate de existência com existência, concorda-se fundamentalmente: a forma humana do Dasein, seu espírito, sua existência, não estão apenas em comunhão solidária, como também em luta de exclusão. O moralmente

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necessário carrega em si uma culpa porque destrói o outro que, da mesma forma, é moralmente necessário. A partir daqui revelam-se diferenças que ressaltam o verdadeiro trágico: o fracasso universal é o traço de caráter fundamental e sem exceção do Dasein: ele abarca a infelicidade fortuita, a culpa que ao final teria sido evitável, a desgraça do sofrimento infrutífero. Apenas o fracasso, que não é transmitido prematuramente – antes do possível desdobramento e seu resultado -, e sim advém deste mesmo resultado, é verdadeiramente trágico. A consciência do desmedido abandono do Dasein na incerteza universal ainda não é consciência trágica, mas apenas a consciência dos embriões da ruína final, embriões estes nascidos para o bem e para o verdadeiro: ser lançado ao insondável nas últimas e mais íntimas firmezas de um pretenso êxito e de uma pretensa estabilidade. Daí não haver, de forma alguma, saber trágico no ímpeto para o fracasso e para o sofrimento, porém apenas no gesto de tomar a si do perigo e, então, do inescapável da culpa, da correspondente desgraça na captura da verdadeira ação, no realizar. O trágico não compreende o pensamento alternativo “triunfar ou fracassar”, mas sim o pensamento penetrante que, no mais alto triunfo, divisa o próprio fracasso. Então existe o falso fracassar enquanto falhar, a desgraça fortuita, o pervertido impulso para o fracassar em vez do realizar, a absolutamente desnecessária ruína.

Os limites das interpretações Sob o nome do saber trágico consumam-se concepções originárias do Ser. mas todas as interpretações do trágico são insuficientes. A própria interpretação mítica é uma forma da concepção trágica, como é dominante apenas na tragédia grega. Porém, reduzir as concepções trágicas a um único denominador abstrato é absurdo. Pois elas são como concepções sempre mais ou menos o que a compreensão é capaz de expressar. Determinadas interpretações de linhas isoladas do saber trágico – referentes a objetos trágicos do drama – não são corretas quanto ao todo. Interpretações que têm a pretensão de ser uma exegese universal do trágico acabam ou restringindo-o ou se referindo a qualquer outra coisa menos ao trágico.

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Devemos diferenciar primeiramente a realidade trágica, em segundo lugar o saber trágico na consciência desta realidade e, em terceiro lugar, a filosofia do trágico. A realidade trágica só se torna eficaz com o saber trágico que transforma o homem. A filosofia do trágico, porém – a interpretação -, leva ou a uma deturpação do saber trágico (1) ou à abertura da própria concepção originária (2).

1. A deturpação do saber trágico em uma concepção trágica de mundo.

Qualquer tentativa de uma dedução exclusiva do trágico como natureza dominante do Ser é uma filosofia deturpada. Contra ela, como contra qualquer espécie de metafísica – que deduz o Ser e o mundo e faz afirmações acerca do que seja o Ser ou Deus -, há a objeção de que absolutiza e torna estes conceitos finitos. Mesmo os profundos dualismos instituídos como origem do trágico no fundamento do Ser (por exemplo, o que está em Deus mas que não é Deus), são apenas símbolos relativamente válidos no pensamento da filosofia, e não caminhos para a dedução de um conhecimento. A consciência trágica é, ela própria, um conhecimento aberto, não cognoscente. É errado quando se fixa em um Pantragismo, seja de que espécie for. Podemos examinar em Hebbel o que sucede quando do estreitamento e deturpação de uma filosofia trágica. Sua exegese sistemática apresenta-se absurda, além de monótona e fanática. O resultado é um poema dramático construído a partir da construção especulativa, onde, de um lado, temos a perda da verdadeira profundeza espiritual em meio ao meramente psicológico e, de outro, no grandiloqüente especulativamente exagerado. O resultado são juízos e aspectos intelectuais fulminantemente oportunos. A sua consciência trágica, porém, é uma consciência de desgraça com aparência de alicerce filosófico. O trágico, enquanto conceito estético, recebeu uma cor que corresponde à filosofia deturpada do trágico – este é o caso quando falamos do trágico como lei do mundo (Bahnsen) ou como sentimento trágico do mundo (Unamuno). a) O mais sublime disparate acerca de uma concepção trágica do mundo ocorre pela absolutização do verdadeiramente trágico como valor e essência da humanidade. O trágico existe separado da desgraça, do sofrimento, da derrota, da doença e da morte, existe separado do mal. Separado pela forma de conhecimento (a priori, não isolado;

