TRANSKAFKA: UMA EXPERIMENTAÇÃO

June 14, 2017 | Autor: Ana Godoy | Categoria: Educação, Meio Ambiente, Filosofia
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TRANSKAFKA: UMA EXPERIMENTAÇÃO Ana Godoy [0] um texto, uma máquina, um procedimento

Rendez-vous Du Dimanche 6 Février 1916.

Começou com uma mexidinha a fim de adaptar o texto - escrito para este livro em 2008 - à configuração que o volume veio a ganhar em 2010. Algumas coisas já haviam sido ditas e havia outras que queria dizer. No emaranhado das linhas que atravessam minha pesquisa de pós doutorado1 – encerrada no início de 2009 -, as viagens e oficinas que a desdobraram, os encontros com o Grupo Transversal e aquilo que insiste no momento da escrita deram à mexidinha ares de um pequeno jogo entre eu e ‘si mesmo’. Mais (ou menos) do que uma adaptação – para a qual havia me disposto -, a percussão destas linhas produziu uma verdadeira mutação no texto elaborado anteriormente: alguns blocos foram mantidos, outros transformados pela leitura subseqüente, novos blocos foram criados. Em todo caso, importa salientar que os blocos sempre funcionam diferentemente ao se conectarem a estas e aquelas elaborações conceituais, anotações, etc. Acontece, então, de me ver às voltas já nestas primeiras linhas com esboço de uma pequena máquina... O esboço testemunha, portanto, um procedimento ou, como teria dito Van Gogh, testemunha um modo de registrar as coisas no momento em que elas se produzem. O leitor não deve, todavia, enganar-se, pois as coisas que se registra não são exclusivamente aquelas que a linguagem designa, mas os traços, as tonalidades, o procedimento que a trabalha... Acontece, então, de me ver também às voltas com aquela dimensão tão precisamente formulada por Deleuze ao perguntar: a que nos dedicaremos senão àqueles problemas que demandam a verdadeira transformação de nossos corpos e de nossa linguagem? É preciso começar.

[Transkafka:]

Sentar num vagão de trem, esquecer isso, viver como quem estivesse em casa, lembrar repentinamente (…). 1

Pesquisa realizada na FE/UNICAMP sob o título “Educação, meio ambiente e subjetividade: por uma ética dos afectos”, sob a supervisão do prof. Dr. Silvio Gallo. Financiamento: FAPESP.

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Situação mais agudamente talhada: esquecer que se esqueceu, virar de um só golpe, no trem veloz como o raio, uma criança que viaja sozinha e em torno de quem, trêmulo de pressa, o vagão reúne surpreendentemente as coisas mais diminutas, como se viessem da mão de um prestidigitador.2

[1] caixa de ferramentas: Kafka, por uma literatura menor

Abrir o livro em qualquer página e pegar qualquer idéia que possa interessar. Desse modo Deleuze e Guattari incitam um certo tipo de relação com sua filosofia, mas mais do que isso, um certo tipo de relação com aquilo – qualquer coisa – que se impõe ao pensamento e que o faz como “uma mistura de leitura e sensações” (ORLANDI, 2005, p.3). Em Kafka, Deleuze e Guattari fazem saltar as conexões entre escrita e devir tornando possível perceber as linhas singulares e transversais que atravessam a linguagem e a literatura, linhas que não tem nos contos, novelas e romances kafkianos seu começo ou fim, linhas que Kafka pegou pelo meio e que recortam as práticas que configuram todas as dimensões da existência. Digamos que vale para Kafka: por uma literatura menor o mesmo procedimento que Deleuze e Guattari fazem notar em sua filosofia: não interessa aquilo que uma maioria determina em relação a uma minoria sejam elas quais forem, mas o modo pelo qual uma minoria, uma maioria se tornam menores. Nesse sentido, um procedimento sempre está às voltas com a singularidade daquilo que se dá sob o signo do encontro sendo já, ele mesmo (o procedimento), uma complicação de linhas. Assim, a breve anotação extraída dos Diários, os muitos contos, as novelas, as cartas e romances apresentam-se como a ocasião de um encontro em que os conceitos filosóficos se compõem com os afectos com os quais Kafka escreve, fazendo da literatura o campo problemático no qual estilo e linguagem se lançam num embate. Todavia, este embate não é aquele em que o estilo derrota a linguagem, mas aquele em que o estilo força a linguagem a “reluzir as fissuras e variações próprias aos usos menores” (ALMEIDA, 2003, p. 23). O caráter deste embate é, portanto, experimental desde que, não pertencendo a um autor, concerne ao movimento, à variação por meio

