Transexualidade: seus aspectos legais e a análise da necessidade de reconhecimento social.

July 21, 2017 | Autor: Helio Veiga Jr. | Categoria: Bioética, Transexualidade, Bioética e Biodireito
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Transexualidade: seus aspectos legais e a análise da necessidade de reconhecimento social. Eduardo Mendonça Salomão1 Hélio Veiga Jr.2 Patricia Borba Marchetto3 Resumo

Em razão de uma constante evolução do gênero e da sexualidade, bem como pelo fato da existência de um desenvolvimento social no sentido de proteger as diferenças e os grupos minoritários que necessitam de uma proteção do Estado e também de um reconhecimento social pleno, passou-se então a verificar a importância de se pesquisar a respeito da transexualidade, ainda considerada como doença (transexualismo) pela Classificação Internacional de Doenças – CID (10 F 64.0) e seus aspectos legais, buscando-se ainda defender a necessidade de uma despatologização da transexualidade bem como a desburocratização do acesso aos cuidados para a realização da transgenitalização e os passos subsequentes à cirurgia. Não obstante, demonstra-se igualmente necessário o estudo sobre os aspectos legais que se apresentam perante a questão uma vez que a transexualidade, independentemente da ocorrência da transgenitalização, possui seus reflexos que se apresentam na sociedade e no direito de modo a provocar situações ainda não reguladas legalmente que necessitam de uma resposta plausível que garanta os direitos fundamentais de qualquer indivíduo no que se refere ao respeito ao seu gênero e sexualidade. Questões como o registro civil, quanto à alteração do prenome, a identidade social, o casamento, a união estável, a filiação e demais questões permanecem sem respaldo legal concreto para solucionar os problemas advindos de uma situação fática em que se é possível deparar com indivíduos transexuais que perdem sua dignidade em razão de leis, muitas vezes preconceituosas ou obsoletas, que não mais podem pertencer à modernidade em que se encontra a sociedade no que se refere aos direitos individuais e direitos de liberdade de cada um. Em termos claros, pode-se dizer que fechar os olhos juridicamente e socialmente à essa situação, que demanda uma atuação forte e desprovida de uma axiologia negativa do judiciário e da sociedade, não é a resposta correta para uma constante evolução social dos direitos e garantias fundamentais de qualquer transexual.

Palavras-chave: Transexualidade. Regulamentação. Desburocratização.

Reconhecimento.

Despatologização.

SALOMÃO, E. M. Mestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. Advogado. VEIGA JR., Hélio. Professor no Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – FACIHUS na Fundação Carmelitana Mário Palmério (FUCAMP). Especialista em Direito das Famílias pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestrando pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Advogado. 3 MARCHETTO, P. B. Doutora em Direito pela Universidad de Barcelona. Professora na graduação e pós-graduação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). 1 2

Abstract

Due to a constant evolution of gender and sexuality, as well as the fact of the existence of a social development in order to protect the differences and minority groups that require protection from the state and also a full social recognition, it became necessary to verify the importance of researching about transsexuality, still considered a disease (transsexualism) by the International Classification of Diseases ICD (10 F 64.0) and its legal aspects, seeking still to defend the need for a depathologization of transsexuality as well as reducing the bureaucracy as access to care for the realization of transgenitalization and subsequent steps to surgery. Nevertheless, it is also necessary to have a deeper study about the legal aspects that show up as issues once transsexuality, regardless of the occurrence of transgenitalization, has its reflections that arise in society and law creating situations that have not been legally regulated, but yet need a plausible answer to guarantee the fundamental rights of any individuals regarding the respect for their gender and sexuality. Issues such as civil registration, as the change of first name, the possibility of creating social identity, marriage, civil union, filiation and other issues linked to transsexuality remain without legal support to solve concrete problems that stems from a factual situation in which it is possible to come across with transsexuals who lose their dignity because of laws, often biased or outdated, which may no longer represent the social modernity concerning the transsexuals’ rights. Thus, it can be said that society cannot close eyes legally and socially towards this situation, that demands strong action and devoid of a negative axiology of the judiciary and society, which by doing so, society would not acting with a correct response to a constant evolution of social rights and guarantees of the transsexuals.

