Transformações da experiência do tempo e pluralização do presente

July 31, 2017 | Autor: Sergio da Mata | Categoria: Theory of History, Phenomenology of Temporality, Presentism, François Hartog, Hermann Lübbe
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Tempo presente & usos do passado

Tempo presente & usos do passado

FLÁVIA FLORENTINO VARELLA HELENA MIRANDA MOLLO MATEUS H. F. PEREIRA SÉRGIO DA MATA

organizadores

Copyright © 2012 Flávio Florentino Varella, Helena Miranda Mollo, Mateus H. F. Pereira Sérgio da Mata Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil Tels.: 0800-021-7777 | 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 [email protected] | [email protected] www.fgv.br/editora

Impresso no Brasil | Printed in Brazil Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98). Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores. 1a edição — 2012 preparação de originais | Natalia Lima revisão | Eduardo Carneiro Monteiro capa e diagramação | Santa Fé ag.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Aprender com a história? : o passado e o futuro de uma questão / Organizadores: Fernando Nicolazzi, Helena Miranda Mollo, Valdei Lopes de Araujo. — Rio de Janeiro : Editora FGV, 2011. 256 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-225-0856-3 1. Historiografia. 2. Historicismo. I. Nicolazzi, Fernando. II. Mollo, Helena Miranda. III. Araujo, Valdei Lopes de. IV. Fundação Getulio Vargas. CDD — 907.2

Int roduçã o

Transformações da experiência do tempo e pluralização do presente* mateus henrique de faria pereir a | sérgio da mata Creio que estamos diante de uma das formas, e talvez se deva dizer, um dos hábitos mais nocivos do pensamento contemporâneo, eu diria inclusive do pensamento moderno ou, em todo caso, do pensamento pós-hegeliano: a análise do momento presente como se este fosse precisamente, na história, o momento da ruptura, ou da realização, ou da aurora que retorna, e assim por diante. A solenidade com que toda pessoa que mantém um discurso filosófico reflete sobre seu próprio tempo me parece um estigma. Digo isso, sobretudo, porque eu mesmo procedi assim e porque o encontramos constantemente em alguém como Nietzsche [...]. Creio que devemos ter a modéstia de dizer para nós mesmos, por um lado, que o tempo em que vivemos não é este tempo único, fundamental ou que irrompe na história, a partir do qual tudo se acaba ou tudo recomeça. Foucault (1998:449)

A última década do século passado e a primeira do século XXI foram marcadas por uma obsessão: as reflexões sobre a temporalidade. Fomos seduzidos não só pela memória, mas também pela suposta “crise” da temporalidade moderna. Foram tempos de pós-tudo e de muitos fins, anunciados ou reais. A partir disso, este livro pretende refletir sobre uma vasta gama de problemas que se articula com o tempo presente, ampliando os quadros de uma tradição historiográfica para a qual o “presente” abarcaria a história da ditadura militar (1964-1985). Esse passado que não passa é ainda presente. Mas seria ele atual, contemporâneo? *

Apoio: Neaspoc, Capes, CNPq e Fapemig.

Há algum tipo de descontinuidade em nossa consciência, percepção e experiência contemporâneas do tempo? Como o conhecimento histórico pode contribuir para a reflexão sobre a complexa relação entre passado/ presente/futuro no século XXI? Um dos desafios é pensar as possibilidades e os limites da “transposição” de diagnósticos europeus para a realidade brasileira. Menos por uma disposição romântica qualquer do que pela simples imposição dos fatos, perguntarmo-nos até que ponto não apenas épocas, “regimes”, mas também sociedades distintas, mesmo aquelas interligadas do ponto de vista civilizacional, relacionam-se da mesma forma com o tempo. Enquanto escrevemos, a Europa enfrenta a sua mais grave crise do pós-guerra. O Velho Mundo titubeia, mas a Primavera Árabe e a criação da Comissão da Verdade para a investigação dos crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira dão prova de que alguns dos ideais e conceitos produzidos há séculos pela Europa continuam vivos, podendo ser, ao mesmo tempo, descompassados e ressignificados.

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I

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Um diagnóstico do tempo presente: tarefa difícil, quanto mais para o historiador! Desde Santo Agostinho os filósofos não avançaram muito a respeito do que vem a ser tal coisa, o “presente”. Por que justamente os historiadores parecem cada vez mais interessados por ele? Se o presente torna-se um problema isso se deve, em grande medida, ao fato de que se tornaram cada vez mais estreitas as chances de se construir um discurso homogêneo a seu respeito. Definir o presente como “época”? Os marcos canônicos (via de regra de natureza política) variam, sabidamente, ao gosto das experiências nacionais. Na França, na península Ibérica e no Brasil, o marco que define o início da história contemporânea é a Revolução Francesa. Na Alemanha e na Inglaterra, o historiador que se dedica à Zeitgeschichte ou à contemporary history trabalha preferencialmente com eventos posteriores à II Guerra Mundial. Contemporânea, na Rússia, é a história posterior a 1918. Na Itália, por sua vez, trata-se do período que advém após o Congresso de Viena. A impossibilidade de se articular uma linguagem comum pode ser atestada ainda com exemplo recente. Em princípios de novembro de 2011,