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interrogante, não aceitando tudo; acusador, não lamentoso), e também pela proximidade da relação entre verdade e ruína, de forma que um aumento da tragicidade se dá com a categoria das forças, com o grau de necessidade. Toda infelicidade só se torna trágica pelo contexto no qual acontece ou ao qual é referido, graças à consciência e ao saber dos que padecem e dos que amam, por meio da interpretação enquanto sentido no saber trágico. Em si, contudo, não é trágico: é apenas o fardo que pesa sobre todos. A consciência trágica irrompe adentro e atravessa, mas não domina – ela deixa pontos demais sem serem tocados, pontos demais esquecidos ou não interpretados. Seduz em um âmbito transfigurante de grandeza; consegue velar, apesar da sua gravidade despida de ilusões. O trágico torna-se mérito dos nobres – os outros tem de resignar-se em serem aniquilados indiferentemente na desgraça. O trágico é um traço da natureza não do homem, mas da aristocracia humana. Esta visão de mundo como postura de privilegiados torna-se arrogante e insensível, ela consola pela intensificação do sentimento de valor próprio. O saber trágico tem, portanto, seu limite: ele não é capaz de uma exegese total de mundo. Ele não se torna o exegeta-mor do sofrimento universal. Isto se mostra no fato de realidades do Dasein, como doença, morte, acaso, miséria e maldade podem ser meios da manifestação do trágico, mas não valem como tal porque não são trágicas. A visão trágica de mundo vive na grandiosidade, e transcende a realidade por meio do cumprir-se de algo que, por sua vez, é ele mesmo o desenlace feliz de um fracasso como que extremamente bem-sucedido. Com isso, entretanto, esta concepção restringe nossa consciência. Pois, ainda que redima o homem, tal ocorre apenas com o velamento da horripilante e insondável realidade. A desesperada, absurda e pungente desgraça, desgraça que impõe perplexidade, a desgraça desamparada clama por socorro. A realidade de todas estas desditas sem grandeza é posta de lado como indigna de atenção por parte de uma nobreza cega. O homem avança para a redenção de suas terríveis realidades, que carecem do impulso da tragicidade. À rude cegueira corresponde uma banalização estética nas expressões correntes de linguagem - estas atingem o trágico e o deturpam, já que, de maneira falsa, escondem a realidade e, demasiado levianamente, libertam do olhar sobre a desgraça do mundo como ela verdadeiramente é: no trágico é representado o desvalor da vida em si, o desvalor do individual e finito Dasein (a derrocada do que é grande seria um caráter justamente da grandeza); o mundo estaria baseado na ruína e no aniquilamento do homem extraordinário.

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Em tais explicações generalizantes e empoladas que, apesar de vagas, soam tão claras, mente-se, por meio de uma falsa aparência, acerca da efetiva fragilidade. b) Em todas as visões trágicas de mundo perde-se a polaridade do saber trágico. Nas concepções originais, o trágico caminho lado a lado com sua libertação. Se o trágico é roubado de seu pólo oposto, e se isola em si mesmo como algo exclusivamente trágico, chega-se a um grau do insondável que não está na base de nenhum dos grandes poemas trágicos. O exclusivamente trágico é adequado a servir para o velamento do nada, onde se queira dar forma à descrença. O orgulho do homem nihilista ergue-se em trágica grandeza até o patético da auto-consciência heróica. Já que a seriedade se perdeu, o forte estimulante do trágico faz com que vivenciemos uma seriedade aparente. Nos reportamos aos germanos, às sagas e à tragédia grega. Mas no que lá se acreditava - e era realidade tornou-se um substituto sem crédito para o nada. É empregado nas expressões de linguagem ou para indicar o próprio anti-heróico e fracassante Dasein de forma heróica ou para dar-se, na segurança de uma vida confortável, por meio de sentimentos heróicos, de forma superficial, um valor aparente. Então, em tal deturpação da visão trágica de mundo, impulsos ocultos conseguem eclodir: o prazer no absurdo, no atormentar e ser atormentado e na destruição enquanto tal, o ódio do mundo e dos homens com o ódio do próprio desprezado Dasein. 2. A essência do saber trágico

Em vez de sistematizar o saber trágico como dedução especulativa, e em vez de, sem polaridade, absolutizá-lo enquanto concepção trágica de mundo, ele deve ser interpretado de forma a preservar-se como concepção originária. A visão trágica originária é perguntar e pensar em imagens; neste saber trágico persiste ainda também a superação do trágico, mas não por meio de doutrina ou revelação, porém visando ordem, direito, amor ao próximo: na confiança, no deixar em aberto, no perguntar enquanto tal, sem resposta. O saber trágico cresce sobre contradições, sem resolvê-las, mas também sem fixar a impossibilidade de uma resolução. Daí a incompletude no saber trágico; completude há só na concepção enquanto tal, no movimento do perguntar.

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A visão trágica originária deve ser resguardada. Devemos deixar livre o verdadeiro historicismo, do qual brota e onde se cumpre a visão trágica. Não precisamos ter de explicar o que era, o que será e o que sempre é, e sim atentar para aquilo que nos quer falar. A tarefa da filosofia não é fazer, em analogias com o saber finito mundano, um emprego de categorias trágicas em um conhecimento total do Ser, porém encontrar uma linguagem a partir da audição dos símbolos. Então os mitos, as imagens, as histórias de cunho trágico, poderão conter verdade sem abandonar seu caráter suspenso. Na visão trágica original, se ela for mantida pura, já está contido o que a filosofia verdadeiramente é: movimento, pergunta, abertura – comoção, espanto -, veracidade, ausência de ilusão. A filosofia se refere ao saber trágico como o caráter inesgotável da visão originária. Ela pode perceber a identidade do próprio conteúdo com visão trágica – como a de Shakespeare -, sem poder expressar o conteúdo de maneira idêntica. Mas ela rejeita a fixação racional em uma visão trágica de mundo. Este ensaio acerca das múltiplas formas do abrangente, da variedade das cisões e da idéia de unidade é, ao mesmo tempo, o espaço para a interpretação do saber trágico. O trágico brota da não-unidade e de suas conseqüências na manifestação. Isto, porém, não é nenhuma dedução, e sim apenas um esclarecimento da manifestação. É na não concordância do ser-uno que deita raízes a respectiva desgraça da manifestação. Porque o Uno fracassa no Dasein temporal, manifesta-se na forma do trágico. Tal significa, porém, que o trágico não é absoluto, mas que está em primeiro plano. O trágico não está na transcendência, não está no fundamento do Ser, mas na manifestação do tempo.

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