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Apud Hanns Zischler em Kafka vai ao cinema, p. 47.

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da qual um nome próprio – Kafka [mas também Deleuze e Guattari] – é a expressão de uma nova sintaxe, uma língua estrangeira cavada na própria língua, que não é outra coisa que a criação de um outro ritmo na língua, a criação de um estilo inseparável do procedimento que anima os traços expressivos que o compõe. Cada procedimento atesta, assim, a singularidade do estilo que exprime, mas todos os procedimentos em sua singularidade permanecem atados a um procedimento filosófico que neles ressoa e que a literatura amplifica. O procedimento, então, adquire uma importância para Deleuze e Guattari enquanto condição a partir da qual a linguagem alcança sua máxima potência deixando de ser representativa, não mais se reduzindo às designações e significações para mostrar-se como puro diferenciador. Trata-se não só de pensar, mas também de fazer a linguagem funcionar fora das figuras da semelhança (ALMEIDA, 2003, p. 140), de fazê-la afirmar a diferença.

[2] Umwelt: mundo próprio without here nor there nor ever approaching nor moving away from anything all the steps of the earth.3

Sobre o palco tudo começou com um barulhinho: vento. Talvez máquinas de construção ou demolição, fluxo de carros, uma tempestade, quem sabe... Sobre o palco a coreógrafa francesa Maguy Marin4 dispôs alternadamente superfícies verticais maleáveis e precariamente reflexivas de onde surgiam, às vezes concomitantemente, às vezes em alternância, por poucos minutos para desaparecer em seguida, homens e mulheres altos, baixos, magros ou nem tanto, brancos ou nem tanto que colocavam sobre suas cabeças a coroa dourada do reizinho, ou o chapéu azul de praia ou o capacete de guerra ou amarravam seus roupões ou puxavam as calças – talvez saídos do banheiro ou do quarto ou... - ou ainda de quatro traziam uma ave na boca; de pé um osso nas mãos ou uma metralhadora ou embalavam nos braços uma criança; e jogavam sobre o palco, alternadamente ou simultaneamente, uma ave despedaçada, uma maçã mordida, um osso roído, um balde de entulho – que parecia acumular-se em algum lugar - ou uma criança que chacoalhavam no ar; e iam e

Samuel Beckett em For to End Yet Again. (Ttítulo de uma curta peça em prosa originalmente publicada em Frances, em 1975, sob o título Pou finir enconre.) 4 O trecho inicial do espetáculo pode ser visto em http://idanca.net/lang/ptbr/2008/10/06/umweltumwelt/ . No Youtube podem ser encontrados vários outros pequenos trechos. 3

