Tradução: \"Do fim da escravidão ao fim do Apartheid: rumo a um rompimento radical na história africana?\", de Jacques Depelchin

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Jacques Depelchin
Do fim da escravidão ao fim do Apartheid: rumo a um rompimento radical na
história africana?[1]

Original: "From the end of slavery to the end of Apartheid: toward a
radical break in African History?", in: DEPELCHIN, Jacques. Silences in
african history: Between the syndromes of discovery and abolition. Dar Es
Salaam (Tanzania): Mkuki na Nyota Publishers, 2004.
 
Tradução:
Tomaz Amorim Izabel
Érica Alves
Åshild Svensson



"O Terceiro Mundo surge hoje diante da Europa como uma massa colossal cujo
projeto deve ser o de tentar resolver os problemas aos quais essa mesma
Europa não soube oferecer soluções.
Mas, então, convém não falar em rendimento, não falar em intensificação,
não falar em ritmos. Não, não se trata de retorno à Natureza. Trata-se, de
modo bastante concreto, de não impelir os homens em direções que os
mutilam, de não impor ao cérebro ritmos que rapidamente o obliteram e
desarranjam. Não é necessário, a pretexto de recuperar o perdido, pôr o
homem de pernas para o ar, arrancá-lo de si mesmo, de sua intimidade,
quebrantá-lo, matá-lo.
Não, não queremos alcançar ninguém. Queremos, isto sim, marchar o tempo
todo, noite e dia, em companhia do homem, de todos os homens. Não se trata
de alongar a caravana, porque então cada fila percebe apenas a que a
precede, e os homens que não se reconhecem mais encontram-se cada vez
menos, falam-se cada vez menos".
Os Condenados da Terra. Frantz Fanon.
(Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968, p. 274).


O que está em jogo?


Durante o processo de desmantelamento do Apartheid na África do Sul,
esperanças e expectativas de uma transformação radical chegaram ao ponto em
que uma das questões inevitáveis é levantada: a transição do Apartheid para
o pós-Apartheid produzirá resultados diferentes daqueles de outros países
africanos, de Gana ao Zimbábue, passando pela Argélia e Moçambique[2]? As
mudanças que poderiam acontecer na África do Sul são tão importantes que
não seria sem propósito fazer perguntas e verificações do tipo que vai além
da história da África do Sul e envolve a história inteira dos africanos e
seu lugar na reprodução do sistema capitalista como o conhecemos hoje.
As lições vindas de transições comparáveis no passado não garantem
grande otimismo. Na verdade, alguns foram rápidos (rápidos demais?) em
prever que o que iria acontecer na África do Sul nos próximos anos faria os
Acordos de Lancaster House, que levaram à independência do Zimbábue,
parecerem muito mais radicais, senão completamente revolucionários
(Southern Africa Political and Economic Monthly, Special Issue on CODESA,
Fevereiro de 1992). Alguns, no entanto, podem rebater e dizer que as
condições são tão diferentes hoje, que é difícil prever o que acontecerá na
África do Sul. Outros, ainda, especialmente os economistas (Gelb 1991),
estão discutindo a transição através do pressuposto de que ela só pode ser
feita sem dizer nada que possa assustar os donos do capital[3]. Esta última
abordagem, com algumas exceções, dominou a transição dos domínios coloniais
para domínio pós-colonial, de Gana ao Zimbábue. Portanto, embora possa ser
facilmente previsto que o Apartheid, como foi conhecido na África do Sul,
será desmantelado, pode-se também ver um processo de colocar em seu lugar
novas estruturas de repressão e exploração que não são específicas da
África do Sul. O assim chamado mercado global (ou aldeia global) está sendo
construído (com regras e regulações) de uma forma que lembra muito mais uma
versão modernizada do Apartheid, do que uma tentativa de criar um
rompimento completo com ele. Antes que tal rompimento aconteça, a África do
Sul bem que poderá experienciar um neo-Apartheid, da mesma maneira que as
colônias europeias passaram por um processo de neocolonialismo[4].
Para compreender melhor o que está em jogo, pode ser útil reexaminar e
comparar (de uma perspectiva estrutural) as transições históricas da
escravidão e aquela que está ocorrendo neste momento na África do Sul. Em
termos políticos, quando as mudanças na África da escravidão, passando pelo
domínio colonial, até o fim do Apartheid, são consideradas, o balanço final
pode ser visto por alguns como (em última análise) positivo. No entanto, em
termos socioeconômicos, esta imagem muda quando os donos do capital tendem
a compensar suas perdas. Mudanças políticas foram conduzidas como válvulas
de escape para que a doutrina do sistema socioeconômico pudesse permanecer
em seu lugar. O objetivo crucial foi assegurar que os donos do capital
continuassem a determinar os parâmetros de seu relacionamento com o
trabalho. De tal perspectiva, a história daquele relacionamento poderia ser
visto como a de uma modernização infindável na qual as relações estruturais
de exploração não mudaram, mas as suas formas sim. No entanto, o valor da
transição atual - da qual se poderia dizer: "O Apartheid morreu, vida longa
ao Apartheid!" - fornece a possibilidade de uma reexaminação crítica de
como historiadores contribuíram com a reprodução de silêncios que foram
primeiro gerados por aqueles que mais lucraram do sistema. Dito de outra
forma, o que a escravidão atlântica inaugurou foi o começo de um processo
de escravização para um sistema socioeconômico que aumentou e intensificou
o alcance de suas garras, mesmo que os aspectos formais e visíveis daquela
escravização tenham se transformado e se tornado menos visíveis. Comparado
com os tempos da escravidão atlântica, a situação piorou porque a
escravização agora aprisionou aqueles que deveriam estar no controle do
processo. Os donos do capital se tornaram prisioneiros dos ciclos de
acumulação e reprodução do capital de uma forma e em um grau que os donos
de escravos não estavam. A submissão às regras ditadas pelo capital no fim
do século XX provavelmente é mais total do que nunca. A melhor prova
empírica a esta tendência pode ser observada a partir da crescente
consciência da capacidade destrutiva do sistema. Isto é particularmente
evidente para aqueles que têm estado na linha de frente do movimento
ambientalista.
Como Toni Morrison mostra em Beloved, re-lembrar[5] os sessenta
milhões de des-membrados deve ser cultivado independente da
violência/dor/silêncio porque apenas uma tal "rememoração" pode criar a
base para erradicar a dor/medo/silêncio. A história deve ter a ver com
memória, e como ela se conecta com o passado, o presente e o futuro. Ela
deve ter a ver com como e quem organiza e prepara a ordem na qual se
conectam todos esses diferentes períodos de tempo, para quem, por quem e
para quais objetivos individuais e políticos. A história, portanto, não
pode ser singularmente reduzida a nenhum destes anteriores, mas o sistema
capitalista de dominação atual tentou padronizar os "comos" e "quems" de se
pensar a história. A partir de sua universalidade pressuposta, o
capitalismo ou, mais precisamente, seus mais ricos promotores, parecem
estar agora à beira de proclamar a imortalidade do sistema.
Não obstante, por trás do triunfalismo ostentador, vociferante e
regozijante dos zeladores do sistema, há a preocupação de que o colapso do
socialismo de estado atualmente existente foi tão grave que transformou o
solo no qual o capitalismo se sustenta em areia movediça. Em outras
palavras, com o desaparecimento de seus antagonistas mortais, os
capitalistas finalmente podem começar a ver que, agora, eles mesmos é que
podem ser seus piores inimigos. Durante transições anteriores, o sistema
sempre conseguiu se reformar alijando suas partes apodrecidas: a
escravidão, o comércio de escravos, o domínio colonial e, mais
recentemente, o Apartheid. O que se deve fazer quando as partes apodrecidas
se foram, mas o apodrecimento continua a se alastrar?
A similaridade com as transições anteriores está no fato de que alguns
- muito poucos - dos beneficiários do sistema estão dispostos a reconhecer
que, mesmo dentro de seus próprios termos de referência (análise de custo e
benefício?), a manutenção do sistema é muito dispendiosa (Frum 1994). Este
é o tipo de conclusão que levou ao fim de eras anteriores do capitalismo.
Quando os donos de escravos aceitaram que a escravidão era insustentável, a
escravidão foi condenada definitivamente. O mesmo com o regime colonial e
também com o Apartheid.


