Transmissão de saberes em uma manifestação cultural: a brincadeira de mamulengo na Zona da Mata pernambucana.

July 14, 2017 | Autor: Débora Azevedo | Categoria: Social Networks, Popular Culture, Learning and Teaching
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Ponencia presentada al VIII Congreso Latinoamericano de Sociología Rural, Porto de Galinhas, 2010.

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Débora Silva de Azevedo

Transmissão de saberes em uma manifestação cultural: a brincadeira de mamulengo na Zona da Mata pernambucana.

RESUMO O Mamulengo é uma brincadeira que ocorre teatralmente: o público assiste o mamulengueiro que se apresenta através da manipulação de diversos bonecos. De transmissão essencialmente oral, ocorre atualmente de forma mais expressiva no estado de Pernambuco, especificamente na região da Zona da Mata. Durante sua performance, o mestre coloca as diferentes vozes no boneco, dança através deles, mostrando suas passagens e loas ou glosas de aguardente – músicas – representativas dos personagens. O público da Zona da Mata, por sua vez, é um importante legitimador para o mestre, pois reconhece os personagens e suas histórias, conversando com os bonecos, cantando, dançando, oferecendo-os bebida e dinheiro, compartilhando de uma linguagem característica do Mamulengo. È através do cotidiano de atores e público, na maioria das vezes, trabalhadores do campo em momento de festa e lazer que a brincadeira se apresenta, mobilizando amigos, famílias e vizinhança. Neste sentido, este trabalho pretende compreender, com base nos relatos dos mestres de Mamulengo, os processos de transmissão, recriação e atualização dos saberes do Mamulengo na Zona da Mata pernambucana e suas transformações ao longo do tempo. Entendendo quais são as redes sociais ativadas no aprendizado dessa brincadeira, em sua continuidade enquanto prática cultural, e de que forma as mesmas

vem sendo

reconfiguradas no período mais recente.

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INTRODUÇÃO

Meu objeto de estudo atual abrange os processos de transmissão e aprendizado, recriação e atualização dos saberes do Mamulengo na Zona da Mata pernambucana e suas transformações ao longo do tempo, tendo como base a narrativa dos seus brincantes. Neste artigo proponho fazer uma reflexão sobre o processo de transmissão desta prática cultural, no interior da construção deste objeto mais amplo. Esta reflexão insere-se na realização de pesquisa de mestrado, ainda em andamento, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), através da linha de pesquisa “Estudos de Cultura e Mundo Rural”. Tenho como base dois momentos essenciais para a construção deste objeto: primeiro trato do investimento na leitura bibliográfica de trabalhos empíricos; e segundo a partir da realização de trabalho de campo entre os meses de fevereiro e março deste ano na região. O interesse por este estudo se deu a partir das leituras teóricas e empíricas durante as disciplinas do mestrado e, anteriormente, pelo contato durante a graduação com a pesquisadora, e minha professora, Adriana Schneider Alcure que havia realizado pesquisas em seu mestrado e doutorado tendo como tema a brincadeira (ALCURE, 2001; 2007). Em alguma medida, os trabalhos lidos sobre mamulengo concordam que há saberes que são “transmitidas oralmente” e “entre gerações” que definem, diferenciam e caracterizam a brincadeira na Zona da Mata pernambucana (BORBA FILHO, 1966; SANTOS, 1979; BROCHADO, 2005; ALCURE 2007). Assim, haveria um conteúdo comum composto de personagens, narrativas e forma de construção do boneco que constituem a brincadeira ao longo do tempo na região. Por sua vez, este conteúdo, constitui uma linguagem característica compartilhada tanto pelos brincantes quanto pelo público. A literatura aqui em questão acerca da brincadeira é composta apenas por trabalhos que tratam predominantemente o Mamulengo da Zona da Mata pernambucana. A reflexão que pretendo realizar tem como base principal as pesquisas que tive acesso até então e que são dedicadas em focar seus estudos a partir do universo empírico da brincadeira. Mesmo considerando as 2