Cf. os artigos de Carlos Fico, Marieta de Morais Ferreira e Raquel Glezer neste livro. Ver também, entre outros, Pereira (2011:56-65). 2 Cf. também o artigo de Olgária Matos sobre Walter Benjamin neste livro. 1

introdução

realizou-se na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) um simpósio dedicado à história do “tempo presente”, período que, segundo a página do congresso na internet, compreenderia os “fenômenos históricos transcorridos ao longo do século XX e início do século XXI”. Temos uma ideia vaga do que seria o contemporâneo, mas não do momento aproximado que demarcaria seu início. Como essas diferenças têm um evidente substrato cultural, nunca chegaram a ser objeto de disputa entre os historiadores, dado o alto grau de arbitrariedade que preside a escolha de quaisquer marcos cronológicos. Embora o debate atual sobre o tempo presente mostre que tal resignação tenha seus limites, também aí reina a desordem. O que implica a busca de outras soluções entre os estudiosos do chamado “tempo presente”.1 Parece haver alguma relação intrínseca entre o advento de uma nova centúria e a redescoberta da temática do tempo. Tal como hoje, em princípios do século XX a intelectualidade europeia dedicou especial atenção ao tempo e inclusive à possibilidade de aceleração do tempo. Os físicos tiveram, naquela ocasião, um papel tão ou mais importante que o dos filósofos e historiadores (a ciência não fora levada ainda ao banco dos réus). Entre 1902 e 1905, Henri Poincaré e Albert Einstein estabeleceram os fundamentos da teoria da relatividade restrita. O tempo, ao qual os matemáticos e físicos se referiam com a bela expressão “a quarta dimensão”, tornara-se agora uma grandeza relativa. Naquele mesmo momento, Edmund Husserl dava em Göttingen suas primeiras preleções sobre a fenomenologia da consciência interna de tempo. Finalmente, em 1915, Einstein apresentou sua teoria da relatividade geral. O impacto gerado por esta revolução entre os filósofos pode ser facilmente constatado na conferência de Heidegger de 1915 sobre o tempo na ciência histórica, na qual remete a escritos de Max Planck e inclusive ao famoso artigo de Einstein sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento (Heidegger, 2009:13-28). É difícil imaginar que as reflexões de Georg Simmel sobre “o problema do tempo histórico”, feitas em 1916, não tenham recebido qualquer influxo de tais descobertas (Simmel, 2011:9-23).2

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O tempo estava na ordem do dia. H. G. Wells havia publicado há pouco seu conhecido livro A máquina do tempo (1895). No conto O novo acelerador (1901),Wells narra a história do professor Gibberne, inventor de uma droga capaz de tornar excepcionalmente rápido aquele que a ingerisse. Depois de testar o medicamento, ele se dá conta de que tão maravilhoso experimento trazia consigo um irritante efeito colateral. Para quem ingeria o acelerador, tudo à sua volta parecia “estar se movendo milhares de vezes mais lentamente”.3 Depois de uma surreal experiência pelos arredores da casa de Gibberne, em que o cientista e um amigo exercitam sua curiosidade em meio a pessoas congeladas num eterno slow-motion, o narrador afirma: “É o início de nossa fuga da roupagem do tempo de que fala Carlyle”. Oito anos depois da publicação do conto de Wells, o manifesto futurista de Marinetti fazia o elogio do automóvel e da “beleza da velocidade”. Em 1913, aparece o primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Proust. Embora timidamente, as ciências humanas deram resposta a tais estímulos. Sob clara influência dos escritos de Bergson, Henri Hubert inaugura a sociologia do tempo com um “Estudo sumário da representação do tempo na religião e na magia”, de 1905 (Pinheiro Filho, 2005:141-161). E quanto à história? Caberia a um jornalista e historiador norte-americano elaborar, em 1904, o primeiro esboço de uma “lei da aceleração”. Décadas antes de Koselleck, Henry Adams constatava uma “estupenda aceleração após 1800”, determinada, acreditava ele, pelo avanço inexorável da ciência. “A complexidade”, afirmava Adams na ocasião, “se expandiu por horizontes imensos” (Adams, 1954:247-258). Somente a partir de meados da década de 1970, a intuição de Henry Adams sobre a “lei da aceleração” seria revisitada. Para tanto parecem ter contribuído as recentes revoltas estudantis ao redor do globo, a apocalíptica frankfurtiana a respeito do “capitalismo tardio” e a redescoberta das categorias “utopia” e “esperança” nos meios intelectuais progressistas (Baczko, 1978). No caso da Alemanha, um fator adicional e, tudo leva a crer, decisivo: a irrupção do terrorismo de extrema esquerda. Há de fato uma aceleração do tempo? Numa conferência que se tornou famosa, o teólogo e historiador Ernst Benz defendeu a tese de que na origem do conceito de aceleração está a ideia cristã de que o tempo 3

Em . Acessado em 9 jan. 2012.