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vinham, agora coroados erguiam as calças ou socavam alguém que usava um chapéu azul de praia, e com seus capacetes traziam de quatro uma ave na boca que atiravam ao chão e vinham equilibrando uma pilha de livros e comendo uma cenoura, homens e mulheres, dois, três ou mais de cada vez, uma toalha enrolada na cabeça e sobre o corpo um macacão de trabalho e de quatro traziam uma criança na boca e fechavam seus robes entre beijos e atiravam ossos sobre o chão e restos de uma maçã mordida e traziam uma imensa árvore verde; e passavam rapidamente em seus vestidos de baile, dançavam colados - a coroa dourada sobre a cabeça, enquanto rugia o vento nos ferros de uma obra, no estrondo de uma demolição, correndo veloz sobre os entulhos, a criança, os restos de animais, plantas, comidas, correndo veloz entre as roupas, os cabelos, a pele. Ao longo de duas horas eles saíram de traz das superfícies, sobre as quais sua imagem aparecia trêmula e borrada prestes a se desmanchar, e realizaram atos os mais corriqueiros com a altivez quase cômica do reizinho de seu mundo próprio, no qual ele é também o turista de chapéu azul e o soldado em sua defesa; e durante duas horas esperamos que de traz das superfícies alguma coisa outra e surpreendente viesse, e a cada vez o incômodo das acumulações excessivas até que já não se soubesse mais quem o ou o que rangia e rugia suas engrenagens amante-soberano-soldado-calças-namão-turista-criança subindo, girando, vacilando, correndo e maior ficava a montanha de entulhos sobre o chão. Restos dos mundos próprios que oscilam? Ou tão somente lixo, crosta com a qual os cimentamos?

[3] “nunca nada de conhecido, mas uma grande destruição do reconhecido”5

O procedimento é simples: combinar exaustivamente um certo número de elementos a intervalos regulares de 3 a 4 segundos. Esta combinação incide sobre o número de pessoas no palco e os objetos que elas portam. Começa-se com uma combinação simples: 9 pessoas vestidas com roupas comuns e a partir daí introduz-se pequenas variações a cada repetição... Um pequeno inventário de atitudes, de poses, cada pose um arranjo de gestos que é ampliado, justaposto, decomposto, prolongado pela pose ao lado, pela subseqüente... A repetição do procedimento esgota as possibilidades de cada postura. Já nenhuma tem 5

Gilles Deleuze em “Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento”, p. 176.

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precedência ou é melhor do que as outras, impossível dizer qual se prefere. Cada postura experimenta como que um acidente, uma dissonância restando pequenos fragmentos que passam de uma a outra e a cada passagem se articulam num outro arranjo prestes a se desmanchar. Começa-se com nove pessoas vestidas com roupas comuns e cada uma é já um amante e um soldado e um rei e um turista... . E à medida que o procedimento se repete a coroa do rei esta sobre o turista e sobre o operário e ao mesmo tempo o capacete esta sobre o amante e sobre a noiva..., até que já não seja mais possível nomear cada pose e só reste uma construção movente que perde e ganha velocidade, que se faz entre as coisas, que desliza sobre a ruína das posturas criando outras conexões. Não se trata mais tão só da coroa, da metralhadora, da árvore, da pilha de livros, mas também do vento, do frio, das sonoridades. Já não se trata de um mundo complexo, mas de uma multiplicidade complicada, multiplicidade que o esgotamento do possível compõe introduzindo um outro ritmo. Já não se trata mais de homens e mulheres, e, ainda que lá estejam só estão porque um homem e uma mulher são fluxos que o agenciamento dos movimentos quotidianos com o movimento vital faz passar, libertando a variação das formas identitárias que a aprisionam e com ela as forças que a sensação reencontra. Um mundo próprio exprime as composições que nos habitam, os afectos de que um corpo é capaz.

[4] “brincadeira sem propósito” 6 – disse John Cage certa vez. Assim é que entre “uma cor, um gosto, um toque, um odor, um ruído, um peso, existiria uma comunicação existencial que construiria o momento ‘pathico’ (não representativo) da sensação” (DELEUZE, 2007, p. 22). Todavia, o que faz com que cada uma dessas dimensões comunique-se com a outra é o Ritmo, potência vital que atravessa e transborda todas as dimensões. É a ela que Robert Delaunay vai se referir ao afirmar que “a natureza é atravessada por um ritmo que não se restringe à sua diversidade” (DELAUNAY, 2001:79), isto é, não se restringe ao que é dado no plano visível. Todavia, ali estão os restos do mundo que habitamos, as carcaças eliminadas nas minúsculas e invisíveis guerras quotidianas e corriqueiras que somos educados para desencadear em nome da estabilidade e do equilíbrio, e lá se encontra também o lixo cognitivo descolado das existências singulares, gerado pela produção demente de 6

John Cage em Silence, p. 12.