Abolição da escravidão e a criação da síndrome abolicionista[6]


A historiografia da abolição da escravidão tem sido dominada pelo modo
abolicionista (ou filosofista). Isto iria se repetir depois durante a era
da descolonização e está se repetindo agora quando o Apartheid é
desmantelado na África do Sul, mas modernizado para sua aplicação
global[7]. O que todos estes modos tem em comum é que as forças que têm
lucrado com a escravidão, o domínio colonial e o Apartheid, querem manter
seu controle. No processo de tentar manter seu controle, eles também
parecem ter imposto nos historiadores as questões a serem postas. O
principal aqui não é se é possível demonstrar e documentar como os
historiadores conseguiram suas pistas a partir das forças que guiaram esses
processos. O que deve ser enfrentado é por que algumas questões são
preferíveis ao invés de outras, e, quando as questões adequadas são
perguntadas, por que as respostas sempre tendem a cair em réplicas pré-
condicionadas. Esta é a abordagem dos historiadores e ela tem que ser
enfrentada por historiadores.
Então, da escravidão, passando pela descolonização, até o fim do
Apartheid, pode-se dizer que a historiografia dominante tem se afinado com
o modo abolicionista. Quer se dizer com isso que a escravidão é vista como
o problema - uma aberração - mas não o sistema socioeconômico que estava
sendo construído sobre ela. Portanto, enquanto se tornou aceitável condenar
a escravidão, o capitalismo por si só nunca foi questionado. A escravidão
foi/é condenada como moralmente inaceitável (assim como o Apartheid).
Alguns também poderiam argumentar sobre seu valor não-econômico. Quaisquer
que sejam os argumentos, a condenação raramente será redigida nos termos
que as vítimas do sistema poderiam ter concebido. A história das vítimas,
conceitualizada e produzida por aqueles que nunca foram vítimas, deve ser
vista com suspeita. Ela será, na melhor das hipóteses, paternalista e
condescendente, e, na pior, deliberadamente desviará a atenção das questões
que poderiam enfraquecer ou desafiar a posição dominante. Conforme a
mudança avança, aqueles que controlam o poder econômico e político são
forçados a mudar: sua estratégia será deslocar a linha de demarcação entre
eles e aqueles que estão lutando por mudanças. Da perspectiva deles, a
melhor maneira de proteger seus privilégios é compartilhá-los com o mínimo
possível de outros, apenas o bastante para garantir alguma estabilidade
política e econômica.
Os limites do modo abolicionista são revelados da melhor maneira
quando se examina a posição tomada por Thomas Jefferson no assunto. Ele se
viu como um abolicionista, mas também ansiava por "uma emancipação total, e
isto posto, na ordem dos eventos que seja com o consentimento dos senhores,
ao invés de por extirpação" (Nash 1990, 17; ênfase adicionada).
No caso da escravidão, David Brion Davis concluiu que "um consenso
geral emergiu nas três décadas depois de 1760 de que 'a escravidão negra
era uma anomalia histórica que poderia sobreviver por algum tempo apenas
nas sociedades de plantation, onde se tornou o modo de produção
principal'".
Perturbado pelas vacilações históricas, Nash, uma das vozes radicais
neste assunto, pergunta: "Por que houve tais recuos em relação à escravidão
na Convenção Constitucional em 1787 e novamente na última década do século
XVIII?" (1990, 25). Vale a pena citar integralmente como ele explica as
falhas dos historiadores em lidar com a questão em outros termos que não
aqueles adotados pelos líderes revolucionários que cederam:


"Assim, eles [os historiadores] tomaram como pressuposto que a
escravidão não poderia ter sido abolida e justificaram o que não aconteceu.
Suas explicações exalam inevitabilidade, quase sempre em escrita histórica
que usa argumentos colocados por aqueles cujos erros estão sendo
desculpados e virtualmente nunca por aqueles vitimados pelos erros. (1990,
26; ênfase no original)".


A inevitabilidade da posição dos que cederam vinha da interpretação
dada à posição militante dos estados mais resistentes: Geórgia e Carolina
do Sul. O principal objetivo dos líderes "revolucionários" era forjar uma
nação, e a ameaça da Geórgia e da Carolina do Sul foi o bastante para
oferecer espaço para ceder. O papel da minoria em forçar a maioria a ceder
também está sendo repetido hoje na África do Sul, mesmo que os líderes da
maioria estejam se inclinando para trás para mostrar que a minoria também
está cedendo. A questão é: nos termos de quem? Além disso, em termos
econômicos, a "minoria" não está em uma posição subserviente, pois seu
controle de capital lhes permite ditar seus termos de transição. Nash
sugere que um exame mais próximo da situação na Geórgia e na Carolina do
Sul indicaria que estes dois estados estavam em uma posição bastante
precária e que "tinham uma necessidade muito maior de um governo federal
forte do que os outros estados precisavam deles" (1990, 33).
Depois de mostrar o quão inapropriadamente os historiadores lidaram
com o papel da Geórgia e da Carolina do Sul no enfraquecimento das posições
do abolicionistas, Nash foca na questão corolária: o que os estados do
Norte fazem em relação à escravidão? O Norte pode ter gritado alto e claro
contra a escravidão, mas se realmente tratou de apressar sua morte, isso
foi outra história. Ele exemplifica seu argumento destacando o
comportamento contraditório de proeminentes indivíduos do Norte que não
conseguiam conciliar seu chamado ao fim da escravidão com a manutenção de
seus próprios escravos. Nash cita um novo-inglês que descreve fielmente a
fonte da contradição: "A escravidão era 'um daqueles males que será muito
difícil de corrigir. De todas as Reformas, as mais difíceis são aquelas que
amadurecem onde as Raízes crescem como se estivessem nos bolsos dos
homens"' (Duncan J. McLeod, citado em Nash 1990, 33)[8]. Em outras
palavras, os custos econômicos de manutenção da escravidão sofriam
resistência por uma minoria que se tornou cada vez menor quando a
resistência por escravos, personalidades motivadas religiosa ou moralmente,
e mudanças tecnológicas fizeram com que a manutenção daquela forma de força
de trabalho/relacionamento de capital se tornasse cada vez mais difícil de
defender econômica e politicamente. O que nunca esteve em dúvida foi a
força do capital. A questão crucial sempre se resumiu a como preservar, no
processo destas transições, seus privilégios[9].


Escravidão na África: borrando as fases do sistema capitalista


A abordagem dominante sobre a escravidão dentro da África por
historiadores africanistas, em particular entre aqueles que focaram na
escravidão, é a de dissociá-la da escravidão atlântica de tal forma que ela
ganha uma história que parece ter poucas conexões com o tráfico de escravos
atlântico. O exercício de abstrair a escravidão africana do tráfico de
escravos e da expansão do sistema capitalista dá base para especulações
comparativas[10]. Também não é diferente daqueles que delimitaram o estudo
da violência na África do Sul nos termos daqueles que, na verdade, foram os
responsáveis pelo seu tipo mais letal.
Miers e Roberts (1988) parecem sugerir que a escrivão doméstica na
África tinha sua própria dinâmica de reprodução, completamente separada de
sua forma industrializada que foi introduzida com a invasão e a troca de
escravos através do Oceano Atlântico. Tal distinção é indefensável dado o
fato de que a escravidão doméstica acabou se tornando parte das partes
subordinadas e exploradas que abasteceram a expansão do capitalismo. A
comparação, portanto, não é válida pois está comparando duas entidades que,
na realidade, cresceram para se tornar parte de um mundo. Tal visão do fim
da escravidão doméstica na África retira sua plausibilidade da visão
ficcionalizada da história colonial na África da qual se diz que começa na
época em que os poderes europeus a esculpiram entre si.
Evidentemente, a base sobre a qual a escravidão na África foi
reproduzida não poderia ser outra coisa que doméstica. No entanto, a
natureza e o caráter daquela base doméstica foi transformada pela
escravidão atlântica muito antes dos poderes europeus decidirem ocupar o
continente. É esta transformação que é omitida ou minimizada. Isto foi
posteriormente reforçado pela introdução da problemática antropológica dos
tempos coloniais que buscaram congelar os povos coloniais em uma "presente
histórico" abstrato para que eles pudessem ser olhados "como eles eram
antes do contato europeu".
A tomada militar e política do continente criou um ambiente
intelectual que levou depois à dissecação de povos em categorias e
conceitos semelhante a canibalização intelectual. Dividir e governar não
foi apenas um lema político e militar: começou como receita de como digerir
academicamente sociedades estrangeiras[11]. Os conceitos e categorias eram
para os cientistas sociais o que estradas, rodovias e portos eram para
administradores e homens de negócios - puxadores e alças para facilitar o
objetivo mais importante: hegemonia imperial.
Como Nash mesmo mostrou, acadêmicos que conseguem ver através da
síndrome abolicionista podem não conseguir, eles mesmos, necessariamente se
desprender de seus legados históricos. Um dos ingredientes mais salientes
do modo abolicionista é que argumentos sobre a abolição (da escravidão, do
domínio colonial, do Apartheid) ficam mais convincentes na medida em que
nos distanciamos do que teve de ser abolido. Por exemplo, não é por
acidente que críticas à Antropologia ou ao domínio colonial se
desenvolveram depois do fim do domínio colonial. O outro ingrediente
importante do modo colonialista é que os argumentos têm mais chance de
ganhar proeminência se eles vierem de intelectuais cujas práticas os
identificam claramente como "membros". O melhor e mais recente exemplo
disso é a recepção relativamente calorosa do Black Athena de Martin Bernal
em comparação com a hostilidade implacável e condescendente que cercou a
aparição de qualquer trabalho de Cheikh Anta Diop entre egiptólogos
europeus[12].