Key words: Transsexuality. Debureaucratization.

Recognition.

Depathologization.

Regulations.

1 A transexualidade na sociedade contemporânea e a necessidade do reconhecimento social e jurídico. A sociedade moderna está em constante mutação e construção de novas formas de relações humanas que apresentam uma necessidade de respaldo jurídico e reconhecimento social para a efetivação dos direitos dos indivíduos e suas novas especificidades emergentes que surgiram ao longo do tempo, mas que ainda sofrem discriminações em razão de leis obsoletas e de um judiciário que encontra dificuldades em reconhecer novos direitos que não estejam positivados em algum código de maneira clara. A liquidez social, que pode gerar radicalmente uma exclusão de humanidade entre os indivíduos (BAUMAN, 2004. p. 151-153), exige na pósmodernidade estruturas pautadas em uma maleabilidade prática e eficaz para que novos direitos sejam reconhecidos à todos os cidadãos que não se moldam à estrutura jurídico-social contemporânea, direitos esses que devem ser reconhecidos em primeiro lugar pelo judiciário detentor do privilégio de conhecer e ser chamado a solucionar problemas sociais em primeira mão assim como em segundo lugar pelo legislativo, cuja competência para criação de leis deve se pautar na necessidade da sociedade. Nesse sentido, entende-se que o sistema jurídico não é um sistema pronto e acabado, pois muitas injustiças ocorreriam, se o fosse. Entretanto, para que se evite omissões legais que não contemplem o direito de uma nova era em constante modificação, as ações conjuntas do judiciário e do legislativo devem consolidar a concessão de garantias sociais aos atores da modernidade que não possuem respaldo legal ou social que tutelem seus respectivos direitos. É daqui que se parte para a necessidade de um sistema jurídico aberto e com mobilidade, justamente por ser inconcluso, já que não abarca todas as situações humanas, e, sendo assim, igualmente necessário é que o judiciário seja capaz de absolver demandas concretas da realidade pública e privada. (CANARIS, 2002. p. 103-104) Em análise ao exposto por Castanheira Neves, experimenta-se atualmente uma radical transição metodológica entre a interpretação da lei e a realização do direito, uma vez que a realização do direito não se identifica nem se esgota na mera interpretação da lei (NEVES, 2003. p. 11). E é em razão dessa realização do direito que não se pode aceitar a ineficácia do judiciário sob a escusa de omissões legais supostamente justificáveis pela inaplicabilidade de leis obsoletas.

A Constituição Federal ao consagrar a dignidade humana como princípio constitucional fundamental estruturante do Estado democrático de direito chancelou uma cláusula geral de tutela e promoção da personalidade e cidadania plena de cada indivíduo. Dessa forma, as relações sociais e jurídicas devem estar adequadas ao que a Constituição busca tutelar, estando essa tutela vinculada à noção de promoção de uma emancipação e reconhecimento social por meio da dignidade humana, a qual incide sobre todas as situações subjetivas, previstas ou não no ordenamento jurídico. O grau de abertura de uma sociedade precisa atingir a amplitude necessária para que o Estado então tutele o máximo de situações sociais não reconhecidas legalmente. Nesse sentido, verifica-se a necessidade de perceber uma “sociedade que admite sua própria incompletude, e, portanto, é ansiosa em atender suas próprias possibilidades ainda não-instituídas, muito menos exploradas” (BAUMAN, 2007. p. 13). É exatamente neste contexto de ausência de reconhecimento social e jurídico a uma minoria exposta a situações vexatórias em razão do gênero que se percebe a atual falta de regulação legal sobre questões inerentes à transexualidade e como isso afeta diretamente a população transexual brasileira, a qual é colocada à margem da lei em razão da disforia de gênero. Assim, o judiciário se encontra em uma situação que precisa tutelar os direitos dos transexuais de forma plena, mas em razão de uma posição social pautada em preconceitos inconcebíveis, leis obsoletas e omissões legais, aquele órgão tem se manifestado contrariamente no que se refere à maioria dos direitos dos transexuais, principalmente quanto à modificação do prenome daqueles adequando-o à sua respectiva identidade social, bem como quanto ao entendimento pleno sobre a necessidade que um transexual possui de ter acesso a sua identidade social de forma a garantir a este indivíduo a maior dignidade possível. Como exemplo do que fora mencionado é possível verificar o judiciário impor a improcedência do pleito de retificação de registro civil com base no gênero e na identidade social apresentada pelo transexual, utilizando como justificativa nada plausível a inexistência de lei que tutela a questão ou ainda negando o reconhecimento de um acontecimento social pela escusa da impossibilidade jurídica do pedido.

