Transexualidade e litigância estratégica em direitos humanos.pdf

May 22, 2017 | Autor: C. Silva Nicácio | Categoria: Transexualidade, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, usos militantes do direito
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Clínicas de Direitos Humanos e Ensino Jurídico no Brasil Da crítica à prática que renova

CAMILA SILVA NICÁCIO FABIANA SOARES DE MENEZES TEREZA CRISTINA SORICE BARACHO THIBAU (Coordenadoras) AMANDA NAVES DRUMMOND LETÍCIA SOARES PEIXOTO ALEIXO (Organizadoras)

Clínicas de Direitos Humanos e Ensino Jurídico no Brasil Da crítica à prática que renova

Belo Horizonte 2017

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora. Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Arraes Editores Ltda., 2017. Coordenação Editorial: Fabiana Carvalho Produção Editorial e Finalização de Capa: Danilo Jorge da Silva Arte da capa: Carolina de Oliveira Almeida (Fotografia de: Chris Hunkeler, Alexis Macdonald, Karen Salinas, Espen Faugstad, Oscar Rickett) Revisão: Fabiana Carvalho

341.27 C641 2017

Clínicas de direitos humanos e ensino jurídico no Brasil / Amanda Naves Drummond, Letícia Soares Peixoto Aleixo (Orgs.); Coordenação de Camila Silva Nicácio, Fabiana Soares de Menezes e Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017. p.184



ISBN: 978-85-8238-264-6



1. Direitos humanos. 2. Direito – Ensino e estudo. 3. Clínicas de direitos humanos. 4. Ensino jurídico – Brasil. 5. Advocacia clínica – Brasil. I. Drummond, Amanda Naves (Org.). II. Aleixo, Letícia Soares Peixoto (Org.). III. Nicácio, Camila Silva (Coord.). IV. Menezes, Fabiana Soares de (Coord.). V. Thibau, Tereza Cristina Sorice Baracho (Coord.). VI. Título.



CDD(23.ed.)–323 CDdir – 341.27 Elaborada por: Fátima Falci CRB/6-700

Imprensa Universitária da UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 - Campus Pampulha

Matriz Av. Nossa Senhora do Carmo, 1650/loja 29 - Bairro Sion Belo Horizonte/MG - CEP 30330-000 Tel: (31) 3031-2330

Filial Rua Senador Feijó, 154/cj 64 – Bairro Sé São Paulo/SP - CEP 01006-000 Tel: (11) 3105-6370

www.arraeseditores.com.br [email protected] Belo Horizonte 2017

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Sumário

APRESENTAÇÃO..................................................................................................... VII Capítulo 1

O MÉTODO CLÍNICO E O DÉFICIT SOCIAL E PEDAGÓGICO DO ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO Luiz Augusto Rutis................................................................................................... 1 Capítulo 2

CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS PUC-SP “MARIA AUGUSTA THOMAZ”: FORMAÇÃO DE DEFENSORAS/ES DE DIREITOS HUMANOS ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA Ana Clara Toscano, Ana Catharina Machado Normanton e Felipe Daier....................................................................................................................... 18 Capítulo 3

FERRAMENTAS “CLÍNICAS” NA ADVOCACIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS HUMANOS Letícia Soares Peixoto Aleixo, Lorena Parreiras Amaral e Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau.............................................................. 35 Capítulo 4

Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Direitos Humanos e Prática em Relações Internacionais Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini, Geraldo Henrique Romualdo de Miranda e Marrielle Maia Alves Ferreira......................................................... 53 Capítulo 5

O MÉTODO DE EDUCAÇÃO CLÍNICA NO NÚCLEO DE CONCILIAÇÃO, MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS Denison Melo de Aguiar, Sílvia Maria da Silveira loureiro e Robson Parente Ribeiro............................................................................................ 67 V

Capítulo 6

TRANSEXUALIDADE E LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS HUMANOS Camila Silva Nicácio, Júlia Silva Vidal e Sophia Pires Bastos................... 83 Capítulo 7

A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA POPULAÇÃO TRADICIONAL DA BACIA DO PINA: ENTRAVES PÚBLICOS E PRIVADOS Atermis Holmes, Luis Emmanuel Cunha e Luiz Pereira Neto...................... 100 Capítulo 8

O OUVIR COMO UMA PRÁTICA DE DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES SOBRE AS ATIVIDADES DA CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS LUIZ GAMA Janaína Dantas Germano Gomes.......................................................................... 116 Capítulo 9

A TECNOLOGIA A SERVIÇO DOS DIREITOS HUMANOS: CÓDIGO DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO E AS POSSIBILIDADES QUE SE DESCORTINAM PARA AS CLÍNICAS DE DIREITOS HUMANOS Amanda Naves Drummond, Fabiana de Menezes Soares e Paula Gomes de Magalhães.................................................................................... 132 Capítulo 10

O CASO DAMIÃO XIMENES LOPES VS. BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Bianca da Silva Medeiros, Diego Lima Azevedo e Jordan dos Santos Aguiar....................................................................................... 147 Capítulo 11

ATIVISMO INTERNACIONAL EM DIREITOS HUMANOS PARA ALÉM DO LITÍGIO DE CASOS: ALGUMAS LIÇÕES DA COMISSÃO INTERAMERICANA E SUAS CRISES Daniel Cerqueira....................................................................................................... 164

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Apresentação

No evento de lançamento do Observatório do ensino de direito (OED), promovido pela Fundação Getúlio Vargas, em 2013, vários professores, de diversas regiões do país, foram convidados a responder à questão: Quais são os desafios do ensino jurídico no Brasil? Entre as respostas apresentadas, chama a atenção aquela oferecida por José Garcez Ghirardi (GV Direito), que insistiu sobre a necessidade de uma “renovação metodológica”, na qual “uma concepção nova de metodologia (...) parta de uma concepção nova do direito, não pensar um jeito novo de ensinar algo antigo, mas pensar o direito de maneira nova e, então, ensiná-lo de maneira nova”.1 Sua afirmação parece apontar para a característica de circularidade imanente ao direito e seu ensino: se o primeiro se altera, há que se alterar igualmente a maneira de se transmiti-lo, o que, a seu turno, pode ensejar novas mudanças. Negar tal circularidade condena o profissional do direito a abstrair as condições concretas da vida social, segundo uma concepção dogmática e formalista que não somente marcou as primeiras formações jurídicas no Brasil, como é, ainda, largamente observada nos cursos atuais, mormente nos mais tradicionais. Tal concepção não é, naturalmente, sem impacto sobre o interesse dos jurisdicionados, relegados a coadjuvantes em um enredo marcado por linguagem e técnica inacessíveis, em que a vida se vê obrigada, de modo ortopédico e mimético, a servir ao direito, e não o contrário. O profissional do direito não pode estar fadado, contudo, a ser um oficial elegante de “diligências jurídicas”, entregue à “cegueira do mero utilitarismo e da unidimensionalização pragmaticista do saber jurídico”. É o que nos diz um jurista da envergadura de José Joaquim Gomes Canotilho, para quem tal profissional, sem descurar da dimensão praxeológica e, por isso, irrenunciável do direito, deve oferecer algo mais que o prepare a uma prática coerente e adequada a um mundo em vertiginosa transformação. 1



Transcrição nossa de trecho disponível em: . Acesso em: 29 out. 2016. VII

É sobre esse “algo mais” que se têm concentrado as mais inovadoras e profícuas experiências no campo do ensino jurídico, segundo a senda aberta pela Constituição de 1988 e seu artigo 207, que reconhece ensino, pesquisa e extensão como pilares indissociáveis da educação universitária. Tais inovações não se restringem, naturalmente, às experiências com metodologias de ensino e ação clínicas de que trataremos na presente obra, pois que as antecedem – e muito – no tempo e em número. Da passagem do registro assistencialista e tutelar, distintivo das primeiras intervenções universitárias na cidade, às perspectivas de construção comum e emancipadora das inúmeras tecnologias sociais de gestão e regulação da vida em comunidade muito já se avançou, inscrevendo-se as metodologias de ensino e ação clínicas na sequência desse avanço. Ainda que tenha tardado a se desenvolver no Brasil, tais metodologias representam hoje um potencial imenso de renovação para a transmissão e a mobilização do direito, haja vista se apoiarem em uma análise abrangente e multissituada das questões jurídicas, traduzida no que se convencionou chamar de “advocacy” e “litigância estratégica”. Concentrada, via de regra, na seara dos direitos humanos, referida análise se pauta pelo quadro de referência do direito internacional para uma prática adequada, original e combativa – alguns dirão militante – da advocacia em direitos humanos. Uma miríade de estratégias se coloca à disposição de formadores, alunos(as) e parceiros sociais, sejam elas jurídicas, tais como o litígio, a assistência jurídica ou a advocacia legislativa; sejam não jurídicas, vide o exemplo da educação em comunidades; da formação em instituições; da investigação; do monitoramento; do desenho de políticas públicas ou ainda da elaboração de relatórios. No conjunto da obra que ora apresentamos, teremos a oportunidade de passar em revista algumas das experiências brasileiras que têm se valido das metodologias de ensino e ação clínicas para repensar o direito não somente em sua aplicação, mas igualmente em sua elaboração. Mencionadas metodologias, o leitor o confirmará, fundam-se em um pressuposto de base, segundo o qual é necessário renovar o ensino do direito, conectando-o com a pesquisa e com a extensão universitárias, de modo que ele possa, de forma mais adequada e pertinente, abordar os problemas do seu tempo, que demandam criatividade, inovação, responsabilidade social e aguçado senso crítico. Para demonstrá-lo, abre as contribuições que seguem um panorama sobre o estado de desenvolvimento do método clínico nas faculdades de direito brasileiras, tendo em vista o modelo dos Clinical Programs, fundamentais para a importação do conceito entre nós (Rutis). Partimos, na VIII

sequência, para a apresentação de algumas experiências regionais. Assim, a Clínica de direitos humanos da PUC-SP “Maria Augusta Thomaz” abordará os percalços e desafios no ano de sua institucionalização como projeto, bem como a potencialidade da perspectiva clínica em participar da transformação social (Toscano; Normanton; Daier). Em uma de suas contribuições, a Clínica de direitos humanos da UFMG (CdH/UFMG) destrincha, por sua vez, o processo legislativo, o processo civil e o processo internacional como instrumentos fundamentais para a advocacia estratégica em direitos humanos (Aleixo; Amaral; Baracho Thibau). Sem se valer da denominação “clínica”, mas de posse de algum instrumental de interseção com as clínicas, o Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos da Universidade Federal de Uberlândia (NUPEDH-UFU) apresenta alguns dos resultados do projeto “Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, bem como as dificuldades de institucionalização da agenda dos direitos humanos e das Relações Internacionais no Ensino Superior no Brasil (Ramanzini; Miranda; Ferreira). A Universidade do Estado do Amazonas restitui, a seu turno, experiência criativa de abordagem clínica no seio do seu Núcleo de Conciliação, Mediação e Arbitragem, e seus impactos sobre uma formação mais humanizada dos discentes (Aguiar; Loureiro; Ribeiro). Em sua segunda contribuição, a CdH/UFMG relata experiência clínica de mobilização e articulação jurídica para a promoção de direitos humanos da população transexual de Belo Horizonte, em três níveis diversos de intervenção, quais sejam, judicialização de demandas individuais; colaboração com Tribunal de Justiça de Minas Gerais; amicus curiae junto ao Supremo Tribunal Federal (Nicácio; Vidal; Bastos). A Universidade de Pernambuco, por meio de sua Clínica de Direitos Humanos do Núcleo de Estudos e Atuação em Relações Internacionais (NEARI), traz reflexões sobre os processos de gentrificação de uma comunidade tradicional, bem como o arranjo institucional que os torna possíveis, ao arrepio dos direitos humanos e das convenções internacionais (Holmes; Cunha; Neto). Como contribuição da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tem-se a restituição de uma experiência de ouvidorias para a população em situação de rua como prática em direitos humanos capaz de ressignificar a formação discente do graduando em direito, além de ensejar um trabalho em rede para a promoção de direitos do referido público (Gomes). A CdH/UFMG aborda, em sua terceira e última contribuição, um caso concreto de mobilização do direito humano de acesso à informação, via desenvolvimento de tecnologia inovadora vocacionada à transformação social (Drummond; Soares; Magalhães). IX

A partir da restituição de um caso concreto julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Clínica de direitos humanos da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA trata da interação entre direito interno e direito internacional para efetivação de direitos, mormente aqueles das pessoas com deficiência intelectual (Medeiros; Azevedo; Aguiar; Leão). Finaliza a obra a contribuição da Fundação para o Devido Processo (DPLF, em sua sigla em inglês) acerca do ativismo internacional em direitos humanos para além da via contenciosa (Cerqueira). Assim brevemente apresentada, a presente coletânea de artigos tenta trazer panorama inédito sobre as experiências de metodologias clínicas no Brasil, na extensão de sua diversidade e pluralidade, em que tais metodologias, além de buscarem identidade e consistência para seu proceder, tentam, igualmente, adaptar-se a contextos locais específicos e singulares. Boa leitura! Belo Horizonte, novembro de 2016

CAMILA SILVA NICÁCIO FABIANA SOARES DE MENEZES TEREZA CRISTINA SORICE BARACHO THIBAU

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Capítulo 1 O Método Clínico e o Déficit Social e Pedagógico do Ensino Jurídico Brasileiro1 Luiz Augusto Rutis2

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo, a partir da experiência americana (Clinical Programs) que pautou a importação latino-americana do conceito de direito de interesse público, aferir o atual estado de desenvolvimento do método clínico nas faculdades de direito brasileiras. Para tanto, apresenta-se um breve relato das origens da experiência estrangeira, estabelecendo algumas características definidoras e perspectivas. Finalmente, defende-se o método clínico como apto a lidar com o déficit social e pedagógico do ensino jurídico brasileiro, capacitando um corpo de estudantes tecnicamente hábeis e socialmente conscientes. PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Ensino Jurídico. Método Clínico. Direito de Interesse Público. Cultura de Interesse Público. ABSTRACT: This study aims to asses – starting from the American experience (Clinical Programs) which guided Latin American importation of the Public Interest Law notion – the current state of the clinical method development in Brazilian law schools. To that end, a brief report regarding the foreign experience origins is presented, establishing some defining characteristics and perspectives. Finally, the clinical method is defended as able to address Brazilian legal education’s social and pedagogical deficit, enabling a technically-able and socially-aware student body. KEY WORDS: Criminal Law. Legal Education. Clinical Legal Education. Public Interest Lawyering. Public Interest Culture.

INTRODUÇÃO O chamado “método clínico”3, em sua origem semântica, é uma estrutura geral dentro da qual todo o ensino prático deve ocorrer. Logo, todas as experiências existentes hoje em nosso país, apesar de extremamente valiosas, parecem-nos insuficientes frente aos déficits do ensino jurídico brasileiro. O que hoje se denomina “clínica” traduz diferentes espécies de projetos de extensão envolvendo variados temas, com maior ou menor grau de participação de alunos da graduação. Não é isso que eles deveriam ser. 1



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Este trabalho é parte de um estudo maior sobre as perspectivas do ensino de prática penal e a advocacia criminal de interesse público no Brasil, tendo como marcos teóricos o Clinical Program e o Public Interest Movement. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Advogado. [email protected]. A nosso ver, método clínico, metodologia clínica, clínicas jurídicas e programa de ensino prático são sinônimos teóricos.

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Camila Silva Nicácio / Fabiana S. de Menezes / Tereza Cristina S. Baracho Thibau (Coords.) Amanda Naves Drummond / Letícia Soares Peixoto Aleixo (Orgs.)

As clínicas, partindo do marco norte-americano do Clinical Program e do Public Interest Movement que orientou a importação teórica, na América Latina, do direito de interesse público, devem ser programas de ensino prático integrados à grade curricular das faculdades e acessíveis a todos os alunos interessados. O foco deve ser sempre pedagógico, centrado na graduação – esse é o método do Clinical Program. Cremos que, em razão das dificuldades institucionais únicas que a América Latina apresenta, o método tenha se instrumentalizado nas extensões universitárias – o que traduz um importante primeiro passo. Entretanto, não se pode com isso, falar que temos programas de ensino prático (Clinical Program) no ensino jurídico brasileiro. A questão aqui é estabelecer um horizonte claro de onde estamos e para onde devemos nos dirigir, caso se pretenda, realmente, estabelecer uma cultura de interesse público no ensino jurídico pátrio. 1. O CLINICAL MOVEMENT E O CLINICAL PROGRAM: AS ORIGENS DO MÉTODO CLÍNICO Um dos fatores fundamentais para o desenvolvimento dos Clinical Programs foi o período de intensa turbulência social no qual a sociedade americana viveu no fim dos anos 60. Temas, como, igualdade de gênero e raça, direito civis, liberdade e igualdade, assumiam, cada vez mais, contornos centrais nos debates sociais, marcados pelas vidas e assassinatos do Pastor Martin Luther King e do presidente Kennedy. Nesse período, a luta pelos direitos civis de negros foi intensificada com o Civil Rights Movement e, concomitantemente, a Guerra do Vietnã se agravou. Muitos americanos passaram a se questionar como era possível a política externa defender a liberdade na Guerra Fria, enquanto, internamente, muitos negros não podiam nem mesmo votar. Esse cenário gerou, nos estudantes de direito, questionamentos. Por que assuntos tão centrais não encontram lugar nas salas de aula? Por que nós não debatemos e construímos soluções para injustiças concretas perpetuadas, diariamente, do lado de fora da faculdade? Por que o ensino do direito não aborda as questões sociais que afligem nossa sociedade? Esse questionamento evoluiu para uma demanda discente coletiva por relevância no ensino jurídico. Esta demanda (Clinical Movement) deu luz, associada ao apoio de parte da doutrina jurídica americana4 – que apontava o fortalecimento do ensino prático como solução ao déficit pedagógico do ensino jurídico – e ao financiamento da Fundação Ford, ao Clinical Program. 4



Essencialmente membros da escola doutrinária do Realismo Jurídico nos Estados Unidos.

Clínicas de Direitos Humanos e Ensino Jurídico no Brasil: Da crítica à prática que renova

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Sobre o funcionamento do Clinical Program, sustenta o professor de Yale, Stephen Wizner: Basicamente, a clínica na faculdade de direito é um escritório de ensino jurídico onde os estudantes se envolvem na prática legal supervisionada em uma estrutura onde são chamados a alcançar excelência no exercício da práxis e a refletir sobre a natureza da mesma e a relação desta com o Direito ensinado em sala e lido nas bibliotecas. É o método de ensinar estudantes de Direito a representar efetivamente clientes no Sistema Legal e, ao mesmo tempo, desenvolver uma visão crítica sobre este. Estudantes de Direito aprendem, na clínica, que doutrina, regras e procedimentos, teorias legais e o planejamento e execução da representação legal de clientes, considerações éticas e as implicações sociais, econômicas e políticas da advocacia estão, fundamentalmente, interligados. (WIZNER, 2000, p. 1930, tradução nossa).

Esse é o relato do funcionamento de um Clinical Program, mas qual é a finalidade ou, em outros termos, o que se pretende alcançar por meio dessa “nova” estrutura pedagógica? O fim a ser atingido pelo Clinical Program é, nas palavras do professor Freamon (1992, p. 1230), professor de direito na Universidade de Seton Hall, o de “melhorar a qualidade da justiça na sociedade americana”. Wizner (2000, p. 327) corrobora a posição de Freamon, ao afirmar que “[…] o objeto próprio do ensino jurídico prático é ensinar estudantes como usar o Direito como meio de promover justiça social”. Todo e qualquer conteúdo a ser ensinado deveria ter em vista a melhoria da qualidade da justiça. Obviamente, o ensino da práxis está inserido, intrinsecamente, neste conteúdo, porém o está apenas na qualidade de instrumento indissociável a consecução do fim apresentado. Wizner – um dos primeiros professores do novo modelo –, explica: aprendizagem experimental e treinamento de técnicas da prática eram vistos como instrumentos pedagógicos de capacitação dos estudantes a transcenderem as limitações da educação jurídica tradicional. Eles eram os meios e não os fins. O fim era conseguir tirar os estudantes da sala de aula e colocá-los no mundo real do Direito. Nas palavras de William Pincus, “os estudantes têm sido protegidos dos fatos de maior miserabilidade da administração ou má administração da justiça, ao serem confinados a sala de aula e aos manuais.” (WIZNER, 2000, p. 327 e 332, tradução nossa).

Em outra oportunidade, o professor de Yale reafirma o caráter pedagógico-crítico dos Clinical Programs: Treinar habilidades através da representação de clientes era o método do ensino jurídico prático. Entretanto, sua ambição pedagógica era muito mais abrangente. Era tirar os estudantes da sala de aula e colocá-los no mundo real do Direito, de onde retornariam às salas com uma compreensão mais profunda sobre como a doutrina e a teoria legal realmente funcionavam ou não. Era ensinar os estudantes sobre o efeito

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ou o defeito do Sistema Legal, incutindo neles o valor e dever do serviço ao público. [...] a maioria dos professores de Direito concordaria com a noção que eles têm um grau de responsabilidade pela socialização e aculturação dos estudantes quanto às normas e valores da profissão legal. A clínica da faculdade de direito provê uma estrutura educacional na qual este é o objetivo primordial. (WIZNER, 1991, p. 1934-1936, tradução e grifos nossos).

Assim, resta claro que o modelo norte-americano de ensino prático nunca se tratou de simplesmente ensinar a prática. O ensino da prática era visto como um meio para atingir um fim e não como um fim em si mesmo. Em síntese, o fim do Clinical Program é confrontar a realidade do funcionamento das instituições legais com o ensino teórico, com um olhar de reflexão crítica da relação dialética destes. Algumas das experiências pátrias procuram seguir, na medida de suas capacidades institucionais, as diretrizes acima, outras não. As que não o fazem, podem não o fazer por terem outros focos legítimos. Todavia, os aspectos explicitamente pedagógico-críticos são pauta e característica indissociável do método clínico. Portanto, projetos de extensão em que o foco principal é, por exemplo, a litigância estratégica em direitos humanos e não a melhor experiência pedagógica do aluno de graduação não seguem o método clínico, concebido a partir do marco do Clinical Program; não devendo, portanto, a nosso ver, serem consideradas clínicas jurídicas. 2. O PAPEL POSSÍVEL DO MÉTODO CLÍNICO NO BRASIL: ALGUMAS LINHAS GERAIS Existe um déficit pedagógico e social nas faculdades de direito brasileiras: a falta de uma estrutura geral em que o ensino prático possa ocorrer de forma supervisionada e refletida5. O déficit é pedagógico, porque hoje o ensino de prática é delegado a terceiros, em estruturas onde a preocupação com a experiência de aprendizagem do discente é marginal; e é social, porque a falta de um esforço coordenado que engaje a faculdade no uso dos conhecimentos teóricos a serviço da mudança social implica conivência com a injustiça diária perpetuada na sociedade brasileira. É aqui que o método clínico pode dar sua maior contribuição, preenchendo esse duplo déficit. Ressaltamos, mais uma vez, que o que temos atualmente nesse sentido não é ruim, apenas insuficiente. 5



A descrição da realidade lamentável das estruturas tradicionais de ensino interno de prática jurídica no Brasil foge aos objetivos deste trabalho. Entretanto, basta-nos, por hora, afirmar que, nos conhecidos Núcleos de Prática Jurídica (NPJs), a preocupação pedagógica se limita ao cumprimento de formalidades sem qualquer conexão com a reflexão da práxis, trata-se de uma estrutura na qual o trabalho substancial, geralmente, fica a cargo do residente e não do estudante.

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A questão que se coloca é como trazer o ideal fundador dos Clinical Programs para a realidade das faculdades brasileiras – tomando aqui como exemplo a esfera criminal6. Em outros termos, qual seria a estrutura pedagógica capaz de ensinar a práxis de modo a fomentar, nos estudantes: [...] sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania? (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR, 2004, Art. 3º do CNE/CES N° 9).

A resposta está na transformação dos Núcleos de Prática Criminal em Clínicas Jurídicas. Estas devem ser marcadas por quatro objetivos pedagógicos primordiais. Primeiro, ensinar a práxis aos estudantes. Segundo, incentivar à formação do pensamento crítico discente. Terceiro, produzir conhecimento e trabalho prático interdisciplinar. Quarto, capacitar aos assistidos, com foco nos indivíduos de comunidades carentes próximas à Universidade – assim como na própria comunidade. Esses objetivos7 estão interligados e só funcionam juntos. O ensino da práxis não pode ser pretensamente neutro, acrítico e distanciado dos problemas sociais, econômicos e institucionais que circundam os processos criminais, pelo contrário, deve ser marcado por um ideal cívico de responsabilidade social. A melhor forma de expulsar a neutralidade do ensino prático é uma boa dose de realidade. Sobre a relação entre responsabilidade, realidade e ensino prático, defende Wizner: O ensino jurídico prático tem como pressuposto básico que estudantes podem ser motivados pela aprendizagem decorrente da responsabilidade de assumir clientes reais e seus problemas legais. Conforme o estudante vai se tornando mais consciente da realidade imposta pela situação de seu cliente e quão importante a representação legal é para a resolução de seus problemas, o estudante se torna, para sempre, mais consciente de sua responsabilidade para com o assistido. Este sentimento, de responsabilidade pessoal em representar um cliente individual, pode crescer a ponto de se tornar um sentimento de responsabilidade social pela provisão de serviços legais aos hipossuficientes. Na medida em que o estudante percebe que, muito provavelmente, o cliente não teria tido acesso à representação legal sem ele ou à clínica, sua conscientização aumenta. (WIZNER, 1991, p. 1934, tradução nossa). 6 7



O raciocínio é plenamente aplicável a qualquer outra área do Direito. Esses objetivos são fruto da reflexão dos trabalhos de professores de ensino prático das faculdades de Direito de Yale, Harvard e Georgetown – Stephen Wizner, Lucie White e Philip Schrag, respectivamente – entre outros.

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O atendimento deve ser focado em clientes hipossuficientes cujos casos têm maior chance – quase certeza – de serem tocados por injustiças sistêmicas. Assim, além de aprender sobre as técnicas relevantes da práxis, o estudante observa, in loco, os acertos e desacertos do Sistema Penal. Outro efeito benéfico da assistência a hipossuficientes são as oportunidades de reflexão que os casos ensejam – os preconceitos, preconcepções e sensos comuns criminológicos são confrontados com as injustiças dos casos concretos, com os abusos policiais, carcerários e judiciais; em suma, com a realidade cultural, institucional, econômica e social da aplicação da lei penal. O atendimento a hipossuficientes é inerente a qualquer ensino crítico da práxis criminal por ser o melhor meio de retratar a realidade institucional da aplicação da lei penal. Os benefícios pedagógicos da assistência a hipossuficientes encontram respaldo na fala do professor Wizner: A clínica da faculdade de direito tem um papel único, expondo os estudantes às injustiças sociais e econômicas da sociedade. Ao prover assistência legal a clientes hipossuficientes que não podem pagar pela representação legal, estudantes aprendem não apenas sobre a importância dos advogados na resolução dos conflitos legais, mas também aprendem sobre a pobreza e as circunstâncias dos menos favorecidos, em primeira mão, através de sua vivência, não mais como dados em estudos estatísticos ou de políticas sociais ou legislação. Essa é uma lição importante, que desafia a mensagem implícita do resto da grade curricular das faculdades de direito, onde o Direito é ensinado como se todos na sociedade tivessem igual acesso a ele. (WIZNER, 1991, p. 1936, tradução e grifos nossos).

O momento de autoquestionamento e reflexão em que o estudante se encontrará, logo após ter visto um pouco da realidade, deve ser também o momento para começar a construir o pensamento crítico acerca da questão criminal como um todo. Claro, esse processo pode ser árduo e demorado, mas, sob adequada supervisão e orientação, pode ser também extremamente recompensador. O fomento à formação do pensamento crítico deve se dar, justamente, na reflexão dos problemas encontrados no mundo real, associando a esta o estudo de autores cujas obras constituam ferramentas cruciais à compreensão da realidade8 do fenômeno criminal. A formação do pensamento crítico discente deve resultar na produção de saber – seja através de artigos acadêmicos ou de eventos – e na futura atuação 8



Entendemos como tais as obras de professores como: Juarez Cirino, Juarez Tavares, Hassemer, Zaffaroni, Nilo Batista e, mais recentemente, Salo de Carvalho e Luís Greco. Não apenas dentro de uma perspectiva formalista criminal, mas também fazendo uso das abordagens e questionamentos criminológicos – por exemplo, Albrecht, Baratta, Pavarini e Malaguti – e obras que debatam acerca de justiça, igualdade e liberdade elaboradas por grandes filósofos, como, por exemplo, Rawls, Dworkin, Walzer, Sandel, Nozik e Habermas.

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advocatícia consciente. Isso não é algo que ocorre sem incentivo; mais uma vez, a adequada supervisão e orientação têm papel crucial. Os estudantes devem ser incentivados e introduzidos à produção acadêmica, pelos professores/ supervisores, como forma de relatar os problemas encontrados na realidade, destacando: inconsistências teóricas; problemas institucionais e aspectos da representação judicial de pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e/ou social. A produção não deve ser apenas descritivamente crítica; deve ser também, necessariamente, prescritiva, propondo soluções práticas e teóricas para os problemas constatados. Ainda falando dos objetivos, a produção de conhecimento interdisciplinar é a única forma de compreender os fenômenos sociais que circundam a aplicação da lei penal de forma mais abrangente, sem recair no formalismo circular – irrelevante na busca por soluções para nossas questões sociais. A adequada análise dos problemas encontrados na realidade e a busca pela solução deles não podem ser alcançadas apenas com as ferramentas providas pela Ciência Penal. A defesa da necessidade da abordagem interdisciplinar tanto do direito penal quanto no ensino de prática penal também é defendida pelos professores Wizner, Curtis e Freamon que afirmam, respectivamente: “A experiência deve incluir o trabalho interdisciplinar com ‘consultores’ e ‘peritos’ especializados em outros campos e o estudo de políticas públicas, conforme estas colidam com o processo legal ou sejam geradas por ele. (WIZNER; CURTIS, 1980, p. 678, tradução nossa).” Em suma, o comprometimento sincero com a justiça e a capacitação real de clientes marginalizados e subordinados não pode ser alcançado, em nenhum programa de ensino prático, sem o componente de colaboração e pesquisa interdisciplinar que informa, critica e educa, constantemente, aqueles envolvidos na prática diária do direito e na supervisão dos estudantes. (FREAMON, 1992, p. 1240, tradução nossa).

Por conseguinte, faz-se necessária a abordagem interdisciplinar da questão criminal, caso queiramos realmente buscar alternativas. Os estudos de grandes catedráticos do Direito Penal devem orientar, informar e servir de crítica e fundamento às atividade da clínica, mas também o devem os estudos sociológicos, filosóficos, criminológicos e econômicos. Note-se, não estamos fazendo menção à relação de auxiliariedade em que muitos juristas colocam as outras ciências9, falamos de estudos interdisciplinares, onde diferentes campos do saber dialogam em pé de igualdade. 9



Sobre a imposição da auxiliariedade pelo formalismo penal a outras ciências ver CARVALHO, Salo de. Ensino e aprendizados das ciências criminais no século XXI. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 69, p. 237-278, 2001.

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Camila Silva Nicácio / Fabiana S. de Menezes / Tereza Cristina S. Baracho Thibau (Coords.) Amanda Naves Drummond / Letícia Soares Peixoto Aleixo (Orgs.)

Hoje, infelizmente, a abordagem interdisciplinar nas faculdades de direito brasileiras segue a qualidade do ensino prático. Nesse sentido, segue o relato preciso do professor Anderson Schreiber: Sociólogos, historiadores, antropólogos, economistas e psicólogos, que tanto podem acrescentar à compreensão do fenômeno jurídico, são quase sempre mantidos à intransponível distância das salas de aula ao lado; ou, o que é pior, são recebidos com uma curiosidade pueril, sem o estabelecimento de qualquer consenso prévio em torno de categorias, conceitos e questões. (SCHREIBER, 2006, p. 3).

Complementar à produção de saber interdisciplinar deve haver o trabalho interdisciplinar prático da clínica, onde os contatos e parcerias desta com as faculdades e organizações da sociedade civil dedicadas a áreas do saber fora da ciência jurídica podem envolver: faculdade de assistência social, filosofia, economia, assim como centros de reabilitação de dependentes químicos e pessoas em situação de rua ou qualquer outro estado de vulnerabilidade socioeconômica. A interdisciplinaridade deve servir de bússola para toda a atuação, tanto na produção acadêmica quanto nas parcerias práticas. Ainda sobre a importância da interdisciplinaridade para o trabalho de uma clínica, expõe Freamon: Nenhum programa de ensino prático dedicado a capacitar os hipossuficientes e sub-representados pode atingir seu fim sem envolver profissionais de outras disciplinas. Essa interação é necessária não apenas no trabalho de prática do direito diário, mas também no trabalho teórico que tem de ocorrer caso se queira que os problemas sistêmicos que levam à pobreza, à injustiça, à intimidação e à subordinação dos menos favorecidos sejam superados. As clínicas da faculdade de direito tem de assumir o papel de grande ‘tanque de pensamentos’ no século XXI caso pretendam ter qualquer efeito sobre seus clientes individuais, estudantes e comunidades. (FREAMON, 1992, p. 1237, tradução nossa).

O quarto objetivo da clínica deve ser capacitar aos assistidos, com foco nos indivíduos de comunidade carentes e na própria comunidade, por meio da adequada representação judicial. Já expomos nossa defesa pela assistência judicial apenas a clientes hipossuficientes. Qual seria o melhor lugar para achar estes senão nas comunidades carentes próximas a todas as faculdades de direito do Brasil? Diversos motivos dão suporte a essa tese: primeiro, a proximidade facilita o acesso dos indivíduos à faculdade e vice-versa; segundo, a faculdade atenderá a uma demanda social de forma clara e objetiva – essa responsabilidade fica mais clara nas faculdades públicas, mas também existe nas privadas; terceiro, a conscientização dos estudantes é realçada pela visualização constante das condições de vida de seus clientes; e quarto, as

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melhorias causadas pela representação são mais fáceis de serem observadas, de modo que o senso de importância e relevância do trabalho é beneficiado.10 Vale ressaltar, novamente, que os objetivos só funcionam juntos. O ensino da realidade da aplicação da lei penal só é possível com a representação de clientes hipossuficientes cujos processos são marcados, de forma mais clara, pelas injustiças do Sistema Penal.11 A formação do pensamento crítico só é possível graças à dose de realidade observada, esta, por sua vez, alimentada com o estudo teórico crítico. A relação entre a teoria e a prática resulta, sob adequada supervisão e orientação, na produção acadêmica, seja em eventos, artigos ou no ativismo discente12. Essa produção aponta problemas e inconsistências teóricas, contribuindo com críticas descritivas e prescritivas para a melhoria do Sistema Penal. Por fim, a melhor forma de angariar clientes hipossuficientes é nas comunidades carentes que circundam as Universidades, incentivando a aproximação entre estas e aquelas, na medida em que os estudantes auxiliam a comunidade na resolução de seus problemas. Para ilustrar, criaremos o personagem fictício Klaus. Klaus é estudante de direito em uma grande faculdade pública, filho de médicos, sempre estudou em colégios particulares. Ao entrar na faculdade, apaixonou-se por direito penal, como muitos. Ele decide, então, entrar na recém-inaugurada clínica criminal de sua faculdade. O professor de prática faz diversas perguntas a Klaus, para melhor conhecê-lo. Klaus acredita no funcionalismo roxiniano, acha que a pena protege bens jurídicos e que, de alguma forma, previne crimes. Começando no trabalho, Klaus atende Raul, reincidente no crime de furto simples. Na primeira conversa com o cliente, ele descobre que Raul é viciado em cocaína e que furtava pequenos valores para sustentar o vício e que, como não consegue se livrar da dependência química e não tem emprego fixo, via-se obrigado a continuar furtando. Diante do caso de Raul, Klaus conversa com seu professor de prática criminal sobre as dúvidas e reflexões suscitadas pelo contato com seu cliente, especificamente, acerca do funcionalismo – ele crê que o funcionalismo ensinado em sala não abarca, satisfatoriamente, a situação de Raul. O professor começa a debater com Klaus sobre suas dúvidas, abordando as inconsistências e qualidades dos ensinos do professor Roxin. 10



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Caso haja “déficit” de clientes em uma comunidade. A clínica pode auxiliar detentos em presídios ou, ainda, ampliar o escopo do atendimento para outra comunidade, por exemplo. Dificilmente, o estudante aprenderá sobre os problemas do encarceramento, seletividade sistêmica e crueldade no Sistema Penal, atendendo a crimes econômicos, por exemplo. Por ativismo discente entendemos o engajamento dos estudantes em: campanhas de conscientização, cobrança de autoridades por melhorias, parcerias com movimentos sociais, ONGs e etc.

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No final da conversa, o professor indica a leitura do livro “Justiça: O que é fazer a coisa certa?” do professor de filosofia Michael Sandel (SANDEL, 2014). Incomodado com os recém-adquiridos questionamentos, Klaus lê o livro avidamente. Quando o autor menciona a escola utilitarista, Klaus percebe semelhanças entre a fundamentação da pena no funcionalismo roxiniano e a abordagem de Cesare Beccaria, Jeremy Bentham e John Stuart Mill acerca do que é justo. Terminada a leitura, ele decide conversar, novamente, com o professor. Ao apontar suas conclusões, o professor sugere que ele escreva algumas linhas sobre a relação entre funcionalismo e utilitarismo. O resultado da nossa história, infelizmente, fictícia é que Klaus decide escrever, como seu projeto de monografia, sobre o tema “Funcionalismo e Utilitarismo: é possível dissociá-los?”. Esquecemo-nos de mencionar, Klaus conseguiu, através dos contatos interdisciplinares da clínica, encaminhar Raul para um centro de tratamento de dependentes químicos, além de prestar a assistência judicial.13 Nosso personagem poderia ganhar vida na pessoa de qualquer estudante que passasse a estagiar na clínica. O questionamento de Klaus acerca do funcionalismo pode se tornar no questionamento da Maria sobre a normatividade dos princípios penais no processo penal ou no evento acadêmico pela autonomia deste em relação ao processo civil; sobre as consequências do estudo da psicanálise na análise da tipicidade subjetiva; sobre a irracionalidade, do ponto de vista sociológico, do encarceramento como medida de ressocialização. Todas essas atividades – e muitas outras – seriam suscitadas pelo confronto dialético entre a realidade e a teoria; em outras palavras, as concepções teóricas que fundamentam as práticas das instituições do Sistema Penal seriam escrutinadas por uma comunidade de estudantes envolvida nos problemas suscitados pela práxis em um ambiente de intenso diálogo interdisciplinar. O ensino do direito penal se torna, nessa estrutura, algo vivo, interessante, relevante e útil, tanto para os estudantes e professores quanto para a sociedade. Existe outro aspecto neste mesmo raciocínio que merece destaque: os estudantes retornam às salas de aula, depois de suas experiências na clínica, com uma capacidade muito maior de contribuir para o diálogo e a construção do conhecimento em sala. As respostas docentes “prontas” para problemas complexos encontrarão resistência ativa nos estudantes, isso pela simples constatação de que, na prática, as soluções e descrições oníricas ou neutras fornecidas por muitos professores e doutrinadores não são ferramentas úteis nem à compreensão da realidade nem à construção de verdadeiras respostas. No caso de Klaus, por exemplo, dificilmente ele aceitaria, passivamente, uma 13



Por mais fantasioso que nossa ilustração possa parecer à primeira vista, ela é verídica para milhares de estudantes americanos que têm a oportunidade de vivenciar nosso relato em seus cotidianos.

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exposição docente acrítica do Direito Penal sem ter experiências práticas para criticá-la. O professor Lênio Streck afirma que “As respostas só estão prontas para as perguntas que já foram feitas. Devemos estar preparados para novas perguntas”. (STRECK, 2014). É justamente no confronto com a realidade que novas perguntas surgem. Os objetivos pedagógicos primordiais devem orientar toda e qualquer atividade realizada pela clínica. Esses fins delineiam a estrutura de funcionamento da clínica como disciplina curricular de ensino prático, constituindo o que a clínica jurídica deve buscar alcançar. Orientado pelo ensino da práxis, pela formação do pensamento crítico, pela produção interdisciplinar do saber e pela capacitação dos assistidos, com foco nos indivíduos e nas comunidades carentes próximas à instituição de ensino, a nova estrutura de ensino prático criminal deve ter quatro esferas de atuação14: litigância estratégica, assistência extrajudicial, conscientização da opinião pública15 e crítica e consulta à atuação das instituições. Assim como nos objetivos, as esferas de atuação estão interligadas e só podem funcionar, adequadamente, juntas. A litigância estratégica16 é a principal esfera de atuação do NPJ na nova estrutura de clínicas jurídicas; sem ela não se cumpre nenhum dos objetivos primordiais. Deve ser a primeira a ser implementada, uma vez que é a porta de entrada para o desenvolvimento dos objetivos e das outras esferas de atuação. Nela, os estudantes atuariam como advogados dos clientes hipossuficientes, empregando todos os esforços e atividades necessários à representação judicial e, consequentemente, à aprendizagem da práxis. Todas as atividades seriam estritamente supervisionadas pelo corpo docente da faculdade especializado no ensino prático. Sobre a importância da litigância estratégica para o programa de ensino prático, afirma o professor Wizner: Esse despertar para o senso de responsabilidade social ocorre quando o estudante representa clientes hipossuficientes que buscam a proteção de seus direitos mais básicos de renda, liberdade ou de um tratamento mais justo. Portanto, prover representação legal para clientes hipossuficientes, tanto individualmente quanto coletivamente, tem sido a base do ensino prático. Existem importantes lições sobre o papel do Direito, 14



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Essas esferas de atuação são fruto da observação de duas instituições. Primeiro, o escritório de advocacia de interesse público norte-americano Equal Justice Initiative, liderada pelo professor de prática criminal e advogado de interesse público Bryan Stevenson. Segundo, a ONG Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), fundada e financiada por grandes nomes e bancas criminais. O conteúdo eminentemente pedagógico do ensino prático criminal pode e deve estar ligado às boas ideias de representação pro bono, litigância estratégica e conscientização da opinião pública. Por opinião pública, consideramos todos aqueles que professam sensos comuns em temas criminais, dentro ou fora da faculdade. Por litigância estratégica, entendemos aquela que envolve objetivos refletidos e pensados dentro de um projeto pedagógico macro, através da representação judicial individual e coletiva.

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do advogado e sobre justiça social a serem aprendidos, trabalhando com esse tipo de casos. (WIZNER, 1992, p. 1935, tradução nossa).

A supervisão não deve implicar em delegar atividades administrativas aos estudantes, enquanto o trabalho substantivo fica a cargo do supervisor, pelo contrário, o executor de tudo o que for possível deve ser o estudante17. Obviamente, a capacidade técnica do estagiário em relação à atividade que deve ser executada tem de ser aferida objetivamente pelo docente, porém ele deve ter sempre em mente os objetivos pedagógicos do ensino prático criminal quando o fizer. Necessariamente, a conclusão é que o estudante deve fazer o máximo de atividades possível conforme seu grau de conhecimento e disposição. A complexidade do caso não pode servir como justificativa para relegar os estudantes a tarefas com as quais pouco se aprende. Por conseguinte, atividades como entrevistar o cliente, redigir petições, minutas e resumos, realizar pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais e quaisquer outras atividades são de competência originária do estudante e, subsidiariamente, do professor/supervisor. Até aqui, ser estagiário da clínica não seria muito diferente de ser estagiário da Defensoria Pública ou do Ministério Público, exceto pelos aspectos explicitamente pedagógicos e pelo compromisso de delegar tarefas relevantes, o tanto quanto possível, aos estudantes. De agora em diante, porém, partindo da litigância estratégica e suas implicações, as outras esferas de atuação diferenciam a clínica de qualquer outro estágio disponível no mercado público ou privado. Pensemos agora no assistido Raul de algumas páginas atrás. Apenas a assistência jurídica ser-lhe-ia incompleta – pensando em uma abordagem holística do cliente. Nesses casos, a clínica deve atuar como assistente extrajudicial de seus clientes sempre que necessário. Como a sanção penal não soluciona nenhum conflito, a clínica deve se esforçar para fazê-lo, encaminhando seus clientes à faculdade de psicologia, para atendimento clínico; à faculdade de assistência social, para reencaminhar o assistido ao mercado produtivo ou a um centro de reabilitação de dependentes químicos – caso de Raul. Esses são apenas alguns exemplos de como a assistência judicial sozinha é insuficiente na resposta aos problemas sociais complexos ligados aos processos penais e como a clínica pode atender, em alguma medida, a demandas que não são exclusivamente jurídicas. 17



Nesse ponto, reside uma das diferenças cruciais entre o método clínico e alguns projetos de extensão que envolvem a litigância estratégica ou atividades estratégicas extrajudiciais: o foco, no primeiro, é sempre, primordialmente, pedagógico, voltado a ensinar o aluno de graduação.

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A terceira esfera de atuação é a conscientização da opinião pública, dentro e fora da faculdade de direito. Assuntos como a desmilitarização da polícia, a política de drogas, o encarceramento em massa, a seletividade penal, o populismo punitivo e a maioridade penal são extremamente mal discutidos em nossa sociedade, quase sempre enveredando para os sensos comuns, as generalizações e os reducionismos. Aqui, a clínica organizaria eventos e campanhas de conscientização dentro e fora da faculdade de direito para discutir questões relevantes do Direito Penal e da aplicação da lei penal, além de propor soluções junto à sociedade civil e às outras faculdades dentro das universidades. As impressões, conclusões e sugestões de estudantes e professores – fruto do fomento ao pensamento crítico, descritivo e prescritivo – encontrariam terreno fértil, seja através da produção acadêmica escrita ou por meio de palestras e campanhas educativas como as feitas pela Anistia Internacional, ou o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), a Justiça Global, a Open Society Foundations e outras. O pensamento crítico, enriquecido com o diálogo interdisciplinar e o contato com a práxis, produziria conhecimento efetivo, abrangente e relevante nos mais diversos campos do saber. Nesse sentido, defende Freamon: A clínica modelo deve ser, portanto, um imã para os melhores pensadores das áreas legais em que a clínica trabalha. A clínica deveria atrair catedráticos e defensores de dentro e de fora da faculdade de direito a desenvolverem estratégias ativas dirigidas a resolução dos problemas sistêmicos. Essa colaboração levara ao maior diálogo e à ação entre ativistas, legisladores, políticos e catedráticos e beneficiará, enormemente, a comunidade inteira. (FREAMON, 1992, p. 1238, tradução nossa).

A produção acadêmica sistemática de estudantes é real e factível nos programas de ensino prático americanos, apesar de quase utópica na realidade brasileira atual. Sobre esta, relatam Wizner e Curtis: É, especialmente, gratificante ver muitos estudantes que participam do programa de ensino prático escrever, também, artigos e comentários sobre os assuntos levantados por suas experiências na clínica. Um programa de ensino prático bem-sucedido deve ser solo fértil para ideias que levem à produção de artigos acadêmicos. [...] Como resultados destas experiências, ao escreverem artigos para revistas científicas e terem feito pesquisas empíricas, os estudantes de Yale passaram a se enxergar como comentadores nacionais das atuações das agências. O valor educacional do contato abrangente com entes administrativos é enorme. Estudantes redigem comentários sobre regras e regulamentos propostos pelo Ministério da Justiça. Eles agem como críticos e lobistas assim como representantes legais dos que buscam o livramento condicional. Resumindo, eles atuam não como recipientes passivos de um currículo apresentado, mas como arquitetos de seu próprio trabalho. (WIZNER; CURTIS, 1980, p. 680, tradução e grifos nossos).

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Se, na assistência extrajudicial, o trabalho prático interdisciplinar é executado, na conscientização da opinião pública, a produção acadêmica interdisciplinar encontra seu lugar. Nessa esteira, relatam ainda os professores: Outros exemplos vêm da nossa clínica, Projeto de Serviços Legais Prisionais. Aqui, os estudantes aprendem sobre o sistema federal de livramento condicional, ao representarem clientes em busca do benefício. Seus conhecimentos, por sua vez, levam à geração de ideias para reforma do sistema federal de sentenças e livramento condicional. Essas ideias foram apresentadas em um seminário que contou com a presença de juízes federais e autoridades do Ministério da Justiça, da Comissão de Livramento Condicional dos Estados Unidos e do Departamento de Prisões. Os participantes desenvolveram um projeto de lei que serviu como base de um esboço inicial das previsões de sentenças e livramento condicional no projeto do novo Código Penal Federal. Outro produto deste seminário foi o projeto escrito, na Yale Law Journal, por três dos mais experientes membros do projeto prisional. Este artigo ganhou o prêmio de melhor trabalho estudantil de 1975 e é, provavelmente, a referência acadêmica mais citada na jurisprudência envolvendo o desafio na teoria ou na aplicação das regras e regulamentos da Comissão Americana de Livramento Condicional. (WIZNER; CURTIS, 1980, p. 679, tradução nossa).

O exemplo que o programa de ensino jurídico prático da faculdade de Yale nos dá é especialmente feliz, porque nos leva à quarta esfera de atuação da clínica: crítica e consulta à atuação das instituições. Os Núcleos de Prática Jurídica Criminal devem, na nova estrutura de clínica criminal, atuar como críticos e consultores das atuações da polícia, dos delegados, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Administração Carcerária, do Judiciário, do Legislativo, do Executivo e de qualquer outro agente ou instituição envolvido no Sistema Penal. Essa consulta e/ou crítica podem ser fruto de pedidos de amicus curae, de cartas de repúdio a determinadas práticas institucionais – por exemplo, a revista vexatória dos visitantes nos presídios –, de pedidos de pareceres acerca de temas sensíveis em sede criminal feitos por organizações como a Open Society Foundations ou a Anistia Internacional, de posicionamentos dados em entrevistas a jornais e emissoras de televisão etc. Claro que, nessa esfera de atuação, o papel do professor/supervisor adquire contornos mais significativos no sentido de uma atuação mais ativa. Entretanto, é importante destacar que o estudante não pode ser deixado de lado e, quando for coerente com o trabalho realizado, deve ter uma participação tão ativa quanto à do professor. Sobre o papel do estudante em discussões mais abrangentes, vale o relato de Wizner e Curtis: O programa de ensino prático deve envolver também a oportunidade de estudantes obterem experiência legal em nível nacional. Por exemplo, além de representarem presos em juízos estaduais e cortes de apelação, os estudantes, em ambos projetos, o Projeto Prisional e o Projeto de Saúde Mental, participam na elaboração de pareceres

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de amicus curae nos casos da Suprema Corte Americana, baseados em suas experiências nas clínicas. Além disso, recentemente, a Suprema Corte decidiu um caso trazido pelos estudantes do programa, Connecticut Board of Pardons v. Dumschat. (WIZNER; CURTIS, 1980, p. 679, tradução nossa).