A conferência de Benz, “Aceleração do tempo enquanto problema histórico e de história da salvação”, foi proferida em 1977 na Academia de Ciências de Marburg. A respeito, ver os densos comentários de Blumenberg (2007:207-211). 5 Cf., entre outros, Pereira (2009) e Mata (1998:133-136). 4

introdução

avança inelutavelmente para um “fim”. As teorias revolucionárias modernas e mesmo o terrorismo político não passariam de versões laicizadas daquela concepção. Para Benz, pode-se dizer, a aceleração é a soteriologia secularizada.4 Koselleck reconheceu o caráter originalmente religioso do fenômeno, mas ressaltou a importância da Revolução Industrial e da Revolução Francesa como condicionantes macro-históricos decisivos. A percepção de uma aceleração do tempo teria se alimentado tanto da expectativa salvífica quanto da experiência produzida por épocas de crise (como mostrara Burckhardt em suas Weltgeschichtliche Betrachtungen) e da maior dinâmica civilizacional das sociedades industriais (Koselleck, 2003:150-176). Vimos que no início do século XX as concepções sobre o tempo eram viradas ao avesso. No entanto, o presente continuava a ser uma noção obscura. A imprecisão crônica do termo “presente” sugere que ele não se situa, talvez nem mesmo possa se situar, no âmbito do conceituável. Certo é que, indiferente a tais dificuldades, o mundo lá fora segue seu curso. Com isso se quer dizer que algum tipo de distinção entre passado, presente e futuro sempre é intersubjetivamente construído. No mundo da vida — onde reina a convenção — o problema sequer se apresenta, ou se coloca apenas em termos de uma racionalidade prática. Num plano distinto, mas nem tanto, a temporalidade aos poucos se torna alvo de disputa entre disciplinas acadêmicas. Diferentes “fatias” do tempo são apropriadas por diferentes ciências. Para além de quaisquer esforços de delimitação mútua, o que rege o âmbito de atuação de historiadores de um lado e cientistas sociais do outro também são as convenções. O fato de o passado distante ter se tornado, ao longo dos últimos 150 anos, o único campo “legítimo” de atuação do historiador não pode ser reconstruído sem que levemos em conta o advento de outros atores na arena do conhecimento histórico-social. Foram esses atores que, a bem dizer, expropriaram o historiador da sua relação com o presente enquanto objeto — o jornalista e o sociólogo.5

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II

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Num livro que se ocupa com a história do tempo presente, é natural, porém, que não possamos nos dar por satisfeitos com meras convenções, sejam as da linguagem cotidiana, sejam as da academia. Se há algum caminho capaz de lançar luz sobre a questão com que nos ocupamos aqui, certamente é o que conduz à obra de Henri Bergson. Devemos a ele a distinção pioneira entre “tempo” e “duração”, e, sobretudo, uma solução sofisticada para o problema do “presente”. Em sua fenomenologia da consciência de tempo interior, e que se aproxima de Bergson mais do que talvez estivesse disposto a admitir, Husserl não dá maior atenção à questão. O “presente” é ali, rigorosamente falando, um ponto-cego deslocando-se ininterruptamente entre as retenções primárias e secundárias, de um lado, e as pretensões antecipadoras, de outro (Husserl, 1959). Bergson reconheceu a impossibilidade de se chegar a uma definição substantiva do “presente”. Trata-se, diz ele, de “uma pura abstração, uma visão do espírito”, sem qualquer “existência real”. O passo decisivo foi dado em 1911, quando ele chega à conclusão que:

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A distinção que fazemos entre o nosso presente e o nosso passado é […] se não arbitrária, pelo menos relativa à extensão do campo que nossa atenção à vida pode abarcar. Numa palavra, nosso presente cai no passado quando deixamos de lhe atribuir um interesse atual. Ocorre com o presente dos indivíduos o mesmo que com o das nações: um acontecimento pertence ao passado e entra para a história quando não interessa mais diretamente à política do dia e pode ser negligenciado […]. Enquanto sua ação se fizer sentir, ele adere à vida da nação e permanece presente para esta [Bergson, 2006:174-175, grifos nossos].

Eventos já ocorridos são um “presente” para nós pelo tempo em que nosso interesse por eles estiver aceso. Para empregar o jargão fenomenológico: enquanto eles se mantêm no foco do nosso fluxo de consciência. Disso sabia, a seu modo, o mestre holandês Johan Huizinga. Num curto e brilhante artigo de 1936, intitulado “Como o presente se torna passado?”, ele chegava à mesma conclusão que Bergson.

Eu posso perceber minha véspera como história e minha infância como presente. A fronteira entre história e presente radica no olhar do momento, ou, melhor dizendo, não há fronteira alguma. Não existe agora, só há passado e futuro. […] O presente, porém, só recebe sua essência histórica, e que é única, no processo de constituição (Formgebung) por intermédio do observador [Huizinga, 1954:121].

III

Ainda lemos Foucault, Derrida e Bourdieu, constata Gumbrecht. A “sensação”, diz ele, é a de que “as estruturas centrais de nosso mundo se trans-

introdução

Desenvolvendo um pouco mais o mesmo argumento, o filósofo Hermann Lübbe entende o “presente” como “aquele conjunto de experiências que não se tornaram ainda uma alteridade para nós”. Somente quando se produz um “estranhamento” em relação a dados bens de cultura de que dispusemos um dia, ou ainda a vivências pessoais ou coletivas, é que tais coisas se tornam “passado” (Lübbe, 2003:402). O simples fato de algo ser pretérito não basta para que o consideremos “passado”. Haverá presente enquanto estiverem ativos determinados interesses de presentificação do passado (Vergangenheitsvergegenwärtigungsinteressen) (Lübbe, 2004:134). Ninguém há de negar que essa forma de compreender o “presente” é bastante plausível. Mas o que ela não é capaz de garantir, por si só, é um consenso no que se refere aos diagnósticos quanto ao presente. Ao afirmar que vivemos há algum tempo num “lento presente”, com o argumento de que nossos ícones intelectuais são basicamente os mesmos de há três ou quatro décadas, Hans Ulrich Gumbrecht confirma a perspectiva exposta acima. Isso nos conduz à questão de saber se a nossa época estaria marcada por uma aceleração ou, ao contrário, se teríamos deixado para trás a lógica da aceleração e do tempo histórico. Gumbrecht sustenta que o presente “se dilata cada vez mais” (Gumbrecht, 2010:45-49). Para Lübbe, porém, o que estamos a vivenciar é um “encolhimento do presente” (Lübbe, 2009:159-178). Vejamos os argumentos mais de perto.