É em razão da ineficiência do poder judiciário em tutelar novos direitos sociais de cidadania que se justifica a análise da presente questão que ainda se encontra pendente de consenso judicial e regulação jurídica suficientemente adequada para trazer à baila da sociedade os fatos verdadeiros sobre a transexualidade, visando exterminar o preconceito existente e motivar a ação positiva do judiciário e legislativo frente à situação.

2 O rompimento necessário entre ciência e axiologia teológica para a evolução do homem. Para se falar em transexualidade, pautando-se em uma análise não axiológica, por meio de uma visão com base em pressupostos bioéticos, toma-se o homem enquanto ser como o objeto de análise pelo que se refere ao seu gênero, não sendo possível fazer aduções filosóficas que questionem sobre a dignidade da existência da transexualidade por um viés teológico arraigado em axiologias que neguem a liberdade do homem. Nesse sentido faz-se necessário atentar-se a uma análise livre de valores que tem o homem enquanto objeto central do estudo acerca da transexualidade. Giovani Pico Della Mirandola, em sua obra Discurso sobre a dignidade do homem, afirma “ó suma liberdade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem! Ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer” (MIRANDOLA, 2006. p. XLVI), deixando claro a necessidade de se desvincular questões pautadas em humanidade de questões atreladas à divindades, ou seja, religiosidades. A modernidade modifica a ideia de sujeito, indivíduo, ao liberar o homem da heteronomia religiosa. O modelo sexual adotado de outrora tinha por base comportamentos determinados pelo temor de uma condenação eterna. Tudo isso transformava o homem enquanto indivíduo sem autonomia científica em um escravo da ausência de lógica terrena. Assim, a partir do rompimento entre humanidade, ciência e divindade, a modernidade concedeu ao homem a possibilidade de autodeterminar seus próprios interesses em sua própria virtude, fazendo com que a crença na razão se apoiasse em uma verdade metafísica para sustentar a base de um pensamento humanístico. (SÁ, 2011. p. 262)

Portanto, é em um contexto de separação entre ciência e valores que surge a análise do transexualismo como situação humana passível de compreensão social e jurídica.

3 Noções sobre a Transexualidade. É necessário antes de tecer considerações a respeito da Transexualidade (transexualismo),

saber

diferenciá-la

do

hermafroditismo,

homossexualidade

(homossexualismo), bissexualismo e travestismo, uma vez que tais tipos de sexualidade não se confundem. Nesse sentido diz-se que a sexualidade humana não se baseia unicamente no campo biológico para sua existência, sendo, antes de tudo, fruto da cultura e uma soma entre os fatores biológico, psíquico e comportamental, os quais se integram entre si. A integração dos fatores supramencionados é denominada status sexual, sendo que é a partir deste que surge para o indivíduo o direito à identificação sexual, que, por sua vez, se insere no campo dos direitos da personalidade. (SÁ, 2011. p. 264) Desta feita, para a determinação do sexo do ser humano é necessário adentrar no conjunto de aspectos de sua sexualidade. Esses aspectos são classificados em três grupos, o sexo biológico (morfológico ou físico), o sexo psíquico e o sexo civil vez que: “o sexo morfológico se refere à forma ou aparência de uma pessoa no seu aspecto genital, sendo o sexo endócrino formado pelo sexo gonadal e extragonadal. O segundo tipo de sexo, o psíquico, é constituído pelas glândulas tiroide e epífise, que tem como função atribuir ao indivíduo traços de masculinidade ou feminilidade, sendo que este sexo se afigura como características de reação psicológica do indivíduo perante os determinados estímulos; e o sexo civil é o sexo jurídico ou legal. Sua determinação se dá, normalmente, por meio do sexo biológico.” (SZANIAWSKY, 1999. p. 36).