O exemplo supracitado da faculdade de Yale é perfeito para ilustrar a sinergia entre as esferas de atuação. Os estudantes de direito entram no “Projeto de Serviços Legais Prisionais”, nada mais do que uma clínica criminal de ensino prático. Lá, envolvem-se, principalmente, com questões relacionadas à execução penal. Dessa atuação de litigância estratégica centrada no atendimento aos presidiários, surgem reflexões. Destas, dois movimentos são gerados, ambos focados na conscientização. No primeiro, os estudantes produzem artigos acadêmicos discutindo os problemas encontrados e apontando soluções legais, enquanto, no segundo, eles organizam um evento acadêmico com a presença de autoridades com o fim de apresentar e discutir propostas que tragam mudanças significativas para a melhoria dos problemas que encontram na prática da execução da pena – criticando a atuação legislativa, judicial e executiva nas penitenciárias e, ao mesmo tempo, trabalhando como consultores na construção de remédios legais para o aprimoramento das mesmas instituições que criticaram. Note-se, os questionamentos (que geraram todo o movimento de melhora citado) só foram possíveis graças ao contato com a realidade. Surgiram do conflito dialético suscitado pelo confronto do conhecimento legal do que deveria ser a execução penal – este adquirido em sala – com o conhecimento de como é a aplicação da lei penal nos presídios federais americanos – adquirido na clínica criminal. Os objetivos primordiais que falamos no começo do capítulo foram alcançados por meio das esferas de atuação mencionadas. Antes de avançarmos, uma observação é necessária. O modelo de ensino prático americano não apresenta as esferas de atuação delineadas de forma clara e institucionalmente estabelecida. O foco é, na maior parte das faculdades, na litigância estratégica, em que um ou outro estudante se dedica à produção de um artigo ou a tarefas extrajudiciais – por exemplo, reuniões com administradores de penitenciárias para discutir as condições de salubridade dos detentos. Entretanto, os melhores programas de ensino prático das melhores faculdades já atuam nas áreas que definimos, apenas não o fazem com a nomenclatura e estrutura proposta aqui. 3. O NECESSÁRIO CUIDADO COM AS FALSAS LINHAS DE CHEGADA Como já dito, entre os diversos projetos de extensão universitária que envolvem o contato com a realidade, alguns seguem, ao menos como horizonte,

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as linhas acima, enquanto outros não. Diante disso, vale ressaltar, mais uma vez, que não seguir o horizonte dos Clinical Programs não implica erro ou falta de comprometimento com a promoção dos direitos humanos. Entretanto, devemos explicitar, uma vez estabelecido, conceitualmente, o que é o método clínico, que nem todo projeto de extensão que influa na realidade e envolva participação discente segue o mesmo, ainda que tenha o nome de clínica. A distinção é necessária por dois motivos. Primeiro, para que tenhamos, enquanto estudiosos da Ciência Jurídica, a exata compreensão do estado de coisas do ensino jurídico prático e, assim, possamos, em um segundo momento, refletir e construir as estruturas que precisamos para lidar com o déficit social e pedagógico da faculdade de direito. Segundo, a imprecisão gera confusão. Quando falamos em método clínico, alguém que só teve contato com um projeto de extensão voltado, por exemplo, à promoção de direitos da população LGBT através da conscientização da sociedade civil, vai usar essa experiência como referência. Por conseguinte, caso falemos em universalizar o método, substituindo os NPJs por este, alguém será contrário à ideia – porque pensará que queremos abolir o atendimento a pessoas hipossuficientes, distanciando, ainda mais, os estudantes da realidade social –, justamente, a antítese do método. Nesse caso, ele se confunde porque compreende o método clínico como um projeto de extensão envolvendo litigância ou atividades extrajudiciais estratégicas em direitos humanos – quando não é isso –, porque não enxerga o método clínico como indissociável do atendimento a pessoas em situações de vulnerabilidade – quando o é –, porque não vê, como o objetivo primordial de qualquer programa de ensino prático (de qualquer clínica jurídica), o ensino da práxis de forma crítica. Não temos e precisamos ter um programa de ensino de prática concebido dentro da grade curricular da faculdade de direito como parte integrada do ensino jurídico. Uma abordagem séria do que o método clínico deve representar na promoção de uma cultura de interesse público na prática e no ensino do Direito impõe tomar as atuais estruturas de aprendizagem da práxis, internas e externas, como insuficientes. O professor Zaffaroni, em profunda crítica à legitimidade da pena, aborda o que ele chama de “poder dos juristas”, traçando um paralelo entre o papel do aplicador do direito na práxis do Sistema Penal com o da Cruz Vermelha Internacional em conflitos armados. Nesse sentido, afirma: “A nosso ver, resulta claro que, se alguma legitimidade pode pretender o exercício do poder dos juristas, este não pode renunciar aos seus motivos éticos, pois sem eles não há legitimidade e sim utilidade (para o poder).” (ZAFFARONI, 1991, p. 263). Do mesmo modo, a faculdade de direito não pode renunciar “aos seus motivos éticos”, qual seja, formar indivíduos que não somente manejem,

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com excelência, os conhecimentos técnicos, teóricos e práticos, necessários ao exercício da práxis, mas também aptos a pensar criticamente a realidade social e institucional dentro do qual o direito é aplicado. A neutralidade é o inimigo e a faculdade não pode ser uma máquina de produção de burocratas complacentes com a rotina de intensa desigualdade social que aguarda os estudantes de direito. Nesse sentido, o “verdadeiro” método clínico é um instrumento apto a lidar com o duplo déficit do ensino jurídico, tornando a faculdade um lugar mais humano e democrático. Portanto, abandonar as falsas linhas de chegada, reconhecendo e valorizando o que hoje existe, sem perder o foco do que precisamos construir, é um excelente segundo passo na construção de uma cultura de interesse público nas faculdades de direito do Brasil. REFERÊNCIAS CARVALHO, Salo de. Ensino e aprendizados das ciências criminais no século XXI. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 69, p. 237-278, 2001. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR, Art. 3º do CNE/CES N° 9, DE 29 DE SETEMBRO DE 2004 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2015. FREAMON, Bernard K. A blueprint for a center for social justice. Seton Hall Law Review, New Jersey, v. 22, p. 1225-1249, 1992. Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2015. SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa? 16. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. SCHREIBER, Anderson. Direito ou Alfafa? p. 3. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2015. STRECK, Lênio. Como seria o protótipo do professor ideal na esteira do aluno ideal? Conjur. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2015. WIZNER, Stephen. Beyond Skills training. Clinical Law Review, New York, v.7, 2000-2001. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2015. _______. The law school clinic: legal education in the interests of justice. Fordham Law Review, New York, v. 70, 1991-1992. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2015. _______; CURTIS, Dennis. Here’s What We Do: some notes about Clinical Legal Education. Cleveland State Law Review, Ohio, v. 29, 1980. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2015. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, Rio de Janeiro: Revan, 1991.

Capítulo 2 Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz”: Formação de Defensoras/ES de Direitos Humanos Através da Educação Emancipadora Ana Clara Toscano1 Ana Catharina Machado Normanton2 Felipe Daier3

RESUMO: Da análise do primeiro ano de existência do projeto foram encontrados entraves e desafios para a permanência da Clínica, o que se dá por duas principais razões: 1. O desconhecimento universitário acerca do que é e qual a importância das clínicas jurídicas de direitos humanos; 2. A falta de cultura de clínicas de direitos humanos, sobretudo em universidades particulares. Diante disso, procura-se ressaltar a importância das clínicas para a formação humanizada, ampla, plural e multifacetada dos estudantes de direito, bem como para a contribuição da universidade enquanto agente de transformação social. PALAVRAS-CHAVE: Clínica de Direitos Humanos; PUC-SP; Universidade; Clínica Jurídica; Direitos Humanos. ABSTRACT: Analyzing the first year of existence of the project there were found difficulties and challenges to the continuity of the Clinic, that having two main reason, them being: 1. The lack of university knowledge of what is the importance of the human rights clinics; 2. The scarcity of culture of human rights clinics, mainly in privet universities. Therefore, seeks emphasize the importance of clinics for a human, broad, plural and multifaced formation for law students, as well as for the contribution of the university while agent of social change. KEY WORDS: Human Rights Clinic; PUC-SP; University; Law Clinic; Human Rights.

MÉTODO DE ENSINO CLÍNICO DO DIREITO E O DESAFIO DE SUA APLICAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS O estudo clínico do Direito teve origem nos Estados Unidos, posteriormente ampliado para as Faculdades de Direito europeias, por meio do método desenvolvido pelo Professor Christopher Columbus Langdell, da Universidade de Harvard, e depois foi criticado por Jerome Frank, que propôs uma ciência do Direito em que os estudantes, através do método socrático de 1



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Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012-2016), Advogada e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz”. Estudante de Direito da PUC-SP e Filosofia da USP, coordenadora Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz”. Bacharel em Direito pela PUC-SP (2011-2015), Assistente em Direito Internacional Público da PUC-SP e coordenador da Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz”.

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ensino, também produzissem conhecimento e já desde a graduação passassem a pensar enquanto profissionais, refletindo acerca dos problemas sociais que circundavam a Faculdade de Direito (WINZNER, 2001-2002). Sendo assim, as clínicas de direitos humanos têm como referência o modelo das clínicas legais na medida em que propõem não apenas o estudo teórico de casos, mas também têm como escopo ações interventivas, quer sejam de litigância ou não, tais como a produção de manuais, a elaboração de relatórios ou a orientação jurídica de grupos vulneráveis. O foco principal das clínicas de direitos humanos é promover formas de aprendizagem ativa que considerem a aplicabilidade das ferramentas jurídicas a partir de uma perspectiva crítica, na qual se incorporam aspectos do contexto social, cultural e econômico em que vivem as populações vulneráveis e marginalizadas. Em sua grande maioria, as clínicas lidam com projetos específicos, abordando-os, comumente, do ponto de vista da extensão, mediante a intervenção em situações de violação de direitos humanos, da pesquisa, por meio do fomento de estudos e análises de tais situações, bem como de prática jurídica, tendo como objetivo formar o discente para atuar profissionalmente no âmbito da jurisdição internacional dos direitos humanos. Interessante observar que ideias semelhantes já se verificavam desde 1893, na Universidade da Pensilvania, Denver, Yale e Winsconsin. O método de ensino clínico do Direito – posteriormente também dos Direitos Humanos – surge como um questionamento aos métodos tradicionais de ensino jurídico, em que há a atenção e interação dos alunos perante casos reais, não deixando de lado a atenção aos livros e à doutrina (WITKER, 2007). Normalmente, no ambiente universitário, com relação aos estudos, a forma de adquirir conhecimento durante a graduação se dava apenas por meio de casos propostos em sala de aula, com enfoque de estudo na própria decisão e na teoria jurídica por trás dela, mas não no caso em si ou nas condições em que ele se desenvolveu. O diferencial das Clínicas Jurídicas é o aprendizado humanizado, a capacidade adquirida pelo estudante de ver o lado humano envolvido nas questões que se trabalha (ABRAMOVICH, 2007). Posteriormente, esse modelo de ensino foi adaptado às universidades europeias, com grande presença na Inglaterra, França, Itália e Alemanha, principalmente. Agora, ele tem se ampliado pela América Latina e América do Sul, chegando finalmente ao Brasil. Tendo sua origem no modelo de países anglo-saxônicos, o movimento de criação de Clínicas brasileiras tem crescido exponencialmente, visando não simplesmente importar esse modelo, mas adaptá-lo às realidades e urgências de cada região do Brasil, através de um método de extensão acadêmica que possibilita aliar prática e teoria, por meio do ensino

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participativo em que os estudantes constroem o seu próprio conhecimento e dele se utilizam para impactar positivamente a sociedade. Nesse sentido, é preciso que o processo de aprendizagem do operador do Direito seja emancipatório, capaz de abarcar a demanda das necessidades sociais que o rodeiam. Infelizmente, por vezes a consciência da complexidade dos conflitos e das relações entre os atores nele envolvidos e os direitos a serem garantidos fica sufocada numa formação pouco reflexiva e apenas dogmática. No Estado Democrático de Direito, o operador jurídico é indispensável, fundamental à administração e promoção da justiça, devendo ter consciência do exercício de sua função social, bem como das ferramentas que possui para garantir e promover os Direitos Humanos dentro e fora da atividade judicial. Por isso, faz-se necessária uma formação completa, crítica, reflexiva e multidisciplinar, que possibilite a percepção de diversas vertentes dos conflitos, bem como o saber agir diante dos casos práticos, dentro de uma lógica capaz de garantir e promover os Direitos Humanos. Essa formação deve possibilitar que o operador do direito esteja apto a identificar violações de Direitos Humanos, discernir quando a violência for institucional, reiterada, estrutural, bem como saber como responder a essas situações buscando a reparação, a promoção e a efetividade dos Direitos Humanos. Portanto, as Clínicas de Direitos Humanos no Brasil surgem com o intuito de oferecer apoio jurídico a movimentos sociais, serviços de consultoria jurídica, assessoria jurídica e representação processual, formação e capacitação de agentes sociais e gestores públicos, desenvolvendo pesquisas sobre direitos humanos para entes governamentais e não governamentais. Buscando também humanizar o ensino jurídico nos país. Ainda que em pequeno número diante da imensidão de nosso território e de nossas desigualdades, as Clínicas de Direitos Humanos vêm sendo criadas e resistindo dentro das universidades, tanto públicas quanto privadas. Os entraves e desafios encontrados na criação de uma Clínica são muitos, mas todo o esforço possui um estimulante resultado no ensino jurídico do país. Felizmente, o número de clínicas de direitos humanos tem crescido no país ao longo da última década e a Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz” é um exemplo disso. MARIA AUGUSTA THOMAZ: A UNIVERSIDADE COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA O processo de escolha do nome da Clínica de Direitos Humanos da PUC-SP buscou considerar estudantes e ex-alunos da universidade que tivessem cumprido algum papel de relevo na luta pela efetivação de Direitos

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Humanos no Brasil. Pelo protagonismo no acolhimento de estudantes e professores perseguidos pela ditadura militar brasileira, a PUC-SP acabou herdando o viés de resistência até os dias atuais. Ao entrarmos, por exemplo, no Teatro da PUC-SP, o TUCA, nos deparamos com um memorial aos estudantes José Wilson Lessa Sabbag, Maria Augusta Thomaz, Carlos Eduardo Pires Fleury, Cilon da Cunha Brum e Luiz Almeida Araújo. A inauguração ocorreu no dia 22 de setembro de 2009, por iniciativa da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, à época chefiada por Paulo Vannuchi, hoje membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito do projeto Direito à Memória, coordenado por Vera Rotta4. São muitas as homenagens a diversos homens que realizaram importantes papeis na luta pelos Direitos Humanos dentro do meio ambiente universitário. Porém, seja pela estrutural desigualdade de gênero no Brasil, seja pelo machismo, percebemos as raras homenagens às mulheres dentro desse espaço – motivo pelo qual o nome de Maria Augusta Thomaz se mostrou acertado. Nascida em Leme, São Paulo, Maria Augusta Thomaz foi estudar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae, que se tornaria a PUC-SP, onde se alinhou aos movimentos de resistência à ditadura militar. Participou o 30º Congresso da UNE em Ibiúna (SP), em 1968, sendo assim indiciada pelos militares. Após a morte de seu companheiro, José Wilson Lessa Sabbag – aluno do 5º ano de Direito da PUC-SP e também militante –, Maria Augusta passa à clandestinidade. Considerada desaparecida política, nos termos da Lei nº 9.140/1995, Maria Augusta participou do Movimento de Libertação Popular – MOLIPO. No dia 4 de maio de 1973, viajou junto a Márcio Beck para uma fazenda em Rio Verde, Goiás, onde ambos foram mortos pelas forças do regime (BRASIL, 2007). Assim atesta relatório do Ministério do Exército, apresentado em 1993 ao Ministro da Justiça Maurício Corrêa: “teria sido morto em tiroteio junto a Maria Augusta Thomaz, numa fazenda em Rio Verde/GO, no dia 17/5/1973” (BRASIL, 2007). Ambos chegaram à Fazenda Rio Doce no dia 4 de maio e foram mortos no dia 16, “quando o local foi cerceado e metralhado por agentes de segurança” (BRASIL, 2007), numa operação que reuniu “DOI-CODI/II Exército, Polícia Federal de Goiânia, Polícia Militar em Rio Verde, FAB e alguns agentes da Polícia Civil” (BRASIL, 2007). Foi determinado ao proprietário da fazenda, Sebastião Cabral e seus empregados, que enterrassem os corpos no próprio local (BRASIL, 2007). 4



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Em 1980, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que defendeu diversos presos políticos do regime, conseguiu localizar o local de sepultamento de dois militantes. Porém, durante os trâmites legais para análise das ossadas, elas foram subtraídas pelas forças do regime, ainda em vigor (BRASIL, 2007). Por esse histórico de luta e defesa intransigente pela democracia e pelos Direitos Humanos, especialmente em períodos de ditaduras e demais retrocessos, atraiu o nome de Maria Augusta Thomaz ao projeto de Clínica de Direitos Humanos construído na PUC-SP. Enquanto extensão acadêmica, a Clínica busca justamente florescer nos estudantes o sentimento crítico que seja capaz de formar defensoras/es de Direitos Humanos que possam reascender o papel transformador da universidade, ou seja, sua função de atuar extramuros na efetivação de direitos, reduzindo a longa distância entre a teoria e a práxis. O DESENVOLVIMENTO DA CLINICA DE DIREITOS HUMANOS PUC-SP “MARIA AUGUSTA THOMAZ” Um dos primeiros estudos sobre Clínicas de Direitos Humanos no Brasil, inclusive, tese de doutorado em Direito desenvolvida por Fernanda Lapa, que culminou na publicação do livro “Clínica de Direitos Humanos: Uma proposta metodológica para a Educação Jurídica no Brasil”, por Fernanda Lapa, publicado pela editora Lumen Juris, foi realizado na PUC-SP, mas mesmo assim, até o ano de 2015 não existia nessa universidade uma Clínica de Direitos Humanos ativa. Diante do forte histórico da PUC-SP na luta pelos Direitos Humanos, pela cidadania e pela emancipação social, principalmente durante o período da ditadura civil-militar iniciada em 1964 e posterior redemocratização do país, a Universidade necessitava de um ente como a Clínica de Direitos Humanos para unir forças às ações voltadas ao estudo e efetivação dos Direitos Humanos já existentes, como o Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, que compõe o Núcleo de Prática da Faculdade de Direito da PUC-SP e operacionaliza a previsão curricular de estágio para os alunos do Direito por meio da prestação dos serviços de Assessoria Jurídica Popular gratuita5, e a Clínica Psicológica “Ana Maria Poppovic” do Curso de Psicologia PUC-SP6, que tem como objetivo prestar serviços à comunidade, oferecer trabalhos clínicos (diagnóstico, orientação, psicoterapias de diversas orientações teóricas) às pessoas de todas as idades, sempre alinhada ao compromisso com a sociedade e o Núcleo de Trabalhos Comunitários PUC-SP7, vinculado à 5

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Faculdade de Educação, e atuar junto aos segmentos excluídos da sociedade, através de projetos sociais que contribuem para o fortalecimento da luta em defesa da inclusão de grupos violados em seus direitos fundamentais. Existem ainda outros organismos universitários que prestam excelentes serviços à comunidade externa. Como a Agência PUC Comunicação, criada em 2005, vinculada à graduação em Comunicação, que inclusive presta auxílio na produção de materiais audiovisuais da Clínica de Direitos Humanos, de forma voluntária, e a Prisma Consultoria Internacional, empresa júnior de consultoria internacional ligada à graduação em Relações Internacionais da PUC-SP8 e à PUC Júnior, consultoria universitária das graduações em Administração, Ciências Econômicas, Ciências Contábeis e Atuariais9. Isto é, apesar da relevante e notória tradição da PUC-SP no âmbito da educação teórica e prática para os Direitos Humanos em diversos cursos, tanto de graduação quanto de pós-graduação, não havia ainda um organismo importante como uma clínica jurídica de direitos humanos. Então, a partir do contato com clínicas de outras universidades, especialmente com a Clínica de Direitos Humanos da UFMG, um grupo de estudantes de Direito da PUC-SP se dedicou à pesquisa e estudo acerca da funcionalidade de uma Clínica de Direitos Humanos. Notou-se, então, o ainda pequeno número de clínicas no Estado de São Paulo e, diante do vasto potencial de campos de atuação presentes no estado, foi verificada a necessidade de sua criação. A partir disso, teve início o processo de desenvolvimento e criação da Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz”, que se propõe como um projeto interdisciplinar, por entender que as soluções para os desafios que se colocam em matéria de Direitos Humanos exigem a colaboração dos mais diversos campos científicos e práticos. A criação da Clínica Jurídica buscou ampliar o espaço de ensino, pesquisa e extensão no âmbito dos Direitos Humanos, dos direitos coletivos e difusos, com um novo modelo metodológico, que permite desenvolver atividades orientadas por diferentes instrumentos de estudo que apoiam a seleção de casos reais e hipotéticos, de demandas judiciais, de assessoria e consultoria a organizações não governamentais e entes públicos, com elaboração de relatórios, pareceres, amicus curiae, entre outras ações visando à promoção dos Direitos Humanos e à prevenção de sua violação. Procuramos então identificar e apoiar estudantes e profissionais do Direito e demais áreas que tenham interesse pela atuação nos Direitos Humanos, bem como levar a consciência dos Direitos Humanos a todos os outros ramos do Direito, garantindo o aprimoramento e a humanização da 8 9



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justiça, a fim de contribuir para a correção de falhas estruturais no sistema judicial brasileiro. O contato com a prática de casos que envolvam Direitos Humanos tem o intuito de sensibilizar os estudantes e operadores do direito envolvidos para as questões pertinentes a essa área, possibilitando que apliquem a lei em consonância com o contexto social vivido, atuando como transformadores da realidade social. A aplicação buscada é a da norma mais favorável ao ser humano, independentemente de ser infralegal, constitucional ou internacional. Os estudantes diagnosticam e controlam os casos que envolvam possíveis violações de Direitos Humanos. Aliando, assim, a formação humanística dos estudantes com a busca da transformação social. Nessa linha, a Clínica tem a finalidade de promover a capacitação e qualificação dos discentes para a atuação prática na área dos direitos humanos, contribuindo com a formação de consciência social, a partir da qual conceba o Direito como uma ferramenta de mudança, de prevenção e solução de conflitos, bem como de promoção de políticas públicas. O acúmulo teórico possibilitará a exploração de abordagens críticas sobre o Direito e seu papel de intervenção na sociedade. A atuação deve se dar a partir de casos emblemáticos que sensibilizem a sociedade civil e o poder público sobre determinado tema, a fim de promover modificações legislativas, criação de políticas públicas e decisões judiciais favoráveis à defesa dos grupos minorizados. A Clínica busca trazer para dentro do ambiente universitário questões do cenário sociopolítico-jurídico brasileiro, abrindo a via de diálogo entre sociedade e estudantes, pesquisadores, professores e profissionais do Direito e demais áreas de conhecimento. Ou seja, o projeto contribui para que a universidade seja relevante socialmente, atuando como um instrumento transformador da realidade que a rodeia, cumprindo, enfim, sua função social. Conforme Moacir Gadotti, “o ato educativo corresponde a este esforço de leitura do meio social, econômico e político” e essa leitura configura “um ato de tomada de consciência do nosso mundo, aqui e agora, que visa notadamente ultrapassar as contradições e elementos opressivos deste mundo” (GADOTTI, 1984). O trabalho da Clínica permite o desenvolvimento de atividades orientadas por diferentes instrumentos de estudo como a seleção de casos reais e hipotéticos de demandas judiciais, simulados, diversas formas de negociação, mediação, conciliação, campanhas de visibilidade e conscientização ligadas a direitos de grupos vulneráveis socialmente, assessoria e consultoria a organizações não governamentais e entes públicos ou privados, com elaboração de relatórios, pareceres, amicus curiae, publicação de artigos científicos, coleta de dados sobre a realidade das violações e vitórias em Direitos

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Humanos na cidade de São Paulo, no Estado e no Brasil, visando à promoção dos Direitos Humanos e à prevenção de sua violação. ENSINO JURÍDICO E O PAPEL DA CLÍNICA NA LUTA CONTRA AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS Toda a disseminação de ideias dentro ou fora do ambiente universitário imprime determinada ideologia, valores e também preconceitos. Entretanto, quando determinado discurso parte do interior da universidade, ele se transforma em algo institucional, isto é, cada fala absorvida nos bancos da Faculdade de Direito é parte da formação da/o profissional que após cinco anos será inserido no meio social para cumprir um papel – ao menos em tese – de defesa de Direitos. A tradição positivista, fruto da raiz romano-germânica do ensino jurídico brasileiro, cria no estudante de Direito o costume de buscar a solução para problemas sociais estruturais no interior de códigos e nas legislações esparsas. Assim aponta Antônio Alberto Machado (MACHADO, 2005): A ideologia jurídica tecnicista, fundada teoricamente no normativismo kelseniano promovia a ocupação tentacular dos espaços reservados para a dúvida e para a reflexão no âmbito da ciência do direito, impedindo que o bacharel viesse a realizar qualquer tipo de crítica ao sistema socioeconômico e político vigente.

Percebe-se que a falta de reflexão acerca de outras ciências – como Sociologia, Filosofia, História, Pedagogia, entre outras – incute na/o estudante de Direito a falsa crença de que as respostas para as mazelas sociais virão através de normas, do dogma, que por si já imprimem uma ideologia, qual seja a do próprio legislador. Quando a ideia do ensino clínico de direitos humanos aportou na América Latina, houve um estranhamento por parte das Faculdades de Direito, justamente porque a importação de institutos ou ideias vindas de países cujo sistema jurídico é o anglo-saxão sem a necessária ambientação acaba produzindo um fenômeno semelhante ao da falta de encaixe de uma peça de quebra-cabeças. O que se busca com o ensino clínico de Direitos Humanos não é descaracterizar o ensino jurídico brasileiro, mas, em contrário, transformá-lo num instrumento mais aberto às demandas da sociedade. As opressões e preconceitos dos quais falamos advêm justamente dessa falta de oxigenação social das Faculdades de Direito. O medo do novo e a falta de reflexão sobre métodos acabam criando um ensino que – sob esse pretexto – não se transforma, tornando-se anacrônico e reprodutor de ideias superadas,

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e que quando reproduzidas pelas/os estudantes fora da universidade passam a ideia – especialmente para grupos historicamente excluídos – de atraso. E, nas palavras de Paulo Freire, “os oprimidos não obterão a liberdade por acaso, senão procurando-a em sua práxis e reconhecendo nela que é necessário lutar para consegui-la” (FREIRE, 1980). Acreditamos que a Clínica de Direitos Humanos “Maria Augusta Thomaz” vem a somar nessa luta. A opressão não se dá apenas com o público externo à Faculdade, mas também, e talvez principalmente, com os próprios estudantes. Aos que buscam a graduação com o desejo de lutar por igualdade encontram uma universidade com perfis sociais e valores muito marcados em razão do alto custo e raras políticas de permanência do ensino privado e da dificuldade de acesso ao ensino superior público. Não por coincidência, a taxa de desistência da graduação em Direito em 2014 foi de 48,1%, quase a metade dos estudantes, conforme o Censo da Educação Superior de 201510. A PUC-SP, em razão do Programa Universidade para Todos – ProUni11, do Fundo de Financiamento Estudantil – FIES12, e das bolsas concedidas pela Fundação São Paulo, mantenedora da universidade, tem recebido estudantes que desviam desse padrão, seja pelo critério de classe, seja pelo de raça. Foi com a entrada desses grupos que tais opressões difundidas dentro das salas de aula por parte dos docentes e também por alguns alunos vieram à tona. Elas não se limitavam à questão de raça e classe, mas também à de gênero, de orientação sexual e de identidade de gênero. Nesse sentido, a professora Silvia Pimentel, da Faculdade de Direito da PUC-SP, realizou no dia 23 de março de 2016 o Seminário sobre Assédio, Discriminação e Desigualdade, no Tucarena, onde foram lançadas as Diretrizes sobre Assédio Moral, Sexual, Discriminação e Desigualdade13, aprovadas pelo Conselho da Faculdade e elaboradas pelo grupo de pesquisa “Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade”. Entre elas, mencionamos a seguinte: Respeitar a diversidade no âmbito universitário, para a promoção dos objetivos acadêmicos, em especial de gênero, raça, cor, etnia, religião, origem, idade, situação social, econômica e cultural, orientação sexual e identidade de gênero (LGBT), entre outras. 10



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Disponível em: . Acesso em: 09.10.2016. p. 81. Programa do Ministério da Educação que concede bolsas de estudo integrais e parciais de 50% em instituições privadas de educação superior, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, aos estudantes brasileiros sem diploma de nível superior. Disponível em: . Acesso em: 09.10.2016. Programa do Ministério da Educação destinado a financiar a graduação na educação superior de estudantes matriculados em cursos superiores não gratuitos na forma da Lei nº 10.260/2001. Disponível em: . Acesso em: 09.10.2016. Disponível em: . Acesso em: 09.10.2016.

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Tradicionalmente, o ensino de disciplinas jurídicas acaba cotidianamente reproduzindo estigmas e preconceitos nesses diferentes enfoques, seja pela questão de gênero, quando professores colocam a mulher num papel submisso ao exemplificar dada situação ou relativizam a violência sexual e doméstica contra elas, levando à frente o sexismo que sempre permeou o ensino do Direito – e que nele guarda os conceitos de misoginia, machismo e homofobia, conforme Rosa Maria Rodrigues de Oliveira (OLIVEIRA, 2000). Incluímos aí também a bifobia e a lesbofobia, quais sejam os preconceitos contra bissexuais e lésbicas. E quanto à identidade de gênero, é possível perceber a ausência de alunas e alunos transexuais e travestis na Faculdade de Direito da PUC-SP, o que demonstra o longo caminho a ser percorrido pela Clínica na discussão desse tema, uma vez que o Brasil é o país onde mais se mata pessoas pertencentes a esses grupo, sendo 600 mortes registradas em 6 anos14. Quanto à questão de raça, quando professores dão exemplos em que o negro é colocado em papel subalterno ou ironizam a cor da pele/fenótipo dos estudantes, reproduzem e mantêm o racismo que também permeia a Faculdade de Direito, assim como toda a sociedade brasileira. Em relação à origem e classe social dos estudantes, a Faculdade de Direito historicamente formou filhos das elites do país, e a entrada de estudantes de diferentes perfis via políticas públicas cria no ambiente universitário um sentimento de preconceito, reproduzido tanto por professores quanto por alunos. Nesse sentido, frente a uma universidade que se pretende diversa, a Clínica de Direitos Humanos “Maria Augusta Thomaz” busca discutir o ensino jurídico, para transformá-lo, não o descaracterizando, mas sim trazendo a interdisciplinaridade, o acolhimento de grupos tradicionalmente afastados desse espaço e levando os estudantes para o extramuro, a fim de reconhecer privilégios e pensar em meios de efetivar a teoria dos Direitos Humanos que, na PUC-SP, estudamos ao longo de um ano e também em disciplinas optativas nos dois últimos semestres. DOS OBSTÁCULOS E DESAFIOS AO DESENVOLVIMENTO E CONTINUIDADE DO PROJETO Apesar da reputação da PUC-SP no tocante à sua Faculdade de Direito e aos Direitos Humanos como um todo, o projeto da Clínica de Direitos Humanos ainda precisa conquistar seu espaço. A PUC-SP reconhece a existência e atuação da Clínica perante a comunidade universitária, porém ainda 14



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há acentuado desconhecimento acerca do funcionamento e importância do projeto para a Faculdade de Direito. Verificada essa situação, a Clínica realiza atividades e busca sua divulgação a fim de se fixar e expandir. Buscamos a institucionalização e formalização do projeto enquanto órgão universitário vinculado à universidade, o que se mostra ainda difícil. Apesar de o projeto ser reconhecido pela instituição, ainda não há vinculação formal do projeto à universidade15. Tal fator desencadeia em uma série de implicações à permanência da Clínica de Direitos Humanos, pois a pesquisa e a caracterização enquanto extensão acadêmica dependem disso. O espaço físico para instalação do projeto não foi conquistado, o que configura condição fundamental para possibilitar a interação entre estudantes, professores e visitantes. Por isso, as atividades da Clínica não possuem espaço fixo na universidade e as reuniões são realizadas em salas de aula. A instalação de uma clínica jurídica requer também ser minimamente equipada com algumas mesas de trabalho, computadores, impressoras, mesa de reunião, cadeiras e linha telefônica.16A Clínica ganhou cerca de oitenta exemplares de livros e revistas temáticos, e conseguir um espaço físico seria uma oportunidade de mantê-los e disponibilizá-los aos estudantes. O projeto não tem também espaço virtual no domínio eletrônico da PUC-SP, como tem, por exemplo, a Clínica Psicológica17 e o Núcleo de Trabalho Comunitário18, o que possibilitaria maior visibilidade e promoção do projeto. A Clínica também requer uma estrutura administrativa própria, com pelo menos um(a) professor(a) responsável, vinculado(a) oficialmente ao projeto, com carga horária semanal preestabelecida reservada à dedicação ao projeto e remuneração para tanto. Necessita da contratação de um advogado responsável para coordenar e direcionar os trabalhos e atividades diárias. Acerca de pessoal, a Clínica necessita de no mínimo dois(duas)estagiários(as) remunerados(as), a fim de realizarem as tarefas e diligências necessárias para o andamento das atividades e trabalhos19Os estudantes e advogados voluntários foram recebidos através de abertura de edital para voluntariado, porém essas pessoas possuem outras ocupações e trabalhos remunerados externos, de maneira que não há pessoal com dedicação exclusiva ao projeto. 15

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Outros organismos universitários, como a Agência PUC Comunicação e a Prisma Consultoria Internacional, enfrentaram o mesmo problema relativo à demora de formalização perante a universidade, tendo sido oficialmente vinculados e institucionalizados a ela somente após quase uma década de existência autônoma e independente. Infelizmente, ainda não dispomos desses instrumentos de trabalho e o diálogo com a universidade está sendo realizado. Disponível em: . Acesso em: 04.10.2016. Disponível em: . Acesso em: 04.10.2016. Infelizmente, nenhuma dessas necessidades foi satisfeita até o momento, de maneira que não há vinculação formal deum(a) professor(a) responsável ao projeto.

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Reconhece-se, todavia, a necessidade de buscar financiamentos alternativos e externos, como doações, crowdfundings e editais. Nesse sentido, até o mês de outubro de 2016, com apenas sete meses de existência, a Clínica de Direitos Humanos PUC-SP participou de dois editais de captação de recursos: um específico de temática “Juventude e Violência”, do Fundo Brasil de Direitos Humanos20 e outro de “Impulsionando a transformação – Direitos Humanos na América Latina”, da Changemakers da Ashoka, tendo a Clínica ficado entre as entidades semifinalistas neste último.21 Um dos fatores que levam à falta de investimentos da universidade nos projetos de clínicas jurídicas é a falta de conhecimento sobre o que elas são, o que fazem e de sua importância para a comunidade acadêmica e para a sociedade em geral, além dos muros da universidade. O projeto, quando apresentado, é constantemente confundido com o do Escritório Modelo da PUC-SP, outro importante aliado na nossa luta, que realiza assistência judiciária à população por meio de convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, mas que se diferencia e não se confunde com a ideia de Clínica Jurídica, uma vez que a área de atuação desta se dá por meio da litigância estratégica, formação teórica e científica, voltada para o aprendizado e formação dos estudantes em Direitos Humanos, enquanto o Escritório Modelo intervém de maneira direta na sociedade, prestando serviços jurídicos à população economicamente hipossuficiente, possibilitando o acesso à justiça diretamente aos cidadãos. O TRABALHO E AS VITÓRIAS FRENTE AOS ENTRAVES FORMAIS Mesmo com todos os aspectos citados acima, a Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz” iniciou suas atividades no começo de 2016, lançando edital para voluntários e recebendo 33 voluntários, sendo 25 mulheres e 8 homens, divididos em núcleos temáticos22 de seus interesses. Percebendo a dificuldade na variação do público, quanto ao perfil de estudantes brancos – visto que somente três estudantes são negras –, a Clínica de Direitos Humanos “Maria Augusta Thomaz” criou o Núcleo de Igualdade Racial e lançará em 2017 um edital para recepção de novos interessados em estudar o tema e realizar atividades que busquem efetivar essa igualdade inexistente, maquiada pelo mito da democracia racial no Brasil. 20



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Disponível em: . Acesso em: 04.10.2016. Disponível em: . Acesso em: 04.10.2016. Núcleo de Combate à Violência Institucional; de Gênero e LGBTs; de Refúgio, Migrações e Xenofobia.

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No âmbito do Núcleo de Combate à Violência Institucional – que busca trabalhar tanto o aspecto da justiça de transição frente à tríade memória, verdade e justiça, quanto o da Violência de Estado hoje –, realizamos uma pesquisa no segundo semestre de 2016 sobre projetos de lei voltados ao recrudescimento em matéria de Direitos Humanos e Segurança Pública, tanto na esfera estadual quanto na federal. Contamos com o apoio da Procuradora da República Inês Virgínia Prado Soares, representando o Ministério Público Federal, do Núcleo de Preservação da Memória Política, representado por Maurice Politi, ex-preso político da ditadura militar brasileira, e da Professora Sandra Regina Chaves Nunes, do Diversitas – USP, para a realização de eventos, tais como o Seminário “Sustentabilidade: Diálogos Acadêmicos e Experiências Exitosas”, na sede do Ministério Público Federal em São Paulo, a visita guiada ao Memorial da Resistência de São Paulo e à sede da antiga Auditoria da Justiça Militar, que futuramente abrigará um museu relacionado à memória das vítimas da ditadura militar brasileira, e os “Sábados Resistentes”, II Ciclo de Cinema “Milton Bellintani” Justiça e Direitos Humanos, organizados pelo Núcleo de Preservação da Memória Política. Quanto ao Núcleo de Gênero e LGBTs, realizamos uma pesquisa de acompanhamento legislativo de projetos de lei que buscam retroceder em conquistas nos direitos das mulheres e LGBTs, bem como de projetos positivos nesse sentido. Além disso, realizamos no Tuca o cinedebate sobre o filme “De Gravata e Unha Vermelha”, do cineasta e psicanalista Miriam Chnaiderman, junto ao grupo de pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade da PUC-SP, discutindo a transexualidade e travestilidade, e a busca pelo respeito à identidade de gênero. Com o mesmo grupo realizamos o cinedebate sobre o documentário “India’s Daughter”, também no Tucarena, discutindo as diversas formas de violência contra a mulher no Brasil, sob a ótica dos estupros coletivos no Brasil e na Índia. Atualmente, contamos com o apoio da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo e de sua Coordenação de Políticas para LGBT e da ONG Think Olga. O Núcleo de Refúgio, Migrações e Xenofobia conta com o apoio da ONG Adus – Instituto de Reintegração do Refugiado, da Cáritas de São Paulo e da Defensoria Pública da União, através do defensor público Daniel Chiaretti, para no próximo semestre realizar visitas aos atendimentos que essas intituições realizam com essa população. Antes de a Clínica de Direitos Humanos “Maria Augusta Thomaz” realizar essas atividades com o público – sejam vítimas de violência ou populações usualmente excluídas –, entendemos como necessária uma formação sobre os temas que envolvem os três Núcleos junto aos voluntários.

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Por esse motivo, desde o começo do segundo semestre de 2016, realizamos encontros quinzenais, aos sábados, visando a participação de todos(as) os(as) estudantes sem o conflito com o horário de aulas, para que eles e elas se inteirassem sobre como dialogar com públicos diversos, quais as temáticas que envolvem os problemas a serem enfrentados fora do espaço universitário e como respeitar esses grupos. No primeiro encontro, debatemos a teoria geral dos Direitos Humanos, de forma crítica, no segundo, dialogamos sobre o ensino clínico de Direitos Humanos, no terceiro, convidamos Amelinha Teles, ex-presa política e fundadora da União de Mulheres de São Paulo e a promotora de justiça e professora de Direito Penal da PUC-SP Eliana Vendramini para debater sobre justiça de transição no Brasil, no quarto, conversamos com a Secretária Adjunta de Cidadania e Direitos Humanos Djamila Ribeiro e com o Secretário Municipal de Promoção da Igualdade Racial Elizeu Lopes sobre Igualdade Racial.23Ademais, a Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz” tem preparado e enviado os estudantes voluntários para participar de competições simuladas com a temática de direitos humanos, de maneira a possibilitar o aprendizado de se expressar em público, a preparação e articulação necessárias para responder perante situações desconhecidas e de incerteza e a capacidade de raciocínio rápido para solucionar problemas. Tais competições treinam também a habilidade de escrever peças jurídicas coerentes e organizar linhas de raciocínio. Também há grande acúmulo de conhecimento na fase prévia, uma vez que os estudantes precisam fazer consistentes pesquisas a fim de realizar preparação para a simulação. Ademais, essas atividades possibilitam intensa interação com estudantes de outras universidades e de outros países interessados nas mesmas áreas, promovendo contatos profissionais e acadêmicos produtivos, além do rico intercâmbio de culturas, saberes, conhecimentos e ideias.24 DA IMPORTÂNCIA DA CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS TAMBÉM PARA AS UNIVERSIDADES PRIVADAS No Brasil, nota-se maior incidência de clínicas de direitos humanos em universidades públicas que em universidades privadas. O presente artigo 23



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Os próximos encontros abordarão as temáticas LGBT e de direitos das mulheres e de refugiados e migrantes, visando a ampliar o espectro dos voluntários, para que em 2017 saiamos do espaço físico da universidade e comecemos a galgar nossos impactos transformadores dentro da sociedade. Há grande expectativas para o ano de 2017, com a mudança de reitoria da PUC-SP, que promete ser uma gestão mais aberta, escolhida após eleição democrática, com a qual poderemos nos comunicar com frequência e buscar avançar na consolidação da Clínica de Direitos Humanos dentro da universidade. A comunidade acadêmica aposta que, com a nova reitora Maria Amália Pie Abib Andery, haja a necessária reconciliação da PUC-SP com seu passado glorioso de luta pelos Direitos Humanos.

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não pretende investigar as possíveis causas dessa constatação, mas sim destacar a importância das clínicas de direitos humanos também para universidades privadas. Estas universidades, como a PUC-SP, devem se empenhar em iniciativa de clínicas de direitos humanos a fim de modernizar e qualificar seu ensino jurídico, seguindo a tendência mundial de utilização do estudo clínico do direito como instrumento de aprendizado. O ensino clínico é uma das maneiras de romper com a apatia e a estagnação que por vezes assola o ensino do Direito. As mais conceituadas escolas de direito, no plano global, têm alterado seus planos de aula, introduzindo diversos métodos inovadores de ensino, principalmente para aumentar o interesse do estudante, estimulando-o a se envolver em projetos acadêmicos, buscar saberes e participar efetivamente da vida acadêmica. As clínicas de direitos humanos são instrumentos extremamente adequados para alcançar esses propósitos e aperfeiçoar o ensino jurídico. Nelas, os estudantes têm contato direto com os problemas sociais que enfrentará enquanto operador do direito, aprendendo desde a graduação a realizar uma reflexão crítica sobre o Direito, além de instrumentalizá-lo em favor de uma sociedade mais justa, igualitária e humanizada. Infelizmente, com a crescente mercantilização do ensino universitário, a educação é tida cada vez mais como mercadoria para a maior parte das faculdades privadas. Nesse sentido, os métodos de ensino jurídico tendem a ser reduzidos a aulas expositivas e um tanto quanto dogmáticas, sem espaço para que os estudantes desenvolvam outras várias competências essenciais, o que leva a uma formação bastante deficitária. Dentro dessa lógica, não há espaço para pensar e agir pelo outro, para identificar as necessidades de transformação social e buscar meios para realizá-la. As clínicas de direitos humanos cumprem um papel fundamental de aproximar e estreitar o diálogo entre as universidades privadas e a sociedade civil, no que tange às demandas sociais concernentes à proteção, à promoção e à defesa dos direitos humanos, relação esta que não raramente é remota, quando não inexistente. Para os estudantes de direito, a participação em clínicas de direitos humanos traz diversos benefícios, como a compreensão de que o direito pode ser um meio para mudanças sociais e não um fim em si mesmo (SAULE, 2015). Além disso, a participação e envolvimento em clínicas de direitos humanos fazem com que os estudantes adquiram habilidades de prática jurídica em direitos humanos e litigância estratégica, habilidades estas que raras faculdades privadas do Brasil são capazes de oferecer a seus estudantes, justamente em razão da falta de clínicas jurídicas voltadas aos direitos humanos. Por fim, as clínicas de direitos humanos são uma excelente ferramenta para que as universidades privadas capacitem seus estudantes na escrita de peças jurídicas e pareceres, no aperfeiçoamento da comunicação

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oral e interpessoal, na habilidade de pensar criticamente e de desenvolver estratégias efetivas para solucionar problemas sociais e interpessoais, na capacidade de organização e sistematização de trabalho, na capacidade de agir da maneira mais acertada ainda que quando posto sob pressão, no aprimoramento da capacidade de trabalho em grupo, no desenvolvimento de uma forte habilidade de pesquisa jurídica de direito nacional e estrangeiro, e inclusive na capacidade de articulação e comparação de ambos. CONCLUSÃO Por acreditarmos na democratização da educação superior e na necessária humanização do ensino jurídico no Brasil, assim como por entendermos ser essencial aliar a atuação prática ao aprendizado técnico é que a Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz”, mesmo diante dos obstáculos aqui apresentados, prospera e continua sua atuação. Ao introduzir um ensino crítico e clínico do Direito à realidade acadêmica dos estudantes, buscamos formar profissionais preocupados com a salvaguarda e promoção dos Direitos Humanos, qualquer que seja a carreira que este irá seguir. Buscamos assim discutir o ensino jurídico, para transformá-lo de modo interdisciplinar, acolhendo grupos tradicionalmente afastados desse espaço e levando os estudantes, após um curso preparatório que lhes permitirá rever seus privilégios e aumentar sua empatia para com os outros, assim como prepará-los para uma atuação direta com diferentes pessoas para além das salas de aula, a pensarem em meios de efetivar os Direitos Humanos. Dessa forma, o trabalho da Clínica permite o desenvolvimento de atividades orientadas por diferentes instrumentos de estudo e atuação prática, como abordado no presente trabalho. Assim, levando o nome de uma mulher com histórico de luta e defesa pela democracia e pelos Direitos Humanos, a Clínica de Direitos Humanos PUC-SP “Maria Augusta Thomaz” busca despertar o sentimento crítico e o desejo pela mudança social, para que os Direitos Humanos sejam uma garantia de todos e todas, reascendendo o papel transformador da universidade, efetivando direitos, aproximando teoria e prática e formando profissionais e pessoas de forma mais humana. REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Víctor. La enseñanza del Derecho en las clínicas legales de interés público. In: Enseñanza clínica del Derecho. Una alternativa a los métodos tradicionales de formación de abogados, año 5, número 10, Buenos Aires, ISSN 1667-4154, 2007. .

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BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1980. GADOTTI, Moacir. A educação contra a educação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. LAPA, Fernanda Brandão. Clínica de Direitos Humanos: uma proposta metodológica para a Educação Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2014. MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. Franca: Unesp, 2005. OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. O ensino jurídico como violência simbólica: implicações e alternativas a um discurso. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico para que(m)? Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. SAULE, Nelson Junior. Pesquisa – Organismos Universitários de Direitos Humanos. São Paulo: Artgraph, 2015. WITKER, Jorge. La Enseñanza Clinica del Derecho. Revista sobre Enseñanza Del Derecho, Buenos Aires, Año 5, n. 10, 2007. WIZNER, Stephen. The Law School Clinic: Legal Education in the Interests of Justice. Fordham Law Review, New York, Vol. 70. 2001-2002.

Capítulo 3 Ferramentas “Clínicas” na Advocacia Estratégica em Direitos Humanos Letícia Soares Peixoto Aleixo1 Lorena Parreiras Amaral2 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau3

RESUMO: O texto aborda algumas ferramentas consideradas essenciais para a advocacia estratégica em direitos humanos e das quais as clínicas jurídicas podem e devem se valer. São trazidos, primordialmente, três eixos de análise: o processo legislativo, o processo civil e o processo internacional, que não devem ser considerados de forma isolada, mas complementares entre si e agregadores de outros meios disponíveis para a promoção e proteção dos direitos humanos. PALAVRAS-CHAVE: Clínicas jurídicas – direitos humanos – advocacia estratégica – direito internacional – processo. ABSTRACT: The text addresses some tools considered essential for strategic human rights advocacy and which legal clinics can and should apply to. Three axes of analysis are brought to the fore: the legislative process, the civil procedure and the international process, which should not be considered in isolation but complementary to each other and aggregators of other means available for the promotion and protection of human rights. KEY WORDS: Legal clinics - human rights - strategic advocacy - international law – process.

1. INTRODUÇÃO Falar em ferramentas “clínicas” é dizer de uma abordagem metodológica diferenciada tanto para o ensino como para a prática jurídica. Afinal, o próprio movimento clínico, surgido nos Estados Unidos, apenas muito recentemente chegou ao Brasil. De viés crítico, social e eminentemente extensionista, as clínicas jurídicas brasileiras vêm questionar o modelo tradicional 1



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Mestranda em Direito pela UFMG na Linha de Pesquisa Direitos Humanos e Estado Democrático de Direito: Fundamentação, Participação e Efetividade. Orientadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG e da Divisão de Assistência Judiciária da mesma universidade. Integrante do Grupo de Pesquisa Observatório para a Qualidade da Lei e do Grupo de Estudos em Direito Internacional dos Direitos Humanos (GEDI-DH). E-mail: [email protected]. Estudante de Graduação, no 8º período, de Direito na UFMG. Extensionista bolsista na Clínica de Direitos Humanos da UFMG. Doutora e Mestre em Direito pela UFMG. Professora Associada de Direito Processual Civil na Graduação e de Direito e Processo Coletivo no Programa de Pós-Graduação na Faculdade de Direito da UFMG. Professora vinculada à Divisão de Assistência Judiciária da Faculdade de Direito da UFMG. Cocoordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG. Membro do Instituto de Direito Processual (IDPro).

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de ensino-aprendizagem, propondo uma troca de saberes a partir da prática transdisciplinar conduzida primordialmente pelos estudantes. Diferenciam-se, também, dos clássicos escritórios-modelo ou núcleos de prática das faculdades de Direito, já que complementam o tradicional assistencialismo com uma prática coletiva de tracejo de estratégias e de mapeamento de parceiros, visando ao maior impacto social e à real integração entre o tripé universitário do ensino, pesquisa e extensão. São justamente algumas dessas estratégias, essenciais na advocacia em direitos humanos, que serão abordadas no presente capítulo. Para tal, seguiremos em três momentos, além desta introdução e das considerações finais. O primeiro deles abordará a participação popular no processo legislativo e a elaboração de qualidade como ferramenta “clínica” na advocacia estratégica em direitos humanos. Em um segundo momento, passaremos a uma abordagem mais processual, destacando os aparatos de litigância oferecidos especialmente pelo Código de Processo Civil de 2015. Por fim, aportaremos informações básicas sobre a proteção internacional, de maneira a subsidiar atuações frutíferas no campo dos direitos humanos. Antes de avançarmos, porém, é necessário frisar que o capítulo não se pretende – e nem poderia! – exaustivo em relação às inúmeras ferramentas disponíveis para uso da sociedade civil na promoção e proteção dos direitos humanos, mas propõe-se apenas a aventar algumas delas e a exemplificá-las a partir da prática da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (CdH/UFMG). 2. PROCESSO LEGISLATIVO, PARTICIPAÇÃO POPULAR E ELABORAÇÃO DE QUALIDADE Quando pensamos em Direito, frequentemente nos remetemos à ideia de “Poder Judiciário” com tudo o que lhe seria imanente: litígios, conflitos e processos. Pensar o Direito e fazer bom uso dele, contudo, implica também em pensar a lei, a racionalidade e a qualidade das práticas legiferantes (DELLEY, 2004). Isso nos leva, inicialmente, a questionar a expressão mais utilizada quando falamos em clínicas jurídicas: a litigância estratégica em direitos humanos. A ideia deriva de método típico da Administração, o chamado “planejamento estratégico”, que considera as mais diversas variáveis quando da elaboração de um plano. De forma semelhante, portanto, a litigância estratégica incentiva a consideração dessas variáveis quando do tratamento de um litígio. Porém, com o Judiciário abarrotado e cada vez menos disponível para efetivar direitos, precisamos ampliar o campo de visão quando da análise de violações de direitos humanos visando o uso de

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outras ferramentas também disponíveis. Daí porque a opção por expressão mais ampla: a advocacia estratégica em direitos humanos. Nessa prática advocatícia, intervenções em processos legislativos são essenciais quando se quer modificar uma conduta estatal desde seu cerne. Isso porque, conforme o antigo brocado jurídico, só “somos obrigados a fazer ou a deixar de fazer algo em virtude de lei”. Ou seja, as práticas legislativas são capazes de transformar, ao menos em tese, toda uma realidade, afetando não só nossa liberdade, mas também o trabalho do judiciário, de gestores, agentes estatais, etc. Sendo assim, essencial é a elaboração normativa de qualidade na tutela dos direitos humanos. Uma ótima estratégia para garantir essa qualidade no processo de elaboração normativa é a intervenção da sociedade civil em projetos de lei por meio de notas técnicas, pareceres, recomendações, interação com os representantes eleitos, ou mesmo por simples respostas às enquetes disponibilizadas, muitas vezes, nos sites do Congresso Nacional. Qualquer das maneiras adotadas servirá como forma de pressão popular para a aprovação de normativas mais condizentes com os parâmetros de proteção e promoção dos direitos humanos. Vale ressaltar que essas intervenções só são possíveis porque a Constituição da República de 1988 prevê que, em um Estado Democrático de Direito, o processo legislativo deve ser aberto à participação popular. Com isso, é dever das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Congresso Nacional e mesmo do Executivo e do Judiciário, quando em exercício da função de legislar, aceitar e considerar propostas e intervenções populares e, ainda, promover audiências públicas. Nesse sentido, a advocacia estratégica por meio de intervenções legislativas é mais do que consagrada e legitimada por nosso ordenamento jurídico. Nos casos de intervenção em projetos que afetem os direitos humanos, a coerência e legitimação é ainda mais eficaz. Isso pois, não bastasse a real necessidade de se legislar sobre tais questões de maneira a abarcar demandas incipientes da sociedade, tais direitos estão positivados em normativas internacionais já recepcionadas por nosso ordenamento jurídico. Logo, é dever do Estado legislar sobre tais direitos em consonância com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Um exemplo é a consideração, ao se legislar sobre algum tema, das cartas e convenções específicas sobre ele, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos tribais e indígenas ou da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO). Assim, o processo de elaboração legislativa deve se ancorar em instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, sejam eles normativas gerais, como a Declaração Universal dos

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Direitos Humanos, ou específicas. Tudo isso contribui para a qualidade das normativas produzidas, já que o ordenamento estará mais coeso e os direitos humanos com maior potencial de efetivação. Entretanto, não é tão simples fazer com que os órgãos legiferantes observem esses parâmetros em suas práticas. E é aí que a advocacia estratégica passa a ter espaço. A atuação de clínicas de direitos humanos visando a influenciar normativas de qualidade pode ser feita de diversas maneiras, como, por exemplo, por meio de lobby – tão condenado pelo senso comum, mas sabidamente praticado pelos grandes grupos de pressão –, redação de notas técnicas e recomendações sobre projetos de leis, participação em audiências públicas etc. Para que essa atuação seja efetiva, é preciso estar atento à agenda e à atuação legislativa, acompanhando quais são as principais pautas e os trâmites dos projetos de leis. A CdH/UFMG procura, na sua atuação, se valer das ferramentas mencionadas. Um exemplo já considerado bem-sucedido foi o da apresentação de recomendação sobre o Projeto de Lei nº 5.555/2013 em audiência da Comissão Mista de Combate à Violência Contra a Mulher, em setembro de 2015. O projeto, de autoria do Deputado Federal João Arruda, versa sobre a tipificação do crime de divulgação de pornografia não consensual e foi alterado por substitutivo apresentado pela relatora do PL na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que acatou a recomendação aportada pela CdH/UFMG.4 No mesmo sentido é a redação de notas técnicas para intervenção em projetos de lei que atinjam os marcos regulatórios relacionados aos danos causados pelo rompimento da barragem da Samarco, em Mariana. A ênfase dessa intervenção será, contudo, nas questões que possam agravar as violações de direitos humanos do povo indígena Krenak, que habita às margens do Rio Doce, inteiramente afetado pelo desastre em questão. A atuação, já em curso, ressalta a falta de observância aos parâmetros internacionais de direitos humanos em projetos de lei relativos ao licenciamento ambiental, à mineração e ao sistema estadual do meio ambiente de Minas Gerais.5 Concomitantemente, a CdH/UFMG prepara um parecer sobre a Resolução nº 03 de 2004 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da mesma universidade. Mencionada normativa trata da promoção do acesso à educação 4



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Recomendação da Clínica de Direitos Humanos da UFMG sobre o PL 5555/2013. Disponível em: . Acesso em: set/2016. São eles: PL 654/2015, que dispõe sobre o procedimento de licenciamento ambiental especial para empreendimentos de infraestrutura considerados estratégicos e de interesse nacional; PL 5.807/2013, que dispõe sobre o marco regulatório da mineração; e proposta do executivo de Minas Gerais de número 2.946/2015, que dispõe sobre o Sistema Estadual do Meio Ambiente.