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formam agora mais lentamente do que até pouco tempo”. Estaríamos diante do esgotamento do “cronótopo moderno”. Desapareceram as teleologias, a aceleração interrompeu-se. Gumbrecht lança mão de uma quantidade surpreendentemente pequena de evidências em apoio à sua tese. A tentação e o fascínio produzidos por prognósticos desse tipo já haviam marcado autores como Joachim Ritter, Arnold Gehlen e Francis Fukuyama. Será possível subscrever a ideia de que vivemos hoje um tempo “mais lento” depois da crise que ameaçou pôr abaixo a economia mundial, depois da Primavera Árabe e da crise do euro? Tais eventos são “história” ou tratar-se-á de mera espuma, destinada a desfazer-se em breve? Tudo depende do campo da vida social sobre o qual centramos nosso interesse, e ainda de qual sociedade, e até de qual estamento se está a falar. A aceleração não há de afetar tudo e a todos com a mesma intensidade, e o mesmo se pode dizer das eventuais desacelerações. Caso não queira se tornar refém de ilusões, o olhar deve tornar-se mais dialético. Mas também mais rigoroso. Os fatos, dizia o próprio Koselleck, têm “poder de veto”. Ele tinha dúvidas a respeito das possibilidades de se evidenciar empiricamente a aceleração (Lübbe, 2003:vi).6 Poder-se-ia falar de uma experiência de aceleração, mas não de uma aceleração da história (Koselleck, 2003:167). Talvez se possa dizer que desta dúvida nasceu a analítica do tempo presente de Lübbe. A fim de verificar os efeitos socioculturais concretos da aceleração, Lübbe empregou soluções no mínimo originais para um filósofo. Uma das primeiras foi investigar o processo de proliferação exponencial dos museus nas últimas décadas. Para ele, o avanço da musealização e a preocupação crescente com o patrimônio são formas de compensação ante a nossa acelerada dinâmica civilizacional. Nessas condições, o presente torna-se cada vez mais curto. Cresce na mesma proporção, portanto, a quantidade de “relíquias” a serem preservadas. Dito com concisão: “ao progresso pertence, de forma estrutural, a musealização daquilo que o progresso deixou para trás” (Lübbe, 1977:319-320).7 O prazo de validade de teorias e inoFiamo-nos no relato de Lübbe, que trabalhou ao lado de Koselleck no famoso grupo “Teoria da História”, reunido na década de 1970 na Fundação Werner-Reimers, e do qual participavam ainda Jürgen Kocka, Thomas Nipperday, Karlheinz Stierle e Niklas Luhmann. 7 Salvo quando indicado, os trechos que se seguem baseiam-se ainda em três trabalhos 6

de Lübbe (1996), (2004:129-141) e (2003:91-94; 269-280). 8 Cf. o artigo de Paulo Knauss neste livro a fim de pensar a relação, no Brasil, entre história do tempo presente e arquivos da repressão.

introdução

vações científicas, especialmente entre as ciências naturais, também diminui num ritmo espantoso. “Nunca como hoje”, constata Lübbe, “foi tão grande a quantidade de informação ultrapassada disponível em nossas bibliotecas.” De fato, é o que demonstram os inúmeros estudos recentes sobre o período necessário para que dobre a literatura científica referente a um determinado campo de investigação (“taxa de duplicação”). Segundo Urbizagastegui, em princípios da década de 1970 estimava-se que “a literatura produzida na maioria dos campos científicos continuava a crescer exponencialmente, com taxa de duplicação de aproximadamente 10 anos” (Urbizagastegui, 2009:113). Estreitamente relacionado ao conceito de encolhimento do presente (Gegenwartsschrumpfung) está o de “precepção”, que diz respeito ao problema dos arquivos, isto é, daquelas instituições encarregadas de preservar tudo aquilo que tenha “um presente duradouro como meios de presentificação do passado”. O aumento gigantesco do fluxo de informação produzido pelas grandes corporações públicas e privadas exige a aplicação de critérios cada vez mais rigorosos pelos arquivistas.8 Na década de 1990 já se previa que a taxa de seleção do que é digno de ser preservado (“cassação”) cairia de 10% para 5%. Sendo esta a nossa situação civilizacional, como explicar que o homem não se perca pela simples impossibilidade de orientar-se num mundo em rápida mutação? (Lübbe, 1983:131-154) Esse ponto nos leva a outro conceito proposto por Lübbe, o de que a aceleração é marcada por uma “ilaminaridade evolucionária”. Inspirado na física, o conceito mostra que processos de transformação jamais ocorrem numa velocidade homogênea. Tal como no leito de um rio, a velocidade da mudança depende do “lugar” que algo ou alguém ocupa. Lübbe toma como índice o fenômeno das vanguardas, para mostrar seu caráter autocontraditório: quanto mais vanguardismo, tanto maior a quantidade do que se torna “velho”, as vanguardas de ontem inclusive. Ao se insurgir contra a instituição do museu, Marinetti na verdade contribuiu para aumentar a quantidade daquilo que ele próprio chamava de “matadouros de pintores e escultores”. Mais ainda:

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o culto do novo anda a par-e-passo com a valorização crescente dos clássicos, ou seja, daquelas realizações culturais “resistentes ao envelhecimento”. Como traduzir movimentos aparentemente tão contraditórios numa visão coerente do “presente”? Apoiado no conceito de “compensação” de seu mestre Joachim Ritter (Marquard, 2000:11-29), Lübbe demonstra que a aceleração civilizacional não pode deixar de ocorrer sem suscitar a sua antítese: processos de desaceleração (Verlangsamungsvorgänge) e todo tipo de zona de exclusão como o são o clássico, a tradição, o rito, o trauma.9 Por que ainda lemos Aristóteles ou Gilberto Freyre, por que ainda ouvimos Bach ou Debussy, por que ainda nos deleitamos com Chaplin ou Bergman? O “clássico” não é apenas a expressão de um passado “que não quer passar”, ele é também a prova (certamente a mais sublime) de que nossa capacidade de subjetivação do “novo” é limitada. Esta limitação especificamente antropológica explica por que, depois de atingido um determinado ponto, já não somos capazes de acompanhar ou responder à quantidade de inovações com que somos bombardeados diariamente. Simmel, como se sabe, viu nisso “a tragédia da cultura”.

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IV

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E como os historiadores têm se posicionado diante desse debate? É ainda no interior de perspectivas unilaterais que a posição de François Hartog sobre a questão do “presentismo” e dos “regimes de historicidade” pode ser lida e tomada como “um caso” para se pensar a inserção historiográfica no debate aludido. A reflexão já é bastante conhecida no Brasil.10 Assim, nos deteremos aqui, praticamente, no prefácio à edição francesa de 2012 do livro Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo, denominado Sobre a experiência do trauma, cf. os artigos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Temístocles Cezar neste volume. 10 Cf. uma síntese crítica em Nicolazzi (jul-dez 2010:229-257). O autor ainda tece uma consideração geral que merece ser destacada para os propósitos do nosso argumento neste texto: “o presente, qualquer que seja ele, se impõe à reflexão para os historiadores se não pela dimensão ética que o impregna, ao menos pela importância epistemológica que ele assim delimita.” (p. 257) 9

Nesse texto, Hartog sugere que nossa atual relação com o futuro é da ordem apocalíptica. 12 É interessante notar que historiadores de tradições diversas têm defendido posições próximas às de François Hartog em certos pontos. Do ponto de vista de uma história política, por exemplo, Tony Judt afirma que “contemporâneos podem ter lamentado a 11

introdução

“Presentismo pleno ou transitório (par défaut)”. Nesse texto, o autor inicia sua reflexão procurando estabelecer algum tipo de relação entre a crise do tempo que ele já indicava na primeira edição do livro de 2003 com a crise, inicialmente financeira, em que a Europa está mergulhada desde 2008, sem condições, na opinião do autor, de ver para além ou aquém dela. A grande transformação, o presentismo, é definida, da mesma forma que já havia sido ao longo da primeira edição, como um mundo em que o presente se impõe como o único horizonte, um presente onipotente e hipertrofiado. O autor pergunta, por exemplo, se a atual especulação financeira, resultado também da plasticidade (transformação e adaptação) do capitalismo, não seria um exemplo maior do presentismo, pois a “imediaticidade” do tempo dos mercados não pode se ajustar aos tempos da economia, da política, dos políticos (cada vez mais presos aos calendários eleitorais). Eis aí, segundo Hartog, mais uma demonstração de nossa incapacidade coletiva de escapar do “presente único: este da tirania do instante e do marasmo de um presente perpétuo” (Hartog, 2012:5-9). A reflexão do autor é uma tentativa de demonstrar uma suposta especificidade na nossa atual forma de articular passado, presente e futuro, por meio de uma temporalização do tempo (Hartog, 2010-a:9-30).11 Vivemos entre crises substituídas a cada novo escândalo. O presentismo é o tempo em que não há nada além do evento. Como exemplo, o autor afirma que a partir do 11 de Setembro de 2001 a administração americana decidiu fundar um ponto zero da história mundial. A guerra contra o terrorismo seria um presente novo e único. (Sabemos agora, em 2012, quanto esta tentativa fracassou. Vale para o argumento a intenção? Talvez pela razão da referida guerra já fazer parte de um “passado distante”?) O atentado, para Hartog, põe em evidência a lógica do evento contemporâneo — ele se dá a ver enquanto acontece, se historiza e “traz em si mesmo sua própria comemoração: sob os olhos das câmeras. E, nesse sentido, ele é absolutamente presentista” (Hartog, 2003:116 e 156).12 Afinal, as câmeras filmando o segundo avião criaram