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palavras nominativas e imagens designativas com que se pretende cimentá-las. Eis aí o caráter da Lei enquanto princípio suplementar de ordenação e organização: uma incrível crosta que recobre todas as coisas. O princípio, como mostrou Kafka em seus inúmeros, perturbadoramente cômicos e belíssimos textos, é que nada pode se furtar a verdade, pois é com ela que se pretende controlar a variação que não para de ameaçar as significações fazendo fugir tudo aquilo que põe em comum, em comunidade. Sou amplo, contenho multidões7 [4] uma língua menor, um uso menor, um modo menor... Há sempre uma relação de força entre o plano de organização – de desenvolvimento da forma, de formação do sujeito e o plano de composição em que não há organização ou desenvolvimento e que o trabalha de maneira imanente. Se vale o mesmo para um campo social ou qualquer outro domínio é porque diferentes domínios experimentam um mesmo processo de minoração, todavia os procedimentos necessariamente variam segundo o domínio em questão... Quando pensada no plano de composição a língua está sempre imbricada num agenciamento social, é afetada pelos cortes/conexões que o atravessam e que correm sobre a superfície do socius fazendo-a variar continuamente sobre uma linha virtual. Não importa qual elemento se tome sobre esta linha, mas sim que ela porta todas as singularidades do elemento tomado. Um modo menor, um tratamento, um uso menor é aquele operado sobre as constantes – os marcadores de poder - pela potência minoritária que a trabalha – potência de variação que as minorias que a povoam realizam -, no combate àqueles usos que se pretendem dominantes ou maiores ao fazerem valer uma suposta legitimidade da constante – inseparável da Lei e da lei. Trata-se sempre do combate que uma língua trava no interior da língua oficial, trata-se sempre de uma política – de regras facultativas - que não cessa de variar diferenciando-se segundo os afectos que se distribuem num agenciamento cavando “uma língua tíbia e quente, torpe e sutil, mas de crescente propriedade para nossa expressão necessária”8...

7 8

Walt Whitman em “Canção de mim mesmo”. Julio Cortázar em Julio Cortázar: compromisso em fantasia, p. 60.

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Kafka já o sabia: as expressões absolutas do nacionalismo – seja na educação, na política, nas artes -, fazem-se acompanhar da mais espantosa mediocridade que caracteriza o habitante standard de qualquer lugar. Necrófagos, professores normais, diriam Cortázar e também Thoreau, aqueles que de todo modo crêem na ilusão da grandeza da língua e da cultura.

[5] políticas da dissolução

Que tendas são essas? Quem as armou? De onde vem tanta gente? (...) Eu os reconheço! São nômades, nômades [...].9 “Há uma política de Kafka” – afirmam Deleuze e Guattari (1977, p. 13), uma política cuja estratégia - referida em Kafka: por uma literatura menor a propósito do romance O Castelo - o princípio de múltiplas entradas exprime. Há uma política na superfície do texto como prática da linguagem cuja estratégia implica tanto a escrita quanto a leitura, pois “só há uma experimentação de Kafka” (idem, ibdem). Depreende-se daí que aquilo que se toma como caso, objeto de um encontro, ao oferece-se a si mesmo como experimentação não cessa de se reconfigurar dentro e contra cada situação marcada por particularismos ou identidades. O que se enfrenta é ora a centralidade do Eu e da consciência, ora a ordenação regular do senso comum para fazer emergir um meio em continua variação. A singularidade da estratégia política diz respeito a uma movência que incessantemente se impõe de maneira que a máquina literária, a máquina de escrita, a máquina de leitura se metamorfoseiam como efeito das composições e da velocidade que experimentam na relação com um meio em variação. Não nos enganemos, “os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vetores ou tensores”... (DELEUZE, 1990, p. 155). [6] “Isso joga sem jogadores”10

9

Hans M. Enzensberger em O naufrágio do Titanic, p. 83-84. Gilles Deleuze em “Falha e fogos locais”, p. 209.