"O Apartheid está morrendo na África do Sul. Longa vida ao Apartheid"


Por toda sua crítica a historiadores anteriores, Nash, no entanto,
está aquém de si mesmo. Em seu ponto de vista, aqueles que queriam o fim da
escravidão se confrontaram com duas questões, econômica e social,
respectivamente:


1. Como os donos de escravo seriam compensados?
2. Como os escravos libertos se encaixariam no tecido social da nova
nação?


A primeira, segundo Nash, só poderia ter sido tratada realmente se
houvesse a disposição de se fazer sacrifícios econômicos, e, a segunda
teria dependido de "uma habilidade de vislumbrar uma sociedade republicana
verdadeiramente birracial" (Nash 1990, 35).
Se o fim da escravidão é apresentado como uma perda econômica para o
dono do escravo, é lógico imaginar que, automaticamente, isto significaria
um ganho econômico para os escravos? Se a escravidão terminasse porque ela
era exploratória demais, não se deveria então esperar que a questão da
compensação econômica também tivesse sido levantada em relação a eles[13]?
Ao invés disso, o problema da escravidão é visto como de adaptação social
ao seu novo status. Uma das razões pelas quais Nash fica aquém de si mesmo
surge da maneira ambivalente com que ele lida com escravos e donos de
escravos. Os últimos falam diretamente por si mesmos, enquanto que os
primeiros precisam que se fale por eles, mesmo que eles possam ter suas
próprias ideias sobre como gostariam que as mudanças ocorressem.
Em todas estas transições, a questão central a ser perguntada
historicamente por aqueles que sofreram obviamente não era a mesma que
vinha daqueles que haviam, diretamente ou não, lucrado com o sistema, que
tenderiam a colocar questões que minimizavam seus aspectos mais
abomináveis. Para os anteriores, o desejo de fundo era trazer uma
transformação radical e eles formulariam as questão de forma a trazer à
tona a inaceitabilidade do sistema. Claro, isto será rebatido por aqueles
que argumentam que em virtude do mundo em que eles viviam, escravos não
poderiam abrigar uma visão tão radical quanto a de liberdade total (John
Edward Mason 1990, 431). Baseando seu argumento em um incidente do século
XIX, entre um detentor de escravos sul-africano e um escravo que foi
liberado - Mey -, Mason conclui:


"Quando Mey acusou Hendrik Albertus de ter injusta e ilegalmente lhe
espancado, foi, certamente, um ato de resistência contra o espancamento.
Mas foi uma forma curiosa de resistência. Ela não envolveu atingir
diretamente seu senhor ou tentar escapar, por um tempo ou para sempre, das
amarras da escravidão. Ela foi uma forma legal e institucionalizada de
resistência, dirigida especificamente ao uso inapropriado do chicote por
Hendrik Albertus. O esforço de Mey foi uma tentativa de melhorar sua vida
como um escravo, não de acabar com a servidão. Ao recorrer ao Protetor, ele
não esperava ser liberto, já que algo assim, em circunstâncias semelhantes,
nunca havia acontecido antes. Ele buscava uma medida de vingança e alguma
garantia de que, no futuro, seu senhor respeitaria a economia moral do
açoite".


Há pelo menos dois problemas principais neste tipo de reconstrução do
que se passava na mente dos escravos. A primeira, de forma interessante, é
reconhecida por Mason quando ele admite que há muito pouco "conhecido sobre
os fatos materiais da vida de Mey. Não há registro de sua família, se ele
tinha uma, de seu sobrenome, do nome ou do endereço do homem que o empregou
depois que ele foi liberto, ou sobre sua morte (1990, 426). Portanto, o
argumento de Mason se baseia em informações coletadas inteiramente do Livro
de Registros do Protetor dos Escravos para Cape Town.
O segundo problema está relacionado à questão das fontes, mas também
ao problema sobre como se reconstrói e conceitualiza a consciência de um
membro das "classes mais distantes" (Mason 1990, 426, citando Lady Anne
Barnard). Para um único Mey que esteve apto a, digamos, formular sua
resposta com alguma chance de sobrevivência física, quantos não viveram e,
mais seriamente, quantos estavam aptos a articular aquilo contra o que eles
realmente se colocavam? Mason procura um meio termo afirmando que "o
comportamento de escravos não pode 'ser encaixado nitidamente em categorias
como acomodação e resistência'" (Mason 1990, 431, citando R. J. Scott).
Mason reconhece todos os problemas relacionados aos vários filtros que
borraram o "Mey que existe no Livro de Registros". O exercício de Mason de
reconstruir a mentalidade da narrativa é comparável ao que os antropólogos
fizeram posteriormente durante a ocupação colonial. Também é comparável, de
forma geral, a resposta masculina às narrativas femininas de estrupo, indo
da afirmação extrema de que mulheres estupradas pediram por isso (culpar a
vítima) até variações da pressuposição de que as vítimas (quase por
definição) não são capazes de entender por que foram estupradas. Isto não
significa que homens são por definição incapazes de compreender o estupro
como as vítimas o compreendem. O argumento ao redor de uma compreensão
histórica do estupro pode ser formulado de forma igualmente forte, mesmo
sem o uso de gêneros, mas certamente é possível declarar que a maior parte
das vítimas de estupro são mulheres e a maior parte dos transgressores são
homens. Os parâmetros dentro dos quais Mason escolhe interpretar as ações
de Mey - sem se utilizar de muitas provas - também lembra as reações dos
colonizadores às lutas por independência nacional que foram mais ou menos
assim: os nativos são muito primitivos para entender conceitos de liberdade
e liberação. Se eles não tivessem lido sobre estas ideias em Rousseau e
Voltaire, eles nem estariam gritando por independência. Outra variação
desta linha era de atribuir o desejo de luta por independência ou a
"agitadores externos" ou a alguns poucos descontentes.
Todas as extrapolações são reconstruídas dentro da lógica da visão do
mundo dominante que pressupõe, por definição, que ele é o único capaz de
avançar rumo a explicação racional. A visão de mundo do escravo só pode ser
aquela de um escravo, independente da visão de mundo que ele ou ela podem
ter tido antes de serem escravizados já que, nos é dito, "a escravidão,
para a maior parte dos escravos, era inescapável" (Mason 1990 428). A outra
visão, fornecida pelos filósofos do Iluminismo - "o que significa liberdade
e liberação?" -, se torna, portanto, parte do arsenal da descoberta. A
menos que tenha sido articulada e/ou teorizada por uma voz da visão
dominante (ou uma assim aceita pelos guardiões dos portões), uma ideia, um
conceito ou mesmo uma história simplesmente não existe.
A reconstrução de Mason fornece uma outra ilustração útil sobre como
os paradigmas e os silêncios paradigmáticos são construídos na história
africana. Um sistema destrutivo como a escravidão não poderia senão
silenciar a todos os seus oponentes. Aquele que sobreviveram e foram
escravizados conheciam todos os seus custos, assim como a vítima do estupro
sabe o que significou ser violentada. Como vítimas de estupro, os escravos
não viviam em uma sociedade "amigável a escravos". Em ambos os casos, eles
estão/estavam operando em um ambiente que é/era hostil às denúncias e aos
ataques contra o sistema.
Por que não se pode contemplar a possibilidade de que Mey execrou não
apenas a escravidão, mas também tudo o que estava junto com ela? Já que,
por falta de evidências, somos forçados a especular, por que não se pode
especular que as mudanças que Mey queria não iam, na verdade, para além da
escravidão? Mesmo que Mey tenha nascido como escravo, certamente ele
precisa também ter sabido que, antes dele, ele teve ancestrais que viveram
em um mundo diferente onde a terra não era propriedade de pessoas brancas.
"Além da escravidão" não pode ser pressuposto como uma representação
apenas, como é obviamente sugerido por Mason, do mundo de acordo com os
donos de escravos. Verdade que, para escravos que foram enviados de navio
para o outro lado do Oceano Atlântico, a inelutabilidade da escravidão era
muito mais real do que na África do Sul; mas mesmo lá, nós conhecemos
insurreições que levaram às comunidades quilombolas. É, portanto, falacioso
prosseguir com a noção, como Mason sugere, de que a libertação da
escravidão só poderia vir dos próprios donos de escravos. O fato de que
fugas alternativas à libertação eram extremamente difíceis de alcançar não
as fez impossíveis.
Para alguns pode parecer que esta crítica está apenas fazendo falsas
polarizações. Não está porque busca chamar atenção para uma prática
profundamente incorporada entre historiadores que lidam com o capitalismo
tomando por certa a inevitabilidade do seu triunfo. Através desta lógica e
argumento autocentrados, o capitalismo é apresentado como o melhor sistema
possível já concebido por seres humanos[14]. Uma vez que se toma esta
inevitabilidade como dada, historiadores falharão em levantar questões ou
pensar em respostas para as questões que não tomam esta inevitabilidade
como dada.
Durante a descolonização, as vozes mais radicais avisam que não era
apenas o colonialismo que estava em julgamento, mas o capitalismo[15].
Vozes semelhantes foram ouvidas na África do Sul, mas, assim como durante a
transição do domínio colonial ao pós-colonial, a preocupação principal do
governo no poder é forçar seus planos nos adversários. O governo no poder
colocará seus adversários em um processo de peneira no fim do qual "líderes
responsáveis" surgirão para negociar a transição. Em outras palavras, há
limites para a universalidade ideológica a liberdade, especialmente se seus
advogados buscam romper com as amarras socioeconômicas e não apenas da
dominação política.