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as condições para tal; de forma semelhante, o mesmo teria ocorrido em 1968 e 1989. Diante desse quadro restaria ao historiador oferecer às sociedades um de seus atributos: o olhar distanciado. O instrumental fornecido pela noção de “regimes de historicidade” ajuda a criar a distância necessária para ver melhor o próximo: “solidários, a hipótese (o presentismo) e o instrumento (o regime de historicidade) se complementam mutualmente”. O regime de historicidade é entendido como articulação entre passado, presente e futuro ou uma constituição mista das três categorias — com um dos elementos dominantes13 — ao longo da experiência humana do tempo. Não se trata de uma realidade dada, é uma categoria, um tipo-ideal, construída pelo historiador, sem sucessões mecânicas e sem coincidir com o conceito de época: “é um artefato que é válido por sua capacidade heurística”. Para Christian Delacroix, um dos problemas desta “redução heurística” da noção de “regimes de historicidade” é, entre outros aspectos, o risco de desencorajar a historicização da própria noção. O que poderia resultar, no nosso entendimento, em uma naturalização do “instrumento”. Ainda segundo Delacroix, a noção, em especial, de presentismo “não pode ser reduzida à heurística, pois ela comporta um julgamento de realidade sobre nossa época (ela é, então, de natureza ontológica, desse ponto de vista)” (Delacroix, 2009:42). A hipótese do presentismo (por vezes tomada, apesar das intenções do próprio autor, como uma evidência) não pode ser entendida, ainda segundo Hartog, sob o registro da nostalgia (um regime melhor que outro) ou da denúncia. Assim, refletir sobre um presente onipresente é uma forma de se interrogar sobre as possibilidades de saída desse regime de historicidade. Não se sabe se a situação é transitória ou durável, mas o fato é que a imediaticidade da nossa sociedade, da mídia, das tecnologias, perda do mundo anterior à Revolução Francesa, ou o ambiente cultural e político da Europa antes de agosto de 1914. Mas não os esqueceram. […] Muito do que fora considerado familiar e permanente por décadas, ou mesmo séculos, agora ruma celeremente para o esquecimento” (2010:15-17). 13 Um exemplo do argumento da existência de um elemento predominante: “o século XX aliou, finalmente, futurismo e presentismo. Se ele inicialmente foi mais futurista que presentista, ele terminou mais presentista que futurista” (Hartog, 2003:119).

De forma mais direta o autor afirma: “el futuro ha dejado de ser un horizonte luminoso hacia el cual dirigimos órdenes de marcha más o menos vibrantes, para volverse una línea de sombra que hemos puesto en movimiento hacia nosotros, en tanto que parecemos agitarnos inutilmente en el presente y rumiar un pasado que no termina de pasar.” (p. 26) 14

introdução

do mercado e a importância atual da memória, do patrimônio e da dívida são indícios importantes de transformação. O autor afirma que no livro não havia se colocado a seguinte questão: viveríamos em um presentismo pleno ou “transitório” (par défaut). Dada a impossibilidade de um retorno passadista (em que o passado comanda, na expressão do autor), será que poderíamos pensar que estamos vivendo apenas uma suspensão, uma parada, para que o futuro retome o comando? Ou trata-se de uma inédita experiência do tempo? A dúvida em face de um presente que não é uniforme nem unívoco depende também do lugar social que se ocupa no interior das sociedades. Em outras palavras: “se trata, […], de un presentismo por defecto — transitorio, temporario, a la espera de otra cosa, por ejemplo, una reactivación de un régimen moderno — o de un presentismo pleno: de una estruturación efectivamente inédita donde el presente es en verdad la categoría dominante […]” (Hartog, 2010-b:27).14 Em parte, o livro de Hartog pode ser visto como um desenvolvimento do texto “A crise do futuro”, de Krzysztof Pomian (1980). Nesse texto, o autor procura demonstrar como as “ideologias” teriam perdido a capacidade de imaginar um futuro possível e atraente, pois o prognóstico possível era sempre o pior. Essa grave situação se dá na medida em que “a nossa civilização depende do futuro como ele depende do petróleo” (Pomian, 1999:241). Mostrando os problemas do “passadismo” e do “futurismo”, em especial com as tentativas deste último regime em buscar rupturas excessivas com o passado, o autor afirma que falta inventar uma via intermediária. De algum modo, a categoria de presentismo pode ser lida como uma solução negativa para a proposta de Pomian. Mas o “instrumento” “regimes de historicidade” pretende ir além, pois ambiciona tornar mais inteligível as múltiplas experiências do tempo, de preferência, por meio da perspectiva comparatista. Poderíamos nos perguntar: até que ponto o diagnóstico de Hartog sobre a atual experiência do tempo europeia é válida para a atual experiência brasileira do tempo? Podemos falar atual-

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mente de “crise do futuro” no Brasil? Estaríamos aqui nos trópicos sob o signo de um tipo de futurismo que interage com dimensões do presentismo, como a historicização imediata da era digital, mas que mantém uma confiança e esperança, por vezes ingênuas, com a categoria de progresso e/ou futuro?15 Sem procurar discutir se a hipótese (o presentismo) e o instrumento (regimes de historicidade) são bons ou ruins, corretos ou equivocados, procuraremos pensar brevemente a dificuldade de transposição da referida hipótese para o contexto brasileiro atual. Para tal, tomaremos como índice outro prefácio. De um livro denominado, sintomaticamente, Agenda brasileira. Fazendo uso de um procedimento moderno, os organizadores da Agenda brasileira procuram historicizar o presente, destacando que vivemos um tempo de grandes mudanças na sociedade brasileira. Eles acreditam que nosso presente pode ser comparado com os anos 1950, os anos desenvolvimentistas, período que ainda nos “interpela” não só pelas promessas não cumpridas: “também porque a década de 1950 nos alerta criticamente para o risco de que, mesmo cumprida, a modernização possa não se traduzir diretamente em modernidade e emancipação” (Botelho e Schwarcz, 2011:16). Mesmo reconhecendo o peso internacional crescente do país e nossos pacíficos processos eleitorais em mais de 20 anos os autores destacam os dilemas da violência e da desigualdade. Percebemos, desse modo, a persistência de um olhar crítico em relação ao presente, ao passado e ao futuro; porém, diferentemente da análise de Hartog, não nos parece que haja neste diagnóstico do presente uma crise do futuro.16 Ao contrário, os autores afirmam que a obra por eles organizada pretende, por meio de reflexões sobre os mais variados temas, pensar a “mudança social” numa época de transformações aceleradas. “Olhar para nós mesmos”, mais do que um gesto de nostalgia, é uma atitude de crítica de autorreflexão e cidadania. Para uma distinção entre mito do progresso e esperança no futuro, cf., em especial, Rossi (2000). Cf., também, Jonas (1998). 16 Em um exercício de futurologia, o ministro da Economia, Guido Mantega, anteriormente ao anúncio, em 2011, de que o Brasil se tornaria a sexta economia do mundo, declarou que dentro de 10 a 20 anos o país teria um padrão de vida europeu. Disponível em: . Acessado em 9 jan. 2012. 15