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a refugiados políticos, enquanto o parecer pretende provocar sua alteração para que passe a englobar, também, os imigrantes com visto humanitário. Trata-se, também, de intervenção em elaboração de normas que impactam os direitos humanos, ainda que se dê em esfera geralmente tida como inusitada. De extrema importância, portanto, o acompanhamento do processo legislativo e a análise do impacto das normativas elaboradas, de forma a garantir a participação popular e as devidas adequações legais para melhor proteção dos direitos humanos. 3. LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS HUMANOS: FERRAMENTAS DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO Iniciamos o tópico anterior questionando a expressão “litigância estratégica”, isso porque acreditamos que, na tutela dos direitos humanos, a atuação deve ser ainda mais ampla do que aquela possível junto ao Poder Judiciário. Vistas, porém, algumas possibilidades de atuação junto a órgãos legiferantes, passaremos a tratar de ferramentas do processo civil também essenciais à advocacia estratégica em direitos humanos. 3.1. As normas fundamentais do Código de Processo Civil democrático do Brasil A recente aprovação e entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (CPC) brasileiro nos remete à constatação de que, desde a Proclamação da República, em 1889, é a primeira vez na história política do país que se teve a oportunidade de construir, mediante debate plural, um CPC democrático. Promulgado pela Lei 13.105/2015 e em vigor desde março de 2016, o novo Código se propõe a aperfeiçoar o sistema processual existente, com vistas a adequá-lo às novas concepções teóricas, nacionais e internacionais, e à ordem constitucional constituída a partir de 1988. Dentre os objetivos buscados pela comissão que iniciou os trabalhos de elaboração no novo instrumento, destaca-se a projetação de um regramento com potencial de gerar um processo mais célere, mais justo, menos complexo e, assim, mais rente às necessidades sociais, em fina sintonia com a Constituição da República de 1988. Tal fez com que o capítulo “abre-alas” do Código seja sobre as “normas fundamentais do processo civil”, que conduzem a aplicação e interpretação do restante do texto legal e o integram ao ordenamento jurídico democrático brasileiro, atento à dignidade da pessoa humana. O art. 3º do CPC, por exemplo, reforça o acesso à justiça, em concepção diversa da outrora adotada como “acesso ao Judiciário”. O princípio

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vem, agora, em sentido mais amplo, conclamando a todos aqueles que de qualquer forma atuam com a administração da justiça, notadamente os juízes, os advogados, os defensores públicos e os membros do Ministério Público, bem como os próprios jurisdicionados, a estimular a solução consensual dos conflitos e a vislumbrar na jurisdição uma via excepcional. Trata-se, portanto, não apenas de garantir recursos judiciais simples e efetivos aos jurisdicionados, mas a efetiva e tempestiva prestação jurisdicional e restituição do direito eventualmente violado. Nesse sentido é que vem o art. 4º do CPC prescrever o direito das partes de obter em prazo razoável a solução integral do mérito. Interessante, pois, além de reverberar comando constitucional expresso acerca da razoável duração dos processos (art. 5º, LXXVIII, CRB/1988), do dispositivo também é possível inferir o primado do julgamento de mérito. Trata-se, aparentemente, da restauração do princípio da instrumentalidade das formas, com o claro propósito de prestigiar o exame integral do mérito bem como a solução efetiva dos conflitos. O espírito dessa regra é evitar a inadmissibilidade de certos atos processuais e até mesmo a extinção do processo em razão do simples formalismo, o que se mostra bastante salutar se considerada a repercussão social alcançada pelos conflitos coletivos e pelo sistema de precedentes. Apesar desse movimento legislativo em torno da melhoria do sistema processual, não pretendeu o legislador fazer do CPC instrumento de regulação dos conflitos sobre direitos de grupo, o que, em termos de litigância estratégica em direitos humanos, é bastante relevante. Dessa forma, o sistema processual civil em vigor tem como foco, basicamente, dois tipos de litigiosidade: a individual ou “de varejo” e a de massa, também denominada “serial”, “repetitiva” ou “de alta intensidade”. Porém, ainda que não tenha o CPC tratado diretamente da litigiosidade coletiva, envolvendo direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, seus reflexos serão inevitavelmente sentidos na tutela coletiva, seja pela proximidade da função desempenhada pelo Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas quanto aos direitos individuais homogêneos, seja pela notória insuficiência do regramento processual coletivo atual. Nesse sentido, o CPC será aplicável às ações coletivas, de modo geral, sempre naquilo em que não contrariar as disposições das leis especiais que formam o sistema processual coletivo, aplicabilidade esta que será subsidiária e supletiva. 3.2. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas Nos clássicos estudos sobre as ondas de acesso à justiça, expõe-se sempre que a criação de um microssistema de tutela coletiva se deu com o objetivo

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de ampliar esse acesso, ao mesmo tempo em que contribuiria para a redução do número de processos nos já assoberbados tribunais brasileiros. Observa-se, porém, que tais ferramentas não têm impactado com a força esperada. Visando amenizar esse problema, bem como buscar a uniformidade e segurança nas decisões judiciais, instituiu-se o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR – arts. 976 a 987, CPC), técnica para agrupar demandas de massa, partindo de um caso piloto, cujo julgamento possa se fundar em tese jurídica aplicável aos processos que compartilhem idênticas questões unicamente de direito. Tido como uma das principais inovações do novo Código, o IRDR, de inspiração no Direito alemão, destina-se ao contingenciamento da litigiosidade repetitiva, demonstrando o apreço que tem o legislador pátrio pelos precedentes jurisprudenciais. Em suma, objetiva-se “firmar uma tese jurídica única aplicável a todos os casos repetitivos, a partir de um procedimento incidental em que se forme um modelo da controvérsia, conferindo prestação jurisdicional isonômica e previsível aos jurisdicionados” (MENDES et al., 2015). Aqui se tem ação individual que veicula tutela de direito individual homogêneo, também passível de ação coletiva nos termos do parágrafo único, inciso III, do art. 81, Código de Defesa do Consumidor (CDC). Contudo, não se trata, aqui, de instituto que acresça ao microssistema brasileiro de tutela coletiva, já que sua utilização parte do pressuposto de uma pulverização do conflito em seriadas ações individuais sobre a mesma causa de pedir. Isso é justamente o que a coletivização do processo pretende evitar por meio de ações coletivas manejadas por legitimados: a virulenta proliferação de demandas nos fóruns brasileiros. Trata-se de algo diverso, portanto. Para fins de litigância estratégica em direitos humanos promovida por clínicas jurídicas universitárias, porém, a nova técnica adquire especial relevância. Afinal, é de se considerar que tais organismos universitários, em diversos casos, podem não possuir legitimidade para propor a ação coletiva cabível para a tutela de direitos. Por meio do IRDR, no entanto, é possível advogar, em nome do interesse público, uma tese jurídica única, que ampare os direitos humanos e confira prestação jurisdicional isonômica e aplicável a todos os casos repetitivos. Na estratégia processual, porém, é preciso estar atento às circunstâncias que podem influenciar uma decisão mais protetiva no caso piloto. Afinal, eventual decisão desfavorável ou que acarrete retrocesso na tutela dos direitos fundamentais, nesse caso, terá alto impacto social negativo. Vejamos em mais detalhes o funcionamento da técnica. Admitido o incidente, o relator suspenderá os processos repetitivos pendentes, individuais ou coletivos, que ficarão aguardando a decisão da demanda piloto (art. 982, I, e 985, I, CPC). Assim, por meio do IRDR, a questão de

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direito de um determinado processo repetitivo será levada ao conhecimento do tribunal, que irá decidir sobre ela em caráter definitivo e vinculante. Os legitimados para promoverem o IRDR (art. 977, I, II e III, CPC: o juiz ou relator, por ofício; as partes, o Ministério Público ou Defensoria Pública, por petição), bem como para as ações coletivas (art. 5º, Lei da Ação Civil Pública – LACP, e art. 82, CDC) do direito brasileiro foram indicados pelo legislador. A questão que se coloca, e que por enquanto não se pode responder, refere-se à possibilidade de inadequação ou baixa representatividade da demanda-piloto quanto à tese jurídica em foco, considerando que, da análise desta, passará a haver precedentes centralizadores que serão aplicados tanto aos processos repetitivos ou de massa individuais quanto aos coletivos. De toda forma, não se pode deixar de temer as consequências negativas de se vincular tais processos a pronunciamento judicial prematuro e limitado no tempo e espaço, com consequente perigo à correta realização do contraditório, inarredável princípio processual constitucional, visto que a decisão centralizada independerá da efetiva participação dos interessados diretos em sua construção. Talvez possamos afirmar, de modo otimista, que a aplicação da técnica do IRDR para a solução de casos idênticos será instrumento de reorganização e gestão do estoque acumulado de processos no Judiciário brasileiro, aos quais será dado tratamento isonômico, célere e eficiente. Outro aspecto que parece enaltecer essa técnica diferenciada, em especial vantagem relativamente às ações coletivas que formam o microssistema brasileiro de defesa aos direitos coletivos, refere-se à matéria que poderá ser objeto de análise pelo IRDR. Conforme o parágrafo único do art. 1º, LACP, acrescentado pela Medida Provisória 2.180-35 de 2001, as ações civis públicas não são cabíveis para os conflitos voltados a temas que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, Fundo de Garantia por Tempo de serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos benefícios podem ser individualmente determinados, temas estes que afetam, geralmente, a coletividade. Destarte, tal restrição de matéria não foi excepcionada diante da técnica do IRDR, fato que reforça sua força normativa como meio de acesso à justiça frente à tutela da coletividade. No entanto, apenas a título de observação, também é possível pontuar algumas reflexões que merecem verificação na prática do novel instituto: como será aferida a “representação adequada” do caso-piloto frente à possibilidade de limitação do acesso à justiça? Seria o IRDR um veículo de estímulo de atuação do indivíduo na defesa de direitos individuais homogêneos, com o consequente desprestígio das ações coletivas na defesa desses mesmos direitos? Como promover a efetiva participação de grupos

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em situação de vulnerabilidade em julgamentos que podem afetá-los? Como desconstruir julgamentos prematuros ou teses ratificadas sem a devida participação das minorias sociais no processo? Ainda é cedo para se apurar os resultados de tais questionamentos. Só resta fiscalizar e fazer uso estratégico de tal ferramenta em prol dos direitos humanos. 3.3. Do Amicus Curiae No viés processual democrático, que exige maior legitimidade, uniformidade e eficiência quantitativa e qualitativa das decisões judiciais, o CPC/2015 inovou ao inserir a figura do amicus curiae entre as espécies de intervenção de terceiros (art. 138). A expressão refere-se à função exercida por quem, não sendo parte no processo, solicita autorização ou é convocado pelo tribunal para apresentar argumentos fáticos e jurídicos relevantes à discussão do caso, com a intenção de ampliar a visão da corte e subsidiar decisão mais justa do julgador (BUENO, 2012). A expressa previsão pelo CPC/2015 da figura do amicus curiae deu mais destaque a essa ferramenta “clínica” do processo civil, isso porque a figura do “amigo da corte”, em si, não é inovadora, tendo-se notícia de sua existência ainda no período medieval inglês. Nem mesmo a chegada da figura ao direito brasileiro se deu pelo código processual mais recente. Afinal, inspiradas no direito norte-americano, algumas leis federais específicas já previam a possibilidade de ingresso de amicus curiae em Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADI’s) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC’s), bem como no incidente de uniformização de jurisprudência dos Juizados Especiais Federais e nos processos de edição, revisão e cancelamento de súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal (STF) – respectivamente, Lei 9.868/1999, Lei 10.259/2001 e Lei 11.417/2006. A inovação, portanto, é a expressa previsão da figura do amicus curiae em regulamentação ampla, o novo CPC, pois, até então, as mencionadas legislações, além de especiais, apenas tratavam de processos de caráter objetivo. Agora, essa nova hipótese de intervenção de terceiros é possível em qualquer tipo de processo e já em primeira instância, estando apenas condicionada à admissão do juiz ou relator, por decisão irrecorrível. Essa nova função pode, ainda, ser exercida por pessoas naturais ou jurídicas, bem como por órgãos ou entidades especializadas, com adequada representatividade. Quanto à sua atuação, restou expressamente consignada a legitimidade recursal do amicus curiae em face da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 138, § 3º, CPC).

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Para além do fundamento da participação do amicus curiae como instrumento democratizante das decisões judiciais, agregando a estas conhecimentos técnicos especializados, importa ressaltar sua inegável utilidade no campo da defesa dos direitos coletivos que, por natureza, traduzem-se em matéria de alta relevância e repercussão social. Exemplo de atuação com esse viés é a iniciativa da CdH/UFMG de ingressar, na qualidade de amicus curiae, no Recurso Extraordinário (RE) 670.422, de relatoria do ministro Dias Toffoli. Nesse caso, de reconhecida repercussão geral, se discute a necessidade ou não de cirurgia de transgenitalização para alteração de gênero nos assentos do registro civil, o conteúdo jurídico do direito à autodeterminação sexual e à possibilidade jurídica ou não de se utilizar o termo “transexual” no registro civil.6 Para além de casos de clara repercussão social, como o mencionado acima, é de se destacar e celebrar intervenções clínicas em casos individuais que podem originar precedentes inovadores em matéria de proteção e garantia de direitos humanos. Tal foi o caso, por exemplo, de intervenção da CdH/ UFMG em processo em que um homem transexual pleiteia a retificação de nome e de gênero, conjuntamente, e sem ter realizado cirurgia de redesignação sexual.7 Também buscando precedente de viés protetivo, a CdH/UFMG intervirá como amicus curiae em caso de adolescente que vivia em abrigo em Ribeirão das Neves e teve seu primeiro filho separado dela e colocado para adoção sem seu consentimento. Em se tratando o Poder Judiciário de garantidor de políticas públicas e de direitos indispensáveis à vida digna dos cidadãos brasileiros, torna-se de total pertinência esse tipo de intervenção e uma maior e mais qualificada abertura na interpretação e aplicação da lei, potencializando e subsidiando a construção de decisões judiciais, em princípio, mais justas, porquanto baseadas em argumentos técnicos especializados de um terceiro. 3.4. Inserção de jurisprudência internacional Outra ferramenta “clínica” na litigância estratégica em direitos humanos consiste na inserção de jurisprudência e parâmetros internacionais em petições de casos individuais ou coletivos que tramitem no âmbito interno brasileiro, isso porque, segundo a teoria geral da responsabilidade internacional dos Estados, os tratados, uma vez ratificados e incorporados 6



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Para mais informações sobre o caso em questão, consultar o capítulo Transexualidade e litigância estratégica em direitos humanos, de autoria de Camila Silva Nicácio, Julia Silva Vidal e Sophia Pires Bastos, na presente obra. Mencionado processo, de nº 5025403-15.2016.8.13.0024, tramita em segredo de Justiça na 2ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte, em razão de declínio de competência da Vara de Registros Públicos que bem exemplifica o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre o tema.

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ao direito interno, obrigam a todos os atores estatais, inclusive legisladores e juízes nacionais, da mesma forma que ao Executivo. Em especial no tocante à proteção dos direitos humanos, o direito internacional e o direito interno se encontram em constante interação, de forma que as normas internacionais que consagram claramente um direito individual, passível de vindicação ante um tribunal ou juiz nacional, são diretamente aplicáveis (CANÇADO TRINDADE, 2003). Nada mais coerente, portanto, que as ações internas sejam fundamentadas também nessas normas internacionais. Importante frisar que eventual relutância dos poderes do Estado em dar fiel cumprimento às obrigações internacionais é injustificável e contribui para a configuração de um ilícito internacional imputável ao Estado brasileiro. Daí a importância de se construir uma cultura de conformidade aos parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos. Nesse contexto, o grau de instrução dos operadores da justiça é fator relevante e que facilita essa aplicação horizontal e direta dos princípios internacionais no âmbito interno, já que o desconhecimento da matéria dificulta a aplicação coerente dos mecanismos de proteção (DI CORLETO, 2007). Enquanto sociedade civil e clínicas jurídicas, compete-nos levar a conhecimento de juízes e tribunais internos princípios e jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos, já que incorporados ao ordenamento jurídico. Cabe-nos, ainda, recordá-los de que, quando um Estado ratifica um tratado internacional de direitos humanos, seus juízes, como parte do aparato desse Estado, também estão submetidos a ele (CORTE IDH, 2010), o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições convencionais não se vejam empobrecidos pela aplicação de leis contrárias a seu objeto e fim, e que desde o princípio carecem de efeitos jurídicos. Nas palavras da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), essa prática de averiguação de conformidade entre as normas jurídicas internas que são aplicadas nos casos concretos e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) é chamada de “controle de convencionalidade”.8 Tal denominação apareceu pela primeira vez no caso Almonacid Arellano vs. Chile, ocasião em que a Corte IDH entendeu que, ainda que o Poder Legislativo tenha falhado em sua tarefa de suprimir normas contrárias à CADH, permanece o dever do Poder Judiciário de abster-se de aplicar tais normas previstas no ordenamento interno e de implementar as obrigações convencionais assumidas pelo Estado (CORTE IDH, 2006). No Brasil, porém, a prática jurídica, infelizmente, ainda não segue nesse sentido. A esse respeito, exemplo emblemático e lamentável foi o da decisão 8



Na oportunidade, a Corte IDH destacou que nessa averiguação de conformidade deve-se considerar não apenas o tratado, mas também a interpretação que lhe foi dada pelo próprio tribunal, intérprete último da CADH.

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do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, confirmando a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações do Brasil derivadas do Direito Internacional, em especial, aquelas decorrentes dos arts. 1.1, 2, 8 e 25 da CADH (ALEIXO et al., 2015). Mencionado julgado revela que ainda há muito esforço a ser feito para que advogados, juízes, sociedade civil, estudantes de direito, etc. tenham a consciência de que o direito interno deve ser interpretado de maneira coerente com as normas internacionais de direitos humanos, fomentando um mais amplo e efetivo acesso à justiça (ALEIXO, 2014). Casos como o da recente liminar concedida pelo Superior Tribunal de Justiça no caso da ocupação Izidora, em Belo Horizonte, renovam nossas esperanças. Com base em parâmetros internacionais de proteção, o tribunal entendeu pela impossibilidade de reintegração de posse, fundamentando a decisão na dignidade dos moradores e no despreparo da Polícia Militar de Minas Gerais para conduzir a operação.9 Casos como esse, que se valem da inserção de parâmetros e de jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos, descentralizam os sistemas das convenções, compreendendo-os como vias subsidiárias e reforçando que o essencial é a proteção conferida pelo direito interno. Também nesse sentido é que a CdH/UFMG vem realizando uma verdadeira advocacia estratégica em matéria de retificação de registro civil e de gênero para travestis e transexuais em Belo Horizonte, sempre com base nessas normativas internacionais. A estratégia envolve: (i) a realização de oficinas-piloto sobre gênero em escola da rede municipal; (ii) a publicação de cartilhas informativas; (iii) a propositura de ações individuais de retificação; (iv) o envio de uma recomendação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais; e (v) o envio de um amicus curiae ao STF. O capítulo Abordagem clínica e transexualidade: o direito como vetor de mudança social, da presente obra, detalha algumas dessas ações e seus resultados. Por ora, analisadas algumas das ferramentas internas para a advocacia estratégica em direitos humanos, delinearemos uma última via, subsidiária, de acesso à justiça: a proteção internacional. 4. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL COMO ESTRATÉGIA SUBSIDIÁRIA DE ACESSO À JUSTIÇA Conforme já aventado no tópico anterior, a proteção regional dos direitos humanos está inspirada no reconhecimento da necessidade de uma 9



A liminar foi concedida em junho de 2015 pelo ministro Og Fernandes, relator do recurso (RMS nº 48316/MG) impetrado pelo Coletivo Margarida Alves, de Belo Horizonte, que assessora ocupações urbanas e outras demandas sociais. Em setembro de 2016, porém, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais voltou a autorizar o despejo dos cerca de 30 mil moradores do terreno.

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última tutela, subsidiária aos sistemas nacionais, para assegurar o uso e o gozo dos direitos fundamentais das pessoas. Afinal, em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, os atos internos dos Estados estão sujeitos à supervisão dos órgãos internacionais de proteção no exame de conformidade de casos concretos às obrigações internacionais. No caso brasileiro, e para os fins a que se propõe o presente capítulo, destacam-se duas esferas de proteção internacional, em constante diálogo: a global e a regional. Veremos suas estruturas básicas a seguir. 4.1. O sistema global de proteção dos direitos humanos O Sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), de proteção global, se estrutura, basicamente,10 em organismos de monitoramento com base na Carta das Nações Unidas, notadamente o Conselho de Direitos Humanos, e em organismos de monitoramento com base em tratados de direitos humanos. O Conselho de Direitos Humanos é formado por 47 Estados e se encarrega de fortalecer a promoção e a proteção mundial dos direitos humanos, recebendo comunicações sobre violações de direitos humanos, realizando a Revisão Periódica Universal (RPU) e elegendo especialistas para os procedimentos especiais. O Conselho recebe comunicações sobre violações de direitos humanos que não estejam sendo avaliadas por outros órgãos internacionais e para as quais os recursos internos tenham sido exauridos, ou seja, todos os recursos administrativos e judiciais do país não tenham resolvido o caso. Já por meio do mecanismo de RPU, o Conselho debate e avalia a situação dos direitos humanos em todos os 192 Estados-Membros da ONU e dá a oportunidade a cada Estado de declarar quais ações foram tomadas para promover os direitos humanos e cumprir suas obrigações internacionais. Importante notar não ser esse um mecanismo judicial e sim um mecanismo cooperativo em que cada membro do Conselho faz comentários, críticas, recomendações e elogios ao Estado que estiver sob avaliação. O Brasil passará, em breve, por mencionado mecanismo e, por esse motivo, a ONU abriu um período para que a sociedade civil pudesse contribuir na avaliação das medidas de promoção e proteção dos direitos humanos adotadas pelo país.11 Exemplo de contribuição foi o da enviada pelo Centro de Estudos sobre 10



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Conforme já destacado na introdução, este capítulo não se pretende exaustivo quanto às matérias e instituições aqui abordadas. No âmbito do Sistema ONU, para além da estrutura aqui citada mais a fundo, relembramos, ainda, o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH), o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral, todos com atribuições em matéria de direitos humanos. Tais contribuições, denominadas “relatórios-sombra”, são avaliadas em conjunto com as informações disponibilizadas pelos Estados e pelos mecanismos especiais da ONU. Para mais informações sobre os relatórios-sombra enviados

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Justiça de Transição, grupo de pesquisa e extensão da Faculdade de Direito da UFMG, demonstrando que o Brasil não adotou medidas internas para ajustar seu ordenamento jurídico às obrigações decorrentes do Estatuto de Roma e do SIPDH. Os procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos, por sua vez, podem ser conduzidos por relator especial, especialistas independentes ou grupo de trabalho, que monitoram e relatam publicamente a situação dos direitos humanos em países ou territórios específicos, ou, ainda, grandes violações recorrentes em todo o mundo como prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados, tortura, prostituição infantil e privação de direitos. A atuação desses especialistas é bem diversificada, podendo eles realizar visitas a países, atuar em casos individuais, enviar comunicações a Estados e conduzir relatórios temáticos que contribuem para o desenvolvimento de padrões de direito internacional dos direitos humanos. O uso desses procedimentos especiais é uma estratégia interessante para dar maior visibilidade e repercussão internacional a violações de direitos mesmo antes de toda a tramitação processual no âmbito doméstico, já que não tem como pré-requisito o esgotamento dos recursos internos. Por sua vez, os organismos de monitoramento com base em tratados de direitos humanos são criados por documentos específicos e têm várias competências, tais como: avaliar os relatórios periódicos de Estados-Partes sobre o cumprimento dos respectivos tratados, elaborar comentários e recomendações gerais sobre a interpretação das disposições de seus respectivos tratados e, em muitos casos, receber e apreciar em procedimentos quase judiciais comunicações que denunciam violações de direitos humanos. Apesar das decisões desses procedimentos não terem força de sentença judicial, elas podem desempenhar um importante papel na busca por reparações às vítimas e na melhoria geral da situação de direitos humanos no país.12 4.2. O sistema regional de proteção dos direitos humanos Em paralelo à proteção global dos direitos humanos, conferida pelo Sistema ONU, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIPDH) opera em âmbito regional. A ideia de criação de tribunal supranacional

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pela sociedade civil brasileira em cada ciclo de Revisão Periódica do Brasil, consultar: . Acesso em: 13/10/16. Entre os mecanismos de tratados de direitos humanos, o Brasil está sujeito ao monitoramento por parte do Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, do Comitê para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, do Comitê sobre Direito das Crianças (apesar de ainda não aceitar comunicações individuais sobre violações), do Comitê sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, do Comitê contra a Tortura, do Comitê contra os Desaparecimentos Forçados e do Comitê dos Direitos Humanos.

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nas Américas foi definitivamente aceita com a aprovação da CADH,13 em 22 de novembro de 1969, na Costa Rica. Com a instauração da Corte IDH, em 1979, a responsabilidade do Estado por violação de direitos humanos passou a ser aferida perante dois órgãos no âmbito do SIPDH, a Comissão e a Corte. O primeiro deles, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tem suas atribuições determinadas no art. 41 da CADH, sendo elas de promoção e de proteção dos direitos humanos. No sistema de peticionamento do SIPDH, cabe à Comissão o processamento das denúncias e a opção pelo envio do caso à Corte IDH. Trata-se de mecanismo quase judicial, que culminará com a publicação de relatório de mérito e recomendações ao Estado sobre o caso. Na hipótese em que o Estado houver aceitado a jurisdição obrigatória da Corte e em que a CIDH considerar que o Estado não deu cumprimento às recomendações contidas no relatório preliminar de mérito, o caso poderá vir a ser encaminhado à Corte. De maneira complementar, as funções de caráter não judicial da CIDH – também chamadas “faculdades promocionais ou políticas” –, se destinam a responder de forma proativa, e não reativa, às violações mais críticas e endêmicas de direitos humanos nas Américas. Para isso, a CIDH se organiza em dez relatorias temáticas,14 publicando relatórios anuais de avaliação da situação dos direitos humanos nos países do continente, relatórios temáticos e relatórios por países. Assim como no Sistema ONU, o uso dessas ferramentas é bastante acessível à sociedade civil, já que não há o pré-requisito de esgotamento dos recursos internos. Exemplo dessa acessibilidade foi o da participação da CdH/UFMG em duas audiências temáticas da CIDH, no seu 157º Período Ordinário de Sessões, o que gerou maior repercussão internacional acerca das temáticas lá tratadas: Medidas para prevenir a prisão preventiva nas Américas e Direitos Culturais e Internet no Brasil.15 Já a Corte IDH é uma instituição judicial autônoma, cujo objetivo é aplicar e interpretar a CADH, nos termos de seu Estatuto. Possui ela duas funções, a consultiva e a contenciosa. Por meio da função consultiva, responde a consultas formuladas pelos Estados-membros da OEA ou por 13



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Os Estados-partes desse instrumento de proteção são, sem exceção, membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). Porém, nem todos os Estados-membros da OEA se vincularam à CADH. Não se confunde, então, o sistema de responsabilização dos Estados por violação à CADH com aquele que é aplicável a todo e qualquer membro da OEA, que utiliza dos preceitos da Carta da própria Organização e da Declaração Americana de Direitos Humanos. Por isso, ressaltamos que o foco deste estudo é, tão somente, o sistema regido pela CADH. São elas: Afrodescendentes e contra a discriminação racial; Defensoras e defensores de direitos humanos; Liberdade de Expressão; Mulheres; Crianças e Adolescentes; Pessoas Privadas de Liberdade; Povos Indígenas; Migrantes; Lésbicas, Gays, bissexuais, pessoas trans e intersexuais; Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Os relatórios apresentados podem ser acessados na página da CdH/UFMG , na aba publicações, enquanto as sustentações orais podem ser vistas em e .

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órgãos da mesma entidade acerca da interpretação da CADH ou de outros tratados relacionados com a proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos.16 Lado outro, a função contenciosa se revela no conhecimento de casos levados geralmente pela CIDH.17 Nos casos submetidos à sua jurisdição, o tribunal determina, por meio do controle de convencionalidade, se um Estado incorreu em responsabilidade internacional pela violação de direito reconhecido na CADH ou em outros tratados de direitos humanos aplicáveis ao SIPDH. Se for o caso, disporá as medidas necessárias para reparar as consequências derivadas da violação de direito e, posteriormente, fará a supervisão de seu cumprimento, visando assegurar o pleno acesso à justiça às vítimas. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratar de ferramentas “clínicas” na advocacia estratégica em direitos humanos pode ser tarefa ingrata, vez que é difícil esgotar o tema e listar satisfatoriamente os diversos mecanismos disponíveis para a tutela dos direitos humanos. O capítulo, portanto, traçou ideias e narrou exemplos de práticas de intervenção em processos de elaboração normativa, em processos judiciais e, ainda, de atuação em âmbito internacional, sem pretender esgotar o tema. Antes de encerrarmos, porém, é crucial reconhecer a importância de parceiros para o desenvolvimento desse tipo de ação de forma articulada, para o fortalecimento de verdadeira rede de proteção e para a construção de uma cultura de conformidade com os parâmetros internacionais de direitos humanos. Que tal fazer parte desse movimento? REFERÊNCIAS ALEIXO, Letícia Soares Peixoto. O direito de acesso à justiça e os impactos do peticionamento individual nos tribunais regionais de direitos humanos. III Curso Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos: Igualdade e Não-discriminação. Coord.: Antônio Augusto Cançado Trindade e César Barros Leal. Fortaleza: Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, 2014. ALEIXO, Letícia Soares Peixoto; PAULINO, Lucas Azevedo. Recepção da Lei de Anistia no caso Gomes Lund: como pensar a implementação de direitos fundamentais violados? Anais do IX Congresso da Rede Latinoamericana de Antropologia Jurídica – Sociedades Plurais e Estados Nacionais: limites e desafios para a efetividade de direitos. Coord. Fernando Antonio de Carvalho Dantas; Carlos Frederico Marés de Souza Filho e Rebecca Lemos Igreja. Pirenópolis: UFG – UnB – PUCPR, 2015. 16



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Conforme ressaltado pela própria Corte IDH, em seu Relatório Anual de 2012, os pareceres consultivos “são instrumentos úteis para que os Estados e os órgãos da OEA consolidem e ampliem, sem esperar uma violação aos direitos humanos, o corpus iuris interamericano, através da criação de padrões claros e vigorosos para a promoção, defesa e garantia dos direitos humanos no hemisfério”. Cf. CORTE IDH. Relatório Anual de 2012, p. 20. Conforme disposto pelo art. 62 da CADH, essa competência da Corte somente pode ser exercida quando o Estado houver reconhecido a jurisdição desse tribunal como obrigatória em todos os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção. No Brasil, o reconhecimento da jurisdição da Corte IDH se deu pelo Decreto Legislativo nº 89/98, de 03 de dezembro de 1998.

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ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo brasileiro: análise crítica das propostas existentes e diretrizes para uma nova proposta de codificação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. ALMEIDA, Gustavo Milaré. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o trato da litigiosidade coletiva. Novo CPC doutrina selecionada, v. 6: processos nos tribunais e meios de impugnação às decisões judiciais. Coord.: Fredie Didier Jr, Lucas Buril de Macêdo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. Salvador: Jus Podivm, 2015. ARAÚJO, Fábio Caldas de. Das ações possessórias. In: CUNHA, José Sebastião Fagundes (coord. geral), BOCHENEK, Antônio César; CAMBI, Eduardo (coord.) Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. BRASIL. Decreto Legislativo nº 89/1998. Reconhece a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: terceiro enigmático. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. CAMPOS, Bárbara Pincowsca Cardoso. Controle de convencionalidade: aproximação entre o Direito Internacional e o Constitucionalismo? In: Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, ano 13, vol. 13, nº 13. Fortaleza: IBDH, 2013. CIDH. Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Aprovado pela Comissão em seu 137º período ordinário de sessões, realizado de 28 de outubro a 13 de novembro de 2009. CORTE IDH. Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 26 de setembro de 2006. Serie C, nº 154. CORTE IDH. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Serie C, nº 219. CORTE IDH. Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Aprovado pela Corte no seu LXXXV período ordinário de sessões celebrado de 16 a 28 de novembro de 2009. CORTE IDH. Relatório Anual de 2012. p. 20. DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei, introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte, v. 7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004. DI CORLETO. El reconocimiento de las decisiones de la Comisión y la Corte Interamericana en las Sentencias de la Corte Suprema de Justicia Argentina. Implementación de las Decisiones del Sistema Interamericano de Derechos Humanos: Jurisprudencia, normativa y experiências nacionales. Coord.: Viviane Krsticevic. Buenos Aires: CEJIL, 2007. HESPANHA, António Manuel. Leis bem feitas e leis boas. Cadernos de Ciência de Legislação. 50 (2009). págs. 31-47. ILC. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Yearbook of the International Law Commission, 2001, vol. II, parte 2. JARDIM, Tarciso Dal Maso. Brasil condenado a legislar pela Corte Interamericana de Direitos Humanos: da obrigação de tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas. Textos para discussão, nº 83. Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, 2011. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas do Novo Código de Processo Civil. Novo CPC doutrina selecionada, v. 6: processos nos tribunais e meios de impugnação às decisões judiciais. Coord.: Fredie Didier Jr, Lucas Buril de Macêdo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 225-269. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos. Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, São José da Costa Rica, 22 de novembro de 1969. OEA. Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Aprovado pela Assembleia Geral da OEA, em seu Nono Período Ordinário de Sessões, realizado em La Paz, Bolívia, outubro de 1979. SILVA, Paulo Eduardo Alves da. As normas fundamentais do novo Código de Processo Civil - ou “As Doze Tábuas do Processo Civil Brasileiro”? O Novo Código de Processo Civil: questões controvertidas. YARSHELL, Flávio Luiz et. al. São Paulo: Atlas, 2015. p. 295-323. SOARES, Fabiana de Menezes. Produção do direito e conhecimento da lei a luz da participação popular e sob o impacto da tecnologia da informação – 2002. Direito Teses. 511 páginas. Disponível em .

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Capítulo 4 Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Direitos Humanos e Prática em Relações Internacionais Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini1 Geraldo Henrique Romualdo de Miranda2 Marrielle Maia Alves Ferreira3

RESUMO: O capítulo tem por objetivo relatar a experiência e alguns resultados práticos alcançados com o desenvolvimento do projeto “Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos” pelo Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos da Universidade Federal de Uberlândia (NUPEDH-UFU). Parte-se das peculiaridades e dificuldades relativas ao campo de Relações Internacionais em lidar com objetos, esferas e dinâmicas tradicionalmente observadas como “pouco internacionais”: o indivíduo, os direitos humanos, o plano local, a prática e a extensão universitária. A exposição das experiências de ensino, pesquisa, extensão e inovação abrangidas pelo projeto aponta formas de se lidar com as questões de direitos humanos e as Relações Internacionais no Ensino Superior. Palavras-chave: Direitos Humanos; Ensino; Pesquisa; Extensão; Sistema Interamericano de Direitos Humanos. ABSTRACT: The chapter aims to report some experiences and practical results achieved with the development of the “Observatory of the Inter-American System of Human Rights” by the Center for Research and Studies on Human Rights of the Federal University of Uberlândia (NUPEDH-UFU, in portuguese). Part of the peculiarities and difficulties relating to international relations field in dealing with objects, spheres and dynamics traditionally seen as “little international”: the individual, human rights, the site plan, the practice and university extension. Exposure of teaching experience, research, extension and innovation covered by the project suggests ways of dealing with the issues of human rights and International Relations in Higher Education. KEY WORDS: Human Rights; Teaching; Search; Extension; Inter-American System of Human Rights

1. INTRODUÇÃO Quando o aluno ingressa no curso de Relações Internacionais, já tem uma ideia relativamente “precisa” do seu objeto de trabalho, das potenciais 1



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Doutora em Relações Internacionais pela USP; Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Relações Internacionais (UFU); Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH-UFU). E-mail: [email protected] Bacharel em Relações Internacionais (UFU); Secretário do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH-UFU). E-mail: [email protected] Doutora em Ciência Política pela UNICAMP; Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Relações Internacionais (UFU); Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH-UFU). E-mail: [email protected]

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esferas de atuação e das dinâmicas a serem observadas: o “internacional” desperta pronto e exclusivo interesse. É comum, particularmente aos principiantes, que o “internacional” se defina em oposição – e logo, em rejeição – ao que se delimita como “nacional” e suas variações “local”, “doméstico”. A tendência natural é a busca pelo exterior, pelo que ocorre para além das fronteiras nacionais. Tudo aquilo que caminha na direção contrária, quando não é descartado de plano, desperta pouco interesse. Diante dessa perspectiva um tanto quanto ingênua, é raro que respondam, sem titubear, como o profissional de Relações Internacionais pode ser um elemento-chave a dar respostas às mais diversas demandas da sociedade brasileira. O mais lamentável ocorre quando essa perspectiva inicial não se diversifica ao longo da formação profissional, justamente pela carência de oportunidades para testar e colocar o conhecimento teórico sobre o internacional em prática a favor das demandas locais. Calibrar o olhar sobre o que se entende por Relações Internacionais e quais são suas potenciais contribuições para a transformação da realidade brasileira mostra-se crucial. Para isso, é imprescindível partir da definição de que Relações Internacionais é um curso em nível de graduação (bacharelado) cujo objetivo fundamental é, em princípio, formar profissionais que possam exercer atividades com interface internacional e criem oportunidade na esfera das relações entre Estados, empresas, organizações intergovernamentais, organizações não governamentais, entre outras instituições (art. 3, Minuta de Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Relações Internacionais, grifo nosso)4.

De acordo com essa visão, o curso de Relações Internacionais deve possibilitar uma formação humanística que revele competências e habilidades relacionadas à concepção, ao gerenciamento, à gestão e à organização de atividades com interface internacional que possibilite a compreensão das questões internacionais no seu contexto político, econômico, histórico, geográfico, estratégico, jurídico, cultural e social, conforme artigo 4 do mesmo parâmetro regulamentar. Entretanto, apesar da previsão de formação humanística, as temáticas de direitos humanos nos cursos de Relações Internacionais, quando (em poucos casos) explicitamente inseridas nos conteúdos programáticos das disciplinas, são tratadas como temas de menor importância, meramente acessórias, sendo alvo de críticas, questionamentos e desinteresse, frequentemente por parte dos próprios alunos. A necessidade de justificar a importância dos temas de direitos humanos no ensino superior, seja no caso do curso de Relações Internacionais ou em outros, por si só, já demonstra 4



BRASIL. Minuta das Diretrizes Curriculares Nacionais para Cursos de Graduação em Relações Internacionais. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2016. Esse parâmetro normativo encontra-se em tramitação perante o Ministério da Educação.

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que a sociedade brasileira, mesmo no que seria a camada mais esclarecida, não assimilou totalmente a realidade dos “novos” direitos. Os avanços acadêmicos sobre direitos humanos no Brasil são recentes, ligados à redemocratização a partir de 1985. A literatura brasileira existente sobre tema se restringe, em boa medida, às análises estritamente jurídicas. Esses estudos, inegavelmente qualificados, muitas vezes pautam as primeiras aproximações dos alunos de Relações Internacionais com o tema, ainda que essa vertente não se mostre plenamente adequada ao ensino em matéria nas Relações Internacionais. Essas narrativas raramente privilegiam importantes fundamentos para a área de conhecimento, como os processos de institucionalização internacional, a inclusão dos temas de direitos humanos nas agendas de política externa e as dinâmicas de participação de atores transnacionais na política internacional de direitos humanos. Outro obstáculo que os direitos humanos colocam para as Relações Internacionais é o de que, tradicionalmente, essa temática não foi percebida como própria das relações entre os Estados. Nessa visão, o sistema internacional compõe-se de Estados, cada qual com uma unidade dotada de soberania para se organizar domesticamente (determinando, inclusive, a extensão da garantia interna dos direitos humanos aos seus cidadãos), de modo que a proteção dos direitos humanos é uma atribuição exclusivamente estatal e, portanto, um assunto doméstico descabido no relacionamento entre os Estados. O surgimento da ideia de proteção internacional aos direitos universais, após a Segunda Guerra Mundial, contribuiu para se repensar os postulados do paradigma estatocentrista das Relações Internacionais, no sentido de que a formalização de mecanismos internacionais de direitos humanos abriu a possibilidade de relativizar a soberania dos Estados e, ao mesmo tempo, minimizar os efeitos da anarquia no sistema internacional a partir do fortalecimento de arranjos internacionais. Contudo, mesmo após a implementação de mecanismos internacionais de garantia aos direitos humanos, a visão tradicional de que os direitos humanos são um tema exclusivamente nacional ainda permanece no debate político e acadêmico. Identificamos que essa percepção de que os direitos humanos podem, em alguns momentos, ser colocados como assunto hierarquicamente inferior no relacionamento entre Estados parece ser (mal-)traduzida, como se os direitos humanos fossem, por essa razão, mera trivialidade, cristalizando-se, em diversos imaginários, um cenário de baixas expectativas em relação aos estudos e perspectivas profissionais em direitos humanos. A questão que se coloca, portanto, é a de como relacionar essa “não-tão-nova” realidade dos direitos humanos aos cursos de Relações Internacionais no Brasil, de modo a fortalecer as potencialidades desses estudos e pesquisas para o

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desenvolvimento da área, do sistema nacional de direitos humanos e da própria sociedade brasileira. Nesse diapasão, o objetivo deste capítulo consiste em relatar a experiência e alguns resultados práticos alcançados com o desenvolvimento do projeto “Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos” pelo Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos da Universidade Federal de Uberlândia (NUPEDH-UFU). Este capítulo encontra-se estruturado da seguinte maneira: na primeira seção, apresenta-se a organização e estrutura de trabalho do NUPEDH-UFU. Na seção seguinte, descrevemos o projeto “Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos” e as principais atividades realizadas. Na última seção, traçamos os principais resultados alcançados e as perspectivas para os trabalhos futuros. Por fim, concluímos. 2. O NÚCLEO DE PESQUISAS E ESTUDOS EM DIREITOS HUMANOS (NUPEDH) O NUPEDH tem sua formação inicial derivada do interesse de atuação conjunta de uma rede de pesquisadores com experiência acadêmica e profissional em direitos humanos e Relações Internacionais, no Brasil e no exterior. De modo geral, a criação do NUPEDH colocou-se como uma necessidade para viabilizar os meios institucionais, materiais e humanos para a realização de Ensino, Pesquisa, Extensão e Inovação na área dos Direitos Humanos. A proposta da sede do NUPEDH na Universidade Federal de Uberlândia levou em consideração a localização central da Universidade no país, bem como a experiência acumulada por meio dos seis núcleos de estudos e pesquisas do Instituto de Economia, especialmente do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Relações Internacionais (NEPRI), e os esforços de pesquisa em direitos humanos no Grupo de Estudos sobre os Sistemas Internacional e Regional de Direitos Humanos. O NUPEDH, inclusive, foi criado a partir dos trabalhos desenvolvidos no âmbito desse Grupo de Pesquisa sobre os Sistemas Internacional e Regional de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos (registrado no diretório do CNPq) e do intercâmbio de investigações com outros grupos e profissionais de instituições de ensino e organizações públicas e privadas de direitos humanos. O NUPEDH conta, atualmente, com três linhas de pesquisa, as quais se encontram organizadas a seguir. 2.1. Educação em matéria de direitos humanos Esta linha de pesquisa tem como objetivo discutir a educação em matéria de direitos humanos nos cursos de ciências humanas nas Instituições de Ensino

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Superior no marco dos Planos Nacionais de Educação em Direitos Humanos (2003 e 2007) e do Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (ONU 2005). O problema de pesquisa subjacente que se coloca é o de como desenvolver pesquisas científicas em direitos humanos nas áreas do conhecimento que prescindem da educação em matéria de direitos humanos. Parte-se da constatação de que a incorporação da temática dos direitos humanos nos currículos dos cursos da área de humanas ainda carece de parâmetros e políticas nos vários níveis e modalidades de ensino. As pesquisas realizadas nessa linha priorizaram, num primeiro momento, a análise sobre educação em direitos humanos nos cursos de Relações Internacionais do Brasil5. A escolha da área de Relações Internacionais considera sua característica multidisciplinar e a dificuldade na percepção dos temas de direitos humanos como próprios das Relações Internacionais, isso porque, no nível operacional do sistema internacional, a realidade compõe-se de Estados, cada qual como uma unidade soberana para se organizar domesticamente (determinando, inclusive, a extensão da garantia interna dos direitos humanos aos seus cidadãos), de modo que a proteção dos direitos humanos geralmente refere-se a uma atribuição exclusivamente estatal e, portanto, ao assunto doméstico descabido no relacionamento entre os Estados. A frente da educação em matéria de direitos humanos se encarrega das seguintes atividades: (1) levantamento de dados e monitoramento da incorporação e do tratamento dos temas de direitos humanos nos cursos de Relações Internacionais no Brasil; (2) realização de debates entre docentes e discentes a respeito da educação em matéria de direitos humanos nos cursos de Relações Internacionais; (3) promoção da incorporação dos direitos humanos como conteúdo programático regulamentado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Relações Internacionais perante atores e parceiros estratégicos; (4) divulgação dos resultados de pesquisa; e, por fim, (4) incentivo e elaboração de material didático e científico ajustado ao público universitário das Relações Internacionais. 2.2. O Sistema Global de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos Com foco nos principais instrumentos internacionais de direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pactos de Direitos 5





GARBIN, I.; MAIA, M. “O ensino em matéria de direitos humanos nas Relações Internacionais no Brasil”. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 3, p. 39-65, 2014. GARBIN, I.; MAIA, M. “Direitos Humanos no Curso de Relações Internacionais: mas pra quê?”. In: IX Encontro ABCP: 1964-2014, Autoritarismo, Democracia e Direitos Humanos, 2014, Brasília. GARBIN, I.; MAIA, M.; GUIMARÃES, I. “O contexto local de ensino importa – até mesmo para as Relações Internacionais?”. In: V Encontro Nacional da ABRI, 2015, Belo Horizonte. Anais do V Encontro Nacional da ABRI, 2015. GARBIN, I.; MAIA, M. “Direitos Humanos: Experiências de Ensino, Pesquisa e Extensão a partir das Relações Internacionais”. In: Paluma, T; Menezes, W; Martins, F.R. (Org.). Estudos Avançados em Direito Internacional. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes Editores Ltda, 2015, v. 1, p. 67-73.

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Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais e Convenções Temáticas), esta linha de pesquisa busca manter a interface com importantes temas de Relações Internacionais, como segurança, democracia, desenvolvimento e meio ambiente, por meio da observação dos mecanismos de supervisão de direitos humanos vinculados ao Sistema da Organização das Nações Unidas. Nesse contexto, abarca estudos sobre como as normas internacionais de direitos humanos são incorporadas no plano doméstico, difundidas entre os Estados e efetivamente implementadas. É nessa linha de pesquisa que se encontram boa parte da interlocução com os membros do NUPEDH no exterior. 2.3. O Sistema Interamericano de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos (SIDH) Esta linha analisa a pauta dos direitos humanos nos países americanos, enfocando tanto perspectivas institucionais do SIDH, como as consequências das mudanças nas dinâmicas de poder no hemisfério. O objetivo subjacente aos diversos projetos de pesquisa em andamento nessa linha consiste em acompanhar os processos políticos regionais e examinar os impactos do SIDH nos Estados. Nessa linha, encontra-se abrigado o projeto intitulado “Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, por exemplo. As atividades do observatório organizam-se por meio de três eixos: ensino, pesquisa e inovação. O eixo do ensino se constitui pela realização de seminários para discussão da literatura especializada sobre o SIDH, workshops abertos ao público-geral da universidade e projetos de extensão em direitos humanos acessíveis à população local para a difusão de conhecimentos fundamentais em matéria de direitos humanos. No eixo da pesquisa, as atividades se concentram no levantamento e tratamento (quantitativo e qualitativo) de dados referentes aos casos tramitados e em trâmite no sistema regional de direitos humanos. No eixo da inovação, as tarefas se focam na mobilização de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para organizar ferramentas multiplicadoras de conhecimento, principalmente por meio da construção de mídias e espaços virtuais de interação. 3. A EXPERIÊNCIA DO OBSERVATÓRIO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Na Universidade Federal de Uberlândia, tratamos do tema dos direitos humanos no curso de Relações Internacionais em múltiplas oportunidades: incluímos formalmente a educação em matéria de direitos humanos em

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determinadas disciplinas (Organizações Internacionais e Instituições Econômicas e Políticas Internacionais) e criamos diversos espaços e momentos extracurriculares de ensino, pesquisa e inovação em direitos humanos, destacando-se o Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e os projetos extensionistas6 voltados à participação reflexiva dos alunos em torno do tema, todos desenvolvidos sob amparo do NUPEDH-UFU. Nesta seção, centramo-nos no relato das experiências particulares do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, apresentando como esse projeto estruturou-se para desenvolver seus objetivos de ensino, pesquisa, inovação e extensão. A ideia da criação de um observatório sobre circunstâncias internacionais de direitos humanos no curso de Relações Internacionais da UFU surge a partir da percepção da oportunidade em se ampliar o espaço de discussão e aprendizado em matéria de direitos humanos, por meio de um projeto que aliasse a tríade ensino-pesquisa-extensão aos propósitos de profissionalização e inovação. O Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do curso de Relações Internacionais da UFU consiste em um dispositivo de acompanhamento das atividades do sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos. A escolha pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos deu-se em razão de quatro fatores principais: (1) constatação de um vácuo na literatura de Relações Internacionais sobre o tema; (2) baixa qualidade nos dados do sistema interamericano de direitos humanos, carecendo, portanto, de uma organização prévia ao tratamento e análise desses dados; (3) existência objetiva e temporalmente extensa desse regime de direitos humanos, permitindo que ele seja acessado por meio de suas convenções normativas (tratados regionais de direitos humanos, resoluções e decisões interamericanas), práticas sociais (funções e atividades) e percepções que os atores dele possuem (apoio e reação estatal); e (4) por razões morais, tendo em vista uma multiplicidade de desafios que se impõem à luta pela consolidação dos direitos humanos na região. Atualmente, esse projeto conta com apoio do CNPq e da FAPEMIG. As atividades no Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos consistem em três eixos: ensino, pesquisa e inovação. O eixo do ensino se desenvolve por meio de encontros periódicos, restritos aos componentes do grupo, para discussão da literatura especializada sobre o SIDH. Nessas oportunidades, avaliamos o estado da arte e definimos as 6



São exemplos de projetos de extensão levados a cabo pelo NUPEDH-UFU: (1) Projetos Cidadania Corporativa Celanese International Impact Program e Instituto de Economia da UFU: Consultores Juniores do Curso de Relações Internacionais; (2) Projeto Cidadania Corporativa IBM-IEUFU: Consultores Juniores do Curso de Relações Internacionais; (3) Projeto Oficinas de Cartoons em Direitos Humanos e Relações Internacionais; e (4) Projeto CINE-NUPEDH.