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Klossowski, em um artigo de 1972 a propósito da análise de alguns critérios presentes na obra de Nietzsche11, afirma que a gestão total da Terra, a planificação planetária da existência, obedece á lei de um movimento econômico irreversível, aquela que apanha tudo pela fixação - de metas, de objetivos, de caminhos, de itinerários, de ações calculáveis em nome de um futuro que se dá a ler nos planos e estatísticas e que consagraria a mentalidade reinante por meio de um embrutecimento do homem, sua mediocrização, o que exigiria, segundo ele, um outro movimento. Talvez aquele das linhas de errância no incessante desfazer das referências “com seus volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 117). Linhas cujo movimento exprimem uma outra política, que não reconhece fronteiras, prescinde do que se deve ser, fazer, pensar e sentir traindo os sistemas de significação, de referencialidade, afirmando outras e surpreendentes práticas, desobstruindo fluxos, criando outros fluxos desarranjando as maquinarias de controle e de submissão. Trair remeteria, então, à potência dos corpos para gozar do mundo e dele extrair os mundos com os quais se compõem, à potência para inventar-se como um lugar de passeios. Toda uma outra política, uma outra ecologia, a menor das ecologias. Aquela capaz de desmanchar os saberes e práticas, bem como rostos e paisagens que nos aprisionam, que nos incitam a perceber o corpo somente pelo viés das técnicas e tecnologias que o estabilizam e conformam, e não pelo viés de sua potência para resistir, para inventar os órgãos de que necessita a fim de inventar o corpo e a Terra que lhe convém. O que está posto aqui é a liberação do sensível do regime da lei e do contrato, pois as capturas, sejam elas categoriais ou semânticas, sempre se colocam em relação ao aparelho de Estado e assim, imbuídas de uma “atitude sadia de espírito”, inspiram as analogias e metáforas que povoam os modelos globalizantes da ecologia e do meio ambiente no esforço inútil, ainda que violento, de expropriar os corpos da qualidade desconhecida do mundo único que constitui cada um - qualidade, sobretudo anárquica e anarquizante: sim, isso joga sem jogadores. E não há regras pré-existentes desde que o jogo carrega já suas próprias regras, e isso que joga são as forças de futuro...

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Originalmente apresentado no encontro sobre Nietzsche que teve lugar em Cerisy-la-Safle em 1972 e posteriormente publicado na coletânea brasileira Por que Nietzsche?, juntamente com outras conferências apresentadas na ocasião.

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[7] experimentação, máquinas, programas [importante: nenhum enredo]

É porque não concerne a uma minoria e a uma maioria constituídas, tampouco ao escritor é que a literatura – tomada em sua potência minoritária, consiste em “encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 28-29) fazendo desviar tanto o modelo teórico quanto o modelo político por meio do qual a língua é submetida aos processos de homogeneização, centralização e unificação. O deserto, isto é, a experimentação sobre si mesmo, implica o embate entre a língua do poder com seus marcadores institucionais - que determinam quais combinações devemos habitar em proveito da conservação de um único mundo possível sob a lei, e a potência minoritária “nossa única chance para todas as combinações que nos habitam” (DELUEZE; PARNET, 1998, p. 19) aquém e além de toda lei. Se Kafka configura um caso promovendo uma política radical que resiste a toda submissão a princípios de normatividade, hierarquia e unidade do representado que a um só tempo conformam a produção literária majoritária e o sistema político dominante, ambos apoiados sobre a representação e a consciência de um sujeito histórico -, é porque a autonomia do estilo como expressão da potência, torna-se mais forte do que o enredo, do que o “discurso único concordante [que] assinala[va] a unidade da consciência do povo” (ANTOUN, s/d, p. 2), a unidade de uma consciência histórica a que chamamos humanidade É nesse sentido que o menor nunca pode chegar a se impor como categoria ou a minoração como norma a ser seguida, pois se cabe aquele que engendra a máquina literária tornar-se outra coisa que não escritor, é porque ao por em funcionamento um modo menor de composição cabe a ele inventar os procedimentos pelos quais não só amplia-se aquilo que não está absolutamente equilibrado, que não concorda nem com o Eu nem com o eu, produzindo uma série de variações; mas também tornar possível seguir as variações tematizando as linhas de ação da diferença que nas variações se produzem. É sob o signo da variação que um problema se individua e que o problema da individuação singulariza o pensamento, porque tanto os procedimentos de minoração quanto sua tematização, ao colocarem-se em relação com as variações, constitui a um só tempo o meio e aquele que o percorre. Trata-se, portanto, de todo um campo experimental, no sentido nietzscheano, que Deleuze e Guattari põem em funcionamento ao tomar Kafka como um caso do pensamento. 9