Outro aspecto de fundo também merece ser destacado: a legitimidade social da história e/ou dos historiadores nas duas realidades (francesa e brasileira). Ao que parece, verifica-se desde o final do século passado um progressivo declínio da história e/ou dos historiadores na cena pública francesa (Rioux, 2006, e Theullot, 2005).17 Diante desse fenômeno, Pierre Nora, por exemplo, por meio de uma problemática distinção entre história e memória na linha da sociológica de Maurice Halbwachs, defende a tese de um aumento da aceleração da história, de uma suposta ruptura entre história e memória e da perda da história-memória: “fala-se tanto de memória porque ela não existe mais”, ou ainda, “o nascimento de uma preocupação historiográfica, é a história que se empenha em emboscar em si mesma o que não é ela própria, descobrindo-se como vítima da memória e fazendo um esforço para se livrar dela” (Nora, 1993:7 e 10).18 Nessa direção, Hartog afirma, também de forma problemática, que o questionamento da história deve-se a seu eclipse (temporário?) em favor da memória, termo que teria se tornado mais abrangente (Hartog in Delacroix, 2010:766-771).19 O passado atrai mais do que a história. Para alguns analistas, a história foi deixada de lado em nome do direito e a história conduzida pelo direito cria uma situação ou de criminalização generalizada do passado ou de uma vitimização generalizada.20 De algum modo, a posição de François Hartog não deixa de ser uma tentativa de refletir sobre a perda da legitimidade da história e/ou dos historiadores na sociedade francesa. É o presentismo que explica a perda. O atual “fardo Segundo François Hartog, “actualmente, para ser admitido en el espacio público, para ser reconocido en la sociedad civil, el historiador debe ‘presentificarse’, proponiéndose, como experto y transmissor [passeur] de presente: del presente al presente?” (Hartog, 2010-b:22). 18 Ricœur critica duramente a perspectiva aberta por Halbwachs (e desenvolvida por Nora e outros) por trabalhar a relação entre história e memória sob o signo da oposição e/ou hierarquização e não da dialética. Ricœur (2000); Ricœur (2002:41-61). Cf., também, Hartog (2003:113-161). 19 Na mesma direção, Beatriz Sarlo comenta que o “presente, ameaçado pelo desgaste da aceleração, converte-se, enquanto transcorre, em matéria da memória” (2005:95-96). Cf. as análises de Irene Cardoso e Temístocles Cezar neste livro sobre a relação entre testemunho, memória e história. 20 Ver, sobre isso, as seguintes referências: Gauchet (2002); Nora (2006); Eliacheff e Larivière (2007).

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da história” é posto nos seguintes termos: “não se trata de defender a história por ela mesma, em nome do que ela foi, mas pelo que ela poderá ser (em um mundo presentista pleno ou imperfeito — par défaut)” (Hartog in Delacroix et al., 2009:149). Nessa direção, o “fardo do historiador” é tornar-se contemporâneo do contemporâneo, “lo que significa lo contrario de correr detrás de la actualidad o ceder a la lógica del momento” (Hartog, 2010-b:16).21 Talvez seja desnecessário refletir se somos ou não o país do esquecimento, mas certamente é no mínimo inusitado falarmos, no Brasil, de excesso de memória ou de perda de legitimidade da história. A respeito da “comemoração dos 500 anos”, Helenice Rodrigues da Silva afirma: “se as comemorações nacionais têm por objetivo cristalizar as memórias coletivas, a data de 22 de abril de 2000 já não passa de uma lembrança negativa que o país se esforça em esquecer” (2003:425-439). Não deixa de ser sintomático também a “verdadeira saga, em busca da regulamentação da nossa profissão”.22 A própria tentativa de profissionalização também já não é um sintoma da baixa legitimidade da prática histórica? Fato é que desde 1968 há projetos nesta direção, em um país que nos últimos anos, por exemplo, regulamentou profissões novas como as de enólogo e mototaxista. Em notícia sobre aprovação da profissão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, os jornalistas da Agência Senado escreveram que “o relator reconheceu o ‘relevante’ papel exercido pelos historiadores na sociedade” (Borges e Franco, 2011). Não deixa de ser no mínimo irônico o uso de aspas na palavra “relevante”, para dizer pouco. O próprio pleito por parte da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh) para que a Comissão da Verdade tenha ao menos um historiador também é representativo para efeitos do nosso argumento. O que se desejou mostrar até aqui é que a discussão sobre o “presentismo”, tal qual elaborado por Hartog, é indissociável da própria “crise” atual da França, dos intelectuais franceses, dos (des)caminhos da disciplina Hayden White denomina “fardo do historiador”, a saber: “restabelecer a dignidade dos estudos históricos […] de modo a permitir que o historiador participe positivamente da tarefa de libertar o presente do fardo da história” (1994:53). 22 Dossiê sobre a regulamentação da profissão de historiador disponível em . 21