Sobre os limites e restrições do Iluminismo


Como já foi apontado por acadêmicos que analisaram o impacto da
Revolução Francesa na escravidão e no colonialismo, um discurso contra o
tráfico de escravos não coincidia necessariamente com um discurso
antiescravista e, finalmente, um discurso antiescravista não
necessariamente se traduzia em um discurso anticolonialista. Na verdade,
como regra geral, os filósofos do Iluminismo que argumentaram contra o
tráfico de escravos e a escravidão (com a possível exceção de Rousseau e
Diderot) só o fizeram porque estas práticas desonravam a civilização
europeia (Bénot 1981, 1987). O único pensador (mas, também, ele não
pertencia aos iluministas do século XVII) que manteve uma posição
relativamente de princípio foi Las Casas, cuja oposição à escravidão
significou oposição ao colonialismo (Galeano 1985; Orhant 1991)[16].
O anticolonialismo dos filósofos do Iluminismo não foi baseado em um
princípio de oposição, mas contra as maneiras com que o colonialismo estava
sendo realizado (Guy Vermée 1990, 40-41). Para eles, a ideologia da
liberdade universal fomentada por pessoas como Diderot foi entendida de
forma a significar a disseminação desta ideologia sob tutelagem da Europa.
Obstáculos à transição radical também vieram da manutenção de um
conceito de lei e ordem enraizado na ordem antiga. Para Condorcet, por
exemplo, seus argumentos entusiasmados pela abolição da escravidão são
dramaticamente moderados por sua insistência nas modalidades: a transição
tem que ser ordenada. Bem, alguém poderia perguntar, ordenada por quem?
(Joseph Jurt 1990, 49).
O problema do fim da escravidão também é de seu modo de representação;
para desviar a atenção da questão principal que é: se a história - das
lutas - é pensada e escrita da perspectiva daqueles que lutaram para mudá-
la radicalmente ou daqueles que lutaram para manter sua dominação. Então,
um proeminente historiador do sul dos Estados Unidos como C. Vann Woodward,
olhando para Harper's Ferry, um dos conflitos mais sangrentos daquele
período, que levou à Guerra Civil, o descreve como representante de um
"confronto entre duas Américas, cada uma lutando pelo domínio. Cada um dos
sistemas antagônicos tem seu próprio conjunto de interesses, instituições e
valores e, na longa perspectiva de quase um século, o confronto entre eles
assume aspectos típicos de outras lutas históricas por poder" (Woodward
1970, 221). Ele não está se referindo a escravos contra donos de escravos,
mas, em uma aproximação paternalista típica, aos lados ideológicos acerca
do destino dos escravos que estavam sendo debatidos. Os escravos são
reduzidos a expectadores.
De forma interessante, esta perspectiva é semelhante à maneira na qual
as lutas pelo fim do domínio colonial e Apartheid são subsumidas aos
"maiores perigos da humanidade", i.e., o confronto ideológico entre
comunismo e capitalismo. Em ambos os casos, força-se o confronto dos
principais protagonistas (escravo contra dono de escravos; colonizadores
contra colonizados; brancos contra não-brancos na África do Sul) a um pano
de fundo em que ele é substituído com o que é percebido como uma crise
maior. Os abolicionistas eram a favor da abolição do trabalho escravo, mas
não pela abolição da exploração do trabalho pelo capital, que é contra o
que os escravos mais radicais lutavam. Cavar um abismo entre duas América,
uma contra a outra, significava que o capitalismo ele mesmo não seria
colocado em questão já que a questão se transformou em como humanizá-lo.
Porque a atenção estava toda concentrada na Guerra Civil, a batalha entre
escravos e donos de escravos foi ignorada e o comércio de escravos nunca
foi reconhecido como base para o sucesso do capitalismo.


Transições, lei e ordem e definições de violência


Durante os últimos anos do Apartheid oficial na África do Sul, um
fenômeno parecido com a 'autonomia da escravidão (doméstica) africana'
mencionado acima pode ser observado na transformação da violência do
Apartheid como 'violência de negros contra negros'. Uma vez que o fenômeno
criou raízes, e foi alimentado pelo Apartheid, ele pôde tomar vida própria.
Portanto, as peculiaridades do sistema do Apartheid foram analisadas não
muito nos termos da necessidade de se desenraizar a fonte de sua
brutalização e desumanização, mas nos termos de por um fim à brutalização e
desumanização. Por exemplo, quando os Frontline States buscaram descrever o
Apartheid como o Nazismo dos anos oitenta foram em geral ignorados, e nos
casos em que não o foram, alguns acadêmicos se apressaram em apontar que as
semelhanças que poderia haver entre o sistema de Apartheid e o fascismo
hitlerista não eram suficientes para servir como base de comparação.
As razões para se descrever o Apartheid como o Nazismo dos anos
oitenta foram diretamente relacionadas aos esforços dos Líderes do
Frontline States para pôr um fim ao sofrimento dos povos da região. Foi uma
tentativa para fazer os aliados ocidentais do regime do Apartheid
entenderem que a magnitude da destruição realmente se assemelhava ao que
aconteceu no regime de Hitler. Foi uma tentativa de provocar uma resposta
moral e política. O pressuposto oculto era de que se a comparação fosse
válida, então a resposta lógica dos líderes Ocidentais deveria ser ditada
pelos princípios estabelecidos nos Julgamentos de Nuremberg[17]. No
entanto, esses princípios podem ser lidos de formas bastante diferentes,
principalmente se transformações de relações de poder estão em jogo; porém,
para os poderes ocidentais, os resultados dos Julgamentos de Nuremberg só
provam que eles são os únicos capazes de distinguir entre o bem e o mal.
Eles não se deram conta de que os julgamentos paradoxalmente abrem um
precedente perigoso: os ganhadores nunca podem estar errados.
A resposta dos estados do Ocidente confirmaram um dos cânones da
história colonial: apenas o poder dominante tem o direito de decidir o que
tem aplicabilidade universal e o que não tem. Mesmo que um dos objetivos
dos Julgamentos de Nuremberg tenham sido prevenir qualquer recorrência do
Holocausto, aqueles que assinaram os Princípios de Nuremberg, pode se
dizer, foram os primeiros a violar estes princípios quando os Estados
Unidos lançaram a bomba atômica sobre Hiroshima e combinaram a este crime o
lançamento de outra sobre Nagasaki.
Em seu artigo bastante inteligente não fosse a seguinte falha,
Allister Sparks pode ter enganado seus leitores sem intenção quando
aplaudiu o governo estadunidense por ter prezado os princípios de Nuremberg
ao compensar os japoneses que foram cativos em campos de concentração
durante a Segunda Guerra (Sparks 1992). O governo estadunidense nunca
chegou perto de pedir desculpas, muito menos de reparar e recompensar a
terra roubada dos indígenas ou a escravização de milhões de africanos.
Sparks estava correto em sua crítica a como os líderes do Apartheid fugiram
da 'confissão e reparação', porém reproduziu este mesmo pensamento quando
falhou em compreender que o passado estadunidense vai mais longe do que a
Segunda Guerra Mundial. Começa com uma constituição escrita por donos de
escravos, por pessoas que pegaram emprestado o modelo de constituição das
pessoas cuja terra tinham roubaram (Mander 1991).
Não é difícil de imaginar por que De Klerk não alimentaria uma
situação parecida com os Julgamentos de Nuremberg, já que corria o risco de
erodir qualquer ar de legitimidade que o governo ainda tinha. O equivalente
estadunidense ao que Allister Sparks estava cobrando do governo sul-
africano deveria ter sido confissão e reparação aos indígenas norte-
americanos e afro-americanos, e, entre outras coisas, a abertura dos
arquivos da CIA às vítimas das guerras patrocinadas pelos Estados Unidos em
países estrangeiros[18].
Em seu ensaio 'Na face humana da violência' (1992), Lauren Segal
abordou a violência em albergues da mesma forma com que antropólogos,
durante o regime colonial, abordaram os confrontos violentos que precediam
imediatamente a independência. Segal tentou abordar a violência de maneira
"objetiva", porém assim como os antropólogos que estudavam a vida nas
aldeias sob regime colonial falharam em conectar as situações descritas nas
aldeias à situação colonial, Segal abstrai a violência do contexto
histórico do Apartheid, cuja premissa primeira é fomentar o confronto
violento entre vítimas do Apartheid. É difícil aceitar a premissa de que
quanto mais detalhadas são as provas coletadas daqueles diretamente
envolvidos com a violência, melhor se entenderá a violência. No estudo
antropológico da violência tem se dado mais atenção às vítimas da violência
do que àqueles que estão na raiz dela. Por que foi mais fácil se chocar com
a violência praticada nas cidades do que com as atividades 'não violentas'
daqueles que não pegaram fisicamente em armas? Será que o estudo da
violência está sendo deturpada por que é mais fácil estudar suas vítimas
que seus planejadores e instigadores? Tal aceitação das situações que são
naturalizadas automaticamente significa que cientistas sociais não terão o
trabalho de fazer as perguntas necessárias. E afastar-se dessas perguntas
só pode ser visto como reação óbvia de autoproteção daqueles que estão no
poder.