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agendas de pesquisa do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, bem como os planos de trabalho dos membros pesquisadores do grupo. Busca-se, também, uma harmonização no conhecimento dos elementos básicos do SIDH entre os pesquisadores. De outro lado, por meio de workshops (abertos ao público-geral da universidade), visa-se a difusão de conhecimentos básicos em matéria de direitos humanos no plano regional. No eixo da pesquisa, as atividades se concentram no levantamento e tratamento (quantitativo e qualitativo) de dados referentes aos casos tramitados e em trâmite no sistema interamericano de petições. Em etapas posteriores, são produzidas análises a partir dos dados obtidos. No eixo da inovação, as tarefas se focam na mobilização de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para organizar ferramentas multiplicadoras do conhecimento, principalmente por meio da construção de mídias e espaços virtuais de interação. O grupo de trabalho do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos é composto por dez alunos, todos do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia. A seleção dos alunos, bem como as dinâmicas de trabalho no Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos são, em grande medida, orientadas a partir dos resultados dos processos seletivos de iniciação científica (CNPq, Capes, FAPEMIG) organizados pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia, de modo que todos os membros ingressantes do NUPEDH devem encontrar-se em situação de vínculo formalizado de iniciação científica. Essa medida, ao longo do tempo, tem se mostrado bastante relevante no que diz respeito à conscientização dos alunos quanto às responsabilidades e à seriedade dos trabalhos a serem desenvolvidos. Conforme o resultado dos processos de iniciação científica, pesquisadores bolsistas e voluntários se diferenciam apenas quanto às horas de dedicação ao trabalho e às tarefas a serem desempenhadas. O projeto Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi previsto para ser realizado por meio de etapas operacionais. A primeira etapa refere-se à fase inicial de coleta e análise de dados sobre os aspectos institucionais do SIDH (estrutura, organização, principais normas) e sobre os casos de denúncias de violações de direitos humanos existentes no sistema interamericano de petições. Considerando a fase inicial do projeto e a abrangência da pesquisa, restringimos o levantamento de informações a um número definido de Estados do SIDH, privilegiando a região da América do Sul, com vistas a permitir também um estudo sobre as políticas regionais para os direitos humanos e o debate político sobre as instituições regionais de cooperação. Adicionalmente a esse universo empírico de casos pesquisados, o grupo incluiu o monitoramento sobre os dados do SIDH

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em relação aos Estados Unidos, em razão da parceria do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU)7. A segunda etapa do projeto, ainda em andamento, trata da análise quantitativa e qualitativa das informações disponibilizadas pelo SIDH e organizadas na etapa anterior. Nesse momento, as diversas análises realizadas referem-se exclusivamente a determinados países, não envolvendo análise comparativa entre Estados. A terceira etapa do projeto prevê um estudo sobre metodologias e técnicas de construção de conteúdo para redes virtuais, levando em consideração a proposta de que os mecanismos virtuais sejam espaços de organização do conhecimento e que permitam a aprendizagem de forma permanente. A quarta etapa prevê a validação do material desenvolvido pelo grupo e a disseminação dos resultados do trabalho por meio de um portal na internet e de outros meios identificados como adequados aos objetivos do projeto. Após a avaliação dessa experiência amostral, a ideia do NUPEDH é discutir formas de se manter atualizados os dados das pesquisas já realizadas (violação dos direitos humanos nos Estados Sul-americanos e Estados Unidos) e expandir o universo dos casos para as Américas como um todo. 4. RESULTADOS ALCANÇADOS E PERSPECTIVAS FUTURAS Um dos principais resultados alcançados pelo projeto do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, merecedor de destaque nesse capítulo, foi a elaboração da base de dados do SIDH, referenciada no NUPEDH-UFU8. A base de dados é composta de planilhas divididas por Estados, com informações sobre o processamento dos casos de violações dos direitos humanos na CIDH e na CorteIDH. Os dados foram colhidos a partir dos relatórios de mérito, admissibilidade e informes anuais da Comissão, além das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme informações disponibilizadas pelos respectivos sites de cada órgão interamericano9. Os campos das planilhas destacam (1) 7



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MACIEL, D.; MAIA, M.; KOERNER, A. Estados Unidos y los mecanismos regionales de protección de los Derechos Humanos: Denuncias ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos de la OEA (1971-2010). Pensamiento Proprio, v. 18, p. 89, 2013. MAIA, M. Os Estados Unidos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: as respostas norte-americanas às denúncias de violação dos direitos humanos (1971-2011). In: 4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais, 2013, Belo Horizonte, MG. MAIA, M; GARBIN, I. Base de dados dos casos tramitados no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: 19712015. Uberlândia: NUPEDH, 2015. Os dados foram coletados a partir dos sítios oficiais dos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: (1) Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2016; e (2) Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2016.

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caso; (2) tipo principal da violação alegada; (3) andamento do processo nos referidos órgãos; (4) perfil das vítimas; (5) perfil dos denunciantes; (6) tipo de atuação dos denunciantes; (7) normativas mobilizadas na denúncia; (8) pronunciamento dos órgãos do Sistema; e (9) resposta dos Estados. Em conjunto, a base de dados do SIDH referenciada no NUPEDH-UFU reúne informações detalhadas sobre os 1.209 casos existentes contra os Estados sul-americanos, denunciados no sistema interamericano de petições entre os anos de 1971 a 2015, isto é, desde o início do funcionamento desse sistema até os dias atuais. Até onde se tem conhecimento, trata-se de uma das maiores bases de dados externas e independentes ao SIDH10. Os casos encontram-se distribuídos da seguinte forma: Argentina (172 na CIDH e 16 na Corte IDH), Bolívia (40 na CIDH e 6 na Corte IDH), Brasil (117 na CIDH e 6 na Corte IDH), Chile (104 na CIDH e 8 na Corte IDH), Colômbia (155 na CIDH e 15 na Corte IDH), Equador (141 na CIDH e 17 na Corte IDH), Paraguai (58 na CIDH e 7 na Corte IDH), Peru (317 na Corte IDH e 37 na Corte IDH); Suriname (19 na CIDH e 6 na Corte IDH), Uruguai (18 na CIDH e 2 na Corte IDH), Venezuela (68 na CIDH e 19 na Corte IDH). O formato do banco de dados foi validado com as seguintes variáveis: (1) caso; (2) número do caso; (3) número da petição; (4) ano da denúncia; (5) ano de análise do caso na CIDH; (6) tipo do caso (violência policial, discriminação racial, entre outros); (7) descrição resumida da denúncia; denunciante (nome); (8) tipo do denunciante (indivíduo, organização não governamental, escritório de advocacia, entre outros); (9) vítima (descrição); (10) violador (instância do Estado que violou o direito); (11) admissibilidade do caso (admitido, não admitido ou arquivado); (12) medida cautelar de proteção; (13) normativa mobilizada na denúncia; (14) resposta da CIDH ao caso (recomendações feitas ao Estado); (15) resposta do Estado (cumprimento total, parcial ou não cumprimento das recomendações); (16) encaminhamento do caso à Corte IDH; (17) sentença da Corte IDH; (18) cumprimento da sentença por parte do Estado (cumprimento total, parcial ou não cumprimento). No que tange à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o banco de dados se desdobra quanto à mensuração do cumprimento das sentenças da Corte Interamericana por meio de dados estatísticos, bem como sobre a questão do atraso processual e da sistemática de monitoramento dos casos parcialmente cumpridos. Um dos exemplos do uso desses dados pode ser ilustrado conforme o disposto no gráfico abaixo (DELARISSE, 2015): 10



Outras bases de dados sobre o SIDH (Hillebrecht; Engstrom e Low; Saltalamacchia et al., 2016) encontram-se disponibilizadas em: . Acesso em: 08 out. 2016.

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Gráfico 1 – Temas das violações de direitos humanos cometidas pelo Estado chileno (2015)

Fonte: MAIA, M; GARBIN, I. Base de dados dos casos tramitados no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: 1971-2015. NUPEDH-UFU, 2015.

Até o presente momento, encontram-se completamente mapeados os casos sul-americanos e norte-americanos tramitados na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, bem como um levantamento amostral no que se refere aos casos na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Resultados dessas pesquisas já foram apresentados em diversos eventos científicos e publicações da área, como informa a tabela abaixo, a qual permite demonstrar a diversidade de temas e debates possibilitados a partir dos dados compilados na base do SIDH do NUPEDH-UFU. Tabela 1 – Apresentação e publicação de trabalhos relacionados a direitos humanos pelos membros do NUPEDH-UFU (2013-2016) Autor/Título

Evento/Data

LIMA, R.; MAIA, M. O comportamento paradoEncontro Internacional Participaxal dos Estados Unidos e seus reflexos nos debação, Democracia e Políticas Públicas, tes sobre a reforma do sistema interamericano de 2013, Araraquara direitos humanos. MIRANDA, G. Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para a promoção de Direitos IX Encontro da ABCP, 2014, Brasília Humanos: o Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (OSIDH).

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DELARISSE, T.; PACOLA, C. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos como Mecanismo IX Encontro da ABCP, 2014, Brasília de Promoção da Democracia: Um estudo sobre a Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru. DELARISSE, T.; GUIMARÃES, I.; PACOLA, C; GARBIN, I.; MAIA, M. O Sistema Interamericano VIII Encontro Nacional da ANde Direitos Humanos como Mecanismo de ProDHEP, 2014, São Paulo moção da Segurança Pública: Um estudo sobre a Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru. DIAS, T. A política externa bilateral dos EUA V Encontro Nacional da ABRI, 2015, para com o Tribunal Penal Internacional e o deBelo Horizonte senvolvimento dos direitos humanos. RAMANZINI, I.; MAIA, M.; GUIMARÃES, I. O V Encontro Nacional da ABRI, 2015, contexto de ensino importa – até mesmo para as Belo Horizonte Relações Internacionais? ARAÚJO, A.; MAIA, M. Mobilização Católica e a Proteção dos Direitos Humanos na América do III Semana de Ciência Política da Sul: As Ditaduras Militares e a Redemocratização UFSCAR, 2015, São Carlos no Brasil, Argentina e Chile. ARAÚJO, A. B.; SILVA, B. As formas de tutela dos direitos relativos a gênero nos sistemas re- II Simpósio sobre Migração e Protegionais de Direitos Humanos: os casos africano, ção de Pessoas, 2016, Uberlândia americano e europeu. SCHEICHER, I. Povos indígenas sul americanos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: EPRI – UNESP, 2016, Marília Análise dos casos vinculados à Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. HARIGAYA, H.; GARBIN, I. Violações de direiII Colóquio de Direitos Humanos e tos humanos no Cone Sul: o papel da Corte InteJustiça Global, 2016, Uberlândia ramericana de Direitos Humanos. GUIMARÃES, I.; DELARISSE, T. Ativismo internacional em direitos humanos: um estudo sobre o X Encontro da ABCP, 2016, Belo papel dos atores sociais na luta pela verdade e não Horizonte repetição de crimes no Sistema Interamericano de Direitos Humanos Fonte: Elaboração própria.

No eixo da inovação, encontra-se em andamento a discussão sobre formas de construção de mecanismos de compartilhamento de informações (via redes sociais, blogs, fotologs, videologs, aplicativos e softwares11) voltados 11



O papel das redes sociais na promoção e proteção dos direitos humanos vai além da já conhecida estratégia do naming and shaming, podendo agregar valor e significado às decisões de instituições públicas e privadas, internacionais ou nacionais.

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à promoção dos direitos humanos no hemisfério. A apresentação das informações em linguagem apropriada ao mundo virtual, considerando o uso de distintas mídias, permite romper com as “sequências estáticas e lineares” próprias dos materiais impressos, propiciando a interação entre múltiplos e simultâneos leitores ativos (SCORSOLINI-COMIN; INOCENTE; MATIAS, 2009). Um resultado preliminar desse segmento do projeto consiste no desenho de um portal na internet12 dotado de múltiplos recursos e funcionalidades: (1) disponibilização dos resultados de pesquisa; (2) bases de dados, (3) material de leitura; (4) divulgação de eventos científicos; e (5) calendário em eventos de direitos humanos. Por fim, importante sinalizar uma perspectiva futura que se delineou a partir do reconhecimento dos resultados do trabalho do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que trata-se da possibilidade de se prestar consultoria especializada, em termos voluntários, com fins de encaminhamento de denúncias de violações de direitos humanos ocorridas na região de Uberlândia ao sistema interamericano de petições em trabalho conjunto com Escritório de Assessoria Jurídica Popular (ESAJUP) da Universidade Federal de Uberlândia. Em termos gerais, a consultoria fornecida pelo NUPEDH refere-se a um rápido acesso aos precedentes jurisprudenciais no SIDH, revisão do enquadramento do pleito à normativa internacional, bem como aos aspectos de litigância estratégica no sistema regional, podendo configurar como polo ativo nessas ações. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de breve, as experiências e resultados de trabalho do NUPEDH-UFU e, em especial, do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos têm sido suficientes para identificar algumas questões-chave para se pensar a inclusão da dimensão dos direitos humanos nos cursos de Relações Internacionais no Brasil. A principal delas diz respeito à importância da associação entre os conhecimentos abstratos e a realidade prática no assunto, coordenada com elementos de inovação. Ainda que de maneira simplista, percebemos que o interesse dos alunos pelas temáticas de direitos humanos surge quando eles são instigados e habilitados a perceber que os problemas sociais enfrentados no país, no plano local, mantêm uma interface imediata com o plano internacional, no qual eles podem buscar elementos práticos para promover estratégias de transformação no comportamento de atores envolvidos com o tratamento das questões de direitos humanos. 12



As informações descritas podem ser acessadas pelo sítio eletrônico do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos – UFU, disponível em: . Acesso em: 10 out. 2016.

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Ou seja, consiste na mediação dos processos de ensino-aprendizado-prática em direitos humanos apoiados na metodologia “pensar global, agir local”. Além disso, notamos que a introdução de elementos de inovação, como a utilização das novas tecnologias em função dos direitos humanos, se traduz, aos olhos dos alunos, em oportunidades profissionais, o que fortalece o círculo virtuoso de interesse no tema. A possibilidade de estabelecimento de parcerias estratégicas, em particular, com as clínicas jurídicas de direitos humanos são uma das formas relevantes de aproximação do mundo prático, tanto ansiada pelos estudantes de Relações Internacionais. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Minuta de Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Relações Internacionais. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2016. BRASIL. Planos Nacionais de Educação em Direitos Humanos. 2003 e 2007. DELARISSE, T. O ativismo transacional e a promoção da justiça de transição no Chile: um estudo sobre a mobilização no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. 2016. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) – Instituto de Economia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016. ENGSTROM, P.; LOW, P. Civil Society Petitions Data 1999 – 2014. Disponível em: . Acesso em: 08. out. 2016. HILLEBRECHT, C. Compliance with Human Rights Trials Dataset. Disponível em: . Acesso em: 08. Out. 2016. MAIA, M; GARBIN, I. Base de dados dos casos tramitados no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: 19712015. Uberlândia: NUPEDH, 2015. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 1966. _______. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 1966. _______. Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos. 2005. SALTALAMACCHIA, N. Friendly Settlement Data 2001 – 2011. Disponível em: . Acesso em: 08. out. 2016. SCORSOLINI-COMIN, F.; INOCENTE, D.; MATIAS, A. “Análise de ferramentas de interação e comunicação em ambiente virtual de aprendizagem a partir da contribuição de Bahktin”. Educação: teoria e prática, n. 32, p. 173-189, 2009.

Capítulo 5 O Método de Educação Clínica no Núcleo de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas1 Denison Melo de Aguiar2 Sílvia Maria da Silveira loureiro3 Robson Parente Ribeiro4

RESUMO: O Núcleo de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas (NCMA/UEA) utiliza o método da educação clínica com intuito de realizar a formação humana profissional dos discentes. O objetivo desta pesquisa é descrever como foi a implantação desse método no NCMA/UEA. A pesquisa utilizou: i. pesquisa bibliográfica, onde se fez um levantamento da literatura específica; e ii. pesquisa qualitativa, na descrição desse método no NCMA/ UEA. Os discentes mostraram ter um processo de empoderamento e independência na prática jurídica. Desse modo, se conclui que a educação clínica proporciona o enfoque do discente se colocar no papel do profissional de direito. PALAVRAS-CHAVE: educação clínica; processo de empoderamento; mudanças de paradigmas. ABSTRACT: The Núcleo de Conciliação, Mediação e Arbitragem of Universidade do Estado do Amazonas (NCMA/UEA) uses the method of clinical education with the intention of realizing the human professional formation of the students. The objective of this research is to describe how the method was implemented in NCMA / UEA. The research used: i. Bibliographical research, where a survey of the specific literature was made; And ii. Qualitative research, in the description of this method in NCMA / UEA. The students showed a process of empowerment and independence in legal practice. Thus, it is concluded that clinical education provides the focus of the student to put himself in the role of legal professional. KEYWORDS: Clinical education - Empowerment process - Paradigm shifts.

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Este capítulo teve apresentação oral no Seminário Nacional de formação de pesquisadores e iniciação científica em Direito da FEPODI, chancelado pelo CONPEDI, em 2016, e será publicado em forma de resumo expandido. Advogado. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA/UEA). Professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e do Centro Universitário do Norte (UNINORTE/LAUREATE). Fundador e coordenador do Núcleo de conciliação, mediação e arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas (NCMA/UEA). Professor-membro da Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (CDHDA/UEA). Advogada. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora do Curso de Direito (Graduação e Pós-Graduação) da Universidade do Estado do Amazonas. Fundadora e co-responsável pela Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (CDHDA/UEA). Advogado. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA/UEA). Pesquisador Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Estagiário-docente do Núcleo de conciliação, mediação e arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas (NCMA/UEA).

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I. INTRODUÇÃO A educação clínica é o método utilizado no Núcleo de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas (NCMA/ UEA) com o intuito de realizar a formação humana e profissional dos discentes. Esse núcleo é parte integrante do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade do Estado do Amazonas. A necessidade da criação de um Núcleo dessa natureza nasce das disposições legais do Novo Código de Processo Civil, de 2015 (BRASIL, 2015), que inseriu as formas de resolução alternativas de conflitos. Assim, o NCMA/UEA promove o aprofundamento dos estudos e pesquisas na área de conciliação, mediação e arbitragem, bem como desenvolve sua prática jurídica, promovendo a capacitação e qualificação dos discentes para uma atuação comprometida com a cultura de conciliação, mediação e arbitragem (NCMA/UEA, 2016). No viés social, a conciliação, mediação e arbitragem, em especial após a edição da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (BRASIL, 2015), são instrumentos para resoluções alternativas para conflitos sociais. Com essa lei, a conceituação e prática desses três instrumentos objetivam uma melhor coexistência entre os cidadãos em sociedade e, dessa forma, criar uma cultura jurídica na sociedade, pela pacificação social. No âmbito acadêmico, é importante ter a possibilidade de se formar discentes em Direito conforme os novos parâmetros jurídicos. Nos termos do Novo Código de Processo Civil, a mediação e arbitragem são elementos antecedentes ao processo contencioso, como forma de atenuar a quantia excedente de processos jurídicos. Por isso, a mediação e arbitragem significam uma mudança de cultura jurídica. No âmbito científico, o curso de Direito da UEA está inserido na rede científica de conciliação, mediação e arbitragem. Nesse viés, objetiva-se promover e participar de eventos jurídicos, como palestras, minicursos, entre outros símiles e realizar publicações científicas como forma de ampliar o intercâmbio entre grupos de pesquisa similares, de acordo com a interação entre pesquisadores de uma mesma temática, e, consequentemente, de contribuir para melhorar a qualificação da pesquisa na área em destaque (NCMA/UEA, 2016). Nesse sentido, o objetivo desta pesquisa é descrever como foi a implantação do método de educação clínica no NCMA/UEA. O tipo de pesquisa utilizada foi a intuitiva, pois se trata da implantação do método de educação clínica no NCMA/UEA. A pesquisa utilizou: i. pesquisa bibliográfica, onde se fez um levantamento da literatura específica de educação clínica e institucional da Universidade do Estado do Amazonas; e ii. pesquisa qualitativa, na descrição desse método no NCMA/UEA.

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II. A EDUCAÇÃO CLÍNICA NO CURSO DE DIREITO A educação clínica é centrada na formação humana e profissional do discente do curso de direito, bem como da preocupação com a relação coerente entre a teoria e a prática no Direito, no âmbito dos cursos de Direito nas universidades. O que se questiona na metodologia clínica é o “fetiche” na formação dos discentes de direito, centrada no estudo decorativo das leis, códigos e jurisprudências, mas também nos pilares de ensino, pesquisa e extensão inseridos na realidade social e no Direito. Nesse sentido, a educação clínica objetiva desenvolver nos alunos habilidades e destrezas argumentativas e analíticas, de uma entrevista a um constituinte, a uma defesa num caso difícil. Por esses motivos, se utiliza muitos estudos de casos, hipotéticos ou reais (LAPA, 2014). Assim, a formação também é centrada na prática do Direito. Os discentes saem do ensino teórico somente, e são inseridos numa realidade de aplicação dessa teoria, pois esse é o enfoque principal da educação clínica. O discente é levado a assumir o papel de advogado, conciliador, mediador, árbitro nas mais diversas realidades de cenários simulados e hipotéticos, bem como reais, se possível for. O foco central da educação clínica é que o discente aprenda a arte de argumentar ainda durante a sua graduação. Os ensinamentos estão centrados no que se faz, a partir do pensamento e estudo teórico do Direito, em especial no que deveriam fazer e como deveriam proceder (LAPA, 2014). Rick Wilson apud Lapa (2014) defende que a educação clínica segue cinco componentes que o determinam, os quais são: 1) está inserida dentro da grade curricular do curso de Direito e é oferecida por créditos; 2) estudantes providenciam serviços jurídicos para pessoas físicas e jurídicas com problemas jurídicos reais, até onde a lei da advocacia local permite; 3) os clientes atendidos pelo programa são indigentes ou aqueles que não têm acesso à justiça por motivo de pobreza ou status excludente; 4) estudantes são supervisionados por advogados experientes, geralmente professores dentro da própria clínica; 5) o trabalho prático com um caso é acompanhado de um componente pedagógico que foca em habilidades práticas ou conteúdo, ou ambos.

Em sentido similar, Álvarez (2007) complementa: O objetivo do presente método de ensino foram: 1) preencher a lacuna entre a teoria das faculdades de direito e na prática da profissão; 2) Entre o elemento humano no estudo e prática da lei; 3) Insira as lições da lei que não estão escritas;

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4) sintetizar o direito material e processual que o aluno aprendeu, e 5) Ensinar o aluno a pensar assuntos jurídicos desde o início do desenvolvimento, em vez de aguardar o parecer do tribunal.

Pensando sobre a realidade brasileira, os professores integrantes da Rede Amazônica de Clínicas de Direitos Humanos, no seu VII Encontro, realizado em Joinville – SC entre os dias 07 e 08 de junho de 20165, estabeleceram sete premissas para a educação clínica no Brasil, com base em suas experiências universitárias, a saber: i. Busca de mudança e justiça social, através da disseminação de valores relacionados com a responsabilidade socioprofissional, aliados à formação ética e de uma cultura de paz. ii. Foco na formação dos alunos de graduação e pós-graduação. iii. Formação de juristas, mais que operadores do direito. iv. Integração das atividades de ensino, pesquisa e extensão. v. Trabalho com formas de intervenção estratégica, entre eles: a) litígio estratégico; b) justiça restaurativa; c) conciliação, mediação e arbitragem; d) estudo baseado em problemas (EBP); e) advocacy. vi. Autonomia pedagógica na escolha dos casos a serem trabalhados. vii. Inserção nos espaços de Prática Jurídica.

A Metodologia Clínica, mesmo que tenha sua história inicialmente constituída no desenvolvimento de Clínicas de Direitos Humanos, pode ser utilizada como método para a formação de discentes em outros ramos do Direito. Isso ocorre devido ao emprego dos pressupostos metodológicos que possui (LAPA, 2014). Estes são na visão da citada autora: 1) compromisso com a Justiça Social; 2) metodologia participativa; 3) articulação da teoria com a prática dos direitos humanos; 4) integração das atividades de ensino, pesquisa e extensão; 5) enfoque interdisciplinar; 6) institucionalização formal e reconhecimento na Universidade; 7) público-alvo universitário.

A utilização do método clínico na formação profissional e humana dos discentes do curso de Direito produz uma mudança de paradigma no ensino, pesquisa e extensão. De acordo com Hurwitz (2011), no processo de ensino-aprendizagem, a tomada de decisão moral envolve mais do que o conhecimento de regras e princípios relevantes, ele também exige uma capacidade de compreender como essas regras se aplicam aos casos 5



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concretos e que os princípios são mais importantes no contexto social e configuração legal. Assim sendo, a educação clínica fornece um quadro conceitual e uma metodologia que coloca os indivíduos e as comunidades como os titulares de direitos no centro. Além disso, requer análise crítica das relações dos intervenientes para o outro e das dinâmicas de poder em jogo na busca da justiça (HURWITZ, 2011). Portanto, não são formados profissionais segundo o paradigma tradicional, centrado somente nas leis, mas possui um objetivo centrado na formação humana e profissional. Álvarez (2007) afirma que educação clínica é transformadora no ensino das leis. Aos discentes, permitiu assumir o papel de advogado e enfrentar o sistema legal, aprendendo sobre o sistema legal e como argumentar em problemas legais, bem como ter a capacidade de sensibilizar os discentes sobre os problemas enfrentados pelo sistema legal. Esse método também tem o potencial de transformar o Direito. Os modelos podem fornecer ideias para fazer alterações no sistema legal, na educação legal, no papel dos advogados na sociedade e trabalhar para criar uma sociedade mais justa. III. O NÚCLEO DE CONCILIAÇÃO, MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS O Núcleo de Estudo e Prática em Conciliação, Mediação e Arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas tem por objetivo geral promover o aprofundamento dos estudos e pesquisas na área de conciliação, mediação e arbitragem e desenvolver sua prática jurídica, promovendo a capacitação e qualificação dos discentes para uma atuação comprometida com a conciliação, a mediação e a arbitragem (NCMA/UEA, 2016). Em específico, conforme a UEA (NCMA/UEA, 2016): No âmbito do presente PID, são objetivos específicos a serem desenvolvidos pelo proponente no NCMA-UEA: I – Instalar o Núcleo de Estudo e Prática em Conciliação, Mediação e Arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas nas dependências no Núcleo de Prática Jurídica/UEA; II – Realizar os eventos jurídicos sobre mediação e arbitragem: palestras, conferências, workshops, mini cursos, seminários, congressos, dentre outros evento; III – Participar de Redes sobre mediação e arbitragem no Brasil; IV – Publicar produções científicas sobre a temática; V – Apoiar os discentes na participação responsável em concursos de julgamento simulado, competições ou eventos acadêmicos similares voltados à temática do Núcleo; X – Avaliar novas atividades para o Núcleo de Conciliação, de mediação e Arbitragem, dentro das competências a ela atribuídas por meio da Resolução nº. 032/2011 do CONAESO.

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A criação do Núcleo de Estudo e Prática em Conciliação, Mediação e Arbitragem da UEA possui as seguintes justificativas: social; acadêmica e científica. No viés social, a mediação e a arbitragem, em especial após a edição da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, são instrumentos para resoluções alternativas de conflitos sociais. Com essa lei, a conceituação e prática de mediação e arbitragem objetivam melhor coexistência entre os cidadãos em sociedade e, dessa forma, criar uma cultura jurídica na sociedade, pela pacificação social. No âmbito acadêmico, é importante ter a possibilidade de se formar acadêmicos em Direito conforme os novos parâmetros jurídicos. Nos termos do Novo Código de Processo Civil, a mediação e a arbitragem são elementos antecedentes ao processo contencioso, como forma de atenuar a quantidade excessiva de processos judiciais. Por isso, a mediação e a arbitragem significa uma mudança de cultura jurídica, que possui aderência com o método de educação clínica. Do ponto de vista científico, justifica-se pela inserção do curso de Direito da UEA na rede científica de mediação e arbitragem. Nesse viés, objetiva-se fazer eventos jurídicos, como palestras, minicursos, entre outros símiles e publicações científicas como forma de ampliar o Núcleo como um possível meio de intercâmbio entre grupos de pesquisa similares, de acordo com a interação entre pesquisadores de uma mesma temática e consequentemente promovendo a qualificação da pesquisa na área de Direito arbitral e mediação. Assim sendo, esta está inserida na realidade das redes científicas. III.I. METODOLOGIA ADOTADA NO NÚCLEO DE CONCILIAÇÃO, MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS Para se descrever a metodologia empregada no NCMA/UEA, dividiu-se a análise da seguinte forma: i. Método de abordagem A abordagem a ser adotada no NCMA/UEA será a qualitativa e a quantitativa. Utiliza-se essas abordagens para se buscar interpretar o fenômeno de mediação e arbitragem, de modo que seus objetivos são observação, descrição, compreensão e interpretação, bem como demonstração numérica quando for o caso. Esta se utiliza também da metodologia dedutiva, indutiva e dialética. Dedutiva, por se tratar de pesquisa e extensão generalizada, para depois se vislumbrar um caso concreto, no Âmbito da doutrina; indutiva, por se estu-

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dar casos concretos, em especial jurisprudencial e dialética, por se tratar de estudos das teses e antiteses que envolvem mediação e arbitragem. A educação clínica é utilizada no NCMA/UEA como parâmetro educacional. Na prática, os docentes e discentes trabalham em parceria e cooperação, pois o importante é a execução das atividades. Desse modo, busca-se formar profissionais com senso de humanidade, através da sua conscientização e sensibilidade com um espírito de resolução de conflitos de maneira alternativa, e de maneira última, a forma litigiosa para resolução de conflitos sociais. Assim sendo, trata-se de uma formação humano-profissional de empoderamento dos discentes. Partindo dos elementos da metodologia clínica aplicados ao curso de Direito, expostos inicialmente neste trabalho, é importante destacar como estes se amoldam ao caso NCMA/UEA. No percurso de sua formação humana e profissional, o discente entra num processo de empoderamento pessoal e profissional. Esse processo é caracterizado pela independência, resiliência e capacidade de resolução de conflito de maneira efetiva, eficaz e eficiente, formando-se profissionais que sejam propositivos de maneira coerente. Nesse processo, há um encadeamento de formação a ser destacado. Estes são: i. Compromisso com a Justiça Social, para que o sistema plural e complexo da sociedade seja absorvido pelos alunos participantes; ii. Metodologia participativa, em que são docentes orientadores e guias, os protagonistas da formação são os discentes; iii. Articulação da teoria com a prática dos direitos humanos, para que a postura e o conteúdo articulados pelos discentes estejam dentro do sistema legal, mesmo que seja uma abordagem centrada na realidade social; iv. Integração das atividades de ensino, pesquisa e extensão: há uma inserção dos alunos em atividades práticas fora da universidade como participação em atividades acadêmicas, competições jurídicas regionais, nacionais e internacionais, prática de conciliação e mediação; v. Enfoque interdisciplinar, imperativamente necessários, considerando que os discentes precisam de conhecimento sobre antropologia, religião, sociologia, por exemplo; vi. Institucionalização formal e reconhecimento na Universidade, o NCMA/UEA é parte integrante do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade do Estado do Amazonas devidamente aprovado; vii. Público-alvo universitário, são membros do NCAM/UEA, discentes da graduação de Direito e do mestrado em Direito ambiental do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da mesma universidade.

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O NCMA/UEA em suas atividades desenvolvidas tem frequência e notas lançadas como uma possibilidade de fazer as disciplinas de estágio supervisionados incluídas no Projeto Pedagógico do curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas (UEA, 2015); pretende-se com a consolidação desse Núcleo o atendimento ao público hipossuficiente da região periférica na cidade de Manaus, em prática supervisionada pelos docentes do Núcleo de Prática Jurídica e do NCMA. Portanto, o discente tem contato direto com a realidade social na qual está inserido. ii. Procedimentos Técnicos No que tange à área de atuação na prática jurídica, a NCMA/UEA empregará a seguinte metodologia para a seleção de casos: i. Prática Simulada: Estudo de casos hipotéticos em competições de julgamento simulado nacionais e internacionais, de acordo com a linha de atuação da NCMA-UEA; e ii. Prática Real: Atuação em casos levados ao Núcleo de Prática Jurídica da UEA que permitam a aplicação do instrumental processual cabível de especialidade da NCMA, incluindo conflitos sociais e ambientais.

Por exigir uma especificidade e um perfil adequado, os discentes interessados em participar das atividades da NCMA/UEA são selecionados da seguinte forma, com a utilização de edital. Seguindo: i. para discentes da graduação em Direito, o processo seletivo consiste na elaboração de uma Cover letters sobre o tema de mediação e arbitragem, e entrevista. O domínio dos idiomas espanhol, inglês, entre outros, também será avaliado como condição para aprovação de ingresso. Os discentes vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental podem cursar seu Estágio Docente na NCMA/UEA. O método de trabalho geralmente utilizado consiste em reuniões semanais, nas quais são, primeiramente, eleitas as atividades de interesse da NCMA/UEA, durante o semestre. Nas reuniões subsequentes, é feito o acompanhamento das atividades, bem como ajustes e redirecionamentos para o alcance dos resultados pretendidos. Ao final, há uma reunião de conclusão para troca de experiências e correção de eventuais falhas ocorridas durante o processo de execução das atividades. É importante salientar que, a depender da atividade a ser executada, são necessárias várias reuniões intermediárias para orientação dos discentes, o que pode ocorrer em dias e horários diversos do habitual encontro semanal da NCMA/UEA, visando o cumprimento de prazos e metas de trabalho

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previamente acordados com os discentes. É parte das atividades da NCMA/ UEA promover eventos acadêmicos. A equipe de docentes apoia e orienta os discentes interessados na participação responsável em concurso de julgamento simulado na área de mediação e arbitragem, bem como a participar em outras atividades acadêmicas que possibilitem a prática simulada dos conteúdos de interesse da NCMA/UEA. As atividades do Núcleo de Conciliação, Mediação e Arbitragem serão correspondentes às disciplinas do Estágio Supervisionado do Núcleo de Prática Jurídica. Nesse sentido, as atividades semestrais corresponderão à carga horária de 60 (sessenta) horas, com equivalência de 04 (quatro) créditos, sendo ministrada somente por uma turma, no período vespertino, em especial, às segundas-feiras (04 horas), sempre visando uma melhor formação profissional e humana (NCMA/UEA, 2016). O principal resultado esperado é a criação de um grupo de mediação e arbitragem, para consolidação e ampliação das atividades da NCMA/UEA, com a sua instalação no novo espaço físico destinado ao Núcleo de Prática Jurídica, ademais de outros resultados específicos, a saber: I. Realização de eventos jurídicos para divulgar assuntos relacionados à mediação e arbitragem; II. Publicação de produções científicas; III. Integração NCMA-UEA às redes de mediação e arbitragem nacional e internacionalmente; IV. Apoio e orientação dos discentes interessados na participação responsável em concurso de julgamento simulado na área de mediação e arbitragem, bem como na participação em outras atividades acadêmicas que possibilitem a prática simulada dos conteúdos de interesse da NCMA-UEA (NCMA/UEA, 2016).

Pretende-se, por fim, que o NCMA/UEA 2016 estimule outras pesquisas e projetos de extensão relacionados à ampla temática e à atuação da NCMA/UEA, contribuindo para a formação de uma cultura jurídica voltada ao respeito da pacificação social. III. PERCEPÇÕES DA EDUCAÇÃO CLÍNICA NO NÚCLEO DE CONCILIAÇÃO, MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS Para analisarmos a percepção por parte dos discentes sobre a aplicação do método clínico e a quebra com o paradigma do estudo estrito de leis, não basta apenas largar de mão a legislação positivada e embarcar em uma aventura puramente zetética, porquanto se faz essencial a análise prática de situações reais e aplicação de conhecimentos práticos com base em dilemas

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teóricos, os quais são inevitáveis, principalmente considerando a recente mudança na legislação, o crescimento recente de institutos como mediação e arbitragem, bem como o fato de que no norte do país a arbitragem ainda está engatinhando. Dessa forma, é preciso equilibrar o discurso hermenêutico e teórico com a aplicação prática do conhecimento. Dito isso, e visando o aprofundamento subjetivo bem como o despertar do viés “pesquisador” dos discentes, o NCMA/UEA manteve seu foco em duas linhas gerais de pesquisa: A competição Nacional de Arbitragem da Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB) e a Produção Científica subsequente ao conhecimento adquirido ao longo da competição, de forma a ampliar os estudos no Direito Privado. Esses dois pontos se complementam ao chamar a atenção do discente para uma realidade que foge da rotina decorativa dos concursos públicos, e desperta o viés investigativo do jurista, tanto esquecido no ensino da atualidade. III.I A FUNÇÃO DO NCMA/UEA NA FORMAÇÃO DE DISCENTES HUMANIZADOS E COM A NOVA VISÃO DA RESOLUÇÃO E PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS E SUA COMPATIBILIDADE COM O MÉTODO CLINICO DE ENSINO Não é de hoje que nosso sistema judiciário enfrenta uma crise na quantidade de processos pendentes. De igual forma, o número de processos cada vez maior afeta também a celeridade desses julgamentos, criando um ciclo vicioso onde aquele que busca a prestação jurisdicional e a garantia de seus direitos não encontra um resultado satisfatório. Nesse cenário, surgem os Métodos Extrajudiciais de Resolução de Conflitos (MESC’s), também conhecidos como Métodos Adequados de Solução de Conflitos (MASC’s), ou em sua origem Alternative Dispute Resolutions (ADR’s). O novo código de processo civil trouxe em seu bojo muitas inovações, e todas elas apontam para uma mesma direção: celeridade processual. Com vistas à celeridade processual, o novo CPC traz logo em seu artigo 3º uma de suas maiores mudanças, que afeta todo o item procedimental do nosso processo civil, senão vejamos: Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

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De início, fica clara a posição do novo CPC: fomentar a solução consensual dos conflitos. O § 2º externa um comando de ordem para o Estado: sempre que possível, fomente a solução consensual dos conflitos. Por sua vez, o § 3º reproduz o mesmo comando de ordem, para os operadores do direito em geral. Fica cristalino o apoio do novo código a esses institutos. Sendo assim, o NCMA/UEA, apoiado nos princípios que deram origem à reforma do novo CPC, busca com a aplicação do método clínico formar seres humanos capazes de pensar na solução de conflitos, ao invés de advogados capazes de postergar um conflito. É uma realidade do nosso sistema: o contencioso cível hoje é baseado na ideologia do “ganhar tempo”, e as ADR’s vem na contramão do contencioso cível tradicional e da atual cultura do litígio: eles pregam a pacificação dos conflitos, através do Fundamento da Pacificação Social a qual compõe, concilia e previne situações de tensões e rupturas, exatamente onde a coexistência é um relevante elemento valorativo. O fundamento político, pela participação dos cidadãos que solucionam diretamente suas próprias controvérsias, conta com a colaboração de outro cidadão (o conciliador e o mediador) no papel de facilitador dessa mesma solução; e o fundamento funcional, objetiva diminuir a crise da justiça, pela instituição de instrumentos (ditos alternativos) capazes de desafogá-la. Pode-se afirmar que, embora lentamente, a cultura do consenso começa a avançar em contraposição à cultura do conflito. (GRINOVER, 2008) Portanto, a abordagem clínica utilizada no NCMA/UEA em conjunto com a doutrina conciliativa do nosso moderno códex cível estabelecem um link entre a atividade dos discentes e o método clinico que forma advogados humanizados. O método clínico e os fundamentos da justiça conciliativa adotados no NCMA/UEA convergem para a humanização de advogados comprometidos com a resolução de litígios, além de cooperar com a formação profissional dos acadêmicos e ser parte na mudança cultural que deixa para trás a cultura do litígio. III.II A COMPETIÇÃO NACIONAL DE ARBITRAGEM DA CAMARB E SEU IMPACTO INICIAL NO DESPERTAR DOS ALUNOS PARA O ESTUDO ALÉM DA SALA DE AULA De início, cumpre destacar que poucas coisas mexem tanto com o meio jurídico universitário, em especial o animus dos discentes, quanto as competições e jogos jurídicos. Nesse campo, a cidade de Manaus conta com uma longa tradição em simulados de Tribunal de Júri, no entanto o moot é uma novidade recente em nosso país, sobretudo no estado do Amazonas, no caso específico da competição de arbitragem, sua primeira edição foi no ano de

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2014. O choque desse evento abriu as portas para dois campos de estudo comumente negligenciados em nossos dias atuais: O Direito Privado e a Negociação Empresarial. De início, é preciso conjeturar o conceito do moot court antes de adentrarmos na aplicação do método clínico no NCMA/UEA: o conceito de moot court é utilizado para se referir aos simulados de apreciação de casos perante a corte. Se diferem do mock trial na medida em que este é associado a uma apresentação perante o Júri, enquanto o moot court se refere a uma apresentação perante a corte ou um painel arbitral. O Núcleo Práticas Jurídicas da UEA aplica a metodologia clínica no moot court tanto na preparação de discentes para os simulados perante a corte interamericana de direitos humanos, quanto em simulados perante painéis arbitrais como na competição da CAMARB. Outra diferença-chave no trato dos mout courts é a legislação aplicada: via de regra, por tratarem de matéria do Direito Internacional Público/Privado, aplicam-se os costumes e tratados internacionais de Direitos Humanos/Comercial Internacional, que são pouco aprofundados durante a graduação. Dessa forma, a inserção dos alunos no mout court é uma das principais atividades extracurriculares das grades jurídicas em nosso país. No início do ano de 2016, com a convocação por edital para o recém-criado NCMA/UEA, os alunos foram previamente avisados sobre a competição de arbitragem da CAMARB, onde representariam a UEA e, posteriormente em âmbito nacional, o Norte do país. No entanto, em comparação com competições locais onde existe um enfrentamento superficial de questões pontuais, a competição da CAMARB possui âmbito nacional, onde as maiores faculdades do país participam e grandes nomes do Direito Privado julgam os painéis de competidores, em um formato que lembra a defesa de uma dissertação ou a fase oral de um concurso público, onde os discentes defendem suas teses de defesa e memoriais. Com a publicação do caso fictício da competição, e cientes da complexidade do caso e do tamanho da competição, a primeira emoção a florescer não poderia ser outra: o choque. Com a divulgação do caso em 06/05/2016, houve pouco tempo para permanecer em choque, pois logo se depararam com a realidade processual do advogado: o prazo. A competição estipula o prazo de 3 meses para entrega dos memoriais. O período de confecção dos memoriais ganha importância imensa para os discentes, pois marca o início da etapa de pesquisa, em que o caso fictício de alta complexidade exige não um estudo decorativo de leis, mas a interpretação hermenêutica de trechos da legislação em harmonia com os entendimentos da doutrina e da jurisprudência acerca da matéria, fazendo com que a habilidade para pesquisar seja desenvolvida de

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forma a abarcar simultaneamente todas as fontes primárias de direito para resolver um caso que, em geral, ainda não possui solução pacificada em nossos tribunais. Adicione-se ainda um fator essencial: diante do sigilo dos procedimentos arbitrais, a busca jurisprudencial em câmaras especializadas dificilmente gera resultados. Despidos da base “comum” para a resolução de problemas jurídicos (vácuo legislativo + jurisprudência sigilosa), coube aos discentes, sob a orientação de seus professores, se aprofundar em estudos avançados de hermenêutica constitucional, em direito internacional privado, e na escassa doutrina sobre arbitragem no país. Embora a quebra com a rotina do Vade Meccum + Jurisprudência possa parecer difícil, os discentes assimilaram muito bem o modelo de pesquisa doutrinária e internacional, motivados não apenas pela vontade de fazer um bom trabalho, mas também por aquilo que o sistema universitário em geral acaba deixando de lado: o estimulo à curiosidade e aos temas novos. A Pesquisa aqui foi essencial, e refinar essa pesquisa gerou a emancipação didática dos discentes, de modo que nos encontros semanais cada um vinha com sua linha de pesquisa específica para compartilhar os entendimentos, e resolver o caso fictício da forma mais completa possível. Munidos do hábito da pesquisa, expandindo seus horizontes para nomes da hermenêutica como Gadamer e Habermas, os discentes deram um salto e emanciparam de alunos que assistem aulas para membros ativos e participantes na criação do conhecimento, faculdade necessária para aqueles que pretendem superar barreiras. O segundo ponto, como consequência da pesquisa, surge ainda na fase de memoriais: a escrita. Nesse tópico, é preciso dizer: nada como comparar o primeiro texto produzido pelos discentes com o resultado final da obra. A competição exige um modelo de formatação limpo, com base nas regras da ABNT. Todavia, exige algo ainda mais importante que isso: coesão e coerência nos memoriais de defesa das partes. A universidade atual se preocupa muito com a formatação e as regras objetivas de produção científica, que são de alta importância e relevância, mas acaba por negligenciar a arte de convencer através da escrita. Convencer através da escrita é uma realidade que também está sendo negligenciada em nosso mundo jurídico. Nos tempos atuais dos modelos e do “Control+C Control+V”, pouco destaque se dá para a vontade real das partes, para as teses de defesa que realmente se coadunam com o caso concreto ao invés de peticionar 40 folhas desnecessárias. Coesão, coerência e convencimento na escrita foram os focos dos encontros durante a segunda fase de confecção dos memoriais.

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Enquanto a fase de pesquisa municiou os alunos com um arcabouço de teses e argumentos para a defesa de seus clientes, a segunda fase se concentra em saber a hora de usar determinados argumentos, bem como ser coerente na apresentação das teses. Aqui o método clínico mostra novamente os benefícios de sua aplicação: apenas em um ambiente de emancipação dos discentes, com a construção coletiva do conhecimento, é possível possuir total domínio do assunto pesquisado e produzir textos coerentes, sem criar “colchas de retalhos”. Não apenas isso, mas a produção coletiva torna possível a produção de um único documento que possua características de todos os autores, características de quem produz cientificamente e já se inicia no domínio da escrita e das publicações. Portanto, com o fim da fase de memoriais, os alunos passaram por um processo de empoderamento na área de pesquisa e produção textual, qualidades essenciais para quem atua na área jurídica, bem como gera um reflexo na produção de peças e defesas que farão o diferencial em sua atuação profissional. A educação clínica se realiza ao trazer a realidade textual do profissional do direito para o discente, que entende o processo de pesquisa e criação de uma tese defensiva. Com a produção dos memoriais, o cumprimento de prazos e o arcabouço de conhecimentos e teses defensivas construído, tem início os preparativos para a fase de sustentações orais, e a palavra que segue estampada no rosto dos discentes não poderia ser outra: ansiedade. A ansiedade gera o nervosismo, que resulta em um discurso desconexo e sem ênfase na defesa do cliente. A ansiedade, a qual muitos jovens advogados ainda tentam superar, aqui é trabalhada antes da graduação dos bacharéis. E o moot é um verdadeiro tratamento de choque para a ansiedade. Sendo assim, aplicar o método clínica no NCMA/UEA, para preparar os alunos para a competição da CAMARB, implica em preparar o discurso de forma impecável, alinhado com a realidade da advocacia. De início, cumpre destacar a configuração do moot: As mesas serão compostas por três árbitros, um presidente e dois coárbitros, que irão avaliar os competidores, que estarão divididos em uma dupla como representante da parte requerida, e outra dupla representante da parte requerente. O primeiro membro da dupla fica encarregado das questões procedimentais e preliminares, enquanto o segundo cuidará da parte de mérito. O grande desafio da competição de arbitragem é que seu oponente não se trata da equipe adversária, pois a arbitragem é uma mesa de negociações. Os adversários nas competições são os árbitros. Cabe aos árbitros analisar a postura, a força dos argumentos, a oratória, a organização da mesa, a organização das ideias e principalmente a capacidade de responder perguntas

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sem se desligar do tema principal. São justamente essas perguntas e interrupções, feitas pontualmente pelos árbitros com o objetivo de desestabilizar os competidores, o principal objeto do NCMA/UEA para a segunda fase da competição. O Método clínico nos serve aqui para trabalhar a realidade do advogado que deve participar de uma audiência, mas a competição exige além: a capacidade de sobreviver a uma sabatina de perguntas e ser um profissional completo em oratória e escrita. Para preparar os alunos para essas perguntas, são realizadas simulações em que os orientadores do NCMA/UEA funcionam como árbitros, e na posição de árbitros deve-se exercer a função de avaliar e pressionar os discentes, para atingirem seus limites intelectuais e emocionais, pois apenas assim é possível desmontar a caricatura criada pelos alunos na hora das apresentações orais, revelando as verdadeiras falhas do discurso, seja uma tese falha ou um emocional despreparado. A fase de pesquisa, promovida na elaboração dos memoriais, em regra, supre as necessidades dos competidores quanto às teses e argumentações, a ansiedade é o grande vilão aqui. A ansiedade deve ser trabalhada, pois a inteligência emocional é qualidade essencial do bom advogado. A metodologia clínica tem impacto essencial no trabalho emocional, uma vez que o empoderamento dos discentes faz surgir, entre eles, o senso de contribuição, de modo a trabalhar o discurso de maneira eficaz, efetiva, e condizente não apenas com o objetivo a ser alcançado (convencer o árbitro de sua tese), mas também com os objetivos de seu parceiro, criando assim um genuíno entrosamento entre os advogados, situação rara na prática advocatícia. As competições jurídicas, em especial a competição de arbitragem da CAMARB por confrontar o aluno com 3 avaliadores, possuem o condão de elevar o nível de segurança na oratória dos discentes. No NCMA/UEA, foram superadas barreiras como a insegurança, o nervosismo e até mesmo vícios de linguagem com base na rotina de treinos preparatórios para a competição, criando assim discentes que irão se tornar futuros profissionais qualificados não apenas de forma técnica para a atuação como advogado, mas também uma qualificação humana, capaz não apenas de compreender a figura geral, mas também capaz de propagar o principal objetivo do NCMA/UEA: a resolução de conflitos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação clínica proporciona o enfoque no discente ao colocá-lo no papel do profissional de direito. De maneira que, ao se colocar, o discente irá aprender a superar suas dificuldades pessoais e profissionais. É nesse

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momento que o processo de empoderamento irá formar profissionais preocupados com o lado técnico e humano da promoção do Direito. O objetivo do núcleo é fomentar a cultura da negociação e resolução de conflitos, e cooperar com o fim da cultura do litígio, que assola nosso judiciário. Portanto, a educação clínica não é uma forma tradicional da educação no meio jurídico, nos três pilares do ensino, pesquisa e extensão, mas sim um meio alternativo para a formação sistêmica de profissionais inseridos na realidade social e jurídica. Assim sendo, a implantação do método de educação clínica se fez através de um processo de mudança de paradigma na educação jurídica, no âmbito do curso de Direito da UEA. REFERÊNCIAS ÁLVAREZ, A. La educación clínica hacia la transformación de la enseñanza del derecho. In: COURTIS, C; VILLARREAL, M (Coord.). Enseñanza clínica del derecho: Una alternativa a los métodos tradicionales de formación de abogados. Mexico: Clínica Legal de interesse Público/ITAM, 2007, p. 225-245. BRASIL, a. Código de Processo Civil: Lei 13.105, de 2015. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 01 maio 2016. BRASIL, a. Lei de Arbitragem: Lei 9.307, de 1996. Disponível em: . Acesso em: 04 de outubro de 2016. GRINOVER, A. P. Os fundamentos da justiça conciliativa. Revista da Escola Nacional da Magistratura, Associação da Magistratura Brasileira, Brasília, ano 2, n. 5, p. 22-27, maio 2008. Disponível em: . Acesso em: 04 de outubro de 2016. HURWITZ, D. R. Teaching to the Paradoxes: Human Rights Practice in U.S. Law School Clinics. In: Maryland Journal of International Law. Vol. 26. Maryland, 2011, p.101-129. LAPA, F. B. Clínica de Direitos Humanos: Uma proposta metodológica para a educação jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2014. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS. Projeto Pedagógico do Curso de Direito. Manaus: UEA, 2015. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS. Proposta da criação do Núcleo de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Universidade do Estado do Amazonas – NCMA/UEA. Manaus: UEA, 2016.