diferenças sensíveis de um autor para o outro (abordagens, tempos distintos da pesquisa, áreas diferentes, inserções no campo e interesses), penso que o estudo deste conjunto permite compreender o trânsito da brincadeira, algumas mudanças ao longo do tempo, construções e tensões históricas referentes ao mamulengo na medida em que realizaram os autores esforços de compreendêlo a partir de sua prática e/ou narrativa. Foi a partir da leitura destes autores que construi, em um primeiro momento, meu objeto de estudo. São aqui as pesquisas de referência: o clássico de Borba Filho (1966), o livro de Santos (1979) e os trabalhos de pós-graduação de Brochado (2005) e Alcure (2001; 2007). Particularmente, me interessa o último trabalho de Alcure (2007), fruto de pesquisa de doutorado em Antropologia finalizado em 2007 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Dentre o conjunto de trabalhos lidos, este é o único na área das Ciências Sociais e apresentou consistente reflexão, pautada também nos trabalhos dos autores anteriores aqui citados, além do trabalho etnográfico que a tese apresenta. A questão da transmissão e aprendizado dos saberes da brincadeira é objeto de reflexão durante todo o capítulo intitulado “Tornar-se mestre: aprendizado e legitimação no teatro de mamulengos” (ALCURE, 2007: 16). Em um segundo momento, realizei trabalho de campo na região ao longo de vinte dias. Na ocasião, entrevistei oito donos de mamulengo, três folgazões (dois atuantes e um que deixou de brincar há um pouco mais de dez anos)

e uma artesã dos

bonecos

responsável pela Associação de

Mamulengueiros em Glória do Goitá-PE 1. E também realizei a etnografia de uma apresentação do dono de mamulengo Biu de Dóia com seus folgazões na cidade de Lagoa do Itaenga-PE.

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A Associação de Mamulengueiros em Glória do Goitá foi organizada por ocasião de implementação do projeto Artesanato Solidário que previa, dentre outros incentivos à confecção do boneco de mamulengo, a fundação de uma associação. Os membros do grupo eram, além dos mamulengueiros Zé de Vina e Zé Lopes da cidade, parentes dos brincantes e alguns artesãos da cidade que se interessaram a aprender a fazer bonecos de mamulengo. Atualmente, a associação está desarticulada como me informou em entrevista sua presidente Edjane, nora de Zé Lopes, mamulengueiro de Carpina – PE. Edjane disse que não há os equipamentos para o corte de mulungu, que a maioria dos membros não participam mais das atividades de confecção e a renda obtida pelo grupo é somente quando este expõe os bonecos confeccionados em eventos e feiras no país.

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Através do acompanhamento da brincadeira e dos relatos dos entrevistados, percebi uma série de outros sentidos possíveis para a questão da “transmissão” no caso da brincadeira. À primeira vista algumas categorias como “transmissão”, “mestre”, “aprendiz”, “sistema social”, “legitimação” que apareciam como motes relevantes nas leituras bibliográficas para compreender o processo de aprendizado do mamulengo na região necessitavam de problematização para serem por mim utilizadas em projeto de estudo. No geral, as falas dos mamulengueiros ressaltavam que “aprender” era “olhar”, observar tanto a prática da brincadeira (ver a de quem você brinca e comparecer nas apresentações de outros mamulengueiros) quanto da vida. Assim, a “transmissão oral”, como eu supunha, não ocorre em um sentido lato, mas descontinuamente e mais ou menos dependente da vontade e procura dos chamados “aprendizes” e não predominantemente do esforço do “mestre” em transmitir, como poderia supor 2. Lembrei então da consideração de Alcure (2007: 170) sobre o uso da categoria “mestre” entre os brincantes que lembra a sua propriedade recente: Mestre é, sem dúvida, hoje, uma categoria própria ao brinquedo do mamulengo nessa região. No entanto, em conversas informais com Zé de Vina, este me revelou que, antigamente, os mamulengueiros não se chamavam por “mestre”, e que o termo teria aparecido a partir da chegada dos primeiros pesquisadores e interessados na arte do mamulengo, por volta da década de 70. Estes se referiam aos mamulengueiros como mestres.

Como

a

justificativa

deste

estudo

residia

em

compreender

a

permanência da brincadeira na região considerada como “sistema social” que se materializava através da transmissão coletiva de saberes compartilhados por “linhagens de mestres”, dinamizadas a partir das “variantes advindas da individualidade” de cada brincante, pensei que necessitava abordar os sentidos (e vínculos e usos) das categorias utilizadas na elaboração de meu projeto, inclusive a de “transmissão”. O meio que eu busquei para compreender estas 2

O uso da categoria “mestre” para denominar um agente da prática nas manifestações reconhecidas como populares por ações vinculadas à políticas públicas e acadêmicas, como é o caso do mamulengo, traz uma série de outros significados, disputas, conflitos e divergências entre os praticantes e os próprios intelectuais. O que me pareceu em campo é que caso utilize esta categoria (e outras) para a escrita da pesquisa deveria, da mesma forma, elucidar este jogo presente, deixando claro o porquê desta opção e seus vínculos.