Violência e a definição de poder: transição para o que?


A definição da violência carrega consigo a definição de poder. Mike
Morris e Doug Hindson (1992) buscaram traçar a origem da violência dos anos
oitenta na África do Sul até o desaparecimento do Estado de Apartheid: "'As
raízes da violência devem ser buscadas não na implementação das formas do
Apartheid de controle social, mas no colapso dessas formas; não na
continuada manutenção do Apartheid, mas na tentativa de se
institucionalizar uma nova base social na fundação de uma sociedade
racialmente dividida' (1992, 45-6). Essa avaliação está apenas parcialmente
correta. É verdade que no processo de redesenhar as linhas de batalha, o
racismo continuará a ser um ingrediente poderoso, mas o que foi reafirmado
na África do Sul é que já que raça não deveria ser mais o critério
dominante, classe o será. Morris e Hindson, após declarar sua oposição à
'reconstrução que acentua distinções de classe', concordaram em sua
discussão com as soluções nas quais tais divisões de classe terão de ser
aceitas.
Em seu discurso, há um eco do modo abolicionista tão bem criticado por
Nash: é mais fácil enxergar a história através dos olhos dos prováveis
vitimizadores do que das vítimas. Além disso, há uma semelhança mais
profunda: as distinções de classe e raça que foram forjadas sob a
escravidão e o Apartheid tiveram de ser mantidas. Somente os aspectos mais
ofensivos tiveram de ser removidos. A questão mais espinhosa de como se
deve abordar e reparar as divisões e distinções criadas e aprofundadas pelo
Apartheid foi debatida entre parâmetros construídos de forma abstrata ao
invés de se basear nas demandas específicas feitas pelos grupos que mais
sofreram com isso.
Apesar de Morris e Hindson tentarem distinguir sua posição da dos
neoliberais, eles chegaram bastante próximos quando sugeriram uma abordagem
que 'reconhece a existência continuada de contradições de classe mas que
tenta conter os excessos do mercado/sistema de propriedade privada, em vez
de eliminá-los' (1992, 56). Em outras palavras, estavam dispostos à
mudança, mas as mudanças não poderiam ser tão drásticas a ponto de ameaçar
ou causar dano ao mundo de privilégios acumulados. Como poderiam fazer um
chamado à desracialização quando estavam chamando ao mesmo tempo pela
implementação de impostos e sistemas de gastos que, em seus pontos de
vista, iriam reduzir 'diferenças residenciais de classe, sem modificar
radicalmente as configurações residenciais existentes' (Morris e Hindson
1992, 57; grifo do autor)?[19]
Essa é uma reformulação da síndrome abolicionista na qual os
produtores da riqueza não tiveram a possibilidade de especificarem como
queriam ser recompensados. Uma abordagem alternativa começaria da premissa
de que um dos possíveis resultados de todo o processo será o infortúnio de
um sistema que se reproduziu através da constante reforma e reestruturação
dos mecanismos de repressão e exploração. Essa abordagem, contudo, poderia
somente ser articulada a partir de uma posição que não vê o poder estatal
como objetivo final. A força de tal posicionamento viria da recusa em
entrar no terreno onde as regras continuam a ser escritas pelos
beneficiados do atual sistema socioeconômico dominante.
A linha de argumento propagada por Morris e Hindson tinha claramente
como objetivo demonstrar que as forças progressistas da África do Sul
tinham algo de razoável: "Devemos partir do ponto de que, até certo grau, a
divisão de classe tomará o lugar da divisão de raça, em vez de ter as
divisões de raça substituídas por uma sociedade sem classes" (1992, 57).
Admitindo isso ou não, estavam engajados na mesma tarefa que todas as
forças nacionalistas, de Nkrumah a Mugabe, estavam sendo forçados mostrar
que Mandela e sua equipe seriam líderes responsáveis. E devemos entender
responsabilidade em relação aos líderes anteriores (com quem a transição ao
poder foi negociada) e não à coalizão de forças que os havia empurrado às
linhas de frente da batalha. Já em 1961, Fanon analisou esse mesmo processo
em que intelectuais nativos trocavam seus papéis de líderes dos miseráveis
pelo de intermediários e pacificadores[20].
Até o começo do processo de negociação, havia indícios na África do
Sul de que a relação de forças havia mudado de forma tão dramática que
erros anteriores seriam evitados. Em histórias passadas de libertação
nacional, sempre vinha um momento quando o movimento de libertação tinha
que deixar de construir uma poder alternativo para tomar o poder. Em todos
os casos, esse é o momento mais difícil de qualquer transição, porque
apesar dos argumentos contrários, isso levou à transformação da luta e,
claro, à transformação do estado colonial. Resumindo, o movimento de
libertação foi desde o chamado pelo desmantelamento do estado colonial ou
de Apartheid até a negociação da forma que iria tomar controle de um estado
que ainda era colonial. Não importa o quanto isso foi racionalizado, é
contraditório: leva à tomada de controle de estruturas alienadas e
alienantes de poderes econômicos, administrativos e políticos que não
poderiam se não desacelerar automaticamente, ou, em alguns casos, parar ou
reverter o processo de transformação.
Em outras palavras, é a mesma questão que Lênin abordou em Estado e
Revolução. Em quase todos os casos da África pós-colonial (uma exceção
possível seria a Eritreia) a revolução foi ditada de dentro do estado, o
que é análogo a pensar que um navio possa ser construído na água.
Um dos melhores exemplos da impossibilidade de se construir uma
revolução de dentro de um estado é o caso de Moçambique, onde, entre 1975
(ano da independência depois de 10 anos de luta armada) e 1980, a Frente de
Libertação de Moçambique continuava a chamar pela destruição do estado
colonial mesmo com o governo dependendo de estruturas e procedimentos
administrativos (como, por exemplo, do infame 'papel azul' para ter
qualquer permissão para viajar, deixar o país ou ser transferido para um
país onde a maioria não falasse português, muito menos 'português
legalês').
A questão de um caminho alternativo não pode ser evitada mesmo se em
seu estupor triunfante, o capitalismo negue tal possibilidade. Terá de vir
daqueles que foram silenciados. Mas o problema não se resolve de forma tão
simples, pois como se pode reparar algo que fora danificado para além do
reparo? Em seu livro Foe, J.M. Coetzee exemplifica esse caso muito bem com
a descrição que ele dá de Friday. Os traficantes de escravos haviam cortado
sua língua para que eu não pudesse mais falar. Quando sua salvadora Susan
tenta encontrar maneiras de o levar de volta à África, ela percebe que
devido ao estado em que se encontra, tal retorno não seria possível porque
o mundo está dominado por urubus prontos para derrubar Friday na hora que
se encontrar em liberdade, e o venderão de volta à escravidão. Apesar de
Coetzee não conseguir escrever um romance livre de paternalismo, ele mostra
que depois da escravidão, é uma ilusão achar que aqueles que escravizaram
pudessem devolver a liberdade; a liberdade não pode ser devolvida, só pode
ser arrancada. A incapacidade de Coetzee é depois mais aparente com a
imagem de Friday trabalhando duro para se expressar através da escrita… em
inglês, a língua dos escravizadores, e não a língua de seus ancestrais. A
interpretação mais positiva que se pode fazer desse final é que o caminho
para a recuperação será mesmo muito longo e tortuoso.