Capítulo 6 Transexualidade e Litigância Estratégica em Direitos Humanos Camila Silva Nicácio1 Júlia Silva Vidal2 Sophia Pires Bastos3

RESUMO: Entre as vulnerabilidades e violências de ordens diversas que circundam as experiências travestis e transexuais, a exclusão jurídica se apresenta enquanto uma das mais perversas no ciclo de invisibilização dessas experiências. O impedimento à realização do direito à identidade de gênero, em consonância com parâmetros internacionais e internos de proteção e garantia de direitos humanos, constitui óbice à realização de própria dignidade humana e da cidadania. Contudo, é esse mesmo direito que possui potencial de ser mobilizado como vetor de mudança social, mormente em prol do reconhecimento das identidades de gênero e dos direitos daí decorrentes. Diante disso, a atuação da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (Cdh/UFMG) se pauta na mobilização e articulação jurídica com vistas a promover direitos humanos da população transexual de Belo Horizonte. Assim, as atividades de advocacia estratégica em direitos humanos realizadas pela CdH/UFMG circunscrevem desde o âmbito individual de atendimento e judicialização de demandas até a provocação de impactos na esfera coletiva, a exemplo de recomendação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre a competência da Vara de Registros Públicos para a retificação de gênero e de ingresso como amicus curiae em caso no Supremo Tribunal Federal relativo à necessidade ou não de pessoas transexuais se submeterem à cirurgia de redesignação sexual para terem nome civil e gênero retificados. Palavras-chave: transexualidade; advocacia estratégica; mudança social; Clínica de Direitos Humanos da UFMG. ABSTRACT: Among all sorts of vulnerabilities and violence that surround transvestite and transsexual experiences, the legal exclusion presents itself as one of the most perverse in the cycle of invisibilization against those experiences. Barring the exercise to the right to gender identity, in line with both international and domestic guidelines of protection and promotion of human rights, constitutes an obstacle to the fulfillment of either citizenship or human dignity itself. However, it is this very Law that has the potential of being mobilized as a vector of social change, especially in favor of the recognition of gender identities and its resulting rights. In face of this context, the Human Rights Clinic of the Federal University of Minas Gerais, Brazil (CdH/UFMG) develops activities towards legal mobilization and articulation in order to promote human rights of transsexuals in Belo Horizonte. Therefore, the strategic advocacy for human rights performed by CdH/UFMG comprises from judicializing individual demands of register rectification to impacts in a collective sphere, for instance, presenting a legal opinion to the Tribunal of Justice of Minas Gerais on processual procedures 1



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Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos (CdH) da UFMG. Doutora em Antropologia do Direito pela Université Paris I, Panthéon-Sorbonne. [email protected]. Graduanda em Direito na UFMG. Estagiária da CdH/UFMG e do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG). [email protected]. Graduanda em Direito na UFMG. Estagiária da CdH/UFMG. Pesquisadora voluntária do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG). Monitora da graduação do Grupo de Estudos em Direito Internacional dos Direitos Humanos (GEDI-DH/UFMG). [email protected].

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to register rectification for gender change and acting as amicus curiae in the Federal Supreme Court in a case of name and gender recognition without prior submission to sexual reassignment surgery. KEYWORDS: transsexuality; strategic advocacy, social change, Human Rights Clinic of the UFMG.

1. INTRODUÇÃO De todos os delicados temas relativos à vida social mais abrangente, um deles parece, por excelência e pelos desafios que coloca à própria imaginação jurídica, reclamar e merecer a atenção do profissional do direito nos dias de hoje: aquele relativo às experiências da transexualidade. Os dados disponíveis, ainda que relativamente escassos – o que, por si só, já diz muito sobre o lugar que o problema ocupa na agenda das mais variadas instituições –, apontam para um cenário em que a sujeição a estigmas, violências e vulnerabilidades de toda ordem são a tônica na vida da população transexual. Destacamos, aqui, um quadro nacional de extrema precariedade: segundo a ONG Internacional Transgender Europe4, entre janeiro de 2008 e abril de 2016, ocorreram 845 mortes de travestis e transexuais no país. Ainda, uma análise global desses dados permitiu à ONG inferir que o Brasil é responsável por 40% das mortes de pessoas transexuais que aconteceram no mundo desde 2008. No contexto local, a conjuntura é similar. Em pesquisa realizada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (Nuh/UFMG) com as travestis e transexuais em prostituição em Belo Horizonte e região metropolitana5, de 141 entrevistadas que foram questionadas sobre já terem sofrido algum tipo de violência física (tapas, pedradas, lesões por arma de fogo etc.), 96,4% delas responderam de forma afirmativa. Quanto aos dados de violência sexual, 46,8% relataram ter sido submetidas a sexo forçado/estupro. Interessa-nos sondar em que medida a violência social, econômica, simbólica, entre outras, soma-se à violência do direito com relação a tal público, mormente no que toca ao não reconhecimento ou ao reconhecimento apenas parcial de seus direitos de cidadania. A questão do direito à identidade de gênero desponta, nesse contexto, como pilar de sustentação de toda e qualquer outra reivindicação por parte do público concernido. Afinal, como encarar, senão como a mais inequívoca violência – uma violência cujo agente, frisa-se, é o direito tal como 4



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Transgender Europe. IDAHOT 2016 – Trans Murder Monitoring Update. Press Release May 12 2016. Disponível em: . Acesso em: out/2016. Disponível em: . Acesso em: out/2016.

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interpretado pelos juristas –, a negligência quanto à dissonância entre os documentos pessoais e a realidade de um indivíduo, ou seja, entre seu registro civil, assim como enquadrado pelas normas vigentes, das quais o recorte pretensamente biológico ainda prepondera, e a própria representação que cada um tem de si mesmo? Como, perguntamos, arrimar reivindicações voltadas ao acesso à saúde, ao mercado de trabalho, ao ir e vir livre e desembaraçado em ambientes sociais diversos, entre outras, se não se reconhece, de saída, a importância do nome como uma das principais formas de expressão de gênero, cuja negação confina transexuais a um sem número de humilhações, constrangimentos e riscos diversos? A possibilidade de retificação não somente do nome, mas igualmente do gênero, impõe-se, desse modo, como condição sine qua non para o exercício, em sua acepção mais plena, de outros direitos. À luz desses primeiros apontamentos, tentaremos construir neste capítulo uma argumentação que desvele o potencial do direito como vetor de mudança social, quando e se mobilizado (2); a atuação da Clínica de Direitos Humanos da UFMG (CdH/UFMG), em conjunto com a Divisão de Assistência Judiciária da UFMG, na judicialização de demandas de retificação de registro e de gênero e na elaboração de recomendação sobre a competência das varas indicadas para tal retificação (3 e 4); assim como a estratégia da CdH/UFMG para intervir, em um âmbito mais abrangente, a título de amicus curiae, em ações tramitando tanto no Supremo Tribunal Federal quanto em instâncias inferiores, relativas ao mesmo tema (5). 2. MUDANÇA SOCIAL, DIREITO E OS CURSOS JURÍDICOS Em produção recente, Jacques Commaille (2015) interroga seus leitores com uma questão que não deixa de desafiar nossa imaginação e convidar à reflexão: para que nos serve o direito? – indaga o sociólogo francês. Sem desconsiderar a querela antiga, central na sociologia jurídica, entre os que apostam, por um lado, no papel “conservador” e, em outro, no papel “progressista” do direito frente à realidade social (SABADELL, 2014, p. 96), o autor pontua a duplicidade de papéis do direito nas sociedades, ao mesmo tempo como seu produto e seu produtor, donde sua importância na demonstração de como tais sociedades funcionam e se transformam (COMMAILLE, 2015, p. 384-385). O direito, nessa perspectiva, é não somente um instrumento de regulação social, mas se presta igualmente como um revelador da sociedade que ele regula, em suas mudanças, contradições, expectativas. Na análise da construção social do direito, Commaille o apreende em sua dualidade, ao apontar para sua função instrumental, consubstanciada

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nos efeitos diretos e concretos da atividade jurídica propriamente dita, e sua dimensão simbólica, reveladora, ao seu turno, do status que a ele se confere em uma determinada cultura. O autor falará, então, de uma “legalidade dual”, em que o direito se inscreve tanto no que diz respeito a uma “referência ou “razão transcendente” (o Direito com ‘D’ maiúsculo, na esteira de Pierre Legendre), quanto no que diz respeito a um “recurso, imanente ao que as sociedades são e aspiram a ser” (COMMAILLE, 2014, p. 90). Perceber a tensão entre tais dimensões não significa apenas conhecer mais e melhor o direito, mas compreender a organização do mundo social e a estruturação do político, globalmente considerado. A tensão a que nos referimos, tomando de empréstimo a obra do sociólogo francês, interessa-nos aqui como quadro analítico para identificarmos e compreendermos em que medida a mobilização do direito, como “recurso imanente da sociedade”, via atuação de novos atores sociais ao reivindicar novos instrumentos e arenas de participação, contribui para as mudanças sociais de que o próprio direito ulteriormente será índice de “referência”. Ao analisarmos a relação entre mudança social e direito, percebemos que existem várias camadas possíveis de observação, destacando-se, por exemplo, a intensidade da mudança, suas esferas de manifestação, bem como seu ritmo (SABADELL, 2014, p. 101 e s.). Interessa-nos chamar atenção para aquilo que nos parece o elemento mais importante na referida relação, qual seja, os agentes das mudanças e sua ação sobre o direito para, ao mobilizá-lo, reivindicar sua efetividade, denunciar abusos ou participar à sua coelaboração. Já se demonstrou (FONSECA; CARDARELLO, 1999) que, no turbilhão, profusão e diversidade das demandas sociais que clamam por reconhecimento, via efetivação ou elaboração de novos direitos, a mobilização da sociedade em seu redor se dá de maneira não isonômica – mesmo desorganizada, quando não fratricida, vide o exemplo das diferentes tendências dos feminismos – em um “grande mercado” de direitos que, saturado, tende a transformar demandas específicas em direitos “dos mais ou menos humanos”. Se é possível considerar a universalidade de algumas necessidades humanas essenciais, assim como demonstrado por Gustin (2010), tais como a sobrevivência, a integração societária, a maximização das competências coletivas e individuais de atividade criativa e a identidade, é igualmente plausível conceber que, quando da efetivação dos direitos, mormente em seu viés concreto, identificado na edição de políticas públicas ou de jurisprudências, tais necessidades tendem a ser traduzidas de modo abstrato e generalizado, sem atingir a particularidade reclamada por públicos específicos. Nesse contexto, a mobilização do direito por variados e múltiplos agentes tende a ter feição

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corretiva, para que se assegure o reconhecimento de projetos de vida não necessariamente hegemônicos e que merecem, a esse título, promoção e proteção por parte de um Estado democrático de direito que se assume como tal. A seguir, apresentaremos exemplos de mobilização do direito por parte de agentes sociais – a CdH/UFMG – no que toca às experiências de vida do público transexual, para o qual o direito, seja em sua função instrumental ou simbólica, tem uma dívida patente, notadamente deletéria para o sentido de cuidado e manutenção dos laços sociais. 3. OS ATENDIMENTOS SOCIOJURÍDICOS AO PÚBLICO TRANSEXUAL Como brevemente evocado supra, a discordância entre aparência, jeitos e comportamentos sociais das pessoas transexuais e seus documentos de identificação pessoal torna o nome de registro motivo de constrangimento e sofrimento nas situações em que há a obrigatoriedade de seu uso, dificultando, quando não inviabiliza tout court, o exercício da cidadania em seus diferentes níveis. A hipótese de um acolhimento de pessoa transexual em um posto de saúde, por exemplo, é não somente imagética como também altamente reveladora desse tipo de impasse. No Brasil de hoje, verifica-se a possibilidade de alteração, pela via judicial, do prenome considerado vexatório, isto é, embora a princípio imutável, o nome pode ser alterado em circunstâncias excepcionais, haja vista sua importância como identificador das pessoas em suas relações pessoais. Por analogia, e levando-se em conta o nome social como aquele pelo qual “pessoas transexuais se identificam e preferem ser identificadas, enquanto o seu registro civil não é adequado à sua identidade de gênero”6, aplica-se a esses casos o art. 58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), segundo o qual o prenome será definitivo, podendo, contudo, ser substituído por apelidos públicos notórios. À semelhança do nome, o gênero é registrado a partir de uma perspectiva puramente biológica no momento do nascimento, devendo sua retificação igualmente ser considerada para efeitos de promoção da cidadania plena dos indivíduos. Nessa perspectiva e com vistas à efetivação do direito à identidade de gênero para a população travesti e transexual de Belo Horizonte, a CdH/ 6



Cf. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, da Presidência da República, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais servidores públicos civis e militares em todo o território nacional. Frisa-se que a importância do nome social para a garantia e acesso a direitos vem sendo reconhecida cada vez mais no país, sendo matéria de portarias e decretos internos de inúmeras instituições.

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UFMG se propôs a realizar atendimentos e a judicializar demandas individuais que requeiram tais retificações em conjunto com a Divisão de Assistência Judiciária (DAJ) da Faculdade de Direito da UFMG. Para tais atendimentos, as equipes concernidas são preparadas a se atentarem à particularidade que as demandas requerem, o que implica não somente a utilização adequada do arsenal jurídico necessário à adjudicação dos casos em questão, mas igualmente – e de modo não menos importante – ao cuidado com o tratamento dos e das demandantes. Ademais, é igualmente importante destacar a inserção da propositura de ações individuais na atividade de litigância estratégica realizada pela CdH/ UFMG, uma vez que a fundamentação das petições se pauta em parâmetros internacionais de proteção e promoção aos direitos humanos, de modo a condicionar uma cultura jurídica – não apenas judicial – em torno de tais direitos. 4. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL E DE GÊNERO: COMPETÊNCIA DA VARA DE FAMÍLIA OU DE REGISTROS PÚBLICOS? Como referido no tópico anterior, a atribuição de gênero no momento do nascimento a partir de uma perspectiva puramente biológica e, ao mesmo tempo, a escolha de um nome que seja consoante com a expectativa social em torno do gênero atribuído nem sempre corresponderão à identidade de gênero autopercebida posteriormente. No entanto, embora a retificação da documentação pessoal seja substancial para realização da dignidade humana e mitigação de constrangimentos, na maioria dos casos não há observância a parâmetros de reconhecimento da identidade de gênero e de garantia de direitos humanos para sua concessão. Uma dessas inobservâncias, verificada a partir dos atendimentos supramencionados, é a incoerência do entendimento de ser a ação de retificação de gênero competência da Vara de Família, enquanto que a de nome civil seria da alçada da Vara de Registros Públicos. A análise, ainda que breve, da legislação pertinente ajuda-nos a compreender a natureza do imbróglio a que nos referimos. O art. 54 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) estabelece, entre outros requisitos, que o assento do nascimento deverá conter o sexo do registrando e seu nome e prenome. Para sua retificação, tal lei dispõe que é necessário ajuizar uma ação nos termos do art. 109: Quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o juiz o ordene, ouvido o órgão do Ministério Público e os interessados, no prazo de 5 (cinco) dias, que correrá em cartório.

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Ainda, em Minas Gerais, o estabelecimento de competência das Varas de Família e de Registros Públicos se dá por meio da Lei de Organização e Divisão Judiciárias (LC 59/2001, atualizada pela LC 135/2004), nos seguintes termos: Art. 57 – Compete a Juiz de Vara de Registros Públicos: I – exercer as atribuições jurisdicionais conferidas aos Juízes de Direito pela legislação concernente aos serviços notariais e de registro; II – exercer a incumbência prevista no art. 2º da Lei Federal nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. III – processar e julgar as ações relativas a usucapião. (Inciso acrescentado pelo art. 19 da Lei Complementar nº 135, de 27/6/2014.) (...) Art. 60 – Compete a Juiz de Vara de Família processar e julgar as causas relativas ao estado das pessoas e ao Direito de Família, respeitada a competência do Juiz de Vara da Infância e da Juventude.

Não há dúvidas, portanto, quanto à competência da Vara de Registros Públicos para retificação de nome, que constitui mera informação no registro civil. Similarmente, tal correspondência deveria ser feita em relação à retificação de gênero, pois, como comentado acima, ele também deve constar no assento de nascimento. Não obstante, na grande maioria dos casos, referida retificação é entendida como competência absoluta da Vara de Família, sob a alegação de que o gênero não constituiria mero registro por estar atrelado ao “estado da pessoa”. Sua alteração demandaria modificação ou constituição de novo estado, conquanto a alteração registral apenas prova a situação jurídica do registrando e a torna conhecida por terceiros (MONTEIRO, 1966, p. 87), com base no princípio da publicidade. Assim, a inexatidão do ordenamento jurídico, associada à falta de legislação específica sobre o reconhecimento da identidade de gênero7, dá margens a entendimentos arbitrários sobre qual juízo seria o mais adequado. Thiago Coacci (2012, p. 85) entende ser o silêncio da lei pernicioso justamente “por deixar à mercê da interpretação dos julgadores a existência ou não dos referidos direitos, principalmente por tratar-se de questões extremamente polêmicas em que não há consenso entre os/as muitos/as magistrados/as”. A tensão entre a reivindicação por uma identidade, as lacunas do ordenamento jurídico e a prestação jurisdicional constitui obstáculo à 7



No sentido de implementar um marco normativo de reconhecimento das identidades e das expressões de gênero no Brasil, surge o Projeto de Lei 5.002/13, de autoria do deputado federal Jean Wyllys e da deputada federal Érika Kokay. O Projeto de Lei de Identidade de Gênero, também conhecido como Projeto de Lei João W. Nery, inspirado na legislação argentina, garante o direito de toda pessoa ao reconhecimento de sua identidade de gênero, ao livre desenvolvimento conforme sua identidade de gênero e ao tratamento de acordo com tal identidade, incluindo-se a identificação documental de sua identidade pessoal.

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realização da dignidade humana materializada na consonância entre documentos e realidade pessoais. Com vistas à alteração desse cenário de vulnerabilização no campo jurídico, a Clínica de Direitos Humanos da UFMG trabalha atualmente na elaboração de recomendação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tecendo considerações sobre o porquê de a Vara de Registros Públicos ser a competente para julgar as ações de retificação de gênero (ainda, em conexão com a ação de retificação de registro civil). Em primeiro lugar, o argumento de que gênero não é registral não se sustenta. A indicação do gênero ocorre da mesma forma que, e simultaneamente, à do nome, fazendo-se constar no registro civil; inscrito no registro público, não haveria exigência de retificação que não na Vara de Registros Públicos. Diferentemente das ações que tramitam na Vara de Família, cujas sentenças terão efeito jurídico de alterar a realidade fática (a exemplo da ação de investigação de paternidade), a mudança de gênero de um(a) transexual nada mais é do que o reconhecimento e respaldo jurídico de uma realidade que já ocorre antes mesmo do ingresso com uma ação judicial. Nesse sentido, cita-se: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – MODIFICAÇÃO DE PRENOME E SEXO – TRANSEXUALISMO – MERA ADEQUAÇÃO DE SUA ORIENTACAO NO PLANO SOCIAL, EIS QUE JÁ VIVE PUBLICAMENTE COMO MULHER - PEDIDO ESTRITAMENTE REGISTRAL – COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR DO JUIZ DA VARA DE REGISTROS PÚBLICOS, ACIDENTES DO TRABALHO E PRECATÓRIAS CÍVEIS DA CAPITAL – CONFLITO PROCEDENTE PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO D. JUIZ SUSCITADO. (TJPR. 12ª Câmara Cível em Composição Integral – Conflito de Competência 381763-6. Relator: Rafael Augusto Cassetari. Unânime. Julgamento em 28.03.2007). (Grifos nossos)

Ações que versam sobre o estado da pessoa, por sua vez, estão diretamente ligadas à esfera privada do indivíduo, possuindo natureza tal em que deve o Estado intervir ou tutelar em prol da segurança jurídica e do bem-estar social. A tutela das transidentidades, porém, se revela enquanto violação da privacidade e da intimidade pessoal. Não há real chancela de direitos ou busca da manutenção e seguridade da ordem pública, mas ingerência na esfera privada e na definição do que é ser “transexual de verdade”. Isso porque, em diversos julgados que defendem a declinação de competência para ou a competência absoluta da Vara de Família, preocupa-se mais com a repercussão daquela alteração na sociedade do que com a sua imprescindibilidade do ponto de vista do reconhecimento das experiências travestis e transexuais.

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Nesse sentido, a mitigação da autonomia e do direito à identidade de gênero contribui ao reiterar uma concepção patologizante da transexualidade, segundo a qual a autodeterminação deve ser relativizada e tutelada em prol da segurança jurídica; este sendo o segundo viés argumentativo pró-Vara de Família. Presumidamente, a retificação na Vara de Registros Públicos ocorreria de forma mais fácil, não apenas favorecendo seu pleito com fins ilícitos, a exemplo de fraude em contratos e casamento por erro, mas também permitindo que o(a) demandante se arrependesse no futuro. Em contrapartida, o aparato da Vara de Família, com oferecimento de suporte psicológico e de assistência social, constituiria obstáculo a pretensões ilícitas. Tais concepções se conectam por um aspecto temporal, vez que se pautam em resultados hipotéticos em um tempo futuro e incerto. Isso provoca um efeito inequívoco: o deslocamento do objetivo central de se reconhecer a identidade de gênero reivindicada naquele momento pelo(a) requente transexual, para uma ocorrência futura cuja certeza é apresentada como inquestionável (LIMA, 2015, p. 141), mas que não o é. Uma decisão-chave para o entendimento do cerne da possibilidade de lesão a terceiros é: Um terceiro, de boa-fé, levado pela aparência física de um operado, ou mesmo pelo amor, poderá chegar ao casamento. Realizado o ato sob o aspecto legal, no momento da consumação, ou até mesmo quando buscar a constituição de prole, esse terceiro descobre a verdade. O casamento foi contraído com pessoa do mesmo sexo. Quem induziu essa pessoa a erro? Foi apenas o operado? Penso que não. De qualquer forma, está aí um caso clássico de prejuízo a terceiro. Ainda que obtenha a anulação do casamento, sob o aspecto moral, sob o aspecto psíquico, essa pessoa sofrerá consequências, que podem ser indeléveis. Imaginem os senhores como essa pessoa enfrentará o convívio de seus circunstantes. (TJMG. 4ª Câmara Civel. Embargos Infringentes nº 1.0000.00.2960763/001. Relator: Almeida Melo. Julgamento em 22/04/2004, publicação em 08/06/2004)

Dessa forma, verifica-se que não há fundamento jurídico a tal restrição de direitos, e sim uma fundamentação baseada em mitos sociais, discriminatórios e reprodutores de normatividades de gênero consideradas “normais/aceitáveis”. Em elucidação analógica, criticam Roger Rios e Alice Risadori a sustentação de que mulheres transexuais não deveriam utilizar banheiros femininos devido ao suposto risco que elas representariam às demais usuárias, em relação ao RE 845.779/SC, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 20158: 8



O recurso versa sobre o direito de pessoas transexuais serem tratadas conforme sua identidade de gênero diante do caso de uma transexual proibida de utilizar o banheiro feminino em um shopping center em Florianópolis, SC.

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Ainda no território do medo, também não se sustentaria apelar para a precaução diante de quem falsamente se fizesse passar por transexual feminina objetivando adentrar nas instalações sanitárias. Sem mencionar a ausência de registros de tal prática, uma medida dessa espécie violaria duplamente o direito de igualdade. A um, por ser superinclusiva, por alcançar injustamente pessoas transexuais sem qualquer relação com aqueles a quem a medida se destina. A dois, por ser subinclusiva, por deixar de fora outras situações em que outros expedientes similares poderiam ser utilizados, tais como a utilização de vestimentas típicas que dificultem a identificação, como hábitos religiosos ou étnicos. Ausente fundamento racional no risco à segurança como fundamento para a proibição de utilização dos banheiros, convence menos ainda a invocação de constrangimento por parte das demais usuárias. Em sociedades plurais e democráticas, o incômodo ou constrangimento alheio não autorizam a restrição de direitos fundamentais de terceiros, desde que não ocorra prejuízo relevante aos demais. [...]. (LOPES apud RIOS; RISADORI, 2015, p. 214). (Grifos nossos)

A retificação de gênero na Vara de Registros Públicos, por sua vez, não apenas é necessária do ponto de vista da efetivação de direitos, como também o é do ponto de vista processual. Nesse ponto, cumpre ressaltar as obrigações derivadas da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)9 ou Pacto de San José da Costa Rica, integrada ao direito interno por meio do Decreto 678/92. Seu art. 25.1, que versa sobre o direito humano à proteção judicial, estabelece que: Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

Já o art. 2º do Pacto de San José prevê, expressamente, a obrigação dos Estados-Parte da CADH de adotarem medidas internas de adequação do ordenamento jurídico – e das práticas jurídicas estatais – às disposições da Convenção. O denominado “controle de convencionalidade” se relaciona, portanto, com alterações administrativas, legislativas, judiciárias ou de qualquer natureza que se harmonizem com a CADH e, por conseguinte, que promovam os direitos humanos em consonância com parâmetros internacionais de tutela. 9



No que se refere a tratados internacionais sobre direitos humanos, cabe ressaltar que o § 3º do art. 5º da Constituição da República os iguala às emendas constitucionais, quando tenham sido aprovados, nas duas casas do Congresso, em dois turnos, segundo o quórum de três quintos dos seus membros. Ainda, o Supremo Tribunal Federal já entendeu, em sede do julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários nº 349.703-1 e 466.343-1 e dos Habeas Corpus 87.585 e 92.566, pelo status supralegal dos tratados de Direitos Humanos que não cumpram com o requisito do § 3º, art. 5º, de modo que eles se encontrariam hierarquicamente acima da legislação infraconstitucional.

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Ao que nos interessa, compreendido o direito à identidade de gênero enquanto categoria protegida pela obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos pela CADH sem discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer natureza ou qualquer outra condição social10 (CORTE IDH, 2012), o Brasil tem o dever de alterar seu ordenamento e/ou sua prática jurídica para efetivar tal direito (CORTE IDH, 2006)11. Caso contrário, o país incorrerá em responsabilidade internacional pela inconvencionalidade de suas normas e atos na esfera doméstica. No caso, o julgamento da retificação de gênero pela Vara de Registros Públicos propiciaria a efetivação dos princípios da duração razoável do processo e da economia processual, uma vez que a celeridade processual é menor na Vara de Família, que comporta um número maior e mais complexo de casos. Ter-se-ia, de fato, a garantia do recurso idôneo, simples, rápido e efetivo como disposto no mencionado art. 25, CADH, evitando demoras injustificadas não apenas no exercício do Poder Judiciário, mas também na concretização do direito material. Ademais, partindo-se da reivindicação por um nome que de fato represente a identidade do(a) demandante, tendo em vista o entendimento de que esse instituto se divide entre “de homens e de mulheres”, é possível entender a consequente demanda pela retificação de gênero na mesma ação. O reconhecimento da identidade de gênero, por conseguinte, constitui a causa de pedir de ambas ações; processualmente, cabe a conexão, além de a parte interessada ser a mesma12. As duas ações devem tramitar juntas, na mesma vara, de modo a evitar decisões conflitantes. Entretanto, a sustentação de que a Vara de Família possui competência absoluta quanto à alteração de gênero obsta essa aplicação. Diante de tais considerações, utiliza-se a recomendação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais enquanto instrumento de advocacia estratégica13, 10



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CADH, art. 1.1. Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. § 124: “La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos están sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer una especie de “control de convencionalidad” entre las normas jurídicas internas que aplican en los casos concretos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. En esta tarea, el Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana”. Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). Art. 55.  Reputam-se conexas 2 (duas) ou mais ações quando lhes for comum o pedido ou a causa de pedir. Para uma abordagem mais abrangente sobre advocacia estratégica, remetemos o leitor ao artigo “Ferramentas “clínicas” na advocacia estratégica em direitos humanos”, de autoria de Letícia Soares Peixoto Aleixo, Lorena Parreiras Amaral e Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, na presente obra.

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capaz de alterar a prática jurídica interna com base em parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos e garantir a realização de direitos. 5. A UNIVERSIDADE NA FÁBRICA DAS DECISÕES: A INTERVENÇÃO A TÍTULO DE AMICUS CURIAE Ainda, dentre as atividades de litigância estratégica da Clínica de Direitos Humanos relacionadas à população de transexuais, destaca-se a possibilidade de intervenção como amicus curiae em esferas do judiciário brasileiro. Por sua clareza e simplicidade, adotamos aqui o entendimento de Menetrey (2010), para quem referido instituto se baseia na intervenção espontânea e sistemática de terceiros em casos em que há inequívoca importância jurídica e social, objetivando melhor esclarecimento do juiz da causa. Assim, o amicus curiae, visando possibilitar a participação de organizações da sociedade civil no processo, democratizando-o, encontra previsão no Novo Código de Processo Civil, art. 138, in verbis: Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º. § 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.

Tivemos recentemente (NICÁCIO; VIDAL; VIANA, 2016) a oportunidade de apontar o potencial do referido instituto de contribuir para a promoção, a efetivação e quiçá a criação de direitos humanos fundamentais, vez que, ao intervir no processo objetivando o aperfeiçoamento das decisões judiciais, garante, a um só tempo, tanto a participação e representação cidadã alargada nele, quanto a atenuação do “déficit democrático de atuação do judiciário brasileiro” (BUENO, 2008, p. 137). Já sendo a intervenção como amicus curiae em julgamentos do Supremo Tribunal Federal prática de diversas instituições que promovem direitos de minorias vulnerabilizadas, o Novo Código de Processo Civil inaugura um novo momento processual brasileiro, uma vez que não restringe a possibilidade de utilização do instituto em processos de caráter objetivo14. 14



Conferir, nesse sentido, “Ferramentas “clínicas” na advocacia estratégica em direitos humanos”, de autoria de Letícia Soares Peixoto Aleixo, Lorena Parreiras Amaral e Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, na presente obra.

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Dessa maneira, a primeira intervenção realizada pela CdH/UFMG se situou em um processo que, atualmente, se encontra na 2ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte, em primeira instância15, em que um homem transexual pleiteia a retificação de nome e de gênero, conjuntamente, e sem ter realizado cirurgia de redesignação sexual. Em seguida, a CdH/UFMG elaborará manifestação de amicus curiae em sede do Recurso Extraordinário nº 670.422, recurso que versa justamente sobre a possibilidade ou não de alteração de nome e gênero de transexual sem prévia realização de referida cirurgia. Frisa-se, inclusive, que foi reconhecida a repercussão geral no caso, aduzida pelo ministro relator Dias Toffoli: As matérias suscitadas no recurso extraordinário, relativas à necessidade ou não de cirurgia de transgenitalização para alteração nos assentos do registro civil, o conteúdo jurídico do direito à autodeterminação sexual, bem como a possibilidade jurídica ou não de se utilizar o termo transexual no registro civil, são dotadas de natureza constitucional, uma vez que expõe os limites da convivência entre os direitos fundamentais como os da personalidade, da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da saúde, entre outros de um lado, com os princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos de outro. Assim, as questões postas apresentam nítida densidade constitucional e extrapolam os interesses subjetivos das partes, pois, além de alcançarem todo o universo das pessoas que buscam adequar sua identidade de sexo à sua identidade de gênero, também repercutem no seio de toda a sociedade, revelando-se de inegável relevância jurídica e social. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Repercussão Geral no Recurso 670.422. Relator Ministro Dias Toffoli. Julgado em 20/08/2014)

O caso em questão problematiza demandas prementes da população transexual, uma vez que o entendimento de que a pessoa transexual deve, necessariamente, realizar modificações corporais como a hormonização e a cirurgia de redesignação sexual parte de uma concepção patologizante das transidentidades, segundo a qual a modificação do corpo serviria à “cura” da “disforia de gênero”16. Tais alterações devem ser retiradas da centralidade da reivindicação da identidade de gênero em prol de um abandono da “genitalização das identidades”, principalmente enquanto requisito para a efetivação de direitos como a concessão da retificação de documentos. Como explicado por Leonardo Tenório e Marco Aurélio Prado, É interessante pensar que o sofrimento atribuído à suposta incoerência que se designou nos manuais médicos entre o sexo biológico e identidade de gênero da pessoa trans, 15



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Processo nº 5025403-15.2016.8.13.0024 (segredo de justiça). Cabe ressaltar que a competência da Vara de Registros Públicos foi declinada para a Vara de Família após a distribuição do processo, exemplificando o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre o assunto debatido no tópico 4 do presente capítulo. A transexualidade ainda possui classificação de distúrbio psicológico, listado na Classificação Internacional de Doenças (CID10 F54 – Transexualismo), categorizado no grupo de transtornos mentais e comportamentais.

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numa leitura lógica, teria de vir como decorrência da incapacidade da pessoa trans de vivenciar e expressar suas masculinidades e/ou feminilidades em função de seu corpo. Mas na verdade as pessoas já vivenciam formas de masculinidades mesmo tendo um corpo totalmente do sexo considerado “feminino” ou feminilidades mesmo tendo um corpo totalmente do sexo considerado “masculino”. A pessoa já se identifica como detentora de sentimentos intrínsecos de masculinidade ou feminilidade sem nenhuma transformação corporal e mesmo sem reivindicar socialmente o reconhecimento no gênero com o qual se identifica. (TENÓRIO; PRADO, 2016, p. 44)

Nesse sentido, cumpre destacar a abordagem conferida à transexualidade pelo Sistema Único de Saúde que, por meio da Portaria 2.803/13 do Ministério da Saúde, determina e estabelece diretrizes para o denominado “processo transexualizador”. Ao que nos interessa, referida normativa retira a cirurgia da centralidade do processo terapêutico17 e evidencia que esse não é um requerimento obrigatório a todos(as) os(as) transexuais, respeitando, sobretudo, a autonomia do indivíduo. Tal portaria dispõe: Art. 2º São diretrizes de assistência ao usuário(a) com demanda para realização do Processo Transexualizador no SUS: I – integralidade da atenção a transexuais e travestis, não restringindo ou centralizando a meta terapêutica às cirurgias de transgenitalização e demais intervenções somáticas; Parágrafo único. Compreende-se como usuário(a) com demanda para o Processo Transexualizador os transexuais e travestis. (Grifos nossos)

O assunto também já foi tema da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, em 2014, em que se elaboraram os Enunciados 42 e 43: ENUNCIADO N.º 42 Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil. ENUNCIADO N.º 43 É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização. 17



Nesse sentido, Lionço esclarecerá que “A reunião sobre o Processo Transexualizador no SUS, portanto, enfatizou a necessária despatologização da transexualidade como estratégia de promoção da saúde, e afirmou a pluralidade na transexualidade, considerando que a autonomia da pessoa transexual na tomada de decisão sobre as medidas necessárias a uma melhor qualidade de vida seria fundamental para que a atenção à saúde não dispusesse novos mecanismos de controle e normatização sobre as condutas e modos de vida e de subjetivação. As cirurgias, portanto, passaram a ser compreendidas como parte ou não do Processo Transexualizador, e a discussão superou o viés medicalizador e correcional para o foco na garantia do direito à saúde integral”. (LIONÇO, 2009, p. 9).

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Em resumo, transexuais podem querer ou não se submeter a modificações corporais do tipo cirúrgica18 em consonância com o gênero identificado, como conclui Maria Berenice Dias: A cirurgia não pode ser um critério para alteração do registro civil. Ela é consequência da vontade, advinda da experiência pessoal de cada transexual, do nível do conhecimento médico, da disposição em enfrentar uma cirurgia arriscada, enfim, de fatores de ordem pessoal e tecnológica, que não pode ser um limitador à obtenção da tutela jurídica, sob pena de afrontar-se o direito à saúde. (2012, p. 187)

Podem-se determinar, portanto, cumpridos os requisitos19 quanto à matéria – relevância social, especificidade do tema e repercussão social da controvérsia – para ingresso como amicus curiae nos termos do art. 138, CPC, além da representatividade adequada da CdH/UFMG para tanto. Vale ressaltar que o pretendido ingresso como “amigo da corte” no citado RE 670.422 será realizado em conjunto com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh/UFMG) e a Divisão de Assistência Judiciária (DAJ/UFMG), organizações universitárias que têm, a exemplo da CdH/UFMG, o trabalho voltado à promoção de direitos humanos. Pontua-se, por fim, que o trabalho em rede, assim como pretendido, constitui a escolha epistemológica e metodológica mais adequada, pois que assume a realidade de uma situação complexa, carente de abordagem no mínimo interdisciplinar e interinstitucional para que os desafios sejam aos poucos enfrentados. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao considerarmos o direito, assim como nos propõe Commaille (2014, p. 159), como um “espelho excepcional das transformações sociais e políticas das sociedades, bem como uma das chaves para compreender a significação das mesmas”, tenderíamos a fazer na contemporaneidade brasileira um balanço ao mesmo tempo melancólico e animador. Se, por um lado, observam-se mitos e preconceitos a atravancar a prática judiciária e, em última instância, comprometer o acesso à justiça de parcelas largamente marginalizadas da população, haja vista o público de que tratamos na presente 18



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Destaca-se, ainda, que homens e mulheres transexuais fazem uso indiscriminado de hormônios desde tenra idade, a fim de construir seu corpo e experiência com o gênero reivindicado. É o que o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT atestou recentemente em pesquisa intitulada “Direitos e Violências na experiência de travestis e transexuais em prostituição em Belo Horizonte e região metropolitana”. Os dados e análises produzidas indicam que 92,9% faziam uso de hormônio no momento da pesquisa, 64,12% das entrevistadas começou a fazer uso dessa medicação entre 10 e 17 anos, e apenas 2% obtiveram informações sobre o uso a partir do sistema de saúde. Ainda que alternativos, entendemos estarem presentes os três.

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reflexão, por outro lado, assinala-se e identifica-se de mais a mais a pressão de grupos para uma mobilização do direito que leve em conta a necessidade não só de efetividade do que já se encontra garantido, como da edição do novo, do direito que vem. Este, em um Estado plural e democrático, deve ser tendencialmente mais aberto e permeável a vivências múltiplas, não hegemônicas, dissidentes. O exemplo aqui trazido de mobilização do direito via metodologia clínica inscreve-se naquilo que se convencionou chamar de “uso militante do direito” (LOCHACK, 2016) e deixa augurar de mudanças jurídicas e sociais que impactem não somente os diretamente concernidos por uma demanda específica como toda a extensão do tecido social em que eles se inserem. Tais mudanças, vistas do “espelho” e levada em conta a relação de dualidade entre o que se produz e o que é produzido na vida social, implicam uma nova visão de mundo, que, por sua vez, reclama uma visão renovada do direito. Esta, ao seu turno, supõe o desenvolvimento de novas maneiras de estudá-lo e abordá-lo, para o que a experiência recente das clínicas jurídicas no Brasil, ao alinhar pesquisa, ensino e extensão, pode trazer uma importante contribuição. REFERÊNCIAS BUENO, Cássio Scarpinella. Quatro perguntas e quatro respostas sobre o amicus curiae. Revista da Escola Nacional de Magistratura, v. 2, n. 5, abr. 2008, p. 132-138. COACCI, Thiago. A transexualidade no/pelo Judiciário Mineiro: um estudo dos julgados do TJMG correlatos à transexualidade no período de 2008 a 2010. Revista Três Pontos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 81-92. COMMAILLE, Jacques. À quoi nous sert le droit? Paris: Gallimard, Folio Essais. 2015. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relação de Enunciados aprovados pela plenária da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça em 15 de Maio de 2014. São Paulo, SP. Disponível em: . Acesso em: out/2016. Corte IDH. Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Custas. Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Serie C, n. 154. Corte IDH. Caso de Karen Atala Riffo e hijas vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Serie C, n. 239. DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5. ed., 2012. FONSECA, Cláudia; CARDARELLO, Andrea. Direitos dos mais ou menos humanos. Horizontes Antropológicos. Ano 5, n. 10, maio/1999. pp. 83-121. GUSTIN, Miracy B. S. Reflexões sobre os direitos humanos e fundamentais na atualidade: transversalidade dos direitos, pluralismo jurídico e transconstitucionalismo. In: SALIBA, Aziz Tuffi; ALMEIDA, Gregório Assagra de; GOMES JR, Luiz Manoel (org.) Direitos Fundamentais e a função do Estado nos planos internos e internacional. Vol. 2. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2010. LIMA, Luiza Ferreira. A “verdade” produzida nos autos: uma análise de decisões judiciais sobre retificação de registro civil de pessoas transexuais em Tribunais brasileiros. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: . Acesso em: ago./2016.

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Capítulo 7 A Efetivação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais da População Tradicional da Bacia do Pina: entraves públicos e privados Atermis Holmes1 Luis Emmanuel Cunha2 Luiz Pereira Neto3

RESUMO: A convenção 169, aprovada em 1989 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), trata dos direitos dos povos indígenas e tribais em países independentes. Em 2002, o Brasil ratificou a convenção por meio do decreto legislativo nº 143, entrando em vigor no ano de 2003. No Recife, a comunidade tradicional circunvizinha à Bacia do Pina convive hodiernamente em meio a uma repartição de seus espaços de subsistência, através do processo de gentrificação local comandado pelas empreiteiras e uma pequena parcela da sociedade com alto poder aquisitivo, com conivência dos agentes públicos estatais. É fundamental debater os problemas no campo de direitos econômicos, sociais e culturais das comunidades tradicionais, visando a destacar para os órgãos de direitos humanos a necessidade de que o Estado revise suas políticas públicas, como o acesso de direitos básicos à comunidade da Bacia do Pina (grupo vulnerabilizado de pescadores e marisqueiras). PALAVRAS-CHAVE: Convenção 169; Direitos de Comunidades Tradicionais; invisibilização. ABSTRACT: The Convention 169, approved in 1989 by the International Labour Organization (ILO), approaches the rights of indigenous and tribal peoples in independent countries. In 2002, Brazil ratified the convention through the legislative decree no 143, which came into effect in 2003. In Recife, the traditional community surrounding Bacia do Pina lives currently in the middle of a department of their subsistence spaces, through the process of local gentrification headed by the contractors and a small part of society with a high acquisitive power, with the connivance of state public agents. It is essential to discuss the problems in the field of social, economical and cultural rights of traditional communities, trying to highlight to the human rights defense bodies the need for the State to redesign its public policies, as the access to basic rights by the Bacia do Pina comunity (vulnerable group of fishermen and shellfish collectors). KEY WORDS: Convention 169; Traditional Communities Rights; Invisibilisation.

INTRODUÇÃO A Clínica de Direitos Humanos da Faculdade Damas é parte do Núcleo de Estudos e Atuação em Relações Internacionais (NEARI), perspectiva 1



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Professora do Curso de Relações Internacionais da graduação da Faculdade Damas da Instituição Cristã. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Curso de Relações Internacionais da graduação da Faculdade Damas da Instituição Cristã. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduando em Bacharelado em Direito pela Faculdade Damas da Instituição Cristã. Estagiário da Clínica de Direitos Humanos do Núcleo de Estudos e Atuação em Relações Internacionais (NEARI) – Orientado pelo prof. Luis Emmanuel Barbosa da Cunha.

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voltada para a atuação e prática na promoção e na proteção aos direitos humanos a partir do conteúdo normativo previsto nos tratados de direitos humanos, ratificados pelo Estado brasileiro. O presente artigo apresenta um momento no projeto de monitoramento de direitos na Bacia do Pina, no Recife, referente ao ano de 2015. Esse trabalho iniciou-se em 2012 e tem previsão para colher informações e monitorar o estado de coisas até o ano de 2017. A metodologia de monitoramento empregada no Projeto sobre o Impacto à Efetivação de Direitos Econômicos e Sociais da População Tradicional da Bacia do Pina consiste em colher in loco os dados relativos aos direitos econômicos, sociais e culturais e entrevistar os pescadores e marisqueiras, dependentes do meio ambiente da Bacia do Pina para sobreviver. O staff da Clínica de Direitos Humanos tem trabalhado nesse monitoramento diretamente desde 2014. Antes disso ainda, em 2012, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, GAJOP, fez uma intervenção pontual na Bacia para subsidiar seu material para Rio+20. Esse trabalho, fadado a ter se encerrado há três anos, foi retomado no ano passado e está projetado para seguir até 2017, com possibilidade de renovação. Estrategicamente, o projeto está focado no viés humano do grupo vulnerabilizado dos pescadores e marisqueiras e sua relação com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e no viés de direitos: direito à cidade, direitos sociais e direito ao meio ambiente saudável. Esse segundo viés é o ponto de dedicação deste trabalho. Dessa forma, este capítulo compreende os seguintes itens de análise: o Brasil e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; Reconhecimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CrIDH) sobre as comunidades tradicionais; A Bacia do Pina e seus aspectos socioeconômicos; o Direito à Moradia Digna; riscos à saúde pública da população ribeirinha; análise do impacto socioeconômico da Via Mangue sobre os pescadores Projeto Via Mangue; o acesso à cidade: Cais Estelita – ausência da participação popular no projeto de urbanização; e conclusões no ano de 2015. 1. METODOLOGIA DE TRABALHO DA CLÍNICA A Clínica de Direitos Humanos (Clínica) da Faculdade Damas da Instrução Cristã foi criada em 2013 para fomentar a experiência profissional inicial para o corpo discente do curso de Relações Internacionais, no exercício de uma organização não governamental júnior, com toda a gama de experiência no trato com a sociedade civil e com o laboratório de políticas públicas.

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A principal forma de atuação da Clínica é trabalhar com casos emblemáticos. A sede do escritório fica no Alto José do Pinho, periferia do Recife, e conta com o apoio do Centro Social Dom João Costa. O atendimento individualizado é feito em complemento ao trabalho rotineiro do Centro Social, mas o foco principal são os casos emblemáticos, ou seja, casos de violação de direitos humanos que possam repercutir sobre grupos de direitos (envolvendo as dimensões civis, políticas e econômicas, sociais e culturais em interdisciplinaridade) e grupos socialmente vulnerabilizados, com atenção: a mulheres, crianças e adolescentes, população em privação de liberdade, populações tradicionais e LGBT. A partir daí, considera-se como recorte normativo e institucional a legislação internacional em direitos humanos e os órgãos de fiscalização e proteção global e regional de direitos humanos. O objetivo é “levar” o texto abstrato dos tratados de direitos humanos do sistema das Nações Unidas e do sistema interamericano de direitos humanos para combater as violações à dignidade humana presentes na periferia do Recife em detrimento dos grupos socialmente vulnerabilizados. Dentre os projetos em trâmite, destaca-se o da Bacia do Pina, no Recife, por ser o de maior prazo de execução, além de lidar com o alto grau de invisibilização imposto aos grupos de pescadores e marisqueiras da região, cujo trabalho tradicional é permanentemente ameaçado pela atuação de empreendimentos particulares e de órgãos públicos. 2. O BRASIL E A CONVENÇÃO 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO A convenção 169, aprovada em 1989, durante a 76ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT), trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais em países independentes. Nasce de uma modificação parcial da convenção 107, por meios de reivindicações de organizações indígenas e indigenistas que começaram a exigir a revisão desta última, que tinha visão integracionalista. Um dos principais motivos sobre o questionamento da legitimidade da Convenção 107 era por essa defender que decisões sobre o desenvolvimento dos povos indígenas e tribais eram de competência dos governos e não das próprias comunidades, ferindo o princípio de autodeterminação desses povos. O Brasil ratificou a Convenção 169 através do Decreto Legislativo nº 143 de 2002, aprovado pelo Congresso Nacional, e a internalizou ao direito doméstico brasileiro através do Decreto nº 5.051 de 2004. A obrigatoriedade da convenção se tornou tema de longo impasse entre nossos juristas, diante da internalização desta no ordenamento jurídico nacional.

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O Supremo Tribunal Federal em sua jurisprudência entendeu que tratados internacionais, como tal, seriam internalizados como lei ordinária, sendo compreendida a ratificação pelo decreto legislativo condição suficiente para a introdução da norma em nosso ordenamento. O Estado brasileiro reconhece a aplicação da OIT 169, tendo como sujeitos de direito os povos indígenas e quilombolas, este último sendo reconhecido como povos tribais, segundo jurisprudência nacional existente. Há também, em alguns casos de países semelhantes ao Brasil, com raízes afrodescendentes, reconhecimento jurisprudencial dessa etnia como povos tribais para a aplicação da Convenção. 3. RECONHECIMENTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CRIDH) SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS Como consolidado jurisprudencialmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o reconhecimento das comunidades tradicionais como povos tribais traz consigo a obrigação do Estado de oferecer direitos diferenciados para essas populações com o objetivo de garantir o acesso a uma cidadania plena de seus membros. Isso incluiria também o direito de consulta prévia para a tomada de decisão sobre medidas administrativas ou legislativas capazes de lhes afetar. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos têm manifestado em várias oportunidades que o reconhecimento da existência de povos culturalmente diferentes à maioria da população nacional obriga aos Estados a adotar medidas especiais para garantir o exercício pleno de seus direitos. Daí haver a conexão entre o mecanismo de efetivação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a Convenção 169 da OIT. Apesar de expresso na convenção 169 da OIT, a aplicabilidade desta para povos indígenas e tribais pode ser mais abrangente do que o exposto. Segundo o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, em seu artigo 3º, comunidades tradicionais são definidas com todos os elementos e critérios estabelecidos no artigo 1º da Convenção 169 da OIT: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição4. 4



Instituto Socioambiental. Disponível em: . Acessado em: 10 nov. 2015.

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4. A BACIA DO PINA E SEUS ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS Em plena zona urbana do Recife, encontra-se a Bacia do Pina, formada pela confluência dos rios Capibaribe, Tejipió, Jordão e Pina. Além de ser um cartão postal da cidade do Recife, agrega diversos empreendimentos privados de alto interesse e valor econômico, dos quais podemos destacar: o Cabanga Iate Clube do Recife e o Shopping RioMar. A bacia perfaz uma área total de 2,02 quilômetros quadrados, seu cenário oferece importante fluxo de atividade socioeconômica para a população de baixa renda circunvizinha, tendo em vista a atividade da pescaria.

Bacia do Pina – Localização: 8° 4’ 35.64” S 34° 52’ 38.90” W, Recife, Pernambuco, Brasil 1. Iate Clube; 2. Associação de Pescadores Artesanais de Brasília Teimosa, Pina; 3. Estaleiros de lanchas; 4. Antiga localização da comunidade da Bacardi, retirada para se construir alça da Via Mangue e Estação de tratamento de esgoto da Compesa; 5. Shopping RioMar; 6. Cais José Estelita; 7. Cabanga Iate Clube; 8. Área de mangue; 9. Comunidade da Ilha de Deus.

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As comunidades tradicionais litorâneas da região são constituídas por pescadores artesanais e marisqueiras, os quais mantêm contato direto com o ambiente natural e assim possuem um corpo de conhecimento acerca da classificação, história natural, comportamento, biologia e utilização dos recursos das regiões onde vivem (CLAUZETET, 2005). A Bacia do Pina possui um papel socioeconômico relevante para as comunidades tradicionais, funcionando como um verdadeiro celeiro de oportunidades para as populações ribeirinhas que sobrevivem da pesca artesanal e da coleta de mariscos. 5. O DIREITO À MORADIA DIGNA Os cinturões de miséria, formados na periferia da cidade do Recife, são resultados de um acelerado processo de urbanização e “favelização”, crescimento vertiginoso, perpetuando o caos socioeconômico em que essas populações se encontram. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Região Metropolitana do Recife concentra quase 97% das favelas do estado de Pernambuco. Esse problema, como objeto de estudo, é explicado pelo aspecto histórico da ocupação dessas áreas e acarreta uma ineficácia do Estado ao aplicar políticas públicas de saúde e vigilância sanitária para essas comunidades, ocasionando a ausência de qualidade de vida. [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2007, p. 62).

Em toda a periferia da Bacia do Pina, encontra-se um conjunto de comunidades vivendo em situações precárias, com direitos básicos excetuados, como o direito à moradia digna. Soma-se às precariedades que essas comunidades estão submetidas o contato próximo com o lixo urbano, resultado da atividade doméstica e comercial, e o constante alerta para que as águas dos rios confluentes à bacia não transbordem, como resultado de um constante “estrangulamento” dos rios, tendo como principais possíveis vítimas a população ribeirinha. A Prefeitura do Recife, através de programas sociais, como o “Meu Imóvel Legal”, tenta efetivar políticas públicas de habitação para os moradores da

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região da Bacia. O programa Meu Imóvel Legal tem o objetivo de promover a regularização fundiária jurídico-dominial de lotes destinados a políticas habitacionais do Governo de Pernambuco utilizados para fins de moradia. É objetivo da Prefeitura efetuar uma “limpeza estética” na região, realocando algumas famílias para blocos de conjuntos habitacionais e “escondendo” o problema de moradia local. Contudo, moradores relatam que a política de distribuição das famílias nesses novos conjuntos habitacionais foi realizada sem “bom senso”, pois, nesses novos conjuntos, o conflito de criminalidade devido a facções rivais do tráfico de drogas instaura um verdadeiro clima de pavor e insegurança para os moradores, evidenciado pelos diversos conflitos. O avanço das moradias circunvizinhas sobre o rio demonstra a falta de um trabalho de conscientização da população ribeirinha sobre os impactos desse tipo de construção. “A moradia é identificada como sendo uma das funções urbanísticas, ao lado da circulação, do trabalho e do lazer das pessoas” (SILVA, 1996). O “estrangulamento” dos rios aumenta o fator de risco de enchentes e alagamentos, além da extinção de formas de vida daquela área, com isso os impactos gerados não têm somente como alvo o meio ambiente, assim como também colocam em risco a população dos bairros próximos aos rios confluentes da Bacia, incluindo principalmente aquelas moradias irregulares. Contudo, a eficácia da normatividade das leis ambientais, ou até qualquer norma jurídica, só pode ser considerada justa quando os órgãos do Estado exercerem o seu papel de conscientizar essas populações quanto ao problema e suas implicações legais. Apesar da enorme quantidade de leis que o Brasil possui, sofre-se com índices alarmantes de atividades ilícitas como a criminalidade. Um dos motivos que fomentam a ilegitimidade de tantas leis, ou até mesmo ajudam a emperrar o sistema judiciário é a baixa qualidade na produção legislativa – leis que não estão de acordo com a realidade social vigente, ou até mesmo não se baseiam em princípios constitucionais. Entre 2000 e 2010, foram criadas 75.517 leis, em que 68.956 são estaduais e 6.561, federais. Esses números não levam em conta o quantitativo de leis municipais. O Brasil possui uma falha concepção sobre a correta profilaxia para os problemas da sociedade, aqui se pensa “Leis são remédios para todos os males”. Não seria diferente para o respeito às normas ambientais já existentes, tendo sua legitimidade um tênue fio entre a conscientização, que precisa ser levada para essa população ribeirinha, e o amparo estatal a essas famílias, economicamente desprovidas. Como Montesquieu afirmava: “Muitas leis, nenhuma lei”.