Após a verificação dos critérios caracterizadores do sexo humano, pode-se partir para a análise dos diferentes tipos de sexualidade, sendo que o homossexualismo (homossexualidade) se caracteriza pela prática de atos sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, se distanciando em demasia da transexualidade. O transexual acredita sinceramente pertencer ao sexo contrário do seu sexo morfológico, e por isso quer alterá-lo, diferentemente do homossexual, que não acredita pertencer a

sexo distinto do seu sexo físico, mas apenas possui atração sexual por pessoas do mesmo sexo, seja na dualidade homem-homem ou mulher-mulher, respectivamente chamado pela forma social de relação gay ou lésbica. No que diz respeito ao bissexualismo, este se caracteriza pela alternância na prática sexual, realizando-se ora com parceiros do mesmo sexo e ora com parceiros de sexo oposto. Existe uma dualidade, alternada ou não, na atração sexual referente aos bissexuais. Portanto, novamente, percebe-se que o transexual em nada se relaciona com o bissexual, pois este, assim como o homossexual, não acredita pertencer a sexo distinto do seu sexo físico. No que se refere ao hermafroditismo, torna-se necessário revelar que não há registo na história da medicina sobre a ocorrência de um verdadeiro caso de hermafroditismo. O que já ocorreu e ocorre, por vezes, é a pessoa apresentar algumas características externas que se assemelham à características masculinas em alguns aspectos e outras que se assemelham à características femininas. Entretanto, jamais fora constatado órgãos sexuais de ambos os sexos em funcionamento, sendo que um dos órgãos se apresenta dentro de uma normalidade fisiológica, enquanto o outro se apresenta atrofiado. (SÁ, 2011. p. 265) Já no que se refere ao travestismo, os indivíduos são geralmente homossexuais, muito embora nem todo homossexual se traveste. Caracterizam-se pela utilização de um visual ao contrário do que seu sexo morfológico implicaria socialmente adotando o vestuário, os hábitos sociais e comportamentos usuais do sexo oposto, diferenciando-se dos transexuais na medida em que não possuem, em sua grande maioria, aversão ao próprio sexo físico. Quanto

ao

transexual,

este

se

caracteriza

como

o

indivíduo

biologicamente perfeito que acredita pertencer ao sexo oposto ao da sua anatomia, sendo assim seu sexo morfológico incompatível com seu sexo psicológico ao passo que seu órgão genital não constituem um centro erógeno. Ainda, dentro de uma classificação da própria transexualidade, esta fica definida como primária ou secundária, uma vez que a primária ocorre quando o indivíduo precocemente manifesta sua vontade inequívoca de modificar seu sexo, enquanto a secundária pressupõe um indivíduo que oscila entre a homossexualidade e o travestismo. Perante um quadro de transexualidade, há quem defenda que a transgenitalização só seria indicada para o indivíduo que se encaixa no quadro de