Da escravidão ao Apartheid: genocídio de baixa intensidade


Analogias históricas são mais fáceis de se fazer do que de provar, mas
elas podem ajudar a fornecer quadros conceituais criativos. Referindo-se à
parte anterior da discussão sobre escravidão, é possível dizer que a África
é em escala global o que o Sul dos Estados Unidos é para o Norte, enquanto
que o Norte seria representado hoje pelos países industrializados do
"Ocidente". Movimentos anti-Apartheid no Norte tiveram um papel importante
em forçar o começo da transição. Mas quando, para assim dizer, eles
pensaram que as coisas já estavam andando, os governos do Ocidente foram
bastante rápidos em rescindir sanções econômicas, encorajando assim o
governo sul-africano a arrastar seus pés ao fomentar abertamente "violência
de negros contra negros" e atribuir suas causas aos conflitos entre os
apoiadores da Congresso Nacional Africano (ANC) e os membros do Inkatha.
Isto está longe de ser prática nova. Uma estratégia semelhante foi
concatenada nos anos cinquenta por John Foster Dulles, então secretário de
estados dos Estados Unidos, que argumentava que a melhor maneira de manter
o poder estadunidense no pacífico era deixar os asiáticos lutarem contra os
asiáticos. Já nos anos oitenta, esta estratégia tinha adquirido o nome de
"conflito de baixa intensidade" (CBI) (Barnet 1988, 207). "Baixa" se
referia aos custos financeiros e a visibilidade do ponto de vista dos
principais patrocinadores. De acordo com a definição do Chefe do Estado
Maior Conjunto dos Estados Unidos, CBI significa:


"Uma luta político-militar limitada a alcançar objetivos políticos,
sociais, econômicos ou psicológicos. É frequentemente prolongado e se
estende a pressões diplomáticas, econômicas e psicossociais, passando por
terrorismo e insurgência. Conflitos de baixa intensidade geralmente são
confinados a uma área geográfica e são geralmente caracterizados por
restrições de armamento, tática e nível de violência". (Comando de
Treinamento e Doutrinação do Exército dos EUA, Conceito operacional de
Conflito de Baixa Intensidade do Exército dos EUA, Panfleto TRADOC # 525-44
(Fort Monroe, Va. 1986, 2), citado em Klare 1988, 53).


O conceito de crime contra a humanidade e seus corolários de genocídio
e o Holocausto nasceram da história da Segunda Guerra Mundial. Há uma
interpretação exclusivista do Holocausto que argumenta que não há outro
evento na história comparável ao que aconteceu com os judeus sob domínio
hitlerista na Alemanha[21]. Os defensores deste ponto de vista estão certos
no que concerne à história dos judeus, mas à luz dos precedentes advindos
das deliberações e do julgamento de Nuremberg que definiu o Holocausto como
um crime contra a humanidade, a interpretação exclusivista é contraditória
e encoraja o pensamento oposto àquilo que o tribunal estava tentando
estabelecer, a saber, o uso de um precedente como meios de prevenir a
recorrência de crimes semelhantes e comparáveis.
Desde os Julgamentos de Nuremberg, o medo daqueles que posaram como
vitoriosos e juízes era de que eles poderiam ser utilizados com precedente
contra qualquer um deles. (Minear 1971, 10-14; Arendt 1964, 262; Kuper
1981, 46). Esta é uma das razões utilizadas pelos exclusivistas para
argumentar que é a-histórico olhar para a escravidão atlântica como um
crime contra a humanidade porque, na época em que ele aconteceu, não havia
tal conceito. Claro que a interpretação exclusivista coincide com o modo de
pensamento abolicionista quando chega à questão da violação de direitos
humanos. Os poderes que adquiriram colônias e que pisotearam os direitos
humanos para torná-las lucrativas, agora lançaram-se a frente como linha de
frente dos advogados dos direitos humanos. Seu sucesso dependerá, entre
outras coisas, em seu sucesso em erradicar totalmente a memória popular.


A título de conclusão: notas de um diário


Por volta de 1992, Winnie Mandela foi condenada virulentamente na
imprensa ocidental, especificamente no New York Times. "De santa a
pecadora", dizia uma das manchetes. De acordo com qual sistema jurídico?
Aquele que operava na África do Sul? Se sim, e caso se for tomar o mesmo
padrão de referência, onde-se se colocaria De Klerk, Buthelezi e companhia?
Ou devemos ficar satisfeitos com o fato de que desde que estes foram
reconhecidos como pecadores, não precisamos nem mesmo nos dar ao trabalho
de julgá-los? Mas há um problema aí: é justamente porque De Klerk ainda
estava no poder e apoiado pelos poderes ocidentais que ele não foi julgado
com base nas mesmas premissas que Winnie Mandela. Buthelezi e De Klerk,
para focar apenas nestes dois, podem se esconder atrás do escudo do estado.
Não é necessário ser um apoiador incondicional de Winnie Mandela para ver
que há algo de obscenamente errado quando seus supostos crimes fazem dela
pária em um país que, naquele tempo, ainda estava sendo dirigido por um
ditador cujos registros criminais ainda cresciam[22].
"A lenda da mãe da nação nunca foi verdadeira?", perguntava o Weekly
Mail de 16 a 23 de abril de 1992, e então seguia a responder negativamente.
No nível político e ideológico, não há assunto na África do Sul que hoje
ilustre melhor as consequências devastadoras do domínio do Apartheid do que
a aparente perda total da capacidade de julgar e decidir fora de parâmetros
históricos autoderrotados. Este ensaio argumenta que tal exercício se
tornou quase impossível porque há uma recusa/medo implícito e às vezes
explícito de colocar em julgamento fundações econômicas e históricas do
sistema capitalista e suas variações coloniais e de Apartheid.
Embora não seja de forma alguma comparável, o assassinato da Beloved
por Seth faz lembrar da ordem de Winnie Mandela e sua participação no
assassinato de Stompie Moeketsi Seipei. Enquanto se pode ler as razões por
trás de cada ato, o ato de Winnie Mandela parece completamente e totalmente
imperdoável, ao passo que a narração de Toni Morrison de como Sethe veio a
matar Beloved faz com que o ato de Sethe se torne mais problemático de
julgar. O romance de Morrison - Beloved - foi construído ao redor de um
incidente da vida real que aconteceu na fuga de uma escrava com o nome de
Margaret Garnet. Quando ela viu homens brancos indo atrás dela, ela matou
sua filha nascida na escravidão (Beloved) porque ela não poderia suportar a
ideia de vê-la retornar àquele estado para o qual era muito nova para
entender. Na vida real, Margaret Garner (Sethe) foi julgada não por
assassinar sua filha, mas por fugir (Darling 1988).
Se as ações de Sethe e Winnie não são comparáveis, por que então olhar
para elas? Há três aspectos cruciais: primeiro a questão de quem é
qualificado para estar em julgamento. Segundo, que critério deve ser
utilizado no julgamento. Terceiro, a questão da cura. Em Beloved, o caso é
apresentado pela autora que diz não poder julgar, enquanto o faz claramente
colocando em cena um diálogo entre os dois protagonistas principais, para
facilitar julgamento. Como Morrison expressou:


Cheguei num ponto em que me perguntava quem poderia julgar Sethe
adequadamente, já que eu não podia, e mais ninguém que a conhecia podia,
realmente, senti que a única pessoa que podia julgá-la seria a filha que
ela matou (Darling, 1988, 5)