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6. RISCOS À SAÚDE PÚBLICA DA POPULAÇÃO RIBEIRINHA O lançamento de efluentes líquidos na Bacia do Pina é realizado a uma curta distância da área onde a população ribeirinha se encontra. Não há um programa de limpeza periódica realizado às margens dessa localidade, nem sequer um programa de preservação ao meio ambiente sendo aplicados naquele entorno. Os danos causados por esse tipo de lançamento prejudicam o ecossistema aquático local, fonte primordial de sustento econômico das populações ribeirinhas, além de ser um fator de risco para a transmissão de doenças, através de águas contaminadas, como a leptospirose. A contaminação do ecossistema local é agravada pelo consumo do oxigênio, como resultado do processo de decomposição do esgoto doméstico, causando a mortalidade dos peixes. A Lei nº 11.445, de janeiro de 2007, estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico. Segundo essa lei, a responsabilidade de gerir o saneamento é do município, cabe aos prefeitos a opção de contratação da empresa que será responsável pelo abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto. A empresa operadora desses serviços, na cidade do Recife, é a Compesa – Companhia Pernambucana de Saneamento. A Compesa é alvo de uma investigação da polícia federal que apura o despejo de esgoto em seis rios, duas praias de Fernando de Noronha e na Bacia do Pina. Segundo investigações, a prática já estaria acontecendo há pelo menos 12 anos. Há indícios também da utilização clandestina do sistema bypass, que deveria ser acionado somente em emergências, para fazer o esgoto bruto contornar o tratamento e ser lançado na frente do efluente. Toda essa operação é resultado de uma ação civil pública proposta pela Procuradoria Regional Federal da 5ª Região, em 2011. A Compesa admitiu não ser possível o tratamento adequado do esgoto em mais de 20 estações. Segundo pesquisa5 realizada pelo instituto Trata Brasil, 82% da população da cidade do Recife têm acesso à água tratada, contudo 35% apenas conta com rede de esgoto, ou seja, menos da metade da população. Outro problema que persiste na Bacia do Pina, em todo seu entorno, é o lixo doméstico. Como é facilmente verificado, o lixo se acumula às margens do rio, demonstrando uma clara, e evidente, falta de conscientização da população quanto aos riscos que esse lixo pode causar. A empresa responsável pela limpeza urbana na cidade do Recife é a Emlurb – Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana. O lixo doméstico acumulado às margens 5



Pesquisa elaborada, pelo instituto Trata Brasil, com base no SNIS – Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (2013). Disponível em: . Acessado em: 10 dez. 2015.

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da bacia descaracteriza uma paisagem de beleza e o seu valor para o turismo da região, além de ser um problema com graves repercussões ambientais para o ecossistema local. É necessário criar melhores mecanismos de educação ambiental para a população da região, em especial os pescadores, para que não se agrave a situação de degradação ambiental da região, com o acumulo de lixo doméstico. Há na Bacia do Pina uma beleza inestimável, um dos cartões postais da cidade do Recife. Não se pode ver tudo isso ser destruído pelas mãos humanas da irresponsabilidade e a falta de amparo do Estado, como agente precursor de políticas públicas de educação ambiental. 7. PROJETO VIA MANGUE A Via Mangue é uma execução da prefeitura do Recife com parceria da União, se trata de uma obra contemplada do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O investimento total nos trechos 1 ao 4 da Via Mangue-Centro/Zona Sul de Recife foi de R$433,2 milhões, sendo R$331 milhões financiados pelo governo federal, recursos oriundos do Orçamento Geral da União (OGU), financiamento junto ao Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e em contrapartida do município. O projeto da Via foi desenvolvido para dar mobilidade urbana aos moradores de regiões circunvizinhas, viabilizando uma melhor qualidade de vida para as pessoas que dependem do transporte particular para sua locomoção. Essa ampliação da malha de circulação de veículos foi uma tentativa para adequação da cidade do Recife para o megaevento da copa do mundo (2014). A estratégia da Prefeitura do Recife para sanar um grande problema presente hoje na cidade, o trânsito caótico, deixou de fora a circulação de ônibus urbanos nessa via expressa e passou por cima de aspectos humanos, como veremos adiante o problema enfrentado pela população ribeirinha. Hoje com parte da Via Mangue finalizada, funciona em ambos sentidos. Somam-se ao projeto vários erros, dentre eles, pode-se destacar o seguinte: o acesso para ciclistas se dá através, e apenas, no início e no fim da via. Outro problema, explicitado anteriormente, por não ser uma via metropolitana, restringe o acesso de ônibus urbanos. Técnicos resumem esses problemas a sete erros, problemas técnicos de engenharia de tráfego (PASSOS, 2013). Em Recife essa visão da cidade como mercadoria é gerada por grande número de atores políticos e empresariais, que tem por alvo estimular a geração de uma cidade funcionalmente integrada, através da instalação de novas infraestruturas, como a Via Mangue, que alimenta a especulação imobiliária e nos leva a uma reorganização do espaço com um desenvolvimento geográfico desigual (LEAL, 2006).

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Para a implantação do projeto Via Mangue, foram necessárias remoções de comunidades que estavam morando na área, onde hoje passa a via expressa, essas populações não possuíam serviços básicos, como a coleta de lixo adequada. O direito à moradia digna, do qual essas comunidades eram excetuadas, se tornou ausente, também, para os locais que essas famílias foram distribuídas. É fato, constatado em meio a entrevistas, que a população se sente beneficiada com o habitacional, que ganharam com a sua remoção da área de construção da via, porém contestam diversos outros fatores totalmente relevantes ao aspecto socioeconômico. A população ribeirinha se deparou com um conturbado processo de remoção e transferência, vale ressaltar, por exemplo, que a reunião que precedia o início das obras foi feita com um intuito meramente informativo, e não participativo, em que a prefeitura esclareceu que haveria a remoção e o sorteio de apartamentos em conjuntos habitacionais para essas famílias, sem um melhor diálogo com a população. O acordo firmado entre o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e a Prefeitura do Recife (PCR) mantém instruções do EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental) no que tange ao fato de que a vegetação suprimida seja compensada. Contudo, como bem descrimina Souza (2012), o termo de compromisso firmado pelo MPPE e PCR não efetua nenhuma observação acerca das pessoas que foram realocadas. O RIMA (2008) considera o remanejamento das comunidades um impacto negativo de alta magnitude e, como uma forma de compensar esse impacto, oferece condições mais dignas de moradia para essa população (ANDRADE; PEREIRA, 2014). A primeira característica (desta obra), e talvez a mais importante, é ganhar tempo. Ganhar tempo para quem? Para os trabalhadores, para as trabalhadoras, para as donas de casa, para as mães de família, para os pais de família, para os pequenos empresários, para os médios empresários, enfim, para todos os habitantes de uma cidade que preferem usar o transporte de massa ao invés de usar o transporte individual. (…) Eu acredito que a inauguração da Via Mangue é uma solução para o trânsito da zona sul, vai desengarrafar e vai também melhorar outras vias que eram congestionadas, destacou a presidenta. (Presidente Dilma Rousseff em discurso de inauguração da via expressa)

8. ANÁLISE DO IMPACTO SOCIOECONÔMICO DA VIA MANGUE SOBRE OS PESCADORES A Via Mangue do Recife passa por cima de uma imensa área de manguezal, de 6,55 hectares, considerado o maior mangue urbano do Brasil.

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Um fator muito importante que não deve ser deixado de lado é a presença de uma rica variedade de espécies de organismos, que estão presentes nesses ambientes estuarinos, vindo a ser a principal base socioeconômica, e, por assim dizer, sustento das populações ribeirinhas. São ainda, segundo Ricklefs (1996), ambientes altamente dinâmicos que sofrem mudanças constantes em decorrência das forças naturais, colocando-se entre os ecossistemas mais produtivos da terra. Os manguezais mais afetados são aqueles que se encontram nas áreas mais urbanizadas, pois dentre os trechos mais concorridos para o estabelecimento do homem em busca de sua sobrevivência, estão aqueles que margeiam os estuários (SILVA, 2002).

Ter-se-á, após a construção da Via Mangue, a inviabilização da navegação fluvial dos pescadores e a quebra da estrutura socioeconômica da população ribeirinha, que tinha, no manguezal, a sua forma de sustento econômico caracterizada, principalmente, pela atividade dos pescadores e marisqueiras. A remoção e a transferência dessa população ribeirinha para zonas distante de seu principal sustento econômico vêm selar, de fato, o que foi dito. Segundo relato dos próprios pescadores, essa mudança do local de habitação ocasionou um grave transtorno, pois, segundo eles, muitos não possuem dinheiro para se locomover de sua atual residência para o local onde ocorre a execução de suas atividades de subsistência econômica. 9. COMUNIDADE ILHA DE DEUS: EM MEIO À ESPECULAÇÃO A comunidade Ilha de Deus está localizada no bairro da Imbiribeira, Zona Sul da cidade do Recife, e possui 4,57 hectares de área de mangue e terra firme. A comunidade vive da pesca, extração do marisco e do cultivo de camarões. Este último vem a consolidar a ocupação da Ilha de Deus através do crescimento de viveiros no seu entorno, somente na Ilha existem cerca de 100 viveiros. Destacam-se como primordial que sejam elaborados, e fomentados, projetos, através dos agentes políticos, que visem ao equilíbrio entre o homem e os recursos naturais daquela região, visto que esses recursos são indispensáveis à sobrevivência das comunidades que ali se encontram. A criação de camarões em cativeiro é conhecida como carcinicultura, ramo específico da aquicultura (criação de organismos que têm na água o seu normal ou mais frequente meio de vida). Na Ilha de Deus, a criação de camarões na Zona de Especial de Interesse Social (Zeis) é alvo de intenso debate. A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Recife entende que a quantidade de viveiros não pode aumentar e debate uma solução para

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os já existentes. O fato é que muitas famílias dependem desses viveiros para a sua subsistência, e isso deve ser levado como questão primordial de qualquer debate no Conselho Municipal de Meio Ambiente (Conam). É bastante evidente que um dos principais conflitos em torno do ecossistema manguezal, em especial o da bacia do Pina, é o que gravita em torno do uso e ocupação do solo, existe claro contraste entre as atividades exercidas neste local e a legislação de proteção do mesmo (SOUZA, 2012).

Segundo Souza, o mangue urbano, localizado na cidade do Recife, vem sofrendo com aterramentos, especulação pelo mercado imobiliário, e com a construção de sistema viário em sua área. É mister a realização dos debates entorno das consequências que os viveiros ocasionam ao ecossistema local, e suas possíveis soluções para a seguridade da subsistência familiar da comunidade local. Contudo, em meio a esse ambiente estuarino, são erguidas obras de alto poder econômico, servindo como principais sujeitos fomentadores da especulação local, que em nada favorecem os menos economicamente favorecidos da região. 10. O ACESSO À CIDADE: CAIS ESTELITA – AUSÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROJETO DE URBANIZAÇÃO O Cais José Estelita é banhado pela Bacia do Pina e está localizado na ilha de Antônio de Vaz. Esta ilha possui um forte aspecto histórico, passando a ser uma região estratégica para os holandeses com a construção do forte na ponta sul, hoje conhecido como forte das cinco pontas. Com a chegada do Conde Maurício de Nassau a Pernambuco, ali foi instituída a Cidade Maurícia ou, em holandês, Mauritsstad. Em 2012, veio a público o projeto imobiliário denominado de “Projeto Novo Recife”, que desde então é alvo de muita polêmica. O consórcio Novo Recife é formado pelas empresas Ara Empreendimentos, GL Empreendimentos, Moura Dubeux Engenharia e Queiroz Galvão, que juntas adquiriram em 2008, através de leilão público, parte da área do Cais que pertencia à Rede Ferroviária Federal. O Projeto Novo Recife é alvo de intensos debates e manifestações por parte de grupos ativistas recifenses. Foi promovido em 2012, ano em que

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o projeto vem a público, a primeira edição do Ocupe Estelita, movimento inspirado pelo “Occupy Wall Street”6. A proposta do projeto Novo Recife prevê a construção de 12 torres, entre residenciais e comerciais, na área do Cais José Estelita, considerada um dos cartões postais da cidade do Recife. Essa construção possui um impacto muito significativo ao aspecto histórico da cidade do Recife, em especial aos bairros circunvizinhos a sua instalação. A mudança do perfil histórico da cidade do Recife já assustava o célebre poeta recifense, Joaquim Cardozo, que em seu poema “Recife Morto” descrevia o seu temor pelo avanço do modernismo às custas de uma ruptura na secularidade de um patrimônio histórico: [...] Duendes! Manhã vindoura. No ar, prenúncio de sinos. Recife ao clamor desta hora noturna e mágica, vejo-te morto, mutilado, grande, pregado à cruz das novas avenidas e as mãos longas e verdes da madrugada te acariciam. (Joaquim Cardozo, 1924)

Essa corrida pelo moderno não se encerra no século da morte do grande poeta (século XX), e, sim, cresce vertiginosamente no decorrer desse para o século posterior. Como se pode ver, a cidade do Recife cede espaço ao progresso à custa de uma segregação dos espaços públicos. As chamadas “torres gêmeas” do Recife, como são conhecidas as duas torres da Moura Dubeux, que estão localizadas no Cais de Santa Rita, no centro do Recife, geram uma verdadeira ruptura na característica urbana dos bairros circunvizinhos, característica moldada por longos séculos de história recifense. Em 2014, apesar de toda mobilização realizada pelos integrantes do movimento Ocupe Estelita, deu-se início à operação de demolição dos armazéns, que foi interrompida diante da ocupação de ativistas no local. 6



Wall Street (Ocupe Wall Street), OWS, é um movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das empresas – sobretudo do setor financeiro – no governo dos Estados Unidos.

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No ano de 2015, a polícia federal deflagrou uma operação, intitulada de Lance Final, cumprindo mandados de busca e apreensão na sede do consórcio Novo Recife. A polícia investiga a suspeita de haver um subfaturamento de quase R$10 milhões de reais na compra do terreno. O Recife, então, assiste à deturpação do direito à cidade em meio a repartições de seus espaços feitas pelas construtoras e imobiliárias, essas sempre aprovadas pela gestão municipal sem a devida participação popular. A Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada de “Estatuto da Cidade”, regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal brasileira e estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Seu art. 2º, inciso II, assim o diz: gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. A gentrificação é um fenômeno que, demasiadamente, afeta a cidade do Recife, tomando lugar a especulação imobiliária. O controle de uma grande quantidade de terrenos é feito por uma pequena parcela de construtoras, que possuem como objetivo construir espaços voltados para a sociedade elitizada, detentora de alto poder econômico, quem de fato usufrui desses resultados. Assim é o projeto Novo Recife. CONCLUSÃO Isso posto, constata-se acontecer na região de estudo a constante violação de direitos humanos, face à promessa do desenvolvimento social e econômico. A violação persiste, e o desenvolvimento se caracteriza como um objeto onde os sujeitos de acesso são selecionados por sua condição econômica, caracterizando o fomento da segregação dos participantes no desenvolvimento, e a materialização da gentrificação local. As violações constatadas são reflexos da falta de direitos básicos, como direito à moradia digna e direito à cidade. Essas violações puderam ser compreendidas como ininterruptas, visto o acompanhamento feito pela clínica de direitos humanos desde o ano de 2012. A Clínica de Direitos Humanos constatou a falta de conscientização da população quanto aos riscos causados pelo avanço das moradias sobre o rio, e o acumulo de lixo doméstico nas margens da Bacia do Pina. Esses problemas configuram a ausência do Estado nessa região, quando a questão se trata de educação ambiental, e limpeza periódica da margem dos rios, por exemplo. Contudo, é possível destacar a presença do processo de gentrificação na região, onde obras, sejam públicas, como a Via Mangue, ou privadas, como

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o Shopping Rio Mar e o projeto Novo Recife, desobedecem às regras do desenvolvimento social igualitário e atropelam os direitos das comunidades tradicionais daquela região. No estudo de 2015, pode-se notar a falta de diálogo do poder público com as comunidades para a remoção e transferência destas para o andamento das obras público-privadas. Que sejam tomadas medidas para intervenção junto às autoridades brasileiras, para que estas possam rever suas políticas públicas de direitos humanos e inclusão social. Em especial, destaca-se a falta de participação popular nos programas de revitalização urbana da cidade do Recife, como foi destacado neste trabalho, o projeto Novo Recife, e remoção das populações ribeirinhas da Bacia do Pina para projetos de grande impacto econômico. Solicitou-se à Relatoria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos a realização de visitas in loco, na região da Bacia do Pina, para que as irregularidades destacadas neste trabalho pudessem ser reavaliadas e as pessoas locais contactadas. É de suma importância que os órgãos de direitos humanos estejam presentes nessas comunidades, que hodiernamente veem seus direitos limitados face ao desenvolvimento urbano que possui como sujeito-alvo de pequenas frações de pessoas da sociedade. Por fim, sugere-se que seja projetada uma estratégia de ouvidoria efetiva da população de pescadores e marisqueiras sobre o uso e preservação da Bacia do Pina com proteção do meio ambiente, do mangue, da vida marinha e terrestre, com acesso à cidade, com urbanização, com prioridade para o transporte coletivo e com a preservação da arquitetura histórica e cultural. REFERÊNCIAS ANDRADE, L. R.; PEREIRA, M. C. B. Análise das transformações socioambientais geradas no espaço pela via mangue Recife, PE. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. BRASIL. Convenção 169 da OIT no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015. CLAUZET, M.; RAMIRES, M.; BARRELLA, W. Pesca artesanal e conhecimento local de duas populações caiçaras (Enseada do Mar Virado e Barra do Una) no litoral de São Paulo, Brasil. Disponível em: www.multiciencia.unicamp.br. Acesso em: 15 set. 2015. LEAL, S. M. R. Empresarialismo Competitivo e Produção Imobiliária no Processo de Organização do Espaço Metropolitano do Recife. X colóquio Internacional Sobre Poder Local – Desenvolvimento e Gestão Social de Territórios, 2006. MARTINS, A. M.; CASTILHO, C. J. M.; SILVA, H. P. O Processo de Adensamento Populacional em Áreas de Manguezais: o caso específico da Ilha de Deus, Recife – PE, numa perspectiva de análise que tenta ultrapassar o nível quantitativo. Disponível em: . Acesso em: 05 dez. 2015.

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MOTA, R. Grande Recife concentra 97% das favelas de Pernambuco. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2015. PASSOS, T. Os sete erros da via mangue. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2015. PERNAMBUCO. Meu imóvel legal. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015. RECIFE. RIMA – Relatório de Impacto ao Meio Ambiente da Via Mangue, 2008. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2015. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. Saneamento ainda é precário em Recife. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. SILVA, A. P. Dinâmica temporal das larvas Brachyura no canal de Santa Cruz, Pernambuco (Brasil), ao longo de um ciclo lunar. Dissertação (Mestrado em Oceanografia Biológica), Universidade Federal de Pernambuco, 2002, 97p. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 748. SOUZA, C. P. Políticas públicas ambientais e gestão do ecossistema manguezal da bacia do pina – Recife/PE: Análise do licenciamento ambiental do Sistema Viário Via Mangue. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015. TEIXEIRA, M. A Ilha de Deus, dos camarões, dos mariscos, dos homens e das mulheres. Disponível em: . Acesso em: 04 dez. 2015. TERRA AMBIENTAL. Conheça os danos causados pelos efluentes não tratados. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2015.

Capítulo 8 O Ouvir como uma Prática de Direitos Humanos: Reflexões Sobre as Atividades da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama Janaína Dantas Germano Gomes1

O olho da rua vê o que não vê o seu. Você, vendo os outros, pensa que sou eu? Ou tudo que teu olho vê você pensa que é você? Paulo Leminski, Toda Poesia.

RESUMO: Este breve trabalho se propõe a reconstituir, de maneira bastante breve, uma das frentes de atuação da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, Projeto de Extensão da Faculdade de Direito da USP. A atividade de ouvidoria comunitária da população em situação de rua da cidade de São Paulo, realizada desde 2009 em diferentes formatos, atualmente coloca-se como um espaço de contato entre realidades distintas, a de estudantes de direito e pessoas em situação de rua. Defende-se que este espaço oportuniza a troca, o diálogo e a obtenção de informações e denúncias de violações a direitos, que orientam os trabalhos do grupo, como as atividades de campo, pesquisas e análises de políticas públicas na cidade de São Paulo. O modo de ouvir e agir, o modo com que se acolhe a voz das pessoas que em geral são colocadas em invisibilidade ou em silêncio em nossa sociedade, é como se encaminha a reflexão final deste texto, sempre em diálogo com textos da antropologia e das ciências sociais, que informam a formação das alunas e alunos da Clínica Luiz Gama. PALAVRAS CHAVE: Direitos Humanos – extensão universitária – escuta em direitos humanos – antropologia. ABSTRACT: This paper aims to approach some of the activities and production of a Human Rights Legal Clinic, named Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (CDHLG). In course in the University of São Paulo faculty of Law, CDHLG works, since 2009, with homeless people that live in São Paulo Downtown, near to the university. The work propose that students exchange information, experiences, complaints about human rights violations, and this content leads the groups interests toward justice, legal aids and public policies in the city. The way we propose that the students listen to the cases, how to receive these people and their complaint, trying to give them some visibility and voice in our excludent society, always in dialogue with Anthropology and other social sciences, is how we accomplish our journey on this brief text. KEY WORDS: human rights – legal clinics – to listen in human rights – anthropology. 1



Mestranda em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Coordenadora pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama – FD USP. 

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INTRODUÇÃO A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, também chamada de “Faculdade do Largo São Francisco”, se encontra em um local privilegiado do centro da cidade de São Paulo. Enorme prédio com destaque na paisagem urbana, disputa espaço em uma região que abriga muito do poder político e jurídico da cidade, como a Prefeitura Municipal, a Catedral da Sé, o Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Estado. Em seus corredores, ou em suas arcadas, como se referem os que frequentam a Faculdade, circulam professores e acadêmicos conhecidos, figuras atuais, passadas e futuras do poder político local e nacional. Os alunos ingressantes são, desde a primeira semana do curso, iniciados nas “Tradições Franciscanas”, em que aulas, músicas e atividades socializam os calouros na história da faculdade, seus grandes nomes, trajetórias e importância da instituição a qual passam a frequentar, sob o portentoso nome de “Franciscanos”. Os alunos, em sua maioria, são oriundos de famílias privilegiadas e, muitas vezes, apenas nesse momento de suas vidas passam a conhecer e frequentar o centro da cidade. A visão do entorno da Faculdade de Direito contrasta com seu interior. As ruas do centro impactam os alunos, que apenas agora começam a ser atingidos pelas desigualdades da metrópole. Vendedores ambulantes, pombas, lixo, carros, ônibus, guardas municipais metropolitanos, bicicletas em um fluxo contínuo disputam espaço físico e sonoro a que têm acesso os alunos que percorrem a pé o trajeto entre o metrô, o ponto de ônibus e a Faculdade, os quais podem ser facilmente reconhecidos por seus códigos de leis em punho, moletons e mochilas escrito “Direito USP” ou algo semelhante. Nesse cenário, chama a atenção ainda a existência de um grande número de pessoas, em sua maioria homens, mas também travestis, mulheres e crianças, que se encontram vivendo nas ruas. Sentadas, deitadas, muitas vezes alcoolizadas, falando sozinhas, pedindo dinheiro ou apenas conversando com os transeuntes, essas pessoas e suas corporalidades impactam os alunos que passam a dar-se conta de sua existência e, em especial, do desnível entre sua condição e a delas. Quem são essas pessoas? O que as leva a essa condição? Estas inquietações, as observações e contrastes que narro nesta introdução, são descrições dos argumentos apresentados pelos alunos e alunas da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, Projeto de Extensão da referida Faculdade de Direito na entrevista para seleção de seus integrantes, realizada semestralmente. Os alunos e alunas inscrevem-se na Clínica, segundo eles próprios, no intuito de dar sentido a uma experiência

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acadêmica que destoa da realidade social que observam de maneira geral em nosso país, e que, em particular, passam a vivenciar em ritmo diário ao frequentar as “arcadas”. O Projeto de Extensão da Clínica de Direitos Humanos atrai, assim, um tipo particular de alunos da Faculdade de Direito2 para a realização de atividades voltadas especificamente para a população em situação de rua do centro de São Paulo, dentre as quais, com maior destaque, a realização de uma ouvidoria comunitária da população em situação de rua. E é sobre essa atividade e as potencialidades reflexivas que tem apresentado ao nosso grupo que pretendo debruçar-me nas seguintes linhas. Diante da pouca expressividade que o ensino clínico possui em nosso meio jurídico e, ainda, diante da especificidade do tema de trabalho do grupo, qual seja, a população em situação de rua, antes de tratar acerca das atividades da Clínica em específico, descrevo brevemente em que consiste o método clínico de ensino do direito e essa população sobre a qual reflete a Clínica Luiz Gama. Por fim, busco perquirir sobre o ato de ouvir essa população como uma atividade voltada à proteção de Direitos Humanos, concluindo este breve capítulo. 1. A METODOLOGIA CLÍNICA NO ENSINO DO DIREITO A metodologia clínica é, em síntese, uma alternativa para a formação do advogado e advogada, questionando a metodologia tradicional dos cursos do direito que frisa a capacidade do aluno de memorizar leis e códigos, repetir doutrinas e jurisprudências, em detrimento de um raciocínio crítico. No Brasil, a prática das Clínicas Jurídicas tem início apenas no século XXI, como explica Brandão Lapa (2014), apesar de sua grande difusão em países da Europa e nos Estados Unidos desde o século XIX. Nas palavras de Villarea e Courtis (2007, p. 17): La enseñanza clínica intenta desarrollar en los alumnos habilidades y destrezas argumentativas y analíticas de entrevista al cliente, asesoría, interrogatorios, estrategias de litigio, etc. Es un modelo transformador de la enseñanza tradicional del derecho que busca crear estudiantes con capacidades analíticas, críticas e innovadoras mediante el uso de casos reales en la clase. Son dos los objetivos principales: educar al estudiante al mostrarle cómo puede utilizar algunas herramientas adecuadas para su desarrollo profesional y otorgar servicios legales a personas de recursos materiales escasos, contribuyendo con ello al desarrollo del Estado democrático de derecho. 2



Em especial, nosso grupo tem atraído significativamente mais alunas que alunos, o que nos tem provocado constantes reflexões sobre o papel feminino na realização dos direitos humanos, e de reprodução de lógicas de cuidado e assistencialismo nesse meio.

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No entanto, a despeito das diversas críticas ao ensino do direito, que podem ser amplamente encontradas em bibliografia nacional e internacional, nada indica, a priori, que o desenvolvimento dessas habilidades e metodologias propostas pelo ensino clínico pode ou deve dialogar com o ensino dos direitos humanos. A proposta clínica, a princípio, parece querer propor no máximo uma advocacia pro bono, gratuita, aos cidadãos com menos recursos como forma de treino a seus estudantes, cujas capacidades devem desenvolver. No entanto, a metodologia clínica foi absorvida pelos defensores dos direitos humanos como forma de desenvolver a crítica e capacidades necessárias para uma educação jurídica em direitos humanos. As clínicas jurídicas, assim, não são necessariamente comprometidas com causas sociais. No entanto, os acadêmicos que se interessaram por essa empreitada, que tem como fundamento o desenvolvimento de uma metodologia intensamente participativa, foram justamente aqueles que militavam nas áreas de interesse público e social, nas palavras de Villareal e Courtis (2007, p. 17): De lo dicho hasta ahora no se desprende ninguna inclinación de la educación clínica sobre áreas temáticas particulares: en principio, cualquier rama del derecho podría constituir la materia de la enseñanza clínica. Sin embargo, la historia de la enseñanza clínica se ha caracterizado – como apunta Ana Matanzos en su artículo – por una estrecha vinculación entre la renovación pedagógica y el intento por renovar o hacer más visibles áreas del derecho tradicionalmente relegadas por la educación jurídica tradicional. Más específicamente, la educación clínica ha tenido una fuerte afinidad con una agenda temática de cariz progresista, que incluye, por ejemplo, el acceso a la justicia de los sectores menos favorecidos, los derechos de grupos sociales que sufren discriminación – tales como las mujeres, las personas con discapacidad, los niños, las minorías étnicas, lingüísticas y sexuales, las personas privadas de libertad, los refugiados, los extranjeros indocumentados, entre otros –, los derechos humanos y las libertades públicas, los derechos sociales, el derecho ambiental, el derecho del consumidor, y un largo paréntesis que en ocasiones se sintetiza bajo la denominación “derecho de interés público”.

A definição exata dos contornos de uma Clínica Jurídica e, mais especificamente, de uma Clínica de Direitos Humanos inexiste. A novidade do estudo do tema, especialmente no Brasil, fez com que a autora Brandão Lapa (2014, p. 107) definisse em seu doutorado alguns critérios para que se diferenciasse essa atividade clínica em direitos humanos de outras clínicas ou modalidades de ativismo em direitos humanos. Segundo a autora os pressupostos metodológicos de uma Clínica em Direitos Humanos são: a) compromisso com a justiça social; b) metodologia participativa; c) articulação da teoria com a prática dos direitos humanos; d) integração de atividades de ensino, pesquisa e extensão; e)

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enfoque interdisciplinar; f) institucionalização formal e reconhecimento na Universidade; e g) público-alvo universitário. Após definir esses pressupostos com base no mapeamento e estudo das Clínicas de Direitos Humanos no Brasil, Canadá e Estados Unidos, a autora aduz serem no Brasil aproximadamente quinze Clínicas em Direitos Humanos, entre as quais, a Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, da Universidade de São Paulo. No entanto, a Clínica de Direitos Humanos da USP goza de uma especificidade salientada pela autora (p. 108) de que sua criação foi de total iniciativa dos alunos, e seus recursos são oriundos do Centro Acadêmico XI de Agosto, ao contrário das iniciativas institucionais das outras Clínicas de Direitos Humanos brasileiras. 2. SURGIMENTO DA CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS LUIZ GAMA A Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama surge, em breves linhas, no ano de 2009 a partir de iniciativa dos próprios alunos. Sua existência é garantida com recursos dos próprios alunos, por meio do Centro Acadêmico XI de Agosto, contratando dois coordenadores pedagógicos para a execução formal dos trabalhos, sob a orientação de um professor vinculado à Faculdade de Direito, garantindo, assim, que os alunos recebam créditos pela participação na atividade, que conta com dedicação de três tardes semanais3. O surgimento da Clínica em 2009 refletia justamente as mesmas angústias descritas pelos novos alunos do ano de 2014 e 2015. A realidade social que envolvia a faculdade e a política de limpeza urbana que se instaurava naquele momento político promoveu a abrupta retirada da população em situação de rua que vivia sob a marquise do prédio. O medo de ingressar na faculdade, a ideia de que aquelas pessoas eram perigosas e abordavam constantemente os alunos, incômodo para a comunidade, constrastava com o sentimento e a reflexão acerca daquelas pessoas, dotadas de subjetividades, histórias, e, em termos jurídicos, direitos, cidadania, dignidade. Assim, após estudo, no ano de 2009, por parte dos alunos que à época constituíam o grupo, das concepções acerca das Clínicas Jurídicas e de Direitos Humanos, optou-se por escolher uma temática de trabalho única, a população em situação de rua, e, mais especificamente, da população que vivia nos entornos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Iniciada a consolidação da Clínica e sua associação com atores do movimento social da população em situação de rua naquela época, que 3



Desde julho do ano de 2014, passei a coordenar a Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, juntamente com Alcyr Barbin Neto, que exerce a função desde janeiro de 2014, sob a orientação do Professor Doutor Calixto Salomão Filho.

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é extremamente dinâmico como nos aponta De Lucca (2007), propôs-se uma ouvidoria comunitária, com o objetivo inicial de identificar e sistematizar as demandas dessa população e as violações aos direitos humanos constantemente sofridas. Essa atividade prática, que a princípio seria transitória, passou a ser realizada no Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS)4, uma entidade sem fins lucrativos que possui um serviço de assistência à população em situação de rua, denominado “Chá do Padre”, permitindo que essa atividade se transformasse e se reinventasse ao longo desses anos. Se por um lado a atividade da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama demanda que o aluno de direito identifique violações a Direitos Humanos nas narrativas, por outro lado o cerne da atividade transformou-se gradativamente na busca pelo aprendizado com a vivência dessa população, a troca de experiências e, em suma, a escuta das pessoas interessadas em conversar com os alunos e alunas da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama. Com o aprofundamento e desenvolvimento dessas atividades, passou-se a utilizar as informações coletadas para direcionar outras pesquisas de campo, análises de políticas públicas, produção de subsídios para a judicialização por instituições parceiras como a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e até mesmo propostas de políticas públicas para gestores municipais5. 2.1. O espaço das ouvidorias O Chá do Padre é um grande salão, localizado em prédio justamente atrás da Faculdade de Direito, em que são atendidas entre 200 e 400 pessoas diariamente, oferecendo-se chá, pão e algum tipo de atividade como cinema, instrução religiosa ou roda de conversa. Às quartas-feiras, dias em que a Clínica de Direitos Humanos vai ao local, há uma rádio comunitária. Músicas são colocadas em uma lista de uma semana para a outra pelos frequentadores, tocadas em sequência por um colaborador do espaço, também em situação de rua, ou que esteve em situação de rua, entre a leitura de pequenos textos, previsão do tempo e horóscopo. O forte odor de chá e álcool que exala desse espaço compõe esse ambiente altamente heterogêneo, em que há a presença de mulheres, crianças e, em sua maioria, homens. A reza do pai-nosso antes do início da distribuição dos pães é um dos poucos momentos em que a atenção geral é voltada para algo em comum. Muitas pessoas cochilam nas mesas, ficam apenas 4 5



Mais informações em: . Acesso em: 19 de maio de 2015. Alguns desses trabalhos podem ser consultados em: . Último acesso em: 14 de outubro de 2016.

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em silêncio aguardando o chá e o pão, outras estão em grupos e conversam entre si. O impacto da música no ambiente é forte, havendo forte adesão ao hip hop, rap e ao gospel. É comum observar lágrimas e comoção em músicas românticas ou religiosas. Funcionários também podem escolher as músicas, “essa me lembra minha família”, me disse certa vez o Sr. Pedro, responsável por distribuir os copos plásticos para o chá e acolher os usuários no espaço pela porta principal, ao ouvir a música Dia de Domingo, que ele mesmo havia pedido na semana anterior. A impressão inicial do espaço é, assim, a amigável figura do Sr. Pedro e uma grande imagem de São Francisco de Assis com os dizeres “Paz e bem”. Entre Racionais MC, sertanejo e música gospel, as alunas e alunos se apresentam diante dos usuários do serviço ali presentes: “Viemos conversar sobre o que vocês quiserem”, “sabemos que a vida na rua não está fácil, a gente queria saber de vocês o que está acontecendo”, essas são frases que surgem espontaneamente dos integrantes da Clínica ao microfone, que, vencendo a vergonha, muitas vezes são criativos ao apresentar o “grupo de alunos da faculdade”, buscando não indexar a proposta de ouvidoria a algum tipo de atendimento jurídico. Importa que se saliente, nesse momento, a diferenciação da ouvidoria com o atendimento jurídico oferecido pela defensoria pública nesse mesmo espaço pelas manhãs. Ainda que ambos sejam feitos por alunos do curso de direito, o atendimento oferecido pela defensoria pública rotula as demandas em “jurídicas ou não jurídicas”. No caso da ouvidoria, os alunos não rotularão os atendimentos e nem, necessariamente, encaminharão as demandas à ouvidoria. Trata-se de estar disposto para a escuta de pessoas que muitas vezes passam dias sem conversar, e cuja oportunidade de fala, de respeito e escuta pode, nessa perspectiva, ser essencial para elaborar suas próprias histórias de vida. 2.2. A Ouvidoria Eu vim contar por que eu estou na rua. Você sabe que quando você não aprende como lidar com o casamento você coloca os carros nas frentes dos bois e foi isso que aconteceu comigo. Me casei, tive três filhos, não soube administrar o casamento, os filhos e isso acabou me jogando na rua. Perdi a mulher, os filhos. Não vou culpar ela. [...] Sou formado em química, teologia, tenho experiências na vida. Joguei tudo para o ar, hoje eu vivo por aí andando na rua. Dependo das comunidades pra viver. Preciso colocar a cabeça em ordem. Vocês vão ver que eu vou falando e parece que as coisas embaraçam, preciso colocar minha cabeça em ordem. Eu não sei como dizer se sou morador de rua. Eu não sou morador de rua, não sei como classificar. Eu não durmo no chão da rua. Eu durmo no albergue. A minha primeira separação eu sei que eu não soube administrar mesmo, o erro foi meu. Dessa vez.. Dessa vez eu não sei.... Dessa vez eu não soube administrar também. Se eu fosse bonitão que nem você talvez ela não tivesse me trocado. [...]

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Conheci um pessoal que dava comida na Sé, falei da minha situação pra eles, falei que eu precisava sair deste lugar (a rua) ou eu ia ficar louco. Já aconteceu de eu ficar três dias sem tomar banho. Tem comunidades que dão banho mas a cabeça não te leva lá. [...] Mas é isso gente, acredito que se alguém tá sujo na rua é porque a depressão pegou. Fica lembrando do passado, da família, do trabalho, das coisas que tinha. Se você pega alguém que tá na rua sujo, há um ano sem tomar banho, você senta com eles pra conversar e descobre que eles foram empresários. Às vezes você conversa com aquele cara sujo, fedendo, você conversa e descobre que eles foram pessoas com bens e trabalhos, mas escondem algo por vergonha. Eu conheci um rapaz que perdeu a família, a esposa, por que a neta ficava dando em cima dele, acho que a neta tinha 04 anos, a neta ficava dando em cima dele, aliciando ele e ele quase estuprou ela. Ai ele perdeu os bens, a mansão, tudo. Mas não dá pra saber se ele praticou o ato ou não. Nunca você consegue captar a verdade do morador de rua. Ele sempre vai esconder, porque às vezes ele esta na rua por que o que ele fez foi muito errado. Tem muito estuprador de filha. Muita gente tá na rua pelos erros que ele cometeu. A gente colhe o que a gente planta. [...] Vocês sabiam que a prefeitura tem um serviço de maleiro? É lá que estão todas as minhas coisas. meu diploma, meus papeis do divórcio. Tá tudo lá guardadinho. Olha aqui o papel que eles me deram.6

O atendimento não tem formato padrão. Em uma pequena sala anexa ao espaço em que é servido o chá, algumas pessoas dispõem-se a sentar e conversar um pouco sobre sua trajetória. Nessa sala, em geral gravam-se os atendimentos, tomam-se notas e, diante de denúncias em que possa haver alguma atuação da Clínica, buscamos centrar esforços em uma coleta sistematizada. No entanto, as violações em geral estão à margem da atuação jurídica. Guardas Civis e Policiais são acusados de espancar e maltratar indivíduos nas madrugadas do centro, seus nomes nunca são recuperados, e, quando conhecidos, os denunciantes afirmam terem sido jurados de morte. Ainda, a violência entre os usuários dos serviços, os furtos e roubos vivenciados na rua e praticados por outras pessoas em condição semelhante são descritos: “A vida na rua não é fácil”, “nunca achei que iria passar por isso”, “comprei um tênis novo e quando acordei estava sem ele”7. O “Rapa”, como é popularmente chamado o serviço municipal de limpeza urbana que retira os pertences dos indivíduos, é descrito como truculento, e de atuação cotidiana, muitas vezes surpreendendo os alunos e os conceitos jurídicos a que foram apresentados. Não há direito à integridade física ou moral na condição de rua, não há direito à propriedade. Não há direito de acesso à justiça. Não há plenitude no direito de ir e vir pelas ruas da metrópole. Como denunciar um réu desconhecido, como impelir a 6



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Depoimento de A. de Jesus, 13 de agosto de 2014, depoimento obtido pela autora durante a atividade da Clínica Luiz Gama. Relato de R.M. obtido em 19 de novembro de 2014, no Chá do Padre, pela autora e alunos e alunas da Clínica Luiz Gama.

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prefeitura a respeitar os direitos desses indivíduos? Atendimento após atendimento, a impotência do direito tradicional é escancarada. O que é ou não verdade nos relatos nunca é questionado pelos alunos. No entanto, o jogo de comprovação de suas verdades, pelos ouvidos, consiste muitas vezes em apresentar documentos durante as ouvidorias. Documentos comprobatórios de toda ordem, documentos pessoais, cartões de visita, bilhetes de ônibus, comprovantes de ingresso em serviços de assistência compõem o “rol de provas” de seus “testemunhos”. Ainda que sejam informados de que nada precisam comprovar nos atendimentos, mesmo que se tratem de denúncias, a presença desses documentos sinaliza, em nosso entender, o reconhecimento de possuírem uma fala a que não se atribui valor ou confiabilidade. Nesses atendimentos, que também podem acontecer na forma de uma conversa informal no salão, os indivíduos compartilham suas histórias, muitas vezes o motivo que os levou às ruas, suas próprias hipóteses sobre essa vivência. Elogios e críticas aos serviços são feitos, recomendações sobre onde deveríamos visitar, o que poderíamos fazer. O trabalho de ouvidoria é, também, confrontado: “Esse pessoal fica ganhando bolsa com os nóias”, “mas vocês não trouxeram nada? Não podem fazer nada?”, “Eu sou macaca velha, eu sei o que vocês querem”. Outras vezes somos recebidos e acolhidos pelas pessoas que frequentam o espaço. Histórias engraçadas, performances, gozações com o sistema: “Eu não sabia onde estava meu RG, então meti o louco e fui fazer um BO de perda lá na delegacia. Eu precisava viajar e não queria tirar outro né”, “O pessoal da polícia me pegou, mas eu dei meu nome falso. Comprei minha certidão de nascimento ali na praça”8. Após cada um dos dias de ouvidoria, o grupo de alunos e alunas é convidado a escrever um relato das conversas que realizou, das impressões do dia. No encontro seguinte, tentamos debater tais narrativas. O desafio dessa prática para alunos do curso de direito é, talvez, que esses relatos, ainda que ricos de uma perspectiva mais ampla da experiência da rua, não são estratégicos para tais alunos, que desejam informações de um determinado tipo, que se prestem para fins judiciais. O que parece ser uma das potencialidades dessa prática da ouvidoria, assim, é a possibilidade de reconstituir o universo da rua a partir dos relatos complexos de seus moradores, desafiando alunas e alunos a dialogar com a realidade a eles apresentadas, para além da existência ou não de fatos “juridicamente relevantes” nos relatos. Qual a potência de uma atuação formalmente jurídica em casos 8



Relato de R.M. obtido em 19 de novembro de 2014, no Chá do Padre, pela autora e alunos e alunas da Clínica Luiz Gama.

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como esses? O Direito possui instrumentos que sejam capazes de amparar a essas pessoas? O Direito as escuta? 3. ESCUTAR, REFLETIR. AGIR? Considerando que este texto integra uma coletânea sobre experiências em Clínica de Direitos Humanos, opto por não aprofundar a reflexão acerca da condição das pessoas em situação de rua no centro de São Paulo9, mas, sim, refletir sobre um elemento comum de nossos grupos: o potencial da construção de um espaço de escuta horizontal no ínterim de uma Clínica de Direitos Humanos. Por meio da experiência obtida na coordenação pedagógica de nosso grupo, tendo contato com Clínicas de Direitos Humanos com os mais diversos modelos de atuação, quer seja compartilhando experiências em grupos de trabalho ou seminários10, observo que o contato com os sujeitos que sofrem violações a direitos humanos é central, e deve receber esforços reflexivos constantes para sua problematização. Para além do tema de trabalho, pretendo lançar luz para a forma de atuação que me parece primordial em uma clínica de direitos humanos: escutar e refletir. Pedro Paulo Gomes Pereira, em texto intitulado “Antropologia e Direitos Humanos: Entre o Silêncio e a voz”11, traz excertos de sua etnografia em um espaço de convívio de pessoas portadoras do vírus HIV nos anos 1990. Por meio de uma descrição etnográfica poderosa, o autor menciona questões-chave aplicáveis a diversos grupos em situação de vulnerabilidade, e a diversas posturas de escuta. Destaco uma das definições possíveis do silêncio trazidas pelo autor: “Outra maneira de compreender o silêncio repousa em verificar como parcelas da sociedade pode ser silenciada, como pode ser gerido o silêncio por meio do exílio, do aprisionamento, da exclusão, do isolamento” (PEREIRA, 2004, p. 2). A produção do silêncio, segundo o autor, está intimamente ligada com a produção de uma condição, noção, de que os silenciados são abjetos, indignos, por assim dizer. O autor busca, assim, compreender a criação de uma instituição que, no caso por ele descrito, concentrava e invisibilizava pessoas portadoras do vírus HIV e, no limite, violava seus direitos. No espaço que as ceifava de qualquer possibilidade de autonomia, tratava-se de esperar morrer. 9



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No entanto, recomenda-se fortemente a leitura de algumas de bibliografias básicas para os trabalhos e reflexões da Luiz Gama, como Frangella (2004), De Lucca (2007) e Rui (2012) como alguns exemplos. Aproveito para agradecer a oportunidade dada à mim e à nossa Clínica de Direitos Humanos de divulgar e debater nossos trabalhos, como coordenadora de grupos de trabalho em eventos da Associação Nacional de Pesquisa e Pósgraduação em Direitos Humanos (ANDHEP), como palestrante na UFMG, no Instituto Pró-Bono em São Paulo. Disponível em: . Último acesso em: 14 de outubro de 2016.

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A possibilidade de existência de um espaço de concentração de pessoas pobres, vulneráveis, doentes, existente em diversos serviços e setores de nossa sociedade seria a demonstração de que o Estado, especialmente em países periféricos, estaria abdicando de seu papel assistencial, não falando mais em suprimir a miséria, mas, sim, ignorá-la (PEREIRA, 2004, p. 8). A escuta das histórias dos internos, a observação e descrição da condição do espaço e tratamento recebido, descrita por Pereira, retoma frases que a CDHLG ouve constantemente em suas ouvidorias. Espaços de atendimento que conformam-se como “depósitos de gente”, desenvolvimento de atividades incapazes de proporcionar ou resgatar a autonomia desses sujeitos. “Obrigada por me ouvir, parece que ninguém acredita na gente” são frases que convivem lado a lado com “eu não acredito em direitos humanos, pra mim isso é coisa que está lá, pendurada na parede”12. O distanciamento analítico de nosso tema de trabalho, por meio do contato com outros grupos de atuação, e a articulação em rede revelam que este é o tratamento comum por vezes dado aos grupos vulneráveis em nossa sociedade: a exclusão, o silenciamento. Ao conhecer grupos de extensão universitária – intitulados ou não de clínicas –, conhecemos iniciativas em direitos humanos que buscam justamente visibilizar demandas, entender lógicas de exclusão que permeiam não apenas a gestão dos orçamentos municipais e das políticas públicas, mas também das agendas de formação de estudantes de direito que, nos bancos das faculdades, têm acesso a uma formação focada em direitos individuais e de cunho patrimonialista. Cárceres, abrigos, albergues, comunidades (ditas) terapêuticas são muitas vezes espaços de materialização dessas exclusões. O trabalho com grupos indígenas, imigrantes, trabalhadores informais e moradores de ocupações revelam silenciamentos que não se restringem a determinados espaços. Em nossas cidades e comunidades, a exclusão do lugar de fala, do espaço de reivindicação, na mídia, reverberam nas práticas jurídicas, a despeito da igualdade formal garantida constitucionalmente. Reintegrações de posse forçadas, condenações arbitrárias, inexistência de doutrinas e jurisprudências sobre os temas dos grupos mais vulneráveis ou que menos possuem condições de acessar o judiciário colocam-se ao lado da proliferação de tratados sobre direito penal econômico e matérias sobre falência e recuperação judicial – que ocupam as grades de faculdades públicas – e das manchetes sobre casos milionários. A invisibilidade é, assim, produzida também por nós. Como referido ao início deste texto, alunos e alunas veem todos os dias as desigualdades que 12



Frases retiradas de meu caderno de campo de ouvidorias da Clínica Luiz Gama, ao longo do primeiro semestre de 2015.

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cercam as faculdades de direito. Ao entrar nelas, no entanto, descobrem desde cedo que a lei não precisa ser justa, tampouco a aplicação dela pelo judiciário. Ao final do texto, o autor refere-se à figura e papel do antropólogo como possível intermediador da impossível tarefa de falar com alguém e falar por alguém. Essa diferenciação mostra-se sensível para a prática de direitos humanos, e é demorando-me nela que pretendo responder à pergunta que muitas vezes se coloca nos grupos de atuação universitários: quando e como agir diante das violações a direitos humanos? Reconstituo longamente o texto de Pereira, por crer que o desenvolvimento de atividades relacionadas à produção, reflexão e implementação de direitos humanos estão necessariamente imbricadas na construção de uma maneira nova de ouvir nossos interlocutores, conforme aduzido pelo autor, e, à luz de nossas atividades, levá-los a sério, e avaliarmos de maneira crítica as posturas de judicialização, implementação de políticas públicas que muitas vezes não parecem dialogar com seus destinatários. Para o autor, finalmente: As respostas para vencer o silêncio e o embotamento da linguagem provocado pela dor talvez se encontrem na busca contínua de falar com (Tyler, 1986:204) e no rejeitar a atitude de falar por. Essa busca da voz não pode ser alheia a dor do outro (PEREIRA, 2004, p. 21).

Falar com ou pelo outro é, assim, desafio que permeia as atividades em direitos humanos como um todo, em que grupos de ativistas, estudantes – entre outros – buscam escutar e agir diante de violações a direitos. Tal reflexão, ainda, não é apenas de grupos acadêmicas, atravessando o cotidiano de luta de muitos desses grupos. Por exemplo, no 3º Congresso Nacional do Movimento Nacional da População em Situação de Rua13, o qual a CDHLG pôde visitar durante o dia 18 de agosto, uma faixa ampla dizia em letras vermelhas “não fale de mim, não fale por mim”. Para a pergunta que reiteradamente se apresenta, como agir, diante das violações a direitos a que se têm acesso, Barbora Bukovská em seu artigo “Perpetrando o Bem” problematiza três ações típicas dos ditos ativistas em direitos humanos: o advocacy, a produção de relatórios de direitos humanos e os litígios estratégicos (2008). Ainda que fale apenas de organizações não governamentais internacionais, e suas atuações, as críticas tecidas pela autora dão conta de problematizar esses tipos de ação que dominam muitas das atividades das extensões universitárias em Direitos Humanos. 13



Agradecemos ao Programa Pólos de Cidadania e à Clínica de Direitos Humanos da UFMG na pessoa do Professor André Freitas e da Professora Camila Nicácio por auxiliar-nos a assistir a parte desse evento. Para mais informações sobre o congresso consultar: . Último acesso em: 16 de novembro de 2016.

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Por meio da crítica dessas três formas de atuação, o advocacy – que articula diversos atores, mas não necessariamente responsabiliza alguém ou ajuda a população vitimizada –, a realização de relatórios de direitos humanos – que visibilizam dramas locais, mas não necessariamente dão voz real à população local, que as vitimiza e é produzida em países centrais, gastando valores com a produção, divulgação e circulação que não estão disponíveis para os locais defenderem seus próprios interesses – e o litígio estratégico – em que o falar “por” impera e que, muitas vezes, não há o apoio da população local com os impactos da judicialização –, Bukovská sintetiza e auxilia a reflexão sobre o agir que buscamos pautar em nossa atividade clínica14. Finalizando este texto, apresento algumas de nossas atividades reforçando, antes de tudo, essas perspectivas que nos orientam. Para além de divulgar exatamente as petições e textos que fizemos, parece-me sumamente importante disseminar a tentativa de construção desse novo olhar em nosso grupo de estudo, que impacta nossa atuação, buscando uma relação diferente para com os nossos interlocutores. Nesse sentido, temos como horizonte o que nos propõe Bukovskà (2008, p. 8): “Com isso eu me refiro a uma forma de ativismo que interage com as vítimas de violações de direitos humanos de forma não-hierárquica, que coopera efetivamente com elas, e não apenas “advoga” em seu nome.” Buscando solucionar esses impasses entre o “falar por” e “falar com” e, por conseguinte, construir atuações em direitos humanos o mais horizontais e orgânicas possível, nosso grupo retira das ouvidorias descritas no começo deste texto os insumos para a proposta de atividades. Ainda, colocamo-nos em horizontalidade com os funcionários que atendem à população em situação de rua em São Paulo, por acreditar nesse conhecimento local importante para aprender e conhecer as políticas públicas. A partir das escutas individuais, e buscando superar as ideias de vitimização colocadas pela autora, apostamos nesse intermédio, por um lado, do pesquisador, para escutar, refletir e analisar, de maneira macro, quais as situações vivenciadas, subsidiando a luta local. Assim, entre 2009 e 2013, a CDHLG apostou em boletins acerca dos conteúdos que escutamos e reflexões sobre a nossa própria atuação, pensando as metodologias locais e possibilidades de acesso aos alunos e alunas do direito. Ao longo de 2014, escutamos reiteradamente sobre um espaço de convivência para adultos, denominado localmente de “Tenda”. Os sucessivos fechamentos, para além de descrições que colocavam o espaço como bom para a manutenção do mínimo da dignidade das pessoas em situação de rua 14



Busco reconstituir brevemente as críticas da autora, reiterando que este texto está disponível na Revista SUR, e que é um de nossos textos-base de formação para graduandos e graduandas que ingressam na CDHLG.