transexualidade primária, uma vez que a secundária estaria suscetível de mudança, podendo o transexual se descobrir posteriormente à sua cirurgia enquanto homossexual, bissexual ou até mesmo travesti. Ainda, de forma crítica à análise social quanto à transexualidade, poderse-ia dizer que existe efetivamente um protótipo do que a sociedade considera como “indivíduo normal” em relação à sexualidade. Este seria o indivíduo que possui o sexo físico em “harmonia” com o sexo psíquico, cuja sexualidade externa se desperta para o sexo oposto. É o que se conhece por indivíduo heterossexual. Assim, deve-se ter em mente que muito embora a heterossexualidade exista enquanto forma de sexualidade mais presente na humanidade, isso não deveria tornar as pessoas que não são heterossexuais em indivíduos anormais. Desta feita, indaga-se: um transexual feminino (homem-mulher) que passa pela transgenitalização e depois se relaciona com um homem tido como heterossexual e com ele constitui uma relação afetiva, não poderia também ser considerado uma pessoa heterossexual, já que pertence efetivamente após a transgenitalização ao sexo feminino? Independentemente de a qual resposta se atinja, o que importar é ressaltar que a sexualidade, por ser subjetiva, interessa única e exclusivamente a quem dela se utiliza para manter suas relações pessoais e afetivas, não devendo existir discriminações a padrões desviantes do que seja efetivamente considerado como “normal”. Em termos de sexualidade, considerando sua subjetividade, o normal não existe. O normal é ser feliz com quem se ama, independentemente da sexualidade ou do gênero assumido. Finalmente, como forma de relevante informação sobre pesquisas empíricas acerca da transexualidade, apresenta-se uma teoria neurológica em que: Estudando o hipotálamo de cadáveres, região do cérebro responsável pelo desenvolvimento dos hormônios sexuais, os cientistas descobriram que uma parte chamada “estria terminal” é em média 44% maior nos homens do que nas mulheres. Ao medir a região cerebral em vários transexuais (transhomens), os pesquisadores descobriram volumes até 52% menores do que a média masculina. Portanto, a região cerebral ligada à evolução da sexualidade seria nos transexuais, mais próxima à das mulheres do que à dos homens. (WEIS, Bruno. No corpo certo. IstoÉ, São Paulo, 29 jul. 1998) (grifou-se)

Empiricamente, tal pesquisa explicaria de fato a situação dos transexuais homens (morfologicamente) que após a cirurgia adequam-se à forma da mulher (atingindo o sexo psíquico desejado). Entretanto, muito embora por via de raciocínio contrário poder-se-ia pensar que a situação das transexuais mulheres (morfologicamente) que após a neofaloplastia adequam-se à forma do homem (atingindo o sexo psíquico desejado) tal situação ainda não foi constatada empiricamente, ou se o foi, ainda não foi revelada.

4 Aspectos legais relacionados à transexualidade. A previsão legal da possibilidade da realização de cirurgia de readequação sexual, conhecida como transgenitalização, causa reflexos no direito pátrio, e mesmo tratando-se de uma possibilidade concreta contemporaneamente, restam questões jurídicas sem nenhum respaldo legal para serem reguladas. Através das Portarias nº. 1.707/08, 457/08 e a mais atual 2.803/13, e das Resoluções nº. 1.482/97 e 1.652/02, ambas do CFM, tem-se a definição das Diretrizes Nacionais para o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde - SUS que estabelecem critérios para a cirurgia de readequação de sexo (transgenitalização). Com

a

criação

de

normatização

supramencionada

sobre

a

transgenitalização, passou-se, então, à uma análise da integridade psicofísica de cada indivíduo como um direito personalíssimo, enquanto direito à saúde e, por consequência, como direito fundamental do ser humano, justificando, assim, a necessidade de que o Estado brasileiro preste auxílio médico no que se refere à questão da readequação de sexo de indivíduos transexuais. Indaga-se se existiria um direito personalíssimo/fundamental que exercesse a função de base para se sustentar o direito à cirurgia de mudança de sexo. Nesse sentido, sendo a integridade do homem constituída enquanto física e psíquica, poderia se concluir que a integridade psicofísica está inserida ao direito à saúde, e, por óbvio, sendo assim um direito fundamental, não obstante, o princípio da liberdade e da dignidade também fundamentam a causa transexual. No que se refere à cirurgia de readequação sexual pode se dizer que esta não é mutilatória ou destrutiva, e sim, possui caráter corretivo-adaptativo. O viés cirúrgico é adequar o sexo morfológico (físico) ao sexo psicológico (psíquico) do indivíduo. A transgenitalização pode ocorrer transformando uma genitália masculina em feminina ou feminina em masculina, sendo a primeira conhecida como