Quem poderia julgar Winnie Mandela, além dos seus pares, dos quais
Seipei seria o primeiro, no topo de uma lista que também incluiria mãe,
pai, irmãs, irmãos, tios e tias de Seipei, e também, entre outros, Ruth
First e milhares de vítimas conhecidas e não tão conhecidas do Apartheid?
Mas dada a especificidade do que Winnie Mandela sofreu, quem são seus
pares? Em relação ao segundo ponto a respeito do critério, Morrison pega
emprestado da tradição Africana como pensar e praticar a justiça: ela tem
que envolver não somente a comunidade dos vivos, mas também o mundo dos
ancestrais (de onde Beloved tinha voltado). Finalmente ao terceiro ponto:
cura. Isso, na perspectiva do Morrison, não pode ser separado da justiça:
esta última tem que andar de mãos dadas com o engendramento de um processo
de cura, tanto no nível do indivíduo, quanto ao nível da comunidade.
Em comunidades ou vilas africanas que conseguiram salvaguardar seu
sistema de valores, o ato de Winnie Mandela não seria julgado apenas da
perspectiva do indivíduo culpado, mas também do ponto de vista da
comunidade. Uma vez que um indivíduo cometeu tal crime, o ato não pode e
não será julgado somente em relação ao individuo, mas, sobretudo, em
relação à comunidade, pressupondo que, para que um indivíduo tenha se
desviado para tão longe, a comunidade deve ter feito algo que contribuiu
para isso de uma forma ou outra. Em que tipo de comunidade Winnie Mandela
estava vivendo? Uma que alimentava a humanidade de todos os sul-africanos?
Uma que cultivava os princípios de ética e verdade? Ou era aquela
comunidade que tinha o Apartheid por imagem na África do Sul? Como ainda
estamos aprendendo, a capacidade da África do Sul do Apartheid de
destruição da humanidade dos não-brancos alcançou níveis inimagináveis.
Ainda não sabemos a extensão e profundidade dessa destruição. No entanto,
tendo em conta que eram maus de qualquer forma, os Bothas e seus
semelhantes, os juízes no sistema judicial não foram responsabilizados por
seus inúmeros crimes, enquanto Winnie Mandela tem sido linchada porque
deveria ser a boa pessoa. Numa sociedade cada vez mais impulsionada pelo
individualismo, deveríamos nos surpreender que esta sociedade tenha perdido
sua bússola e sua capacidade de inculcar em seus membros a capacidade de
distinguir o mal do bem? Nessas sociedades, o perigo paira - ninguém pode
ter certeza - pois aqueles achando que não perderam suas bússolas, já a
perderam.
Ao ir atrás somente de Winnie Mandela, o ANC, a Comissão da Verdade e
Reconciliação (TRC), em suma, todas as estruturas de estado - realizaram o
que se espera das estruturas de estado: reprimir, julgar, sancionar e
punir. Estruturas de estado não podem curar. Estruturas de estado,
especialmente na África do Sul do Apartheid (verdade que agora, lentamente,
se movendo para longe disso), eram destinadas a destruir. Durante o período
de transição, severas limitações foram forçadas (do ponto do visto da cura)
numa estrutura de estado como a da TRC. A cura só pode ser posta em
movimento por estruturas comunitárias que praticam políticas diferentes
daquelas impostas pelo estado. É verdade que um dos objetivos da TRC era
curar, mas é difícil ver como isso poderia ter sido possível já que a TRC
foi, em grande parte, produto das próprias estruturas do estado que
deveriam estar sendo julgadas, mas nunca foram. Beloved é um romance que
coloca questões históricas e sugere respostas das quais historiadores
preferem ficar longe. Construído em torno de personagens individuais, ele
procura trazer para fora a memória coletiva que tinha sido enterrada. O
assassinato da filha é tão horripilante que ninguém suporta lembrá-lo. Para
Morrison, tal morte que levou ao silêncio é reminiscente da Passagem do
Meio. Esse tipo de morte só pode ser julgada em relação à Passagem
(silenciada) do Meio.
Além disso, em relação ao julgamento, a outra questão importante que
interessou Morrison não era tanto quem está sendo julgado, mas como está
sendo julgado. Ela examina essa questão através de uma avaliação da
escravidão de Baby Sugg (a mãe de Sethe) "Não tinha azar. Tinha pessoas
brancas. Eles não sabem quando parar" (Morrison 1987, 104). Para
Morrison, Baby Sugg age como a consciência/memória da comunidade Africana
quando ela chama seus membros a amar completamente cada parte do seu corpo:


"E, ó, meu povo eles não amam suas mãos. Elas eles só usam, amarram
com laço, cortam fora e deixam vazio. Amem suas mãos! Ame-as. Levante-as e
beije-as. Toquem os outros com elas, esfreguem uma na outra, acaricie seu
rosto com elas "porque eles também não amam isso. Você tem que amá-la, ei,
você! E não, eles não estão apaixonados por sua boca. Você tem que amá-la.
Além, lá fora, eles vão vê-la quebrada e vão quebrá-la de novo. O que você
disser para fora dela, eles não vão ligar. O que você gritar por ela, eles
não vão ouvir. O que você colocar dentro dela para nutrir seu corpo, eles
vão tirar de você e te dar restinhos de comida. Não, eles não amam a sua
boca. Você tem que amá-la. (Morrison 1987, 88)."


Metaforicamente, Winnie Mandela, apesar da gravidade dos seus pecados
- e eram graves - era, sem dúvida, parte do corpo que se levantou contra
Apartheid. A sobrevivência de um indivíduo depende dele ou dela amar cada
parte do seu corpo independentemente do que pode ser dito sobre ele. Com
base no que é conhecido, é justo assumir que esta é a avaliação que levou
Mandela a concluir que, na medida em que lhe dizia respeito, ela não era
culpada. Re-lembrar os des-membrados não é uma tarefa fácil, a solução mais
fácil é fugir e fingir que episódios horripilantes não aconteceram. Uma
transformação radical da África do Sul dependerá muito mais de como o
passado é re-lembrado do que como o futuro é planejado. O que Morrison
disse sobre a escravidão também pode ser dito sobre o Apartheid: "Há uma
necessidade de lembrar o horror, mas claro que há uma necessidade de lembrá-
lo de uma maneira com que ele possa ser digerido, de uma maneira com que a
memória não seja destrutiva" (Darling 1988, 5)[23].
-----------------------
[1] Gostaria de agradecer as seguintes pessoas por terem lido, comentado e
criticado os esboços deste trabalho: Bridgei o'Laughlin, Ernest Wamba-dia-
Wamba, Olabiyi Yai, Pauline Wynter, Paul Harvey, Ula Iaylor, Lawrence
Levine, Dona Jones, Rakesh Bandhari. Eles não são, contudo, responsáveis
por essa versão final.
[2] Uma versão levemente diferente deste texto foi preparada para o
simpósio de memorial a Ruth First na Western Cape University (Agosto 17-17,
1992), África do Sul, celebrando o décimo aniversário de sua morte por uma
carta-bomba no Centro de Estudos Africanos, na Universidade de Eduardo
Mondlane, Maputo, Moçambique (Agosto 17-18, 1992). A eleição presidencial
ainda não tinha ocorrido. A transferência de poder político não significa
necessariamente a transformação das relações sociais e econômicas
profundamente enraizadas.
[3] Exceções notáveis a esta tendência podem ser encontradas (em 1992),
entre outros lugares, nos debates e artigos que apareceram no Work in
Progess (por exemplo, Nos. 77, 78) e no South African Labour Bulletin.
[4] Ver o artigo de Susan George "Un apartheid planétaire (1993). Sobre
como Apartheid está sendo modernizado na França, ver Sami Naïr, La lettre à
Charles Pasqua de la part de ceux qui ne sont pas bien nés (Paris: Seuil,
1994). Sem usar a palavra, Serge Latouche descreve o mesmo fenômeno numa
escala global em La Planète des naufragés, (Paris: La Dicouverte, 1991).
Embora, desta vez, muito mais do que sob o "Apartheid clássico", o poder
será concentrado nas mãos de corporações globais e, inicialmente, com menos
vias para recursos políticos. Ver Richard Barnet e John Cavanagh, Global
Dreams: Imperial Corporations and the New World Order (New York: Simon and
Schuster, 1994).
[5] Nota da tradução: o autor se utiliza de um trocadilho impossível em
português. As palavras "remember" (relembrar) e "dismembered"
(desmembrados) ambas possuem o radical "member" que significa membro.
Assim, re-lembrar em inglês também é literalmente re-membrar.