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informações que usei foi tanto a leitura intensiva de outros trabalhos que tinham como tema as manifestações culturais chamadas populares – como é considerado o mamulengo – quanto a reflexão sobre os relatos gravados em campo tendo como base outros autores (BARTH, 2000; CANCLINI, 1983; 2008; FRADE, 2004; GONÇALVES, 2005). Me instigava pensar que o uso de determinadas categorias – “cultura popular”, “mestre”, “transmissão” – também poderiam revelar outros arranjos e discursos que se relacionam com o mamulengo, o que carrega seu universo de aprendizado, criação, reprodução e atualização da brincadeira para circuitos nacionais e internacionais, ressaltando e criando construções de identidade local e brasileira, legítimas ou não. Este trânsito resulta numa série de apropriações, alternativas e estratégias para a valorização (por vezes, resgatada) da brincadeira e de seus brincantes como forma de expressão artística da região, trazendo em conjunto uma variedade de relações que projetam a ocorrência do brinquedo e buscam a sua legitimidade e espaço. Ao mesmo tempo, no contexto atual há outras dimensões articuladas pelos brincantes: a brincadeira como cultura popular, o boneco como objeto de arte popular, o mamulengo como patrimônio imaterial e como teatro de bonecos representativo do Nordeste brasileiro (ALCURE, 2007). Trabalho atualmente pensando que a “transmissão dos saberes” não é uma esfera autônoma capaz de explicar a criação e atualização da brincadeira do mamulengo, estando sim imbricada em relações contextuais 3 que precisam ser consideradas para revelar outras dimensões presentes no processo mais amplo de compreensão de como o mamulengo permanece, recriando-se e atualizando-se. É neste sentido que pretendo trazer as reflexões sobre o resumo apresentado ao congresso antes do trabalho de campo realizado: caracterizar os dados bibliográficos em que pautei o desenvolvimento do meu objeto e, 3

A dinâmica das redes sociais na região é relevante neste sentido, por isso realizei um investimento de estudo teórico desta como ferramenta teórico-metodológica. A idéia de rede pode integrar os significados das redes de sociabilidade, parentesco e/ou amizade, discursos, ações, posturas, história(s) que estão sob constante (re)construção dos próprios mamulengueiros, espaços, instituições, intelectuais e discursos envolvidos, bem como os objetos que perpassam as relações sociais. Entretanto, em vista das possibilidades deste trabalho não abordarei a construção de meu objeto tomando uma reflexão neste sentido, ficando uma abordagem específica de rede para um estudo posterior. Para referências sobre ver Emirbayer, 1994; Fuhse, 2009; Latour, 2000; 2004; Long & Villareal, 1993.

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posteriormente,

demonstrar

o

processamento

em

andamento

destas

informações da bibliografia empírica com as narrativas recolhidas dos brincantes e da prática observada em campo. Em um momento e outro me permito, da mesma forma, levantar e buscar refletir sobre outras dimensões teóricas pertinentes a esta investigação em andamento.

OS

SABERES,

APRENDIZADO

E

TRANSMISSÃO:

ALGUMAS

INFORMAÇÕES TRAZIDAS PELA LITERATURA SOBRE A BRINCADEIRA 4.

O Mamulengo é uma brincadeira que ocorre teatralmente: o público assiste o mamulengueiro que se apresenta através da manipulação de diversos

bonecos 5. De um lado permanecem os que assistem (os

espectadores, o público) e, no lado oposto, os brincantes (mamulengueiros) que se apresentam com os bonecos em punho. As passagens 6 apresentadas pelo Mamulengo englobam o uso de figuras representativas de poder que são satirizadas pela brincadeira; os tipos locais – o político, o policial, o empregado, o trabalhador rural, o bêbado, o fiscal; a representação de lugares como a igreja, o parque de diversões, animais; e outras brincadeiras “populares” regionais – os caboclinhos, o cavalo-marinho, o pastoril, o bumba-meu-boi (SANTOS, 1979; ALCURE, 2007; BROCHADO, 2005). A música, também um elemento presente, é de responsabilidade de uma banda que fica ao lado da barraca 7 composta por instrumentos que variam segundo a preferência do dono do mamulengo, o responsável pela apresentação: fole de oito baixos, acordeão, triângulo, ganzá, bombo, rabeca, tamborim. Estes músicos acompanham a “batida” pedida pelo dono do