Neocolpovulvoplastia e a segunda como Neofaloplastia, sendo que qualquer uma delas é irreversível para ambos os sexos. Não é necessário autorização judicial para a realização da cirurgia , a menos que seja negado a realização desta por parte do SUS. A Portaria n°. 2.803/13 do Ministério da Saúde juntamente com a Resolução nº. 1652/02 do CFM determina principalmente o prazo obrigatório de 2 anos de acompanhamento terapêutico como condição para a viabilização da cirurgia e um diagnóstico conclusivo de “transexualismo”. Destaca-se ainda que a realização da cirurgia de readequação sexual só pode ocorrer pelo SUS no Brasil, conforme o artigo 16 da Portaria n°. 2.803/13, ficando vedada a qualquer clínica privada a realização da transgenitalização, o que leva muitos transexuais a realizarem a cirurgia fora do Brasil, considerando o excesso de burocratização para se conseguir a mudança de sexo em território nacional. Importante ressaltar que a Portaria n°. 2.803/13 do Ministério da Saúde em seu art. 14, §2° autoriza a partir dos 18 anos a hormonioterapia, entretanto só permite a intervenção cirúrgica após os 21 anos de idade, ou seja, faz com que o indivíduo se hormonize por um período de 3 (três) anos, durante o qual ele ou ela toma suas feições quanto ao sexo desejado em razão do sexo psicológico e é obrigado a conviver com uma genitália, e muitas vezes também com um nome, que não mais traduz sua condição social enquanto pessoa. Assim, considerando a dignidade do indivíduo no tocante ao prenome, voltando-se à análise do direito do transexual à identidade social e alteração do registro civil, torna-se importante destacar que: “A busca da felicidade no perfeito ajuste da personalidade do indivíduo com sua representação social é a tônica moderna. Neste ritmo, a adequação do nome bem como do gênero sexual estão sob os holofotes do direito. A uma, porque tanto o nome quanto gênero sexual são atribuídos nos primeiros momentos de vida da pessoa; a duas, porque esses elementos irão pautar a sua representação em sociedade; e finalmente por último, mas não conclusivamente, eles podem se tornar protagonistas de constrangimentos e infelicidade quando não se amoldam à realidade da pessoa a quem deveriam representar, o que culmina nos pedidos de alteração desses elementos.” (grifou-se) (SANCHES, 2011. p. 425)

Portanto, resta evidente que o judiciário não deve negar a possibilidade da alteração do registro civil quanto ao prenome, assim como deverá substituir o sexo registral pelo gênero do indivíduo transexual ou travesti, independentemente da ocorrência da transgenitalização, sendo inclusive desnecessário e indevido o registro de tais alterações no assento do Registro Civil bem como a suposta criação de um terceiro sexo. Ademais, atenta-se para o fato de que o judiciário não deve negar a possibilidade da alteração do registro civil mesmo antes de ter ocorrido a cirurgia de readequação de sexo, sob pena de incorrer em clara discriminação e obrigar os transexuais a passarem por situações vexatórias que lhes mitigam a dignidade. A jurisprudência já se demonstrou clara no sentido de permitir a modificação do prenome antes da realização da cirurgia de readequação de sexo como se verifica no julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com as Apelações Cíveis n°. 70022504849 e 70030772271. Muito embora o judiciário já se demonstrou lógico e favorável a esse reconhecimento, alguns estados brasileiros ainda não tenham reconhecido essa possibilidade por meio de seu respectivo judiciário, conforme podese verificar pelo julgado abaixo:

REGISTRO CIVIL. Pleito de alteração do prenome e designativo de sexo. Modificação condicionada à realização de cirurgia de redesignação sexual, o que, na hipótese, não ocorreu. Registros públicos que têm caráter de definitividade, espelhando a realidade Falta de interesse de agir caracterizada. Processo extinto sem resolução de mérito. Sentença mantida. Ausência de violação a dispositivos de lei, bem como a qualquer cânone constitucional Recurso desprovido. (TJSP. Ap. Cív. n°. 0025917-51.2013.8.26.0071. 1° Cam. Dir. Privado. Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy. Julgado em 18/03/2014. Publicado em 20/03/2014.)