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– oferecendo irrestritamente água e banho aos usuários –, geraram o interesse de nosso grupo de conhecer o espaço. Ao longo de 2015, fizemos visitas ao local, conversamos com conviventes e funcionários buscando entender o serviço. Nesse espaço, as denúncias de fechamento pela gestão pública fizeram com que decidíssemos pela construção de um documento que buscasse dar voz às reivindicações locais e que pudesse dialogar com gestão pública e com o público local15. Posteriormente, sem o sucesso do advocacy de nosso grupo e da luta dos funcionários e conviventes, que realizaram diversas manifestações e atos, com o iminente fechamento, apoiamos as atividades da Defensoria Pública do Estado, que acabou por judicializar a questão utilizando nosso documento como uma das provas para a necessidade de manutenção do espaço. A articulação em nossas redes locais – ainda muito incipientes ao contrário do cenário em que Bukovskà trabalha – parece trabalho importante a ser feito, buscando ampliar e propor esses espaços de contínua escuta de nossos interlocutores, sempre pautando esse deslocamento do profissional do direito para um local de aprendizado, e propondo o diálogo mais direto quanto possível. Ainda, a militância pedagógica, como tem tratado Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer em suas palestras sobre o tema de Direitos Humanos, nos parece campo primordial de luta. É colocando o tema da população em situação de rua nas grades e nos espaços de debate que talvez seja possível tirar da dita invisibilidade esses sujeitos e seus processos. Nesse sentido, em abril de 2016, organizamos, em parceria com a Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado de São Paulo16, o Seminário de Acesso à Justiça da População em Situação de Rua. Para romper com os paradigmas tradicionais dos eventos acadêmicos, que em geral excluem as pessoas cujas vulnerabilidades são tratadas, buscou-se dar condições de presença por meio do fornecimento de almoços e transporte17 e promovendo, para além de mesas com acadêmicos e gestores públicos, intervenção artística na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde o evento ocorreu, e grupos de trabalho, em que houve o protagonismo de fala das pessoas em situação de rua, funcionários e interessados presentes, o que gerou uma carta de encaminhamentos ao final do evento. 15



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Disponível em nosso blog: . Um texto mais atualizado sobre o tema será publicado em breve. Agradeço a todos os organizadores e organizadoras do evento que nos apoiaram e a quem apoiamos no longo percurso de organização, em especial Priscila Rodrigues e Alderón Costa, em nome de todos e todas. Tendo o transporte sido fornecido pela Prefeitura de São Paulo a cada uma das unidades de acolhimento interessadas em participar do evento, e almoços promovidos em parceria com o Movimento Nacional da População de Rua na quadra dos bancários.

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Por fim, atualmente, ao final do ano de 2016, produzimos e estamos buscando executar um projeto de pesquisa sobre um tema sobre o qual pouco ouvimos e esse silêncio nos disse muito: a situação de mulheres gestantes nas ruas de São Paulo e suas crianças. Formado por mulheres, nosso grupo passou a perseguir o silêncio e a invisibilidade das mulheres na rua, o que nos incomoda em nossa atuação. Atualmente, buscamos compreender como é o fluxo de encaminhamento dessas gestantes e suas crianças e qual o papel das políticas públicas locais sobre o tema, em especial diante de diversas narrativas que, colhidas informalmente em nossas ouvidorias, davam conta da “perda” das crianças para instituições de acolhida, e de trabalho da Defensoria do Estado de São Paulo que recebe familiares para o atendimento e tentativa de aproximação com as crianças acolhidas. CONSIDERAÇÕES FINAIS: OUVIR COMO UMA ATUAÇÃO POSSÍVEL EM DIREITOS HUMANOS Qual o sentido de propor a alunos de direito que escutem as complexas trajetórias de vida de pessoas que se encontram nas ruas do centro de São Paulo? Quais as potencialidades desse encontro? Os alunos e alunas parecem ser forjados pelo curso de direito a tentarem constantemente “resolver” todos os problemas que lhes são colocados. A angústia causada ao se depararem com vidas cujos problemas não são solúveis por meio das medidas jurídicas tradicionais acaba por revelar as limitações da prática jurídica, de seu ensino dogmático, orientando-os a uma crítica do ensino jurídico, mas, também, a uma crítica à postura da militância em direitos humanos a partir da prática jurídica. Um ensino jurídico em direitos humanos, e sua prática não pode e não deve amparar-se na fala do bacharel em direito, sendo a escuta qualificada e o protagonismo dos sujeitos cujos direitos são violados na narrativa de suas vidas e demandas dos elementos essenciais para a concretização desses direitos. Compartilhar os resultados dessa escuta, de maneira reflexiva e crítica, articulando e aproximando atores de maneira cautelosa, é uma saída vislumbrada por nosso grupo. As descrições de injustiças vivenciadas, laços familiares rompidos, vidas fragilizadas atam as mãos dos futuros operadores do direito. Como pensar uma violência sem um Boletim de Ocorrência? Como lidar com o violador que é o próprio Estado? Ainda, estaria o aluno de direito aberto e apto a ouvir as narrativas de pessoas que os procuram? Todos os problemas e questões narrados em atendimentos podem (ou devem) ser categorizados entre jurídicos e não jurídicos?

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A Clínica de Direitos Humanos pauta-se na ideia de que as trocas mútuas, entre alunos e indivíduos que comparecem na ouvidoria, mostram-se extremamente poderosa. Os agradecimentos das pessoas que narram suas histórias, a capacidade de repensar seu ensino e o modo com que estão sendo socializados no mundo do direito parecem revelar uma nova forma de ver o direito: passa-se a focar nos cidadãos, naqueles que vivem as injustiças, mais do que nas formas jurídicas. Por meio dessas ouvidorias, é possível potencializar a ação local, buscando vincular-se às demandas apresentadas, e construindo uma perspectiva macro daquilo que apresenta-se recorrente nas narrativas de vida, sempre pautando-se num horizonte de protagonismo social daqueles que escutamos, buscando dialogar com eles e elas e não reproduzir vitimizações ou “sensos comuns” dos defensores de direitos humanos. Assim, uma ouvidoria como experiência em direitos humanos é, antes de tudo, um convite à reflexão e ao questionamento das próprias práticas dos juristas e operadores do direito, que, espera-se, possa render frutos na formação dos alunos e alunas, futuros operadores do direito. REFERÊNCIAS BRANDÃO LAPA, Fernanda. Clínica de Direitos Humanos. Uma proposta metodológica para a educação jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2014. BUKOVSKÀ, Barbora. Perpetrando o bem: as conseqüências não desejadas da defesa dos direitos humanos. Sur, Rev. int. direitos human. [online]. 2008, vol. 5, n. 9, pp. 6-21. ISSN 1806-6445. CIAVATTA, Hugo. Passagens pelas ruas de São Paulo em narrativas (auto)biográficas. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2013. DE LUCCA, Daniel. A rua em movimento: Experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. Dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo em 2007. FRANGELLA, Simone M. Corpos Urbanos Errantes: Uma Etnografia da Corporalidade de Moradores de Rua em São Paulo. Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas em 2004. PREFEITURA DE SÃO PAULO, FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA. Censo da População em situação de Rua (2011). Disponível em: . RUI, Taniele Cristina. Corpos Abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack. Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas em 2012. PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Antropologia e Direitos Humanos: Entre o Silêncio e a voz. Revista Virtual de Antropologia, v. 18: p. 2-30, 2004. Disponível em: . VILLAREAL, Marta; COURTIS, Christian (Coords). Enseñanza Clínica del Derecho. México, ITAM, 2007.

Capítulo 9 A Tecnologia a Serviço dos Direitos Humanos: Código de Ciência, Tecnologia e Inovação e as Possibilidades que se Descortinam para as Clínicas de Direitos Humanos Amanda Naves Drummond1 Fabiana de Menezes Soares2 Paula Gomes de Magalhães3

RESUMO: O capítulo abordará inicialmente o que se entende por direito humano ao desenvolvimento e, como seu desdobramento, direito humano de acesso à informação. A partir daí, será verificado o potencial de uso da tecnologia como ferramenta de transformação social e, dentro desse viés, as possibilidades trazidas pelo Código de Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/16). Finalmente, a importância de utilização desses instrumentos pelas clínicas de direitos humanos será desvelada, partindo de uma análise da experiência da Clínica de Direitos Humanos da UFMG. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Tecnologia; Direito ao Desenvolvimento; Clínicas; Extensão. ABSTRACT: The chapter will address what can be understood as human right to development and, as its deployment, human right of access to information. From there on, it will be verified the potential the use of technology has as a tool for promoting social change and, in this case, the possibilities brought by the Science, Technology and Innovation Code (Law number 13.243/16). Finally, the importance of using those instruments in the work developed by the human rights clinics will be exposed, from the analysis of the UFMG human rights clinic experience. KEY WORDS: Human Rights; Technology; Right to Development; Clinics; Extension.

INTRODUÇÃO Uma análise da efetivação do direito humano ao desenvolvimento tecnológico e a toda a série de direitos a ele conectados revela-se necessária diante das novidades trazidas pelo recém-aprovado Código de Ciência, Tecnologia e Inovação e da possibilidade de sua utilização pelas Clínicas de Direitos Humanos. 1



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Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG; orientadora da Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFMG. Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG; Pós-Doutoramento pela Universidade de Genebra (Avaliação Legislativa). Coordenadora do Núcleo de Inclusão Digital da Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFMG. Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG; extensionista da Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFMG.

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Compreendendo que há diversas normativas internacionais e internas que abordam a obrigação dos Estados de promover o desenvolvimento e que, ao mesmo tempo, reconhecem que o conceito de desenvolvimento supera a concepção estritamente ligada ao crescimento econômico, reputa-se necessário reconhecer as formas de concretização desse dever pelo Brasil. A partir dessa compreensão, serão verificados, no âmbito do direito ao desenvolvimento, o potencial das tecnologias sociais para promover transformações em prol dos Direitos Humanos e a sua conexão com a prática da extensão universitária. Finalmente, será feito um paralelo com o uso das tecnologias no trabalho da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais, os resultados obtidos com essas ações e as possibilidades de aprimoramento desse trabalho com o advento da Lei 13.243/16. 1. DIREITOS HUMANOS E TECNOLOGIA A gama de direitos humanos reconhecidos internacionalmente pode ser compreendida, na verdade, como uma rede, tendo em vista o princípio da interdependência e da subsidiariedade que os regem. A aplicação desses princípios faz com que se entenda a importância do gozo de um direito para que se possa ter acesso ao outro, numa lógica que busca garantir o respeito à dignidade humana. No que concerne ao direito ao desenvolvimento tecnológico, não é difícil vislumbrar a sua relação com tantos outros, que não poderão ser plenamente efetivados caso caminhem separados. A princípio, cabe ressaltar que se compreende o mencionado direito como uma das dimensões do direito ao desenvolvimento lato sensu. Este, por sua vez, é mencionado em diversos instrumentos internacionais e na Constituição da República de 1988, em seu preâmbulo e em seu artigo 3º, II, entre os objetivos da República. A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu artigo 26,4 discorre sobre a obrigação dos Estados-Parte em garantir um desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais. De início, já se pode identificar distintos componentes do desenvolvimento, que deve ocorrer numa perspectiva que ultrapassa o seu aspecto econômico. A Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos não é diferente nesse ponto, mas inova ao estabelecer com tanta clareza o dever estatal de 4



CADH. Artigo 26. “Desenvolvimento progressivo. Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.”

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assegurar esse direito e ao sustentar como sujeito desse direito os povos, enfatizando a sua prerrogativa de gozar igualmente do patrimônio comum da humanidade.5 Ainda, tem-se a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, que reconhece esse direito como inalienável e a pessoa humana como seu sujeito central.6 Além disso, a Declaração ressalta a obrigação dos Estados em criar condições favoráveis ao desenvolvimento: “Artigo 3º, § 1º Os Estados têm a responsabilidade primária pela criação das condições nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvimento. (...)” Nesse sentido, considerando a necessária conjugação dos direitos econômicos, sociais e culturais para o pleno desenvolvimento dos povos e reconhecendo que a pesquisa e a produção de tecnologias são ferramentas propulsoras de avanços nessas distintas searas, não é possível chegar à conclusão mais lógica do que ao reconhecimento do direito ao desenvolvimento tecnológico como direito humano. Contudo, jamais se deve olvidar que em última instância o sujeito desse direito é a pessoa humana, de modo que não se pode utilizá-lo como fundamento para qualquer medida que não seja direcionada a promover a dignidade humana, com respeito a todas as disposições previstas nos tratados de proteção aos direitos humanos. Dessa forma, tem-se os ensinamentos de Amartya Sen, que contrariam uma visão restrita sobre o desenvolvimento, limitada a aspectos como o crescimento econômico e demonstram que “o desenvolvimento tem de estar relacionado, sobretudo, com a melhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos.” (SEN, 2010, p. 29). A pesquisa científica e a atividade criadora serão mecanismos para a melhoria da qualidade de vida humana, devendo o seu desfrute ser assegurado a todos os indivíduos, nos termos do artigo 15 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.7 5



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CADHP. Artigo 22. “1.Todos os povos têm direito ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural, no estrito respeito da sua liberdade e da sua identidade, e ao gozo igual do patrimônio comum da humanidade. 2.Os Estados têm o dever, separadamente ou em cooperação, de assegurar o exercício do direito ao desenvolvimento.” ONU. AG/RES/41/128. Artigo 1º “O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. [...].” Artigo 2º “A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. [...] Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa e no desenvolvimento e na distribuição eqüitativa dos benefícios daí resultantes.” PIDESC. Artigo 15. “1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) Desfrutar o processo cientifico e suas aplicações; c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção cientifica, literária ou artística de que seja autor. 2. As Medidas que

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A partir do desenvolvimento de tecnologias e inovação, é possível o alcance de diversos outros direitos que delas decorrem, ou que com elas podem ser aprimorados. Desse modo, especialmente as tecnologias digitais, que propiciam o uso da internet, garantem a maximização de direitos essenciais à efetivação da cidadania, em especial, no que toca ao acesso à informação. O artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos aborda o direito de acesso à informação, ao dispor: Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. (...) (Grifo nosso)

Ainda, a importante função das redes em garantir esse acesso é reconhecida no Brasil pelo Marco Civil da Internet – Lei 12.965/14 – ao dispor, em seu artigo 7º, que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania. No mesmo sentido, as Nações Unidas reconhecem em relatório publicado em 2011 que a internet é um meio de exercício da liberdade de expressão e que os Estados devem assumir o compromisso de desenvolver políticas que garantam o acesso universal a essa ferramenta (ONU, 2011). A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou, por sua vez, publicação sobre o direito de acesso à informação no marco jurídico interamericano. Na obra, destaca-se a relevância desse direito para um sistema democrático, representativo e participativo, de modo que os cidadãos possam exercer seus direitos políticos. Dessa forma, os atos e normativas expedidos por agentes públicos, assim como condutas privadas que possam afetar a vida pública e as formas e instrumentos dos quais o indivíduo pode se utilizar para posicionar-se diante desses acontecimentos necessitam ser acessíveis ao conhecimento dos jurisdicionados, na maior medida que o Estado possa proporcionar. Sobre o direito de acesso à informação, a Relatoria Especial ensina: É somente por meio de uma implementação adequada desse direito que as pessoas podem saber com exatidão quais são os seus direitos e que mecanismos existem para protegê-los. Em particular, a implementação adequada do direito de acesso à informação, em todas as suas dimensões, é condição essencial para a realização dos direitos os Estados Partes do Presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à convenção, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa cientifica e à atividade criadora. 4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.”

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sociais dos setores excluídos ou marginalizados. Com efeito, esses setores não costumam ter formas alternativas sistemáticas e seguras de conhecer o alcance dos direitos que o Estado reconheceu e os mecanismos para exigi-los e efetivá-los. (OEA, 2011)

Finalmente, quando se trata da promoção de direitos humanos, resta claro o papel da tecnologia tanto para a garantia do desenvolvimento dos povos quanto para uma série de direitos decorrentes do acesso à informação, incluindo a participação política, o acesso à cultura e à educação, necessários ao respeito da condição cidadã do ser humano. 2. O PARADOXO DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO: EM QUE PONTO COMEÇA O SEU PODER EMANCIPATÓRIO? O Estado deve efetivar as normas internacionais de Direitos Humanos e, coadunando com elas, o princípio constitucional da publicidade, por meio do direito à informação. Entretanto, não se pode olvidar da série de contradições que o universo tecnológico encerra hodiernamente: O acesso ao conhecimento e o desenvolvimento de capacidade de obter informação através das ferramentas que se sofisticam a cada dia é e será um fator de distinção entre as pessoas e da sua inclusão/exclusão. (SOARES, 2002, p. 62)

O mencionado fator poderá, inclusive, influenciar na capacidade do ser humano de sobreviver com dignidade, sempre que o conhecimento for pressuposto para acessar algum direito básico. Pode parecer paradoxal suscitar o direito de acesso à informação diante da ausência de efetivação de tantos outros direitos necessários à sobrevivência humana, como o direito à alimentação. Ademais, o próprio fator econômico que separa nações aparece também no que concerne aos direitos provenientes do acesso à tecnologia da informação (TI), já que esta floresce onde existe investimento no potencial humano. Contudo, não há que se relegar a segundo plano o direito à informação, uma vez que ela mesma é força motriz para a retirada do ser humano da passividade, possuindo um poder libertador. Nessa linha, entende-se que “(...) a tecnologia, in casu, a da informação, configura-se em instrumento a serviço do homem e não ao contrário” (SOARES, 2002, p. 63). Desse modo, a TI só trará benefícios para a comunidade humana enquanto significar “igualdade de acesso à informação e da liberdade real das escolhas decorrentes do exercício cognitivo” (SOARES, 2002, p. 64). Se esse for o caso, a política poderá ser feita a partir da construção de vínculos comunitários, numa superação da lógica individualista da sociedade de espetáculo.

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Há que se atentar, então, para o fato de que nem sempre o desenvolvimento tecnológico significará desenvolvimento social. Ora, os avanços tecnológicos podem levar a uma maior exigência do nível de escolaridade nas novas relações de trabalho, o que representa, por exemplo, um aumento da desigualdade entre trabalhadores. Por isso, a concepção da tecnologia enquanto meio para promoção de direitos humanos deve servir sempre como ponto de partida para a elaboração das políticas públicas voltadas para o desenvolvimento tecnológico. 3. TECNOLOGIA SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NAS PRÁTICAS EXTENSIONISTAS UNIVERSITÁRIAS Por tecnologia social, tem-se o conjunto de métodos e técnicas transformadoras aplicadas e desenvolvidas na sociedade visando à interação entre os seres que a compõe, o que acaba por contribuir para a inclusão social de todos os seus usuários. Assim, com vistas à disseminação da promoção social, tem-se que a inclusão digital pode ser considerada um instrumento concreto para a efetivação dessa tecnologia. Uma análise de aperfeiçoamento da era digital à luz dos direitos sociais é posta, in verbis: Assim, para se medir a inclusão digital é necessário mais que indicadores clássicos como números de acesso, gênero, faixa etária, raça e etc. A alternativa é medir o fenômeno social causado pela era digital. Sua lógica, seus níveis, seus problemas, seus contornos, sua repercussão na transformação sociocultural de toda uma comunidade (PINHEIRO; MOURA, 2007, p. 51).

Por essa razão, questiona-se até que ponto a disseminação digital de fato auxilia na informação social e letramento informacional, atuando como um mecanismo inclusivo frente à sociedade para as classes de poder socioeconômico mais reduzido. A professora Adriana Bogliolo Sirihal Duarte considera que: O indivíduo, digitalmente incluído, de modo efetivo, seja aquele que possua competência informacional, sendo capaz de utilizar as tecnologias da informação e comunicação para a construção do conhecimento e inclusão social. (DUARTE, 2007, p. 103)

Coadunando com devida assertiva, tem-se a visão de Schwarzelmüller, in fine: [...] acesso não significa apenas conexão física e acesso ao hardware, ou melhor, não é o acesso à tecnologia que promoverá a inclusão, mas sim a forma como essa

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tecnologia vai atender às necessidades da sociedade e comunidades locais, com uma apropriação crítica, pois o papel mais importante do processo de inclusão digital deve ser a sua utilidade social (SCHWARZELMÜLLER, 2005, p.1).

Mais do que simplesmente ofertar a possibilidade de utilização da tecnologia à sociedade como um todo, para a efetividade desse instrumento de transformação social, faz-se necessário conhecer e trabalhar em cima das peculiaridades de cada grupo receptor, isso porque os modelos de acesso à tecnologia da informação e da comunicação (TIC), a princípio, são insuficientes para sanar os problemas sociais e, assim, promoverem a inclusão digital. [...], O conceito associado ao letramento fornece mais proveitosamente um modelo, pois o letramento, como acesso à TIC, inclui uma combinação de equipamentos, conteúdo, habilidades, entendimento e apoio social, a fim de que o usuário possa envolver-se em práticas sociais significativas (WARSCHAUER, 2006, p. 64).

Desse modo, uma inclusão pelo meio tecnológico será possível na medida em que o acesso à tecnologia, feito de modo trivial, objetive romper com as barreiras socioeconômicas e, assim, levar conhecimento e informação com intuito de atender às necessidades de cada comunidade. Nesse diapasão, tendo em vista a valorização da tecnologia e sua influência na disseminação dos direitos fundamentais, tem-se a direta influência dos conhecimentos produzidos pelas Universidades, especialmente sob a ingerência do novo marco regulatório para ciência, tecnologia e inovação. O contexto das universidades vem sofrendo alterações com o passar dos anos, razão pela qual o ensino, a pesquisa e, em especial, a extensão devem buscar compatibilizar suas atividades às inovações tecnológicas. A academia pode ser considerada por si própria uma revolução permanente, com etapas que se retardam ou antecipam, conforme os contextos históricos. O ambiente universitário, por si só, faz-se um meio de convivência que permite rica troca de saberes: As Universidades têm sido consideradas o centro, por excelência, da geração do conhecimento. Ao longo de sua história assumiram como sua missão o desenvolvimento das atividades de ensino e de pesquisa científica, e, mais recentemente, vem acrescentando à sua atuação a missão de participar no desenvolvimento econômico local e regional, numa espécie de retribuição à sociedade que a financia. (MOREIRA, 2000, p. 14)

O processo citado acima foi intitulado como segunda revolução acadêmica. Enquanto a primeira revolução ocorreu nos Estados Unidos, ao fim do século XVII, inserindo a pesquisa como eixo de atuação direta das

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universidades e indo para além do ensino, desde a segunda metade do século XX, a atuação das universidades passa a se voltar para outro pilar, qual seja, do desenvolvimento social e econômico. Depois da segunda guerra mundial, a segunda revolução acadêmica teve início. A partir de experiências em Universidades como MIT, Stanford e Harvard, surgiu o conceito de Universidade Empreendedora, que agrega uma nova missão, voltada ao desenvolvimento econômico e social por meio da transferência de conhecimento para a sociedade, ultrapassando as funções do ensino e da pesquisa. Nesta nova visão, a universidade se aproxima das demandas da sociedade onde está inserida e incorpora a responsabilidade como importante pilar do desenvolvimento econômico e social. A partir dessa postura, o conhecimento está diretamente ligado à economia e ao desenvolvimento. (ALMEIDA, 2010,p 54)

Ou seja, face à interação entre Universidade-Empresa-Governo (UEG) tem-se que, na medida em que a demanda da sociedade pelas instituições de ensino superior torna-se maior em razão da valorização do conhecimento, sua contribuição ao processo de desenvolvimento social e econômico é requestado. Fujino e Stal (apud ALMEIDA, 2010, p. 59) consideram que, no Brasil, a segunda revolução acadêmica, em que a universidade ganha a missão de assumir uma postura inovadora, ainda está em um estágio ou passa por um processo embrionário. É no sentido de superar esse processo embrionário que se tem a relevância das normativas de incentivo a inovação, em especial as disposições constitucionais, bem como o novo Código de Ciência, Tecnologia e Inovação. A Emenda Constitucional 85, promulgada em 2015, explicita que todos os entes federados têm competência comum no que tange à obrigação de proporcionar acesso à CT&I, ficando assim caracterizada a solidariedade entre as esferas de governo quanto ao dever do Estado. Destarte, tem-se ainda o novo Código de Ciência, Tecnologia e Inovação. Sua promulgação, entre outros, serviu para viabilizar a constituição de um Sistema Nacional de CT&I, que opere em regras compatíveis em todos os níveis e maximize as possibilidades de cooperação entre os entes. Com a existência das normativas supracitadas e a sua correta aplicação, tem-se que o ambiente universitário passa a ser mais nutrido de informações e passível de desenvolvimento tecnológico por meio das práticas extensionistas, isso porque, para além da cultura do paper, na qual a formação do estudante dá-se exclusivamente com vistas à academia, o discente, amparado pela nova política institucional de inovação, tem a oportunidade de atuar de forma concreta e efetiva na sociedade, contribuindo de fato

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para o desenvolvimento econômico e social do país por meio das práticas extensionistas, um pilar que a cada dia mais vem sendo consolidado. Na mesma linha das normativas mencionadas, a Lei 13.267/16 cria uma outra possibilidade de atuação universitária. Esse diploma legal recepciona as práticas das empresas juniores e aposta em seu potencial de aplicação/disseminação social dos conhecimentos advindos do ensino e da pesquisa das Universidades8. Assim assevera o Diretor de Comunicação da Confederação Brasileira de Empresas Juniores: À medida que o conhecimento aprendido em sala de aula é aplicado, em paralelo a isso prestamos serviços para micro e pequenas empresas que desejam melhorar a sua produtividade, portanto trata-se de uma atividade com grande impacto econômico. (RIO VERDE, 2016)

Trata-se de um modelo que permite uma intervenção na realidade social apta a gerar riqueza e potencializar a emancipação pelo trabalho, quando bem utilizado. O significado dessas novas possibilidades de trabalho e interação (inclusive em rede) cria inusitadas formas de criação, geração, distribuição de riquezas, como no caso do Big Data9: O novo sistema de Protocolo de Internet (IPv6), criado há dois anos, nos colocou de vez na era do Big Data. Big Data é essa possibilidade de gerar, medir, coletar e armazenar assombrosas quantidades de dados e informações, a partir de nossas avaliações e escolhas, e usá-los para fazer mais escolhas. (LOPES, 2014).

Contudo, mais do que normativas que auxiliam a prática da extensão, faz-se necessária uma mudança da compreensão das normas e da expectativa nelas depositada. Uma nova política institucional de inovação só funcionará com a participação e escuta dos atores sociais envolvidos. 8



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Segundo a Confederação Brasileira de Empresas Juniores – Brasil Júnior (link is external) –, em 2016 foram contabilizadas 320 unidades regulamentadas no país, onde atuam aproximadamente 11 mil alunos. Com esses números, o Brasil superou o continente europeu e tem a maior concentração de empresas juniores no mundo. “Eu atribuo esse crescimento à necessidade que a nossa universidade tem de modelos práticos”, afirma o presidente da Brasil Júnior, Pedro Rio Verde. Para ele, o conceito de empresa júnior está calcado tanto no pilar da educação, como elemento-chave para diminuir a desigualdade, quanto no pilar da produtividade. “À medida que o conhecimento aprendido em sala de aula é aplicado, em paralelo a isso prestamos serviços para micro e pequenas empresas que desejam melhorar a sua produtividade, portanto trata-se de uma atividade com grande impacto econômico”, complementa Pedro. FONTE: Rede Nacional de Ensino e Pesquisa. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2016. A relação entre empreendedorismo social e Big Data encontra casos emblemáticos como o aplicativo USHAIHIDI já em 2007, no Quênia, onde constituiu-se em importante ferramenta para uso em celular, no qual qualquer pessoa poderia reportar casos de violência pós-crise que se seguiu às eleições presidenciais. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2016.

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4. O CÓDIGO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA E INOVAÇÃO E SEU PAPEL NA CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS Frente a todas as obrigações assumidas, nacional e internacionalmente, pelo Estado brasileiro de proporcionar o desenvolvimento tecnológico e o seu desfrute pelos jurisdicionados, diante do papel central das tecnologias sociais para uma transformação da realidade dos direitos humanos, resta saber as medidas adotadas pelo país para cumprir com o seu dever. Nesse sentido, o Código de Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/16) apresenta-se como um passo importante na direção almejada. Esse novo marco legal, publicado em janeiro de 2016, vem regulamentar a referida Emenda Constitucional 85, que visa incentivar o desenvolvimento científico, tecnológico e a inovação. Desse modo, a Lei 13.243/16 busca promover a pesquisa e a produção de tecnologia por meio de medidas como a isenção e redução de impostos para importação de insumos necessários a essas atividades, de dispensa de processos licitatórios para alienação dos produtos fruto da atividade ou de ativos de participação societária na empresa desenvolvedora e, especialmente, da ampliação da cooperação entre entes públicos e privados para o desenvolvimento tecnológico. O Código inicia, em seu artigo 2º, por alterar as disposições da Lei 10.973/04, incluindo como princípio a ser observado a “promoção das atividades científicas e tecnológicas como estratégicas para o desenvolvimento econômico e social”. Nada mais adequado para um dispositivo da legislação interna do que concordar com os parâmetros internacionais de compreensão do desenvolvimento também em seu aspecto social. Assim, também é pautada a observação do princípio de redução das desigualdades regionais. Não obstante, é a possibilidade de as Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICT’s) cooperarem com entes públicos, que se destaca no horizonte de trabalho das clínicas de direitos humanos das universidades brasileiras. A possibilidade de contratação de serviços e da alienação de produtos de maneira simplificada facilita as parcerias entre universidade e ICT. Mas, para além disso, o Código amplia a possibilidade de o pesquisador público, inclusive o que ocupa cargo de magistério, colaborar com as referidas instituições, abrindo a oportunidade para aqueles que laboram em regime de dedicação exclusiva. Ora, a extensão universitária, com sua finalidade de romper as fronteiras da academia e contribuir para transformações sociais, não só pode como deve servir-se do desenvolvimento tecnológico para construir novas ferramentas de diálogo e transformação da sociedade ou para instrumentalizar as que já existem. As clínicas de direitos humanos, enquanto locais de ações

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extensionistas, voltadas à sociedade civil, precisam atentar para essas possibilidades. Ademais, a análise da própria metodologia clínica, que pressupõe uma visão multidisciplinar das questões de direitos humanos, associada a um trabalho capaz de combater, reparar e prevenir violações, clama pela utilização da tecnologia, tanto para criar redes de proteção, divulgar informações importantes, quanto para o desenvolvimento de qualquer ferramenta hábil para a promoção de direitos. Nessa linha, Cavallaro e Elizondo García discorrem sobre o trabalho das clínicas: Um advogado de direitos humanos deve aprender – preferencialmente através de clínicas – a advogar no sentido mais amplo do termo. Isto é algo muito mais amplo que o litígio. Muito mais. Ser um advogado no sentido amplo da palavra se refere a negociar, a saber comunicar, a organizar campanhas e trabalhar com movimentos de base, a avaliar opções – não necessariamente jurídicas – e escolher a melhor. (CAVALLARO; ELIZONDO GARCÍA, 2011, p. 136, tradução nossa)

Portanto, entende-se que o Código de Ciência, Tecnologia e Inovação vem atender às obrigações estatais de proporcionar condições para o desenvolvimento, entendido como direito humano, e, com isso, trazer uma perspectiva mais ampla de ação para as Clínicas de Direitos Humanos, que poderão utilizar-se de parcerias com pesquisadores e ICT’s para aprimorar o seu trabalho. 5. O PAPEL DA TECNOLOGIA NO TRABALHO DA CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS DA UFMG: FERRAMENTAS E RESULTADOS A Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (CdH/UFMG) é um programa interdisciplinar de pesquisa e extensão voltado à consolidação e promoção de direitos. Por meio de advocacia estratégica em direitos humanos e de atividades junto à sociedade civil, a CdH tem a finalidade de produzir impactos e transformações na realidade social, além de promover uma formação humanística e complexa de seus próprios integrantes por meio de capacitação em direitos humanos e suas formas de proteção no âmbito nacional e internacional. A necessidade de uma prática extensionista com vistas à utilização da tecnologia aplicada faz-se essencial para a manutenção dos direitos fundamentais. Nesse sentido, uma das vertentes de atuação da CdH/UFMG de modo direto com a tecnologia social consiste no desenvolvimento de um aplicativo (app mobile) denominado “Aonde Ir”. Em fase de elaboração

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por meio de uma parceria com o Projeto de Pesquisa Observatório pela Qualidade da Lei e com o grupo de incubadoras de empresas juniores para empreendedorismo da UFMG, o aplicativo consistirá em uma plataforma para dispositivos móveis, capaz de indicar ao usuário o procedimento que deverá ser por ele adotado, quando da ocorrência de algum tipo de violação de direitos humanos, e o órgão ou entidade a que poderá recorrer. Ele funcionará como uma ferramenta tecnológica de acessibilidade aos direitos fundamentais, atuando também na articulação e aferição da qualidade dos serviços e políticas públicas, a partir da avaliação dos usuários na plataforma. Além disso, outros dos trabalhos da Clínica, com a tecnologia e em prol dos direitos humanos, consistem na elaboração de vídeos que auxiliaram na orientação e crítica quando da violação de direitos, bem como na oportunidade de divulgar os pontos de vista de componentes dos próprios grupos com quem o Programa trabalha. Alguns desses versaram: (i) sobre o combate à pornografia não consensual, para fins de conscientização acerca dessa prática; (ii) sobre a explicação de modo didático quanto ao que consiste o Termo de Ajustamento de Conduta celebrado entre empresas10 e Estado, por ocasião do rompimento da barragem de Fundão – Mariana/MG, divulgado para comunidade indígena atingida pelo desastre; (iii) sobre a comunidade Krenak, com depoimento pessoal dos próprios índios atingidos pelas barragens; (iv) sobre a cultura haitiana, demonstrando as celebrações dessa comunidade, por ocasião do Dia da Bandeira no Haiti. Nesse sentido, o Programa tem a concepção de que a tecnologia deve ser instrumentalizada com o objetivo de promover direitos. Assim, as plataformas virtuais são utilizadas não apenas para proporcionar formas de contato e divulgar a atuação da CdH/UFMG, mas também para o próprio trabalho de promoção de direitos humanos. Nesse prisma, está incluída a mobilização social, o acesso à informação sobre Direitos Humanos e o fortalecimento de pautas invisibilizadas. Essa perspectiva se coaduna com o entendimento sustentando ao longo desse capítulo: o sujeito central do desenvolvimento tecnológico, do direito de acesso à informação, é o ser humano. Assim, entende-se que devem ser instrumentalizadas as tecnologias sociais como um instrumento de transformação da vida das pessoas. Isso também é parte da metodologia a ser seguida pelas clínicas de Direitos Humanos, aí incluso o trabalho de advocacy, compreendido enquanto a mobilização e pressão sobre as instituições para influenciar políticas públicas. 10



As empresas Samarco, Vale e BHP Billiton estão envolvidas direta e indiretamente no desastre do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG, que contaminou todo o curso do Rio Doce, e celebraram acordo com a União e estados de Minas Gerais e Espírito Santo, para evitar a continuidade de ação judicial que corre em seu prejuízo.

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A CdH/UFMG percebe o potencial dessas ferramentas quando se vê o alcance de alguns desses materiais: o vídeo sobre o combate à pornografia não consensual11 (ou divulgação não consensual de imagens íntimas) teve mais de 10 mil visualizações e mais de 230 compartilhamentos, o que indica o interesse pelo tema, que tem afetado um grande número de mulheres em todo o país. Ademais, cabe ressaltar que o objetivo da campanha não era somente informar as vítimas, mas também dissuadir potenciais agressores e atingir todos os membros da sociedade que, muitas vezes, contribuem para agravar o quadro de exclusão dessas mulheres, condenando-as por seu comportamento sexual. Assim, pode-se dizer que a campanha foi bem-sucedida e coerente com a metodologia clínica. Para dar continuidade a esse trabalho, construiu-se, em conjunto com a equipe do canal Rede Minas, da televisão aberta, uma campanha de VT’s sobre a pornografia não consensual, que foi veiculada para todos os seus espectadores. A elaboração e divulgação de cartilhas online também se destaca por sua capacidade informativa. Junto às pílulas de rádio e às postagens no Facebook, elas chamam a atenção da comunidade para determinadas violações de direitos ou para as formas de superá-las. Todas essas campanhas contribuem para que o público busque o auxílio da Clínica para uma assessoria jurídica. Dessa forma, mulheres e homens vítimas de pornografia não consensual entraram em contato para buscar orientações sobre seus direitos; homens e mulheres trans solicitaram uma atuação judicial da CdH/UFMG, no âmbito da Divisão de Assistência Judiciária da UFMG, para retificação de registro civil e de gênero. Entende-se que toda essa atividade digital ajuda a construir a confiança no trabalho do programa, para que grupos vulnerabilizados se sintam seguros ao procurar a equipe da CdH/UFMG e para que tantas outras pessoas possam conhecer alguns de seus direitos e reivindicá-los. Reforçar pautas por meio do uso das tecnologias digitais também é importante para formar redes de proteção, tanto entre os grupos de atingidos por violações, quanto entre os órgãos, organizações e instituições que trabalham para combater essas violações. Nesse sentido, não apenas as publicações em plataformas como Facebook e site contribuem, mas o aplicativo em desenvolvimento pela CdH/UFMG será de grande valor para reforçar esse diálogo entre sujeitos de direito e instituições. 11



O fenômeno da pornografia não consensual, pornografia de vingança ou revenge porn consiste na divulgação de imagens íntimas de uma pessoa, sem o seu consentimento. Trata-se de um delito em que a maioria das vítimas é mulher e que, frequentemente, leva à sua exclusão social e quebra de laços afetivos. A CdH/UFMG trabalhou com essa temática em 2015 e elaborou recomendação a um projeto de lei que abordava a questão, além de desenvolver outras ações em torno dessa discussão. A recomendação está disponível em: .

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Destarte, o desenvolvimento de tecnologias na prática extensionista das Ciências Sociais tem sido um grande desafio, visto que há escassez de recursos disponíveis para utilização com esses fins. No entanto, espera-se que com o advento do novo marco regulatório de ciência e tecnologia, essas dificuldades possam ser superadas. Nesse sentido, a CdH/UFMG já vem caminhando na construção de parcerias com agentes especializados para a produção da plataforma, por meio da cooperação com empresas juniores no seio da Universidade. Contudo, ainda se espera que, com a nova legislação vigente, seja maximizada a capacidade de transformação da extensão universitária em direitos humanos, inclusive no que concerne àquelas que usam da metodologia clínica. Desse modo, cabe reconhecer que uma alteração de política pública capaz de proporcionar o desenvolvimento de fato do país em tecnologia e inovação, por sua vez, só obterá êxito se houver verdadeira implicação dos atores sociais, em especial das universidades, vez que se tratam de centros de desenvolvimento do saber e formação dos futuros profissionais. CONSIDERAÇÕES FINAIS À luz dos parâmetros nacionais e internacionais, observa-se que no direito ao desenvolvimento tecnológico se faz uma forma de efetivação dos direitos fundamentais, ao passo em que este propicia a conjugação entre as garantias econômicas, sociais e culturais. O desenvolvimento não deve possuir uma concepção restrita, na medida em que a disseminação da ciência, tecnologia, inovação e inclusão digital levam à liberdade do saber, isso porque de nada vale uma falsa ilusão de desenvolvimento, se os supostos receptores desse não forem beneficiados. Nesse sentido, deve ser reconhecida a relevância do ambiente universitário como local de transformação social, seja por meio do ensino ministrado ou pelos retornos ofertados à sociedade com as práticas extensionistas. A CdH/UFMG, por exemplo, é um programa que objetiva a efetivação de direitos, ofertando à sociedade um retorno para além do acadêmico. Com esse fim, a Clínica também entende que utilizar das ferramentas que o desenvolvimento tecnológico fornece é essencial para uma atuação jurídica mais articulada e com poder de prevenir violações. REFERÊNCIAS OEA/CIDH. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. O direito de acesso à informação no marco jurídico interamericano. 2ª ed., OEA/Ser.L/V/II. CIDH/RELE/INF. 9/12. 2011. (Original: Espanhol). Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016

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About Ushahidi. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016 ALMEIDA, Daniella Rocha; CRUZ, Angela Duran Aparecida. O Brasil E A Segunda Revolução Acadêmica. Interfaces Da Educação, v. 1, n. 1, p. 53-65. 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.  DUARTE, Adriana Bogliolo Sirihal. Informação, Sociedade e Inclusão Digital. In: REIS, Alcenir Soares dos; CABRAL, Ana Maria (org.). Informação, Cultura e Sociedade: interlocuções e perspectivas. Belo Horizonte, Novatus, 2007. ETZKOWITZ, Henry (2003). Research groups as “quasi-firms”: the invention of the entrepreneurial university. Research Policy 32: 109-121. In: AUDY, Jorge Luís Nicolas. Entre a tradição e a renovação: os desafios da universidade empreendedora. A Universidade no Brasil: concepções e modelos, p. 299, 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.  FUJINO, Asa e STAL, Eva. As relações universidade-empresa no Brasil sob a ótica da Lei da Inovação. Revista de Administração e Inovação, v. 2, n. 1, p. 05-19, São Paulo, 2005. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.  LOPES, M. A. A Pesquisa Pública e a Era Big Data. 2014. [Artigo publicado pelo jornal Correio Braziliense]. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2016. MOREIRA, Lucineia Maria Bicalho. Indicadores de produção científica e tecnológica na interação universidade/ empresa. Perspectivas em Ciência da Informação 6.1 (2001). Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.   ONU. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 1966. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016. PINHEIRO, Marta Macedo Kerr, MOURA, Maria Aparecida. A construção de indicadores nacionais de acesso público aos meios digitais: princípios e perspectivas. In: PINHEIRO, Marta Macedo Kerr; MOURA, Maria Aparecida; SILVA, Helena Pereira; JAMBEIRO, Othon; ANGELO, Edna da Silva; ALBUQUERQUE, Heloisa Helena Fernandes Soares de; CÂMARA, Mauro Araújo. Observatório da inclusão digital: descrição e avaliação dos indicadores adotados nos programas governamentais de infoinclusão. Belo Horizonte: Gráfica Orion, 2007. SCHWARZELMÜLLER, Anna F. Inclusão digital: uma abordagem alternativa. Salvador, 2005. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.  SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 1-75. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.  SOARES, Fabiana de Menezes. Produção do direito e conhecimento da lei a luz da participação popular e sob o impacto da tecnologia da informação. 2002. 342 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, Belo Horizonte/MG. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.  UN. Declaration on the Right to Development. 1986. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016. VERDE, P. R. Entrevista concedida a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa. 2016. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2016. WARSCHAUER, Mark. Tecnologia e inclusão social: a exclusão digital em debate. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Editora Senac, 2006. CAVALLARO, James; ELIZONDO GARCÍA, Fernando. ¿Cómo establecer una Clínica de Derechos Humanos? Lecciones de los prejuicios y errores colectivos en las Américas. Revista Derecho en Libertad, Monterrey, n. 6, p. 124-140, jul.-dic. 2011.

Capítulo 10 O Caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil e sua Repercussão no Ordenamento Jurídico Brasileiro1 Bianca da Silva Medeiros2 Diego Lima Azevedo3 Jordan dos Santos Aguiar4 Orientadora: Profa. Dra. Lidiane Nascimento Leão5

RESUMO: A investigação científica acerca da interação existente entre o Direito internacional e o direito interno é de grande relevância. Nesse sentido, o presente capítulo busca realizar o estudo do Caso de Damião Ximenes Lopes vs. Brasil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), cujo objetivo geral é ressaltar os aspectos que tenham contribuído de maneira significativa no contexto de legislação e discussão em nível nacional acerca da matéria do caso, qual seja, os direitos das pessoas com deficiência intelectual. De tal modo, pode-se identificar que a demanda trouxe visibilidade quanto à insuficiência estatal no que tange à proteção desse grupo, além de propulsionar inovações legislativas, até mesmo em nível constitucional, bem como políticas públicas orientadas a alterar positivamente a realidade desse grupo. PALAVRAS-CHAVE: Direito Internacional dos Direitos Humanos – Corte Interamericana de Direitos Humanos – Damião Ximenes Lopes vs. Brasil – Pessoa com Deficiência – Repercussão Interna. ABSTRACT: Scientific research about the interaction between International Law and domestic law have great relevance. On this sense, this articles seeks to do a case study about Damião Ximenes Lopes vs Brazil, judged by the Inter-American Court of Human Rights (IACHr), whose general objective is to highlight those aspects that have contributed significantly in the context of law and discussion at the national level on the matter of the case, namely, the rights of people with intellectual disabilities. In this way, we can identify demand brought visibility as to state failure regarding the protection of this group, and propel legislative innovations, even at constitutional level, as well as public policies to positively change the reality of this group. KEYWORDS: Human Rights International Law – Inter-American Court of Human Rights – Damião Ximenes Lopes’ Case – People with disabilities – Domestic Relevance. 1



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Artigo resultado de atividade de pesquisa da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Instituto de Ciências da Sociedade. Programa de Ciências Jurídicas. Curso de Direito. Membro voluntário da Clínica de Direitos Humanos da UFOPA. E-mail: [email protected]. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Instituto de Ciências da Sociedade. Programa de Ciências Jurídicas. Curso de Direito. Membro voluntário da Clínica de Direitos Humanos da UFOPA. E-mail: [email protected]. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Instituto de Ciências da Sociedade. Programa de Ciências Jurídicas. Curso de Direito. Membro voluntário da Clínica de Direitos Humanos da UFOPA, bolsista mobilidade acadêmica externa e aluno de iniciação científica. E-mail: [email protected]. Professora Adjunta do Programa de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Doutora em Direito, área de concentração Direitos Humanos, pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFOPA. E-mail: [email protected].

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1. INTRODUÇÃO O estudo da interação entre o sistema jurídico doméstico e a jurisdição internacional é de vital importância para a compreensão da importância do litígio estratégico enquanto motor de mudanças sociais. Nessa esteira, o Sistema Interamericano, em especial o seu órgão contencioso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), tem se revelado um espaço ideal para o fomento de debates e reconhecimento de novos direitos no âmbito da América Latina. Por essa razão, a Clínica de Direitos Humanos da UFOPA faz uso da análise da jurisprudência da Corte IDH como instrumento para a compreensão das dificuldades e do potencial da advocacia internacional na materialização de resultados internos. Reconhecida essa importância, passou-se a escrutinar quais casos mereciam análise mais aprofundada, através do estabelecimento de dois parâmetros: a) grande relevância social do mérito discutido; b) efetiva repercussão no âmbito interno. O caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil foi selecionado por preencher essas duas características. Primeiramente, a contenda trouxe luz a uma situação de discriminação de um grupo extremante vulnerável: as pessoas com deficiência intelectual, cuja matéria até então ainda não havia sido objeto de discussão junto aos órgãos protetivos de direitos humanos da sociedade internacional como um todo. Ademais, a repercussão que se deu no âmbito interno pós-sentença de mérito foi impactante a ponto de servir de motor de propulsão a uma série de inovações legislativas e políticas públicas em favor das pessoas com deficiência de uma maneira geral. Ainda, levou-se em consideração o fato de ter sido a primeira sentença de mérito proferida pela Corte IDH em desfavor do Estado Brasileiro, o que maximizou ainda mais a repercussão midiática do caso. Diante dessas constatações, chegou-se à seguinte problemática: como o caso Damião Ximenes Lopes impactou o ordenamento jurídico brasileiro? A partir de então, o trabalho procurou investigar quais as transformações trazidas pelo presente caso no âmbito brasileiro, bem como delinear os contornos interpretativos que nortearam a sentença de mérito. Para tanto, fez-se uso do método dedutivo, através de um estudo preliminar dos sistemas de proteção, passando pela investigação dos fatos e normas concernentes ao precedente em questão, utilizando-se do procedimento de revisão bibliográfica, através da pesquisa documental em legislação, jurisprudência e obras científicas que trataram anteriormente do assunto abordado. Enfim, pode-se averiguar que a violência sofrida por Damião Ximenes Lopes serviu de mola propulsora para a visibilidade das pessoas com deficiência

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mental enquanto sujeitos de direitos, além de uma série de políticas públicas relacionadas ao alinhamento dos estabelecimentos manicomiais com as normativas de direitos humanos. Além do mais, criou fôlego para o lobby legislativo acerca da causa das pessoas com deficiência em geral, o que gerou uma série de diplomas legislativos posteriores, tais como o Decreto nº 6.949, de 2009, bem como a Lei nº 13.146 de 2015 (estatuto da pessoa com deficiência). 2. O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS O Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) nasceu de um processo reacionário ocorrido na Segunda Guerra Mundial, orientando a sociedade da época acerca da necessidade de intervenção estatal no sentido de promover a proteção e as garantias dos direitos do homem. A partir de então, iniciou-se um processo de construção de regimes democráticos de direito, pautados na proteção dos Direitos Humanos. Tal como afirma Hanna Arendt (1979, apud PIOVESAN, 2006, p. 38), tais direitos não são fruto de uma determinação formada, normativa, mas de um construído, um processo de percepção, absorção e externalizações dos direitos que, inerentes ao homem, precisam ser reconhecidos. Esse reconhecimento advém não de uma ação em particular, mas de um conjunto de lutas e discussões que permeiam as sociedades pelos séculos. Nesse cenário de pós-guerra e de redefinição dos objetos a serem tutelados pela comunidade internacional, entendendo-se, agora, a dignidade da pessoa humana e a vida como principais elementos, surgem diversos tratados internacionais dispondo sobre a matéria. Essas convenções são o quinhão normativo que caracterizam, sob a ótica neoconstitucional, a presença do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto elemento primordial nas relações jurídicas ou daquelas não estabelecidas em sociedade. Desse modo, o destaque dado aos textos constitucionais, e, por conseguinte, o reconhecimento desse superprincípio nos ordenamentos jurídicos. Assim, visando o cumprimento da determinação magna de efetivação da dignidade da pessoa humana, principalmente no que diz respeito à defesa, garantia e proteção dos direitos humanos, na realidade latina, surgiu o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) com o intuito de promover e proteger tais prerrogativas no continente. Nesse sentido, o preâmbulo da Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA de 1948 afirma que: O sentido genuíno da solidariedade americana e de boa vizinhança não pode ser outro que o de consolidar neste Continente dentro do marco das instituições demo-

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cráticas, um regime de liberdade individual e de justiça social, fundado com respeito aos direitos essenciais do homem. (OEA, 1948, [s/p])

O Sistema passou a existir formalmente com a aprovação da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem na 9ª Conferência Internacional Americana realizada em Bogotá em 1948, onde também foi aprovada a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), que ratificava os direitos fundamentais da pessoa humana. O sistema é composto por dois órgãos de fiscalização, a saber, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH e a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CorteIDH. A Corte, enquanto órgão fundamental do Sistema Interamericano, tem o papel de aplicar e interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH. Ela é composta por sete juízes, nacionais de Estados-membros da OEA, tendo duas principais competências, sendo elas a consultiva e a contenciosa. A primeira é referente à possibilidade de todos os Estados-membros, partes ou não do Pacto de San José, consultarem sobre a interpretação da CADH ou demais tratados regionais, bem como o relacionamento das normas internas com os tratados citados. Sua função contenciosa, por sua vez, é limitada aos Estados-partes da CADH que reconheçam essa jurisdição para julgar qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições da CADH que lhe seja submetido (art. 61, III). Na sua função contenciosa, a CorteIDH prolatou decisões significativas que muitas vezes influenciaram ordenamentos jurídicos de variados países. No Brasil, não foi diferente no que diz respeito às modificações legislativas acontecidas pela primeira vez no caso de Damião Ximenes Lopes, instrumento de análise deste estudo. 3. BRASIL DE ISOLAMENTOS Os direitos voltados às pessoas com deficiência intelectual são relativamente atuais. Tal proteção iniciou-se da Declaração de Salamanca, de 1994, que buscava promover a educação inclusiva na rede de ensino regular dos países com a previsão de direitos para crianças com necessidades especiais, entre as quais inserem-se as crianças com deficiência intelectual e mental. No entanto, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPC, assinada pelo Brasil em 2007) foi um marco no que tange à proteção desses direitos. Tal diploma possui o que Amita Dhanda (2008) denomina de “sabedoria do atrasado”, cujo significado é, basicamente, entender os pontos que foram mais polêmicos a respeito da temática proposta

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e as análises sobre as outras normas de direitos humanos que não necessariamente envolvam a deficiência intelectual. A Organização Mundial de Saúde – OMS propôs três níveis para esclarecer todas as deficiências, a saber: deficiência, incapacidade e desvantagem social. Por sua vez, a Convenção da Guatemala, internalizada à Constituição Brasileira pelo Decreto nº 3.956/2001, no seu artigo 1º, define deficiência como “[...] uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social”. Essa definição ratifica a deficiência como uma situação, assim como foi proposto, algumas vezes, para a denominação daqueles que possuem deficiência, nas suas mais diferentes formas. (BATISTA; MANTOAN, 2007, p. 14). De acordo com o Decreto nº 5.296, a deficiência mental, atualmente denominada “deficiência intelectual”, refere-se ao “funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas”. (BRASIL, 2004) No que diz respeito à deficiência mental, notória é a definição aprovada em 6 de outubro de 2004, pelo Documento reconhecido como “Declaração de Montreal sobre a Deficiência Intelectual”, durante a Conferência Internacional sobre Deficiência Intelectual da Organização Pan-americana de Saúde (OPS) e Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo Sassaki (2005, p. 7), o termo “deficiência intelectual” expressa o fenômeno propriamente dito, ou seja, ao funcionamento do intelecto. O autor relata que os termos “deficiente mental” e “doente mental” têm gerado muita confusão, há vários séculos, para a denominação das pessoas as quais apresentam limitações cognitivas, ou seja, o termo era encarado como pejorativo e inadequado, pois ainda carregava consigo a ideia de ineficiência, idiotia e atraso. Por haver o entendimento de que o termo “deficiência intelectual” é mais adequado para referir-se ao funcionamento do intelecto e não ao funcionamento da mente como um todo, e em conformidade com as tendências contemporâneas da educação especial, preferiu-se utilizar, neste texto, a expressão “deficiência intelectual” em detrimento de deficiência mental, apesar de não terem ocorrido, ainda, as alterações formalizadoras desse entendimento na legislação que serão aqui abordadas. Em âmbito nacional, historicamente, esse termo vem carregado de uma série de períodos altamente preconceituosos. Em um passado ainda recente, as pessoas que possuíam algum tipo de deficiência intelectual eram tratadas como “aberrações” e acreditava-se que elas deveriam ser isoladas da

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sociedade já que enquanto anormais não se “encaixavam” em uma sociedade em que o equilíbrio e o discernimento, no que diz respeito à tomada de decisões, é elementar. Além disso, esse pensamento rígido entendia que um deficiente intelectual não tinha competência nem habilidade para exercer algum tipo de atividade. Sendo assim, na máquina social em que é necessária a contribuição de toda e qualquer pessoa, movimentando-a no sentido de fazer contribuições significativas quanto às atividades laborativas, não tinha espaço para alguém que de nenhuma forma contribuía e, além disso, tomava tempo e trabalho daqueles que são “saudáveis” e poderiam estar contribuindo ao invés de dispensar cuidados específicos sobre o deficiente. Nessas perspectiva, foi estabelecido no Brasil os institutos manicomiais. O texto de Machado de Assis antecipa, em quase 40 anos, as discussões que aconteceriam em relação aos estados de loucura no Brasil. Em “O Alienista”, existe uma fiel descrição do preconceito envolvido e, principalmente, da resposta da sociedade no processo de exclusão do deficiente intelectual. O louco era, segundo Foucalt (2007, p. 10-11), “aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato”. Esse modelo de manicômio era praticamente universal, predominantemente asilar e manicomial, com milhares de pessoas abandonadas em grandes instituições financiadas pelo poder público. A lógica do manicômio é tornar a pessoa em sofrimento psíquico uma pessoa sem direitos, pode-se fazer tudo ou negar tudo a ela. 4. CASO DAMIÃO XIMENES LOPES: DIGNIDADE, SAÚDE E VIDA Damião Ximenes Lopes tinha cinco irmãos e era de uma família pobre no interior do Ceará. Com uma vida sofrida e repleta de situações de dificuldades, não se sabe precisar o que desencadeou os problemas de cunho psicológico de Damião e Cosme. Quando adolescentes tinham crises psiquiátricas constantes. As crises de Damião foram se agravando e chegaram a um ponto crítico em dezembro de 1995, quando foi levado pela família à Casa de Repouso de Guararapes, em Sobral/Ceará. Em tal ocasião ele ficou internado por dois meses e passou a usar constantemente medicação. Em 1999, diante de vários e graves períodos de crise manifestados por Damião, sua mãe, Albertina Ximenes Lopes, foi obrigada a interná-lo novamente na única instituição psiquiátrica disponível na região.