Assim, se Deleuze e Guattarri encontram em Kafka uma máquina literária é porque a língua, a própria escrita é maquinada, o desejo é maquinado, pondo em jogo um funcionamento experimental, mas também uma leitura experimental, um pensamento experimental capaz de levar ao limite a potência que atravessa o texto, afirmando o próprio movimento experimental que os engendra. As máquinas são tanto afectivas, quanto são programas de afectos que se distribuem num agenciamento maquínico sobre um plano de composição que não o precede.

[8] “fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar”12 A experimentação implica sair do perímetro delimitado pelo sistema de organização institucional para se aventurar no e com o desconhecido incorporando as vicissitudes do percurso, tomando para si a instabilidade do mundo, operando com o não-controle, com a indeterminação, como afirma John Cage, não se atendo àquilo que foi dado de ante-mão e que busca estabilizar o mundo. Todavia, porque a saída não está dada, a experimentação exige um procedimento ativo que se exprime como minoração, isto é, como subtração dos marcadores de poder que constituem a linguagem institucional, a moral institucional para liberar o delírio que engendra as resistências que os enfrentam. Delírio que concerne às forças de futuro, à invenção ao afirmar a potência minoritária frente às políticas como maioria as quais encontram nas oposições fáceis do exercício opinativo as formas de garantir e manter a sujeição e a servidão. Resta, portanto, inventar o procedimento ou o conjunto de procedimentos que nos permitem levar a experimentação o mais longe possível. Porém, tal como Deleuze (2007) o concebe, o procedimento nunca é o mesmo e varia porque é indissociável daquilo que se produz. Inimitável, portanto, ele não se coloca como modelo, não é ensinável, pois responde às exigências do material - diverso a cada caso -, e, compondo-se com ele constitui aquilo que Deleuze chama estilo cujos critérios concernem a uma potência seletiva resultante de um modo de composição. Nesta perspectiva, um procedimento ou conjunto de procedimentos se exprime como prática ou práticas sobre si e sobre o mundo tendo em vista um ethos, uma ética.

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Kafka em “A partida”, p. 141.

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[9] Kafka e o lab(y)irint(h)o

A máquina literária não é, por princípio, uma máquina de guerra, pois ela se define em relação às composições de afectos, aos devires em que é tomada. Todavia, o caráter experimental da leitura, ao levar ao limite a potência de uma máquina-toca, como aquela d’O Castelo, torna possível metamorfoseá-la numa máquina-oca em que a língua ganha buracos e perde fechos, e tal como uma casa de índio torna-se um labirinto em que cada entrada já é uma saída, pois nunca se está dentro... Seu funcionamento poderia ser dito então o de uma máquina de guerra em que a extrema mobilidade das linhas, àquilo que Deleuze e Guattari apontam como um alto coeficiente de desterritorialização, ao sabotar os encadeamentos habituais que os clichês propiciam de maneira a desorganizar e confundir o teatro de operações organizado pela consciência; pondo em jogo a ruptura do compromisso com um sistema majoritário, com os jogos de legitimação que subjazem à língua da comunidade e da nação, com o conteúdo de uma identidade nacional e as identidades locais que a ela se articulam para forjar “os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.27). [10] [Traveler’s Folding Item]