Assim, torna-se de extrema importância que o judiciário reconheça a possibilidade de se alterar o registro civil, modificando, assim, o prenome do transexual para que ele ou ela não sofram discriminações ou sejam obrigados a se colocarem em situações vexatórias em razão da incompatibilidade do nome com a identidade social. Quanto ao casamento ou união estável é importante salientar que o judiciário contemporâneo aceita ambas as formas de união entre homossexuais bem como quanto aos transexuais e seus respectivos companheiros e cônjuges, ou seja, a

sexualidade já não é mais causa impeditiva quanto à realização do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo ou não. O que se deve destacar aqui é a realização da cirurgia de readequação de sexo (transgenitalização) antes ou depois de realizado o casamento, sendo que se a cirurgia é realizada antes do casamento, persistirá, assim, a obrigação do indivíduo de informar o futuro cônjuge sobre a condição de transexual, sob pena de se configurar o error in persona, o que possibilitaria a anulação do casamento. Entretanto, se a cirurgia é realizada depois do casamento, a manutenção do matrimônio após a mudança do estado sexual dependerá do consentimento de ambos os cônjuges. Por ser o estado sexual elemento essencial do casamento, sua alteração gera uma causa superveniente de anulabilidade. Quanto à paternidade ou maternidade biológica e afetiva para a situação dos transexuais, poderia se falar em três formas, sendo que a primeira situação pode se caracterizar como a de um transexual feminino (homem para mulher) que se casa com um homem e efetiva a busca pela fecundação heteróloga, ou seja, a “barriga de aluguel” ou útero de substituição, sendo que aqui o transexual, enquanto mulher se torna mãe afetiva da criança com um pai biológico. A segunda situação pode se caracterizar como a de um transexual feminino (homem para mulher) que antes de se submeter à transgenitalização, colhe material genético para, futuramente, após a cirurgia, engravidar uma mulher por meio de um útero de substituição, se tornando assim, mãe biológica e afetiva. A terceira hipótese se pauta na situação de dois transexuais, um transexual homem (mulher para homem) e um transexual mulher (homem para mulher) que, antes de se submeterem à cirurgia, guardaram seus materiais genéticos, respectivamente óvulo e esperma, e pretendem utilizar um útero de substituição para efetivarem a fecundação homóloga, sendo, neste caso, pais biológicos e afetivos da criança.

5 A transexualidade e a CID. Por fim, deve-se expor sobre a necessidade da despatologização do transexualismo, tornando-se assim transexualidade e deixando de ser caracterizado enquanto doença, passando a ser então reconhecido enquanto uma forma humana de existência tão normal quanto qualquer outra considerando os aspectos da sexualidade,

que há muito tempo tem se revelado não apenas como aspecto meramente biológico e sim psicofísico. Sobre o registro do transexualismo na CID – Classificação Internacional de Doenças, sabe-se que ainda é considerado como doença com registro sob os números CID 10 F64 – Transtornos da identidade sexual, CID 10 F 64.0 – Transexualismo, CID 10 F 64.1 – Travestismo Bivalente, CID 10 F 64.2 – Transtorno de identidade sexual na infância, CID 10 F 64.8 – outros transtornos da identidade sexual e CID 10 F 64.9 – transtorno não especificado da identidade sexual. Possível é verificar a classificação da transexualidade enquanto doença, e, por meio de uma plausibilidade científica e jurídica, assim como pelo reconhecimento social, deve-se buscar a desclassificação do transexualismo como patologia, principalmente para se efetivar o respeito à dignidade de existência dos indivíduos transexuais, que jamais deveriam ser caracterizados enquanto “doentes” pelo fato de o sexo psicológico não ser compatível com o sexo morfológico, até mesmo porque não se cura a transexualidade uma vez que não há nada para ser curado. A única medida a ser tomada é a intervenção médica de forma cirúrgica com um viés adaptativo, mas jamais curativo, assim como a hormonização, ou seja, a aplicação de hormônios que em hipótese alguma devem ser caracterizados enquanto drogas ou fármacos desenvolvidos para combater uma doença. Desta feita, em razão do excesso de burocracia da área da saúde, para que procedimentos cirúrgicos voltados à cirurgia de transgenitalização permaneçam na lista de procedimentos realizados pelo SUS, defende-se não que o transexualismo saia da lista da CID, mas sim que seja realocado dentro da lista de classificação e, por óbvio, reclassificado enquanto transexualidade, não sendo colocada como uma patologia. Nesse sentido, muito embora seja desconhecido pela maioria das pessoas que não se vinculam à área médica, a CID abriga outras situações não classificadas como doenças como por exemplo a gravidez confirmada inscrita na CID 10 Z 32.1 e a gravidez não confirmada na CID 10 Z 32.0. Portanto, para que se resguarde o direito dos transexuais a serem tratados pelo SUS, órgão que exige em seus procedimentos classificações da CID, não deve se falar na retirada do transexualismo da lista da CID, mas sim na realocação da transexualidade, retirando-a de uma classificação patológica, permitindo assim que seja realizado um tratamento clínico pelo SUS, assim como é feito na gestação, mas descaracterizando a patologização da transexualidade.