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Quando a mãe de Damião foi visitá-lo três dias depois, encontrou-o na seguinte situação: Ele [Damião] veio até ela [mãe] caindo e com as mãos amarradas atrás, sangrando pelo nariz, com a cabeça toda inchada e com os olhos quase fechados, vindo a cair a seus pés, todo sujo, machucado e com cheiro de excrementos e urina. Que ele caiu a seus pés dizendo: polícia, polícia, polícia, e que ela não sabia o que fazer e que pedia que o desamarrassem. Que ele estava cheio de manchas roxas pelo corpo e com a cabeça tão inchada que nem parecia ele. (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2004, p. 599)

Horas depois, Damião veio a óbito e em seu laudo constava que teria acontecido por causas naturais. Irene Ximenes Lopes, irmã de Damião, narra que “No hospital disseram que eu não fosse dar parte, pois não ia dar em nada. Mesmo assim, eu fui à polícia de Sobral e dei queixa, mas nada adiantou. Por lá mesmo abafaram tudo”. (CORTE INTERAMERICANA apud PAIXÃO, 2007, p. 4). Isso fez com que a família buscasse esclarecer o que de fato teria ocorrido a Damião. Foi através de uma petição de Irene que o caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na qual ela denunciou os fatos ocorridos com o seu irmão. Porém, somente em 2004, o caso chegou à CIDH. A denúncia aos poucos foi sendo tramitada conforme as normas de justiça internacional e, em 4 de julho de 2006, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação a direitos específicos previstos na CADH. Nesta sentença condenatória, a Corte deixa claro que o Brasil: [...] tem responsabilidade internacional por descumprir, neste caso, seu dever de cuidar e de prevenir a vulneração da vida e da integridade pessoal, bem como seu dever de regulamentar e fiscalizar o atendimento médico de saúde [...] que o Estado não proporcionou aos familiares de Ximenes Lopes um recurso efetivo para garantir acesso à justiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação, identificação, o processo e, [...], a punição dos responsáveis pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, p. 55).

Ressaltou que o fato de as violações discutidas terem ocorrido em instalação privada não exime o Estado Brasileiro do dever de garantir o direito à vida e integridade pessoal das pessoas nessa situação excepcional, bem como do dever de investigar, com o uso de todos os meios possíveis, a causa e os responsáveis por essas violações, de maneira orientada a desvendar a verdade (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, p. 56). Por essa razão, reconheceu as violações aos artigos 4.1, 5.1 e 5.2 e 1.1 da

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Convenção Americana (direito à vida, integridade pessoal e obrigação de respeitar os direitos) Nesse diapasão, a CorteIDH reconheceu a violação ao artigo 5º da Convenção Americana (direito à integridade física), em consonância com a obrigação de respeitar os direitos exposta no artigo 1.1 do mesmo diploma. Depreendeu o sofrimento e angústia sofrida pela vítima através das provas constantes nos autos. Também verificou as sequelas psicológicas sofridas por Irene Lopes através de seu depoimento pessoal. O irmão gêmeo da vítima, que do mesmo modo sofre de distúrbios psicológicos, também teve a violação de sua integridade psíquica reconhecida pela Corte. Finalmente, que o Estado tem responsabilidade pela violação da integridade pessoa da senhora Albertina Viana Lopes e do senhor Francisco Leopoldino Lopes. Por fim, a Corte considerou que os Estados estão obrigados a proporcionar recursos efetivos contra as violações aos direitos humanos (art. 25 da CADH), que devem ser alinhados com o devido processo legal (art. 8.1 c/c o art. 1.1 da CADH) em tempo razoável. No presente caso, observou-se que a conduta dos agentes estatais na aferição da causa mortis da vítima, bem como a mora das autoridades policiais em proporcionar uma resposta efetiva aos familiares da vítima foram consideradas pela Corte como violação dos artigos acima elencados. 4.1. Repercussão da sentença no Brasil Sobre como o direito internacional reflete no âmbito interno de um país, é interessante a reflexão de Víctor Abramovich que fala da importância de movimentos sociais e: Ao mesmo tempo, essas normas internacionais se incorporam no âmbito nacional pela ação dos Congressos, governos, sistemas de justiça e também com a participação ativa de organizações sociais que promovem, demandam e coordenam essa aplicação nacional com as diversas instâncias do Estado. A aplicação de normas internacionais no âmbito nacional não é um ato mecânico, mas um processo que envolve também diferentes tipos de participação e deliberação democrática e inclui uma ampla margem para a releitura ou reinterpretação dos princípios e normas internacionais em função de cada contexto nacional. (ABRAMOVICH, 2009, p. 25)

Seguindo essa perspectiva, é importante também ressaltar que as decisões da CorteIDH possuem um caráter político forte, já que não possuem caráter coercitivo para com um Estado, isto é, cada Estado é autônomo e possui a sua soberania nacional. Porém, os países que aceitaram participar do SIDH acordaram com um duplo dever: a obrigação de não fazer, no caso

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não violar os direitos humanos, e um dever positivo de garantia dos direitos tutelados. Com a violação de um ou dos dois deveres, o Estado é responsabilizado internacionalmente. No que tange ao processo de aceitação da competência da CorteIDH, o Brasil, apesar de ter reconhecido a jurisdição obrigatória da corte em 1988, só promulgou tal declaração anos depois. Nesse sentido, discorrem Unneberg e Melo (2014), (...) o Brasil optou por não se submeter à jurisdição do órgão de direitos humanos no momento da ratifica- ção da Convenção Americana. Embora o Brasil tenha ratificado a CADH pelo Decreto nº 678/1992, apenas veio a reconhecer a competência contenciosa da CORTEIDH pelo Decreto Legislativo nº 89/1998, depositando o aceite junto à Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos em 10 de dezembro de 1998, com cláusula temporal de competência cujo termo a quo da jurisdição da Corte seria a data da promulgação do ato normativo de reconhecimento.

O Brasil, ao ser condenado por sentença prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) no caso aqui analisado, recebeu uma série de recomendações que preveniriam novas violações de direitos humanos que porventura ocorressem, além de pecuniárias a serem recebidas pelas vítimas que a Corte relacionava ao dever de reparar. Rosato e Correia (2004, p. 103) discorrem acerca do assunto: Dessa maneira, a sentença condenando o Brasil, no caso de Damião, serve como exemplo a ser seguido, na medida em que demonstra existir mecanismos internacionais eficientes que protegem direitos e reparam adequadamente as vítimas de violações. Ao mesmo tempo, esse caso pode ser avaliado como tendo êxito, já que a demanda pleiteada pela família foi atendida e o Brasil foi condenado por graves violações de direitos humanos. Em outras palavras, esse caso funciona como modelo em uma cultura acostumada a não reivindicar direitos do ponto de vista internacional.

Tais sugestões foram listadas na sentença proferida pela retrocitada Corte: 6. O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, nos termos dos parágrafos 245 a 248 da presente Sentença. 7. O Estado deve publicar, no prazo de seis meses, no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação nacional, uma só vez, o Capítulo VII relativo aos fatos provados desta Sentença, sem as respectivas notas de pé de página, bem como sua parte resolutiva, nos termos do parágrafo 249 da presente Sentença. 8. O Estado deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência

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mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença, nos termos do parágrafo 250 da presente Sentença. 9. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, no prazo de um ano, a título de indenização por dano material, a quantia fixada nos parágrafos 225 e 226, nos termos dos parágrafos 224 a 226 da presente Sentença. 10. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e para os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, no prazo de um ano, a título de indenização por dano imaterial, a quantia fixada no parágrafo 238, nos termos dos parágrafos 237 a 239 da presente Sentença. 11. O Estado deve pagar em dinheiro, no prazo de um ano, a título de custas e gastos gerados no âmbito interno e no processo internacional perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a quantia fixada no parágrafo 253, a qual deverá ser entregue à senhora Albertina Viana Lopes, nos termos dos parágrafos 252 e 253 da presente Sentença. 12. Supervisionará o cumprimento íntegro desta Sentença e dará por concluído este caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto nesta Sentença. No prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à Corte relatório sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento. (Grifo nosso)

Quanto ao cumprimento das medidas sentenciadas, o Decreto Presidencial nº 6.185/2007 autorizou o pagamento das indenizações. “Todavia, em 17 de maio de 2010, em sede de supervisão de cumprimento da sentença, a Corte constatou que a investigação penal dos culpados permanecia pendente.” (UNNEBERG; MELO, 2014, p. 69). Além disso, é importante ressaltar que esse caso foi pioneiro tanto por ter sido o primeiro caso cuja vítima sofria de deficiência mental, quanto por ter sido a primeira condenação do Brasil na CorteIDH, o que foi denominado por Unneberg e Melo de “dupla relevância” (2014, p. 69). No que tange às mudanças que o caso estimulou no âmbito da salvaguarda dos direitos das pessoas com deficiência, pode-se ressaltar a Lei Nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe acerca da “proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (BRASIL, 2001). Rosato e Correia afirmam que o Caso aqui discutido foi essencial para que essa lei, que havia mais de 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, fosse aprovada. Elas elucidam a própria defesa do Brasil que citou a lei como uma das formas que buscou “dar respostas à demanda internacional” (ROSATO; CORREIA, 2004). Tal lei fez com que os manicômios fossem proibidos e estabeleceu como novo modelo de suporte em saúde para os deficientes mentais fossem revitalizados através de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Além do mais, a promulgação do Decreto nº 6.949, em 25 de agosto de 2009, através do rito especial estabelecido no artigo 5º, § 3º, da

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Constituição da República, foi de especial importância no processo de afirmação dos direitos das pessoas com deficiência pós-Damião Ximenes. Tal decreto concedeu força de emenda à constituição à convenção de Nova Iorque sobre as pessoas com deficiência e seu protocolo facultativo, assinados em 2007, ampliando o bloco de constitucionalidade referente a essas pessoas em condições especiais. Nesse diapasão, cabe destacar a promulgação da recente Lei nº 13.146, de 2015, que veio para complementar a convenção de Nova Iorque supracitada, sendo, portanto, denominada “Estatuto da Pessoa com Deficiência”. Tal norma provocou profundo alinhamento do ordenamento jurídico às necessidades especiais das pessoas com deficiência, modificando o regime das incapacidades do direito civil, além do funcionamento da tutela e da curatela enquanto afetos a esse grupo, bem como inserindo o instituto da tomada de decisão apoiada, permitindo uma ampliação da autonomia dessas pessoas no que concerne à gestão de suas vidas. 4.2. Repercussão da condenação do Brasil no ordenamento jurídico brasileiro A decisão proferida pela Corte contou com a participação da médica psiquiátrica Lídia Costa, que ressaltou que a morte de Damião foi causada por agentes externos, pelas lesões traumáticas que tinha no corpo. De acordo com a médica, conforme o Protocolo de Istambul, as lesões encontradas no corpo de Damião são consideradas danos típicos de traumas encontrados em pessoas que foram torturadas (CIDH. CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL. SENTENÇA, 2006). Nessa linha, ressalte-se o descredenciamento da Casa de Repouso Guararapes, em 10 de julho de 2000, seguida pela aprovação da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos dos portadores de transtornos mentais e uma série de medidas que ainda estão em curso tendo relação com as denúncias do Caso Damião Ximenes. A Lei nº 10.216/2001 garante a defesa dos direitos do paciente mental, consagrando a mudança do modelo de assistência em instituições como a Casa de Repouso Guararapes por uma rede de cuidados aberta e localizada na comunidade e o controle externo da internação psiquiátrica involuntária, nos termos propostos pela Declaração de Direitos do Paciente Mental da ONU de 1991 (SPIELER; MELO; CUNHA, 2010, p. 79).

Essa Lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

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A sua aprovação produziu uma série de ações de mudança no panorama assistencial em saúde mental, com a abertura de um grande número de serviços públicos de base comunitária, redução drástica do número de leitos psiquiátricos, inversão do financiamento prioritário dos hospitais para os serviços abertos, e uma maior atenção aos direitos dos pacientes. Além disso, “projetos de reinserção social através da produção de cultura e geração de renda visando à melhoria da sociabilidade, qualidade de vida e redução dos estigmas que sofrem os portadores de transtornos mentais” (GAMA, 2012, p. 1398). Antes da lei supramencionada, funcionava no país tão somente a política do considerado “normal”. Entendidos como ameaças à harmonia social, os deficientes intelectuais estiveram sujeitos aos “cuidados” do Estado no tratamento que à época era considerado fundamental para a recuperação do indivíduo: o isolamento. Nesse contexto, o papel das instituições manicomiais era o de receber esse grupo social minoritário e mantê-lo distante da sociedade “normal”, ou seja, tinham em sua origem a função de rebaixar, degradar, humilhar e subtrair do indivíduo toda a liberdade e dignidade (GOFFMAN, 2005). Com o advento da reforma, muito dessa realidade foi sendo alterada, entretanto muitas críticas são dirigidas ao processo de reforma em andamento. “Essas críticas se dirigem a um amplo escopo de questões, desde a lentidão do processo, passando pela insuficiência técnica dos novos serviços até desembocar numa suposta ideologia antipsiquiátrica.” (GAMA, 2012, p. 1398). Essa ideologia, segundo algumas teorias, desmerece a atuação do médico psiquiatra, pois coloca as medidas assistenciais atuais como único meio de integração do deficiente intelectual, ou seja, de certa forma, desconsidera toda a atuação do profissional médico nos tratamentos psiquiátricos. De volta ao que arguiu a sentença referente ao caso concreto, cabe ressaltar que de acordo com a Supervisão de Cumprimento de Sentença (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010, p. 4) ficou claro que com a reforma o Brasil buscou cumprir o que foi determinado no § 248 da sentença proferida, bem como em dar seguimento à gestões no campo da promoção da saúde mental e da Justiça (LIMA; PONTES, 2015). Embora, fique clara a tentativa do Estado em cumprir o que foi determinado pela Corte, a maior reflexão que se tira do caso é a extrema morosidade brasileira no que diz respeito ao atendimento de processos pertinentes não só à violação de direitos humanos, mas a todo e qualquer processo que chegue à justiça brasileira. A demora no recebimento da denúncia criminal só mostra essa realidade. O processo criminal que teve início no ano 2000, foi julgado somente em 2009, quando o proprietário do Hospital e cinco funcionários foram condenados em primeiro grau pelo crime de maus-tratos qualificados,

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incursos nas penas do art. 136, § 2º, do Código Penal Brasileiro (LIMA; PONTES, 2015, p. 9). O processo, ainda, foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, tendo em vista os recursos e apelações propostos pelos réus. Em novembro de 2012, saiu Acórdão da Turma Julgadora da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, sem divergência de votos, reconhecendo de ofício a prescrição e a extinção da punibilidade dos condenados em primeira instância. Hoje, há o cumprimento parcial da sentença pelo Brasil, o caso continua sujeito à supervisão da Corte, somente devendo ser considerado concluído quando verificado o cumprimento integral da sentença. Caso o Brasil descumpra as determinações da Corte, estará sujeito a novo processo de responsabilização internacional. 4.3. Das distorções e a realidade hodierna No mês de abril de 2016, foi veiculada matéria no canal televisivo “Globo News” sobre a situação dos manicômios no Brasil6. Na reportagem, abordou-se, principalmente, as manifestações contrárias à nomeação de Valencius Wurch para a Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde. Isso porque Wurch foi diretor médico da Casa de Saúde Dr. Eiras, manicômio fechado em 2012 após reiteradas denúncias de graves violações de direitos humanos e maus-tratos dos pacientes. Nesse sentido, o movimento que luta pela efetivação da legislação para que sejam extintos os manicômios no Brasil teceu severas críticas e organizou manifestações para impugnar a nomeação de Valencius. Esse episódio denota que, apesar das conquistas legislativas, o Brasil ainda não conseguiu extinguir de fato os estabelecimentos manicomiais nem a ideologia manicomial persistente na atuação do Estado e na consciência social. Isso porque não basta extinguir ou derrubar os prédios físicos nos quais ocorreram as reiteradas violações de direitos humanos contra as pessoas com deficiência se as mesmas pessoas que operavam esse sistema estatal de violações a direitos humanos continuam no poder. Portanto, se de um lado a repercussão jurídica interna do Caso Damião Ximenes no ordenamento jurídico brasileiro é um processo notório, de outro, a repercussão no nível da efetividade desse conjunto de direitos positivados, ainda, é reduzida. 6



GLOBO NEWS. Sorocaba é um dos maiores símbolos da reforma psiquiátrica brasileira. Disponível em: . Acesso em: 09 de outubro de 2016.

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Com efeito, ao passo que o Estado extingue a maioria das instituições psiquiátricas por determinação/influência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ele não cria uma efetiva rede de cuidado/acolhimento às pessoas com deficiência e suas famílias. Na verdade, o que existe são políticas de saúde e de educação desconectadas direcionadas a esse grupo. A realidade demonstra, ainda, que sem o cuidado da família e sem a assistência do Estado muitos deficientes intelectuais acabam nas ruas, o que só amplia as possibilidades de violação de sua dignidade. Portanto, acredita-se que a extinção dos manicômios não é medida suficiente para fazer cessar a violação dos direitos à vida, integridade física, saúde, entre outros, das pessoas com deficiência. É imprescindível a ação do Estado no sentido de dar suporte às famílias cuidadoras dessas pessoas com deficiência, criar uma efetiva rede de cuidados especializados e multiprofissional no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e promover educação em direitos humanos em todos os níveis de ensino e para a sociedade civil com a finalidade de concretizar o reconhecimento das pessoas com deficiência. 5. O CASO DAMIÃO XIMENES LOPES E AS CLÍNICAS DE DIREITOS HUMANOS As atividades desenvolvidas no âmbito da clínica de direitos humanos se limitam, preliminarmente, ao estudo de casos paradigmáticos em direitos humanos e a preparação de equipes de competidores discentes para os torneios moot courts, que simulam os procedimentos litigiosos perante os órgãos internacionais de proteção. Uma equipe de competidores da UFOPA já participou em 2013 da Competição Julgamento Simulado do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, promovida pela American University Washington College of Law. No ano seguinte, outra equipe dessa Universidade brasileira participou da edição 2014 da ICC Moot Competition, a Competição do Tribunal Penal Internacional, em sua etapa regional promovida na cidade de White Plains, Nova Iorque. Dessa forma, o curso de ciências jurídicas da UFOPA tem consolidado uma tradição de formação de defensores de direitos humanos na Amazônia, o que culminou com a iniciativa da clínica. É dentro dessa linha que se desenvolve a importância do estudo de caso para o aprendizado e desenvolvimento de estratégias de litígio internacional. Tal coaduna-se com a proposta da metodologia clínica, que visa ser um motor de desenvolvimento de competências na graduação. Conforme Lapa e Mesquita (2015, p. 23):

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Para os estudantes de Direito, participar de clínicas de direitos humanos durante a graduação pode trazer inúmeros benefícios. Primeiro, eles aprendem que o Direito pode ser um meio para mudanças sociais e não é um fim em si mesmo. E, adicionalmente, adquirem habilidades de advocacia em geral e que também podem ser utilizadas para a advocacia em direitos humanos[...].

Assim, o caso em tela mostra-se adequado para a análise, uma vez que instigou mudanças profundas na sociedade para além da mera restituição pecuniária das vítimas afetadas, provocando alterações legislativas e das políticas públicas reservadas a esse grupo até então. Tal sucesso não se deve simplesmente à atuação da Corte IDH no caso, mas a uma série de fatores que, combinados, confluem para os resultados positivos conquistados. Primeiramente, a temática de que trata a contenda em si foi um fator predominante, dada a completa invisibilidade das reivindicações dos direitos das pessoas com deficiência intelectual até então. É neste sentido que Brewer e Cavallaro (2007, p. 790). Before the Inter-American Commission, the Ximenes Lopes case attracted the support of the Ceara legislature’s human rights commission, a major Brazilian human rights organization, psychiatric professionals, and the media. By the time the case progressed to the Court, efforts by domestic stakeholders, including local and national health commissions, had already fostered an ongoing shift from an internment model of mental health care to a system focused on ou tpatient care and increasing respect for patients’ rights.

Os autores também reforçam a articulação entre os atores políticos – a Assembleia Legislativa do Ceará –, os órgãos representativos no âmbito das políticas públicas e as organizações não governamentais – a ONG justiça global. Essa coordenação permitiu uma maior visibilidade do caso no fórum interno do país, gerando pressão social. Partindo dessas premissas, pode-se aferir a importância do estudo desse caso em específico para a capacitação discente no litígio estratégico, servindo como porta de entrada à metodologia clínica de ensino dos direitos humanos. CONCLUSÃO O caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil é um exemplo claro do potencial da litigância estratégica para a mudança social, quando combinadas a atuação do órgão contencioso com a articulação político-midiática da sociedade civil organizada. É possível, portanto, ver a diferença de como os direitos dos deficientes intelectuais eram tratados antes e depois do Caso Damião Ximenes Lopes, em que eles passaram de atores invisibilizados no cenário jurídico-legislativo internacional para sujeitos de direitos, tendo as

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suas necessidades e especificidades sendo levadas em conta no processo de tomada de decisão pública. Com isso, pode-se entender que as características do tratamento em saúde mental a que os deficientes intelectuais foram submetidos estiveram sob a lógica do tratamento manicomial, confirmando que o início da institucionalização na internação psiquiátrica na história ainda perpassa por um processo extremamente preconceituoso de isolamento, cárcere e nenhum respeito à dignidade. Ressalta-se, desse modo, a importância que o Caso Damião Ximenes Lopes teve para a legislação brasileira. Sua repercussão conseguiu fazer com que o legislador versasse sobre as pessoas deficientes e que o governo repensasse sua forma de garantir os direitos fundamentais dessas pessoas. Portanto, apesar de a extinção dos manicômios no Brasil ser um processo inacabado, é notória a influência que tem a sentença do caso em tela para as mudanças normativas em âmbito nacional e também para incitar o debate acerca dos direitos das pessoas com deficiência. Portanto, realizar um estudo desse precedente se mostra fundamental para se traçar uma linha metodológica clara de como acessar o Sistema Interamericano em busca de reformas estruturais nas políticas de Estado, em especial no que concerne a grupos marginalizados. REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, V. Das violações em massa aos padrões estruturais: novos enfoques e clássicas tensões no sistema interamericano de direitos humanos. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 6, n. 11, p. 6-39, 2009. ARENDT, Hanna. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Posfácio de Celso. Lafer. 10. ed. A Rio de Janeiro: Forense Universitária,1906-1975. BRASIL. LEI Nº 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. BRASIL. LEI Nº 11.340, DE 7 de ago. de 2006. 2006. Dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Carta da Organização dos Estados Americanos. Nona Conferencia Internacional Americana realizada em Bogotá em 1948. Disponível em: . Acesso em: 1 de agosto de 2014. CAVALLARO, J.; BREWER, S. E. Reevaluating Regional Human Rights Litigation in the Twenty-First Century: The Case of the Inter-American Court. Harvard Law school: Public Law & Legal Theory Working Paper Series, v. 102, n. 9, p. 768-827, 2007. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença do caso Damião Ximenes Lopes. Disponível em: . Acesso em: 01 de ago. de 2014. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolução do cumprimento de sentença do caso Damião Ximenes vs. Brasil. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2016. DHANDA, Amita. Construindo um novo léxico dos direitos humanos: Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências. SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos / Sur – Rede Universitária de Direitos Humanos – n. 8, jul. 2008 – São Paulo, 2008.

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Capítulo 11 Ativismo Internacional em Direitos Humanos para além do Litígio de Casos: Algumas Lições da Comissão Interamericana e suas Crises Daniel Cerqueira1

RESUMO: O presente capítulo descreve algumas lições recentes do uso de mecanismos dispostos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Após a descrição da evolução dos pilares de trabalho da CIDH e a turbulência política por ela atravessada nos últimos anos, conclui-se que o ativismo baseado exclusivamente no litígio de casos ignora os potenciais impactos de outras atribuições não contenciosas. Finalmente, conclui-se que, em um contexto de rejeição a um escrutínio internacional efetivo em matéria de direitos humanos, promovido por vários países do continente, a estratégia “litigiocêntrica” tende a expor a Comissão Interamericana a pressões políticas prejudiciais ao cumprimento do seu mandato. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos – litígio – ativismo internacional. ABSTRACT: This chapter describes recent lessons related to the use of mechanisms deployed by the Inter-American Commission on Human rights (IACHR). After describing how the IACHR working pillars have evolved and the political turbulence faced by this organism in the past years, the essay concludes that an activism that relies exclusively on the litigation of cases overlooks the potential impacts of other non-contentious functions. Finally, as several countries in the region are prone to reject an effective international human rights scrutiny, the essay concludes that a “litigation-centric” strategy can entail political pressures that could compromise the fulfillment of the Inter-American Commission’s mandate. KEY WORDS: Human Rights – litigation – international activism

I. EVOLUÇÃO DOS PILARES DE TRABALHO DA CIDH DE 1959 A 2011 O primeiro Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), de 1959, limitou seu mandato à promoção de uma cultura dos direitos humanos e ao monitoramento da situação em países que atravessavam algum tipo de crise de institucionalidade. Nesse sentido, até a década de oitenta, o trabalho mais visível da CIDH foi a realização de visitas in loco e a publicação de relatórios sobre a situação dos direitos humanos em Cuba 1



Bacharel em Direito pela UFMG, bacharel em Relações Internacionais pela PUC-MG, mestre em Direito Internacional pela Georgetown University, Estados Unidos, mestrando do Programa Estado de Direito Global e Democracia Constitucional pela Universitá degli Studi di Genova. Advogado da Fundação para o Devido Processo (DPLF, em suas siglas em inglês). E-mail: [email protected].

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(1962, 1963, 1967, 1970, 1976, 1979 e 1983), República Dominicana (1965 e 1966), Haiti (1969, 1979 e 1988), El Salvador (1970 e 1978), Honduras (1970), Chile (1974, 1976, 1977 e 1985), Uruguai (1978), Nicarágua (1978, 1981 e 1983), Panamá (1978 e 1989), Paraguai (1978 e 1987), Argentina (1980), Bolívia (1981), Colômbia (1981), Guatemala (1981, 1983 e 1985) e Suriname (1983 e 1985).2 Não obstante as atividades de maior impacto da CIDH até a década de oitenta terem sido abarcadas pelo pilar de trabalho de monitoramento à situação dos países,3 desde a sua primeira sessão de trabalho, em 1961, seus integrantes defenderam a necessidade de possuir ferramentas de proteção em favor das vítimas de violações de direitos humanos. Nesse sentido, defenderam a incorporação da faculdade de examinar denúncias, comunicações ou petições individuais, ressaltando que a ausência de tal faculdade não lhes permitia “realizar a missão que os povos da América esperavam, de defesa dos direitos humanos, pois consideravam que o seu dever não deveria limitar-se à simples promoção do respeito por tais direitos, devendo ademais zelar para que não fossem violados”.4 Ante tal posição, e seguindo a tendência dos sistemas europeu e universal de direitos humanos, os Estados membros da OEA decidiram modificar o Estatuto da CIDH, durante a Segunda Conferência Interamericana Extraordinária, celebrada em novembro de 1965 no Rio de Janeiro.5 Desde essa data a faculdade para pronunciar-se sobre petições individuais foi expressamente reconhecida, passando a ser exercida em 1967.6 Após a adoção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969, as faculdades de monitoramento e promoção e, sobretudo, o sistema de petições individuais passaram a contar com uma série de disposições, cujo conteúdo seria posteriormente incorporado 2 3

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Vide CIDH, Informes de Países. Disponível em: . Aos fins do presente artigo, os termos proteção, monitoramento e promoção estão relacionados às atribuições e faculdades que constituem os respectivos pilares de trabalho da CIDH, definidos em seu Plano Estratégico 2011-2015, sob os termos: “sistema de petições individuais, monitoramento à situação de direitos humanos nos Estados membros, e atenção às linhas temáticas prioritárias”. Vide CIDH, Plano Estratégico 2011-2015, p. 1, disponível em: http://scm. oas.org/pdfs/2011/CP26757S-2.pdf. O pilar de proteção abrange as faculdades para pronunciar-se sobre petições individuais e solicitações de medidas de urgência (cautelares e provisórias). Monitoramento abrange a supervisão ao desfrute dos direitos humanos nos Estados membros da OEA, principalmente através dos relatórios de países e temáticos, comunicados de imprensa, audiências temáticas e seções do Relatório Anual vinculados à análise da situação nos países ou em relação a certos temas de interesse da CIDH. Por último, o pilar de promoção abrange os relatórios temáticos, as capacitações, os programas de aperfeiçoamento profissional e outras iniciativas de disseminação da jurisprudência dos órgãos do sistema interamericano. CIDH, Informe sobre la labor desarrollada durante su Primer Periodo de Sesiones, 3 a 28 de outubro de 1960; Unión Panamericana, OEA/Ser.L/V/II.I, doc. 32; 14 de março de 1961, p. 11. CIDH, Informe sobre la labor desarrollada durante su Decimotercer Periodo de Sesiones, 18 a 28 de abril de 1996; União Panamericana, Secretaria Geral da OEA, Washington, D.C. OEA/Ser.L/V/II.14, doc. 35; 30 de junio de 1966, p. 3. CIDH, Plano Estratégico 2011-2015, p. 5. Disponível em: .

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ao Regulamento e ao Estatuto da CIDH, modificado pela última vez em outubro de 1979.7 Ao longo das décadas de 1990 e 2000, a Comissão buscou dotar de maior eficácia seus pilares de monitoramento e promoção por meio da criação de relatorias e unidades temáticas. A adoção de tais enfoques temáticos foi influenciada pela tendência mais ampla, consolidada no âmbito das Nações Unidas, a qual culminou com a adoção da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, em 1993. O norte ideológico de dito foro foi a indivisibilidade dos direitos humanos. Porém, seu aspecto operativo se caracterizou pela abordagem especializada, através da expansão dos grupos de trabalho e a criação de relatorias especiais e comitês temáticos no âmbito das Nações Unidas, e a coordenação de seus trabalhos por meio de um Alto Comissariado de Direitos Humanos, cujas funções iniciaram em 1994 (GORDON, 2003: 265). A consolidação dos enfoques especializados permitiu à CIDH identificar, estudar e emitir recomendações sobre os principais temas da agenda regional de direitos humanos. Os enfoques temáticos das suas Relatorias também foram de grande importância para impulsionar temas invisibilizados nas políticas públicas dos países, mas que afetavam vários direitos fundamentais de milhões de americanos e americanas. É o caso, por exemplo, das pessoas LGBTI, cujas demandas passaram a ter uma maior visibilidade no continente devido aos trabalhos da Unidade Temática criada em novembro de 2011, convertida em Relatoria em fevereiro de 2014. Na segunda metade da década de noventa, a CIDH passaria a empregar uma parte significativa dos seus recursos humanos e materiais na emissão de decisões vinculadas ao sistema de petições e ao mecanismo de medidas cautelares. Dito aumento foi mais visível a partir de 2008, o que se explica, entre outras razões, pelo processo de reorganização interna da Secretaria Executiva da Comissão entre 2005 e 2008. Desde então, criaram-se grupos especializados em atividades vinculadas a um ou mais pilares de trabalho, assim como departamentos dedicados a certas tarefas especializadas, como o Departamento de Imprensa. Considerando a situação orçamentária da CIDH antes e depois do redesenho de sua Secretaria Executiva, observa-se um aumento de 25,4% dos recursos de 2006 a 2010.8 No entanto, o aumento da produtividade na emissão de decisões relacionadas com o pilar de proteção foi bastante superior a 7



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Vide Estatuto da CIDH, aprovado mediante a Resolução 447 da Assembleia Geral da OEA em outubro de 1979, La Paz, Bolívia. Disponível em: . Vide página oficial da CIDH, seção sobre Recursos Financeiros. Disponível em: .

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essa porcentagem, atingindo um vértice em 2011, ano de início do chamado “processo de fortalecimento”. Se compararmos a eficiência da CIDH com base no número de decisões adotadas no bojo do sistema de petições, temos as seguintes cifras: a) Petições avaliadas: 1187 em 2005 e 1676 em 2010 (aumento de 41,2%). b) Decisões de arquivo de petições: 12 em 2005 e 55 em 2010 (aumento de 358 %). c) Relatórios sobre admissibilidade: 53 em 2005 e 73 em 2010 (aumento de 37,7 %). d) Relatórios de mérito: 19 em 2005 e 25 em 2010 (aumento de 31,6 %). e) Relatórios de solução amistosa: 8 em 2005 e 11 em 2010 (aumento de 37,5 %).9 II. EVOLUÇÃO DOS PILARES DE TRABALHO DA CIDH DURANTE E APÓS O PROCESSO DE FORTALECIMENTO (2011-2015) Tal como explicado anteriormente, o marco normativo que rege o mandato da CIDH passou por sucessivas modificações com o fim de aprimorar seus três pilares de trabalho, quais sejam: promoção, monitoramento e proteção dos direitos humanos. Essa evolução se caracterizou pelo primado dos dois primeiros pilares entre as décadas de sessenta e noventa; uma ênfase no pilar de proteção entre 1990 e 2011; e a conjuntura atual, iniciada em 2013, que indica uma diminuição das decisões vinculadas ao pilar de proteção e o aumento das atividades de monitoramento e promoção.10 Essa última tendência é a que tem prevalecido desde o fim do chamado “processo de fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos”. Dito processo iniciou com a criação de um Grupo de Trabalho no seio do Conselho Permanente da OEA, em junho de 2011, cuja real finalidade era cobrar a CIDH por decisões consideradas inaceitáveis por alguns países. As críticas ao órgão de direitos humanos eram antigas e vinham sendo repetidas por Rafael Correa, Hugo Chávez e outros presidentes e chanceleres do coro ideológico da ALBA. Tais críticas ganharam um contorno de tormenta diplomática com a reação virulenta do governo de Dilma Rousseff às medidas 9



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Informações obtidas através dos Relatórios Anuais da CIDH de 2005 e 2010. Disponível em: . Para uma explicação mais detalhada sobre a evolução dos pilares de trabalho da CIDH, vide Katya Salazar e Daniel Cerqueira, Desafíos del Sistema Interamericano de Derechos Humanos: Nuevos tiempos, viejos retos. Bogotá, D.C., agosto de 2015, p. 144 a 189. Disponível em: .

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cautelares ditadas pela CIDH recomendando a suspensão da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.11 Os efeitos de tal tormenta são sentidos até agora, com uma CIDH que atravessa uma profunda crise financeira.12 Durante o processo de fortalecimento, vários países foram enfáticos sobre a necessidade de a CIDH conferir um assessoramento mais ativo às autoridades nacionais na adoção de leis e políticas públicas. As recomendações contidas no relatório do Grupo de Trabalho Especial para o Fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), criado em 2011 pelo Conselho Permanente da OEA, projetam um entendimento de vários governos de que, apesar da consolidação de regimes democráticos na região, a CIDH seguia priorizando uma relação contenciosa, alheia ao diálogo e às iniciativas de promoção dos direitos humanos. Numa das primeiras sessões do Grupo de Trabalho Especial, um embaixador parafraseou essa posição, argumentando que a OEA apresentava sintomas de macromegalia institucional. Em léxico galeno, macromegalia significa o crescimento descontrolado das extremidades do corpo. A alusão a essa patologia indica um entendimento de que a Comissão havia adquirido uma fortaleza institucional superior à esperada pelos Estados a criaram, comprometendo assim a harmonia da própria OEA. Ao estabelecer um amplo processo de consulta com os usuários da SIDH para revisar suas políticas e práticas institucionais, e ao comprometer-se com uma série de atividades condizentes com as recomendações do Grupo de Trabalho Especial, a CIDH sobreviveria ao período de maior pressão política da sua história, sem que a sua autonomia e independência fossem completamente minadas. No entanto, os efeitos do mal chamado “processo de fortalecimento” não foram dissipados com a sua conclusão oficial, em março de 2013. Os gráficos abaixo explicam como a tendência de continuar priorizando o pilar de proteção foi modificada, sem que se vislumbre uma mudança de rumo na distribuição de recursos humanos e materiais da instituição para atender os diferentes pilares de trabalho.

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Vide página web da CIDH, seção sobre medidas cautelares, ano 2011, MC 382/10, comunidades indígenas da Foz do rio Xingu, Pará, Brasil. Disponível em: . Vide, por exemplo, o comunicado de imprensa da CIDH de 23 de maio de 2016, anunciando o risco de rescindir o contrato de 40% dos funcionários da sua Secretaria Executiva: .

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Gráfico 1. Relatórios sobre petições e casos aprovados pela CIDH entre 2011 e 2015

Fonte: Relatórios Anuais da CIDH de 2011 a 2015

Diferentemente do ano 2014, quando o número de decisões sobre petições e casos alcançou um nível criticamente baixo, 2015 apresentou uma pequena retomada de crescimento, particularmente em relação às decisões de arquivo (107), a qual é tomada, em geral, quando os peticionários ou as peticionárias perdem interesse na tramitação da petição ou caso.13 Ainda não há elementos para concluir que a CIDH retomou o nível de eficiência de 2011, ano de maior pico em número de decisões do pilar de proteção. De fato, a julgar pela crise financeira atravessada atualmente pela CIDH, há mais razões para concluir que a tendência de diminuição no número de decisões no referido pilar será mantida, salvo que a CIDH amplie de forma considerável o número de funcionários da sua Secretaria Executiva, responsáveis pela redação de projetos de decisões sobre petições e casos. A tendência com relação ao pilar de proteção, previamente descrita, contrasta com a de estabilização no número de atividades relacionadas com os pilares de monitoramento e promoção, nos quais se observa inclusive o aumento de certas atividades, tais como a realização de audiências.

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Vide CIDH, Relatório Anual de 2015, capítulo II. Disponível em: .

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Gráfico 2. Decisões relativas aos pilares de monitoramento e promoção entre 2011 e 2015

Fonte: Capítulo 3 dos Relatórios Anuais da CIDH de 2009 a 2013 e comunicados de imprensa de 2014

Apesar da redução no número de decisões vinculadas ao pilar de proteção, uma análise mais ampla do trabalho da CIDH desde o fim do processo de fortalecimento afasta conclusões fatalistas, ao menos por três razões. Em primeiro lugar, uma das principais preocupações dos usuários do SIDH é o baixo grau de implementação das decisões sobre petições, casos e medidas de urgência (cautelares e provisionais). Ainda que a responsabilidade por essa situação seja quase exclusiva dos Estados membros da OEA, durante o processo de fortalecimento, aqueles não se dispuseram a reconhecer nem a discutir soluções. Perante a consolidação de um sistema de casos caracterizado por décadas de espera, a ausência de resposta para a maioria das vítimas que o utilizam e o baixíssimo grau de cumprimento das decisões finais emitidas pela CIDH e pela Corte IDH, é importante buscar uma funcionalidade do pilar de proteção que transcende a justiça nos casos concretos. Uma delas, e talvez a mais importante, é o potencial que as decisões dos órgãos do SIDH possuem para orientar a atuação das autoridades nacionais e, dessa forma, promover mudanças estruturais e medidas de não repetição de violações de direitos humanos. Nessa linha, a disseminação do chamado “controle de convencionalidade”14 14



Não obstante tal expressão ser utilizada pela primeira vez no SIDH na sentença sobre o caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile, seu significado já estava presente em pronunciamentos da Corte IDH e da CIDH, que concluem que as disposições de direito interno contrárias à Convenção Americana não surtem efeitos jurídicos.

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entre os tribunais e demais instâncias dos Estados membros é fundamental na tarefa de preservar a eficácia do pilar de proteção. A segunda razão pela qual a redução no número de decisões sobre petições, casos e medidas cautelares não deveria ser vista com alarmismo vem do contexto político no qual a CIDH deve exercer seu mandato. Nos últimos anos, o Poder Legislativo de Guatemala desconheceu expressamente o caráter vinculante das sentenças da Corte IDH;15 o governo da Venezuela denunciou a Convenção Americana;16 e os chefes de Estado de países como Equador e Bolívia manifestaram a intenção de seguir o mesmo rumo. Outros países vêm ecoando essas críticas por considerar impertinentes algumas decisões da Comissão sobre petições, casos e medidas cautelares, seja pelo conteúdo delas, seja pelo alegado excesso no número de decisões. Parece-nos que a ruptura dessa tendência requer um trabalho de exposição dos governos que a patrocinam, e não uma exigência à própria CIDH que poderia posicioná-la novamente nas águas turvas onde navegou entre 2011 e 2013. A terceira razão é a consolidação de uma nova tendência para abordar afetações estruturais de direitos humanos por parte da CIDH. Uma conclusão sobre o sucesso ou fracasso dessa tendência não obedece um critério científico e requer uma análise mais ampla que supera o propósito deste capítulo. O que pode ser afirmado com certo grau de certeza é que a CIDH tem dedicado mais recursos materiais e humanos em iniciativas que poderiam prevenir padrões de violações de direitos humanos. É o caso, por exemplo, da visita in loco à República Dominicana, em dezembro de 2013, algumas semanas após a preocupante decisão do Tribunal Constitucional dominicano (TC-0168-13) que, em resumo, suprime direitos civis, econômicos e sociais básicos de centenas de milhares de pessoas dominicanas de ascendência haitiana.17 Oito meses depois dessa visita, a Corte IDH proferiu uma sentença sobre o caso Personas Dominicanas y Haitianas Expulsadas, declarando, inter alia, a “inconvencionalidade” da sentença TC-0168-13. A reação do Estado dominicano à sentença da Corte IDH foi muito mais agressiva que à visita in loco e respectivo comunicado de imprensa da CIDH, ao ponto de declarar sem efeito a aceitação da competência contenciosa do referido tribunal. São vários os exemplos de reações virulentas de governos da região a relatórios de países, comunicados de imprensa e outras decisões vinculadas aos 15



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Vide Comunicado de Prensa de la CIDH 58/14 de 16 de maio de 2014. Disponível em: . Sobre a denúncia da Venezuela à Convenção Americana, vide CIDH, Comunicado de Prensa 64/13 de 10 de setembro de 2013. Disponível em: . Vide CIDH, Comunicado de Prensa 97/13 de 6 de dezembro de 2013. Disponível em: .

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pilares de promoção e monitoramento. No entanto, o exemplo dominicano é representativo de como certas abordagens de problemas estruturais por meio dos mencionados pilares é sempre complementário aos interesses das vítimas, particularmente com relação a padrões de violação estrutural a direitos humanos. Em alguns casos, essa abordagem pode ser inclusive mais profícua, pois permite um formato de interlocução entre a CIDH e as instâncias nacionais menos contenciosas que as derivadas do sistema de casos individuais. III. NOVO IMPULSO AO PILAR DE PROTEÇÃO EM 2016 E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES POLÍTICAS Em 18 de outubro de 2016, a CIDH publicou um comunicado de imprensa18 anunciando a adoção de uma série de medidas para reduzir o atraso processual no sistema de petições e casos. Dito comunicado descreve algumas medidas já implementadas para superar o atraso processual das petições em etapa de estudo inicial. Entre outras medidas, explica que foram examinadas todas as petições iniciais recebidas até 2015, perfazendo um total de 6.405 petições com uma resposta inicial, das quais 1304 foram tramitadas, passando à etapa de admissibilidade. De acordo com o comunicado, o Grupo de Registro da Secretaria Executiva, responsável pela avaliação inicial das petições recebidas a partir de 2015, possui uma capacidade instalada atual para avaliar petições iniciais no prazo de 12 meses, contado da recepção da respectiva petição. Trata-se de uma redução sem precedentes do atraso processual com relação às petições em etapa de estudo inicial. Em relação às petições em etapa de admissibilidade e casos em etapa de mérito, a CIDH anunciou várias medidas, entre as quais se destacam: a acumulação mais recorrente de petições que abordam questões similares, nos termos do artigo 29.5 do seu Regulamento; a adoção de relatórios de mérito mais concisos; o maior número de decisões de arquivo de petições e casos, quando exista inatividade processual dos peticionários ou peticionárias por um lapso de três anos, nos termos do artigo 42 do seu Regulamento. Por último, a CIDH anunciou que aplicará com mais frequência o artigo 36.3 do seu Regulamento, o qual lhe faculta acumular as etapas de admissibilidade e mérito das petições, emitindo assim um único relatório. Várias considerações podem ser feitas em relação às novas práticas de gerenciamento do sistema de petições e casos, mencionadas nos parágrafos anteriores. Devido aos propósitos do presente artigo, nos limitaremos a duas. A primeira se refere à crise financeira atravessada pela CIDH desde 18



Vide CIDH, Comunicado de Prensa 150/16 de 18 de outubro de 2016. Disponível em: .

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a primeira metade de 2016. É difícil concluir que uma mera mudança na forma de redação de relatórios implicará um aumento na quantidade de decisões, pois, aparentemente, o número de funcionários responsáveis pela redação desses relatórios, e da Secretaria Executiva em geral, tende a diminuir, salvo se a CIDH conseguir superar a crise estrutural de financiamento. Em resumo, será iluso apostar por uma nova estrutura gerencial, por mais sofisticada que seja, se o número e ânimo dos atuais funcionários e funcionárias da Secretaria Executiva não forem igualmente incrementados. Finalmente, uma consideração que não deve ser esquecida diz respeito à represália política que implicaria em um aumento vertiginoso de decisões relacionadas ao pilar de proteção. Tal como foi explicado previamente, um dos motores do mal chamado “processo de fortalecimento” foi precisamente uma concentração de esforços no sistema de petições superior ao tolerado pelos Estados membros da OEA. Reiteramos que essa resistência à consolidação de um pilar de proteção dotado de eficiência é um problema grave para o SIDH. Não obstante, enquanto as causas de tal resistência não forem mitigadas perante os mesmos governos que a patrocinam e os órgãos políticos da OEA, uma guinada “litigiocêntrica” da CIDH fará com que navegue novamente pelas águas turbulentas de um neo-fortalecimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS Se a metamorfose atravessada pela CIDH desde 1959 fosse tratada em um dos capítulos do clássico Bestiario de Julio Cortázar, uma possível alegoria seria a fortuna de uma borboleta que, ante a tentativa de ser convertida em lagarta por parte de uma legião de insetos, se transforma voluntariamente em pupa, convencendo assim à maioria dos insetos a abandonar sua investida. O processo de fortalecimento significou, em ultima ratio, um retrocesso na ampliação da capacidade instalada do pilar de proteção da CIDH, retornando-se assim a uma tendência de maior dedicação aos pilares de monitoramento e promoção, vigente até o final da década de oitenta. Não obstante existirem preocupações com redução no número de decisões emitidas através do sistema de casos individuais, uma leitura estritamente numérica tende a ser superficial, pois oculta uma série de contingências políticas sobre as quais a CIDH deve atuar. Uma das lições mais importantes do processo de fortalecimento vivido entre 2011 e 2013 é que o desfrute dos Direitos humanos na região não se reduz a um critério de subordinação dos Estados a medidas de reparação proferidas em relatórios de mérito da CIDH ou sentenças da Corte IDH. Antes do referido processo, o grau de cumprimento de tais decisões já era

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Camila Silva Nicácio / Fabiana S. de Menezes / Tereza Cristina S. Baracho Thibau (Coords.) Amanda Naves Drummond / Letícia Soares Peixoto Aleixo (Orgs.)

ínfimo e, depois de 2013, tem-se consolidado uma aversão de vários governos a um sistema regional caracterizado por um pilar de proteção vigoroso. É desnecessário abonar a conclusão de que essa aversão é extremamente perniciosa à vigência dos direitos humanos na região. Nada obstante, seria um despautério analítico ignorar a possibilidade de que os governos que exercem tal aversão consigam empurrar a balança diplomática para o lado de novas reformas nos instrumentos que regem o mandato da CIDH. BIBLIOGRAFIA BASCH, Fernando et al. 2010. La efectividad del sistema interamericano de protección de derechos humanos: un enfoque cuantitativo sobre su funcionamiento y sobre el cumplimiento de sus decisiones. Conectas, Sur-Revista Internacional de Derechos Humanos, 7 (12). Disponível em: . DUE PROCESS OF LAW FOUNDATION. 2012. “Reflexiones para el fortalecimiento del sistema interamericano de derechos humanos”. Aportes-DPLF, 16 (5). Disponível em: . GORDON LAUREN, Paul. The Evolution of International Human Rights. 2 edition. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003. SALAZAR, Katya; CERQUEIRA, Daniel. Desafíos del Sistema Interamericano de Derechos Humanos: Nuevos tiempos, viejos retos. Bogotá, agosto de 2015, p. 144 a 189. Disponível em: . OPEN SOCIETY JUSTICE INITIATIVE. 2012. “The Inter-American Human Rights System”. From Judgment to Justice: Implementing International and Regional Human Rights Decisions. Disponível em: .

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