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Lembro aqui que são diversas as informações e categorias das quais se utilizam o rico trabalho empírico sobre a brincadeira na região, entretanto considerando os limites deste artigo tomarei apenas a discussão do que se relaciona diretamente com o aprendizado e a transmissão de saberes do mamulengo. Para tanto inicio a discussão e pontuo diferenças de categorias escolhidas, tais como “transmissão”, “saberes”, “sistema social”, “mestre”, “aprendiz”, “legitimação” e “linhagem”. 5 Mesmo que “figuras” ou “personagens”. 6 Mesmo que “histórias” ou “narrativas” apresentadas pela brincadeira. 7 É um dos nomes do espaço onde se apresenta o mamulengo, como se fosse seu “palco”: “barraca”, “torda”, “impanada” e, com menor frequência, “tenda” (SANTOS, 1979: 138).

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mamulengo8 e precisam conhecer o que no mamulengo é chamado de “loas ou glosas de aguardente”, ou seja, as músicas que acompanham cada personagem, suas entradas, saídas e falas, assim como gêneros musicais: baiões, baianos (mistura de samba e coco), xotes, toadas, cocos e cirandas que também são tocados na apresentação (SANTOS, 1979: 141; ALCURE, 2007; BROCHADO, 2005). Outra característica é a presença de uma pessoa chamada Mateus que, assim como no cavalo-marinho, atua, dentre outras funções, como mediador entre os diálogos do boneco e o do público, incentivando o último a participar da brincadeira. Estes constituiriam os saberes que definem e diferenciam a brincadeira de mamulengo (SANTOS, 1979; ALCURE, 2007; BROCHADO, 2005) O uso da violência também é um aspecto narrativo importante nas passagens: é muito comum uma personagem representar que bate em outra através de pequenos objetos representativos de facões, peixeiras, foices, porretes, espingarda ou arma. Estas passagens geralmente provocam gargalhadas do público que as pede frequentemente. O ato de “pedir” uma passagem pode vir acrescido do pagamento de valor monetário. Assim, desenvolvem-se brigas, apresentam-se passagens, o público ri e recolhe-se mais dinheiro, além do já acertado pelo contrato da apresentação (ALCURE, 2007). Este tipo de passagens reflete outra característica do mamulengo que é a provocação do riso no público. Os autores em questão comentam que a brincadeira pode ser considerada como “teatro do riso” na medida em que realiza uma leitura “arbitrária da vida” com o intuito de divertir o “povo”. Outros vínculos aqui são os da brincadeira como “divertimento”, “esporte”, “lazer”, “teatro de bonecos popular”, “hobby”, traçando diferenças entre alguns autores (BORBA FILHO, 1966) Por exemplo, Brochado, Borba Filho e Santos 9 pensam a brincadeira como teatro de bonecos popular que, a partir de uma variação do “presepe” ou 8

O dono do mamulengo é geralmente o “mestre”, responsável por manter os bonecos e, na maioria das vezes, confeccioná-los, além de organizar, gerenciar e pagar os demais integrantes (folgazões e músicos) quando se tem uma apresentação. 9 Este autor distingue ainda a existência de um “mamulengo rural” e um “mamulengo urbano” que seriam sensivelmente diferentes: o “rural” é mais “tradicional” na medida em que preserva passagens e personagens antigas(os), mantêm conotações religiosas, apresenta-se em ambientes específicos e em menor escala, tendo um público participativo nas apresentações e

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“presépio” 10, constituiu suas passagens, mantendo algumas de cunho religioso e incorporando outras narrativas de teor profano (BORBA FILHO, 1966). Por outro lado, Alcure (2007) permite pensar a brincadeira em outras inserções, além da vinculação com o teatro. Seu trabalho pretende entender o mamulengo a partir do sistema social da Zona da Mata na perspectiva de seus brincantes, procurando manter “sob tensão” os processos advindos das múltiplas relações e significados que a brincadeira ativa, ressaltando a sua postura de que “entender o mamulengo como brinquedo é tentar compreender as particularidades que o fazem transcender a simples definição de teatro de bonecos” (ALCURE, 2007:114). Ao mesmo tempo, a idéia de um “universo específico” da brincadeira – compartilhado também por outros brinquedos 11 existentes na Zona da Mata – é um referencial para os autores em questão e para o conteúdo dos saberes, seu aprendizado e “transmissão entre gerações”. Por isso, afirma-se que a “expressividade” da brincadeira encontra-se no estado de Pernambuco, especificamente na região da Zona da Mata12. Resulta daí o entendimento dos autores de que a região é o “espaço social de atuação do mamulengo”, residindo neste “sistema social”

a sua “evidência”