6 Reflexões finais Os transexuais não desejam a existência de um juízo de valor negativamente relacionado a eles, mas sim a certeza de que haverá justiça sempre que se levar em conta a proteção aos interesses individuais, a intimidade e a dignidade de cada um. A única maneira de vivenciar uma sociedade sadia é permitir e respeitar o convívio das diferenças. O papel da justiça é buscar as soluções que privilegiem o ser humano em sua essência, garantindo-lhe a dignidade e o livre desenvolvimento de sua personalidade, permitindo-lhe construir sua própria identidade sexual. Para que seja atingido o real sentido da lei que é maximizar a tutela dos efeitos positivos de uma regulação estatal quanto aos efeitos da cidadania e garantias fundamentais, torna-se, assim, necessário a concessão de direitos aos indivíduos transexuais, proporcionando uma igualdade fática em relação a um tratamento nãodiscriminatório e sim inclusivo, garantindo a eles a possibilidade de não serem expostos à situações vexatórias em razão de seu gênero. Cabe ao judiciário passar a regular a situação social e jurídica aqui trazida à baila da discussão de maneira positiva aos direitos dos transexuais quanto à existência digna, livre de preconceitos ou discriminações em razão do gênero ou da sexualidade, possibilitando assim proteções jurídicas que efetivem os direitos dos indivíduos transexuais como, e.g., a alteração do registro civil referente ao prenome e à substituição do sexo pelo gênero de cada indivíduo, a desburocratização do acesso à cirurgia e tratamento voltados à transexualidade, a regulação da paternidade ou maternidade biológica e/ou afetiva, em caso dos transexuais optarem pela construção familiar por meio das fecundações homólogas ou heterólogas, ou até mesmo por parte da adoção, e principalmente efetivar a busca pelo reconhecimento social dos direitos dos indivíduos transexuais, livrando-os de valorações negativas e acabando com a classificação patológica da transexualidade. É necessário buscar sempre uma igualdade fática de tratamento perante os transexuais, concedendo-lhes, ainda que por meio de uma desigualdade jurídica em determinadas situações, a maior dignidade possível, a qual deve ser inerente a qualquer indivíduo independentemente de sua sexualidade ou gênero, efetivando assim o tratamento desigual aos desiguais pela medida de suas respectivas desigualdades, o que justifica o tratamento especial à tais pessoas que se encontram em situação psicofísica não semelhante à maioria dos indivíduos.

7 Referências

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Jurisprudência TJRS. Ap. Cív. n°. 70022504849. 8ª C. Cív. Rel. Des. Rui Portanova. j. 16.04.2009. TJRS. Ap. Cív. 70030772271. 8ª C. Cív. Rel. Des. Rui Portanova. j. 16.07.2009. TJSP. Ap. Cív. n°. 0025917-51.2013.8.26.0071. 1° Cam. Dir. Privado. Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy. j. 18.03.2014. p. 20.03.2014.

Site Disponível em: Acesso em 20. out. 2014. Disponível em: Acesso em 20. out. 2014.

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