[6] A síndrome abolicionista é uma manifestação da síndrome da descoberta.
Escravos tinham se revoltado contra a instituição muito tempo antes que os
abolicionistas (não escravos) tivessem pedido seu fim e ficado consagrados
na literatura como aqueles que acabaram com a escravidão. A lição: escravos
não poderiam ter "inventado" o fim da escravidão. Estas síndromes também
são produto das relações de poder, e são mantidas vivas através destas
relações de poder. A revista Slavery and Abolition exemplifica como os
historiadores preferiam a perspectiva dos donos de escravos, ao invés de,
por exemplo, revoltas de escravos ou resistência à escravidão. A abolição
não abrange as revoltas de escravos, mas estas abrangem a primeira e, mais
importante, de acordo com os termos daqueles que foram escravizados e
lutaram para acabar com ela.
[7] Abolicionismo está sendo usado aqui num sentido amplo, não levando em
conta a distinção entre, por exemplo, William Lloyd Garrison que advogava
pela emancipação total, completa e imediata, sem compensação, e alguém como
Jefferson que desejava vagamente alguma emancipação definitiva e com
compensação. O primeiro seria chamado "abolicionista" e o último
"emancipacionista". No entanto, para os fins deste artigo os dois seriam
abolicionistas. Free Soil, Free Labor, Free Men: The Ideology of the
Repúblican Party Before the Civil War do Eric Foner (New York: Oxford
University Press, 1970) mostra como os parâmetros daqueles que controlam o
poder econômico e politico também podem limitar os parâmetros e questões
dos historiadores. Como os historiadores podem se libertar de tais
limitações é mostrado, entre outros, nos trabalhos de Eugene D. Genovese
(1976, 11979), Merton L. Dillon (1990), Jaqueline Jones (1985), Sylvia R.
Frey (1991), e Barabara J. Fields (1982). Mas isto é somente um resumo de
uma amostra de literatura que tem explodido e que, em parte, presta contas
ao espanto daqueles que continuam a achar que a história pode ser escrita
apenas por quem controlava a palavra escrita e os arquivos. Como Grethchen
Gerzina (1995:2) apontou no que diz respeito a uma outra figura emblemática
do movimento abolicionista, Granville Sharp, advogar por justiça racial
nunca significou exigir igualdade racial, algo que até hoje continua a ser
problemático.
[8] Ver também A. Leon Higginbotham, In the matter of Color, Race and the
American Legal Process. The Colonial Period (New York: Oxford University
Press, 1978), que documenta a velocidade lenta, se não recalcitrante, para
a abolição do escravidão.
[9] No seu Water from the Rock: Black Resistance in a Revolutionary Age
(Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991), Sylvia R. Frey mostra
como o radicalismo anti-escravidão específico dos próprios escravos forçou
donos de escravos a descobrirem os horrores do sistema que eles tinham
criado, mas também como, segundo um pesquisador, donos de escravos
pressionaram instituições mediadoras com as igrejas a se retirarem de sua
"aberta oposição à escravidão" (James Oakes, The Ruling Race: A History of
the American Slaveholders [New York: Alfred A. Knopf, 1982], p. 108, como
citado por Sylvia Frey, 1991:243).
[10] Do qual Way of Death: Mechant Capitalism and the Angolan Slave Trade
1730-1830 (1998) de J.C. Miller é exemplar. E esta falsificação que
primeiro levou Philip D. Curtin (1969) a focar no jogo dos números, e
depois P. Lovejoy (1983) a reivindicar que o Califado de Sokoto foi o maior
cativeiro de escravos da historia do mundo. Um dos críticos mais
persistentes e aguçado dessas abordagens tem sido J. Inikori (1992a, 1992v,
1992c). O esforço comum por detrás das demografias dominantes da área
acadêmica do comércio de escravos é por fim semelhante àqueles
pesquisadores que têm tentado discutir (para baixo) os números de judeus
que foram assassinados durante a Segunda Guerra Mundial. Como Umberto Eco
tem apontado (a respeito dos judeus), o problema não é que não vale a pena
ter dados mais precisos, mas "o que é intolerável é quando algo que poderia
ter sido um trabalho de pesquisa, não tem mais sentido e valor, e se torna
uma mensagem sugerindo que "se um pouco menos de judeus do que nós achamos
tivessem sido mortos, não teria havido crime" (citação de Umberto Eco,
"Tolerance and the intolerable," Index on Censorship, ½ 1994, p.53).
[11] No seu Logiques Métisses (1990), Jean-Loup Amselle mantém bem sua
posição e é muito mais crítico da problemática antropológica do que ele
estava disposto a ser mais cedo em Au coeur de l´ethnie (com E. M´Bokolo,
1985).
[12] O mais recente sendo um artigo de revisão de W. MacGaffey no Journal
of African History, 32 (1991), p. 515-519 intitulado "Who owns Egypt". Ver
também a descrição das reações de R. Mauny a uma das palestras de C. A.
Diop, The Cultural Unity of Black África (1988:231-2).
[13] Como as lutas pelos Direitos Civis dos anos sessenta mostrariam, a
compensação econômica nunca se materializou, e mesmo se tivesse, ela foi
claramente planejada como meio de subjugação ao invés de promoção de
emancipação verdadeira.
[14] Para uma boa discussão da questão da inevitabilidade ver La résistible
fatalité de l´histoire (Paris: J.-E. Hallier; A. Michel, 1982) de Pierre
Raymond.
[15] Além das vozes usuais de Fanon, Cabral, Rodney, deveria se notar
também as menos conhecidas de Osende Afana (1966), Ruben Um Nyobe e os
diversos resistentes anônimos (na África, assim como fora dela) que talvez
não conhecessem o monstro pelo nome, mas que vivenciaram em primeira mão
seus poderes letais. Ver Fredi Perlman, Against His-story, Against
Leviathan! (Detroit: Black and Red Press, 1983).
[16] É interessante notar que a aproximação de Las Casas com os índios foi
histórica e não etnográfica, como bem pontuado por A. Pagden em "Ilus et
Factum: Text and Experience in the Writings og Bartolomé de Las Casas,"
Representations, #33 (Winter 1991), p.157. Tem sido argumentado que a
atuação exemplar de Las Casas não foi totalmente pura, já que ele mostrou
maior sensitividade à condição da população nativo-americana do que com a
dos escravos da África.
[17] Isso aconteceu especialmente entre 1981 e 1984. Em Moçambique foram
produzidos cartazes com a legenda: "Apartheid é crime". Curiosamente, um
acadêmico sul-africano branco que visitou Moçambique na época alegou não
entender o cartaz.
[18] "Razões de estado" continuam sendo os meios mais poderosos de
silenciamento, mas até aqui, um tratamento diferente pode ocorrer
dependendo da classe e origem nacional dos requerentes, como o caso dos
assassinos de um cidadão americano e o marido guatemalo de um cidadão
americano nas mãos de um coronel guatemalo empregado pela CIA mostrou (New
York Times, primeira semana de Abril 1994). Claramente, para a reparação
ser significativa e duradoura para as vítimas e/ou descendentes, seu
critério teria que ser definido e determinado da perspectiva deles e em
termos que evitem as armadilhas de recompensas relacionadas aos sinais
atualmente dominantes e aos selos da riqueza econômica e financeira.
[19] Para uma boa resposta a Morris e Hindson, ver Rok Ajulu, "Political
Violence in South África: A Rejoinder to Morris and Hindson", Review of
African Political Economy, 55, (1992):67-83, onde o escritor aponta como os
governantes do Apartheid procuravam prejudicar a transição se convertendo
subitamente à privatização depois de 40 anos de política intervencionista
intensa. Ver também M. Szeftel, "Manoeuvres of War in South Africa", Review
of African Political Economy, 51, (1991).
[20] Especialmente o capítulo "Concerning Violence" (1991:35-106).
[21] Sobre como esta interpretação exclusivista está sendo construída, ver
Franck Chalk, 1989 e Steven Katz, 1989. Poderia se argumentar que o
trabalho de L.Kuper (1981, 1985), especialmente com sua ênfase em usar
precedentes históricos como meio de reforçar a prevenção, iria cair na
tradição inclusivista, como o trabalho de Yves Theron (1995). No entanto, o
assalto atual dos estados-nações pelo capital financeiro como grilhões à
sua expansão global demostra que abordagens que falham em questionar a
natureza e o caráter dos estados também falham em enxergar a relação entre
a intensificação de eventos genocidas e a necessidade contínua por capital,
sempre procurando recriar condições de acumulação primitiva. De que outra
forma se explicaria o ressurgimento em (entre outros lugares) Los Angeles e
Nova York, de chãos de fábrica semelhantes àqueles descritos em Londres por
inspetores do trabalho no século XIX.
[22] Desde que este texto foi originalmente escrito, cada vez mais provas
têm vindo à tona para mostrar que Winnie Mandela, enquanto procurava
representar a voz dos sem voz e dos oprimidos, vinha fazendo isso de formas
poderiam acabar prejudicando este intenção. Optei por não mudar o que foi
escrito em 1992, não porque eu desculpo as práticas da Winnie Mandela, mas
porque, em certo sentido, seu comportamento pode ser visto como uma
incorporação de uma transição em impasse. Seu comportamento, o que ela fala
sobre e pelos sem voz ainda é crível entre eles. Além disso, assumindo que
as acusações de corrupção sejam provadas, deveria se perguntar de novo: de
acordo com qual norma de referência?
[23] "Digerido" talvez não seja o termo mais apropriado já que uma das
questões mais centrais da memória repousa em como ela é alimentada dentro
de um processo reativo de por fim às fontes de sofrimento infligido por
seres humanos empenhados em impor sua dominação por todos os meios e para
sempre. Uma mera digestão da memória não criaria necessariamente as
condições de ressurgimento e renascimento.
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