naquele espaço social e, em última instância, dos rumos e crises que a ideia de “Europa” vem experimentando desde, pelo menos, a década de 1980. Dimensões que não podem ser deixadas de lado em qualquer tipo de transposição do argumento para a realidade brasileira. Crise na ordem do tempo? De qual tempo? De que ordem? E qual crise? Ao que parece, não temos experimentado o tempo, pelo menos em alguns aspectos, da mesma forma que o Velho Mundo (Flusser, 1998).23 A imagem do artista de rua britânico conhecido pelo pseudônimo Banksy, na qual vemos uma menina sentada na calçada segurando a letra “O” da mensagem “No future”, como se fosse um balão, de algum modo exprime certo imaginário social daquela experiência do tempo.24 Por outro lado, nos parece que “O gigante adormecido”, peça publicitária da empresa Johnnie Walker, exprime um imaginário social emergente acerca da atual experiência do tempo nos trópicos. Nessa peça, o morro do Pão de Açúcar se transforma em um gigante que caminha pelo Rio de Janeiro, e a propaganda termina com o slogan da empresa, “Keep Walking” (continue andando).25 Não se trata de dizer que uma experiência seja “superior” à outra, mas o que se quer destacar aqui é a “diferença” entre ambas. A metáfora do “gigante adormecido” pode ser tomada como sintoma de uma nova reinvenção do otimismo (Fico, 1997).26 No entanto, agora não mais sob o signo da ditadura, por mais que o futebol continue atravessando a política e a economia. Ainda que os fantasmas de um passado, já não tão recente assim, continuem nos atormentando e sendo justas as questões a serem enfrentadas.27 Enfim, Na década de 1970, justamente quando mais se falava em “aceleração” na Europa, Flusser afirmou — o que sempre lhe custou incompreensões — que o homem brasileiro seria um “tipo a-histórico não primitivo” (1998). É algo irônico que sejam hoje intelectuais europeus e norte-americanos os que falam num presente “lento” ou “onipresente”. 24 Disponível em . 25 Disponível em . 26 Vale a pena lembrar que, em face dos horrores da II Guerra Mundial, Stefan Zweig retoma a metáfora do Brasil como país do futuro. A miscigenação e o “ódio à guerra” são exaltados como uma das principais virtudes da jovem nação. Para uma análise geral da questão, cf. Carvalho in Bethell (2002:45-75). 27 Cf., entre outros, Reis (2010); Gagnebin in Teles e Safatle (2010:177-186); Traverso in Cernadas e Lvovich (2010:47-68). Cf. o artigo de Durval Muniz de Albuquerque Júnior neste livro sobre trauma, esquecimento e usos do passado.

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esperamos ter compartilhado nossas reticências quanto à utilização da categoria de presentismo para se pensar a experiência do tempo no Brasil do início do século XXI.28

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O topos do “mais rápido do que nunca” sempre se faz acompanhar do topos “mais lento do que nunca”. Daí que hipóteses como a de Hartog, Gumbrecht ou a “dromologia” de Paul Virilio tenham apenas um alcance muito limitado: pecam por sua unilateralidade. Caso estivesse valendo a lei da velocidade de Virilio, não seríamos capazes de nos orientar no mundo (Virilio, 2007). Caso fossem corretas as teses do presentismo ou do presente lento, teríamos retornado ao tempo do eterno retorno, ao “regime de historicidade” mítico e mesmo, no limite, a uma desculturalização do homem. Avessa a toda forma de hiperbolização, a abordagem de Lübbe — ele a caracteriza como uma “fenomenologia da dinâmica evolucionária de nossa civilização atual” — oferece-nos uma alternativa interessante. Talvez o mais sensato seja mesmo falar em “dinâmica civilizacional” moderna, sem ceder à tentação de estabelecer quaisquer tendências definitivas a priori. Tal como Lübbe o concebe, este termo contempla e pressupõe ambas as possibilidades — a aceleração e o seu oposto. Desse modo se chega, por outra via, àquela “dialética da duração” de que falava Fernand Braudel. A fixação do olhar sobre o que supostamente se foi ou desapareceu pode nos impedir de ver as reconfigurações, num momento em que se assiste a certos deslocamentos de olhares e questões colocadas ao passado, ao presente e ao futuro (Zawadzki, 2008:126 e 2002). Abandono da experiência do tempo moderna? Ao que parece, os elementos para responder positivamente a esta questão são ainda insuficientes. Resta-nos, por fim, o lúcido comentário de Raymond Aron (2004:261): “em nossa consciência histórica se mesclam e se opõem as visões fatalistas — tudo Apesar dessas reticências, Rodrigo Bonaldo faz uma boa articulação entre a obra de Eduardo Bueno com a categoria de “presentismo”. Mas o autor pensa mais o presentismo como uma presentificação do passado, mediado por uma escrita jornalística sintética, do que como historicização imediata. Ver Bonaldo (2010). 28

se repete —, as visões melancólicas — uma época se acaba, a da preeminência da Europa — e as visões otimistas — nosso presente marca tanto um começo como um fim”. Mariana, janeiro de 2012

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