Por toda a parte o deserto: em lugar do recorte do visível e do dizível segundo uma imagem do pensamento tal qual aquela organizada pelos impérios; visões e audições cuja potência se iguala a sensibilidade que não é mais a do homem da representação, mas a do nômade, aquele que exprime o deserto como espaço de distribuição vetorial, a paisagem de antes do homem, um espaço não ilustrativo, não figurativo que o precede, mas que, todavia, lhe é coexistente. Em que as palavras, as cores e os sons valem como materiais expressivos cuja maquinação exprime as combinações que nos habitam ao desmontar o agenciamento, desfazer uma máquina social e política deixando assim à mostra “suas peças, suas engrenagens, todos os seus materiais, corpos, atos, movimentos”. (ALMEIDA, 2003 p. 61). O que interessa é como uma coisa, qualquer coisa, funciona; em conexão com o que ela produz; em que multiplicidade de sentido ela se introduz e se metamorfoseia. Interessa quais máquinas somos capazes de inventar e o meio que emerge com elas, bem como em relação com quais outras máquinas e meios elas se 11

colocam, que afectos circulam. As máquinas são sempre agenciadas e funcionam no seio de um agenciamento social e político, é desmontando-os que se esboça aqui e ali uma máquina burocrática, tecnocrática e fascista ou uma máquina revolucionária. Razão pela qual o(s) procedimento(s) ganham mais e mais relevância, pois dizem respeito ao modo pelo qual o desejo investe um agenciamento, o modo pelo qual uma máquina funciona e produz, como os afectos passam um pelos outros. “Kafka se propõe a extrair das representações sociais os agenciamentos de enunciação e os agenciamentos maquínicos, e a desmontar esses agenciamentos” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.70.), mas o modo de fazê-lo é sempre o que cabe inventar. [11] porque “há mais moscas e mosquitos do que homens...”13 O acento premeditado sobre o procedimento se dá precisamente porque “o procedimento é a vida mesma” (DELEUZE, 1982, p. 179) concernindo, portanto à potência de singularização e metamorfose que arrasta para encontros imprevisíveis e insuspeitados, linha improvável de uma série de catástrofes – de desabamentos e construções -, por meio das quais as cadências dominantes de sentido são desconectadas e as subjetividades se desfazem, constituindo o que Deleuze (2003) chamou – a propósito do procedimento de Carmelo Bene - de produção de um grupo de transformação menor através das formas e sujeitos/temas dominantes. Daí a importância de uma educação menor como prática desviante (GALLO 2003), como invenção de desvios nos quais outras e novas conexões são produzidas em proveito de todos os mundos, capaz, portanto, de operar aquém e além da semelhança e da identidade. Se o desvio corresponde ao movimento do devir, sempre minoritário, movimento que descreve um processo de individuação e subjetivação que não se finaliza, é necessário uma saúde de outra ordem, uma grande saúde, como afirma Nietzsche, mais seletiva e mais disponível aos encontros, às composições. Uma potência seletiva que concerne a uma arte de viver, a uma cultura da experimentação em que a educação deixa de ser uma prática de conformação às instituições14, sempre prestes a instalar um “nós” carregado da ilusão da participação que nada mais é que “passividades obtidas a custa da obturação dos processos de subjetivação” (BENEVIDES, 1996, p. 105). 13 14

Gilles Deleuze em “Un manifesto de menos”, p. 98. Cf. Friedrich Nietzsche em Escritos sobre educação, p. 32-33.

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[12] para terminar...

A indeterminação cageana ressoa no livre jogo schillerniano tal como apontado por François Zourabichvili no qual se afirma “a capacidade de jogar com as determinações; em suma, de interromper seu encadeamento para compô-las livremente” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 100-101) sem se sujeitar a nenhum conteúdo cognitivo. Essa transformação da educação por meio de um vitalismo filosófico e artístico afirma o desejo como meio de intensificação da experimentação sobre si e sobre o mundo. A vizinhança evocada por Deleuze entre Nietzsche e Spinoza torna-se bastante sugestiva e é tanto mais potente quando a transvaloração - a criação de novas possibilidades de vida -, tomada como arte prática ou química filosófica, faz ressoar uma filosofia prática que encontra em uma ética dos afectos sua expressividade, pois trata-se sempre de determinar, a cada vez, para o corpo e para o pensamento, seus venenos e seus alimentos. É nesse sentido que a experimentação sobre si e com forças doo mundo implicam uma arte das composições, uma ética dos afectos. Daí a potência da concepção da educação como plano de composição estética como coloca Silvio Gallo (2003) -, sobretudo porque a educação se afirmaria como uma arte prática de intensificar as variações de intensidade tornando-as tanto mais fortes quanto imprevisíveis, potencializando os ritmos por meio dos quais novas composições se fazem e por meio das quais se inventam novos modos de existência, “novas maneiras de escrever e, talvez, de agir”. (DELEUZE, 2006, p. 176).

[13] ... tornar-se um traidor

Há máquinas por toda parte distribuindo afectos pelos agenciamentos maquínicos e nenhuma vale mais do que outra desde que o que interessa é de que maneira elas se reagruparão, se são dotadas de uma potência revolucionária aumentando a potência de agir, ou se tão somente encontram os meios para melhor adaptar-se às exigências capitalistas. É sempre uma questão de utilização, de como embaralhar os códigos fazendo passar alguma coisa incodificável – e por isso mesmo irreconhecível, ou recombiná-los segundo uma lei que substitui o processo limitandoo desde dentro. Na imanência entre um modo menor e um modo maior se joga todo 13

um combate que se divisa nos traçados que descrevem. Sim: o estilo como política, mas inseparável do procedimento que atesta sua singularidade e que se exprime numa prática que, para Nietzsche, nada mais é do que educar-se a si mesmo, contra si mesmo: tornar-se um traidor. Agora sim! Lá vai:15

Bibliografia ALMEIDA, J. Estudos deleuzeanos da linguagem. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2003. ANTOUN, H. A conquista da imanência. Disponível em: http://www.pos.eco.ufrj.br/docentes/publicacoes/hantoun2.pdf Acesso em: 29.03.2010 BENEVIDES, R. “Dispositivos em ação: o grupo”. PELBART, P. P.; ROLNIK, S. (Orgs.) - Cadernos de Subjetividade. São Paulo: EDUC, 1996. CAGE, J. Silence. Middletown: Wesleyan University Press, 1961.

CORTÁZAR, J. Julio Cortazar: compromisso em fantasia. Buenos Aires: Aguilar, 2006. DELAUNAY, R. “Sobre a luz”. In: KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. (Trad. Pedro Sussekind). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. DELEUZE, G. “Un manifesto de menos”. In: Superposiciones. Buenos Aires: Artes del Sur, 2003. ____. Derrames entre el capitalismo y la esquizofrenia. 1 ed. Buenos Aires: Cactus, 2005. ____. “¿Que és un dispositivo?”. In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. ____. “Falha e fogos locais” (Trad. Hélio Rebello Cardoso Jr.). In: A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 203-209.

15

Hans Magnus Enzensberger, op. cit., p. 11.

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____. A lógica da sensação. (Coord. da tradução Roberto Machado). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. ____. A lógica do sentido. (Trad.: Luis Roberto Salinas Fortes). São Paulo: Perspectiva, 1982. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka, por uma literatura menor. (Trad.: Julio Castañon Guimarães). Rio de Janeiro: Imago, 1977. ____. Mil Platôs. Vol. 4 (Trad.: Suely Rolnik). São Paulo: Editora 34, 1997.

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