(ALCURE, 2007;

BROCHADO, 2005). O acontecimento do mamulengo é lembrado pelos brincantes como tendo sido realizado nos antigos sítios dos moradores rurais nos engenhos de canade-açúcar da região. A prática era realizada nas festas organizadas pelos mantendo uma “estrutura de funcionamento definida e uma hierarquia de papéis e funções, bastante rígida e respeitada” (SANTOS, 1979: 1979, 35-6). Por outro lado, o “mamulengo urbano” contém diferenças nas narrativas, na participação do público, nos contratantes das brincadeiras e na forma de arrecadação do dinheiro a ser pago aos brincantes o que diferencia sua prática e saberes. 10 Representação teatral trazida de Portugal pelos primeiros jesuítas com o intuito de catequização indígena. Ver Borba Filho (1966), Brochado (2005) e Santos (1979). 11 Cavalo-marinho, bumba-meu-boi, maracatu, caboclinhos, dentre outros. Para referências bibliográficas sobre os brinquedos da região ver Acselrad, 2002; Chaves, 2008; Alcure, 2007; Brochado, 2005. 12 Em outros estados do Nordeste há brincadeiras semelhantes ao mamulengo no que se refere à utilização de narrativas, personagens e estrutura da apresentação (BORBA FILHO, 1966). São elas o cassimiro coco no Ceará, o babau na Paraíba e o João redondo no Rio Grande do Norte, conjunto sob registro – ao lado do mamulengo em Pernambuco – como patrimônio imaterial pelo IPHAN. No Distrito Federal há mamulengo, exatamente a mesma denominação de Pernambuco apesar de sensíveis diferenças locais, que foi introduzido a partir de nordestinos imigrantes na época da construção da capital do país, segundo trabalho de Izabela Brochado (BROCHADO, 2003). Para referências bibliográficas sobre as brincadeiras aqui citadas ver VIANA; CAROLINO, 2000; SILVA; AMARAL; SANTOS; PINHEIRO, 2008; SANTOS, 1979; ALCURE, 2001; 2007; BROCHADO, 2001.

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próprios moradores/trabalhadores rurais, desta forma, é representativo as narrações vinculadas à integração da vizinhança, parentesco, dos laços de amizade e sociabilidade, por isso a referência à estrutura e hierarquias mais ou menos definida do contexto das apresentações abre margem para o que Alcure define como “linhagens de mestres”: O que garante ao mamulengo a sua existência e continuidade são as redes de mamulengueiros e os processos de transmissão deste conhecimento. Poderíamos falar de “linhagens de mestres”, gerações de mamulengueiros, que através da transmissão de uma maneira específica de brincar foram contribuindo para a fixação de características ainda hoje identificáveis nos mamulengos da região (ALCURE, 2007: 173).

Assim, as linhagens formadas por gerações de brincantes transmitiriam as características que definem e diferenciam o mamulengo através da relação básica de aprendizado “mestre-aprendiz” que pressupõe uma dedicação do primeiro para com o segundo. Afinal, como coloca a autora, para ser aceito como “mestre” há a necessidade do “aprendiz” de acompanhar e observar diversas apresentações de outros “mestres-mamulengueiros” mais antigos; referenciar-se à sua “linhagem precedente” (ALCURE, 2007: 24); ter conhecimento do conteúdo do brinquedo, bem como dos seus recursos, podendo improvisar satisfatoriamente e receber a autorização do seu mestre para “comandar” uma apresentação.

Neste momento, apresenta-se outra

dimensão que constituiria da brincadeira: a idéia de “legitimação”. Após o aprendizado com seu “mestre” e a autorização para a formação e apresentação de seu próprio mamulengo, o “aprendiz” passaria por mais um processo de “legitimação do aprendizado”: realizado por seu “mestre”, dentre outros que assistem a brincadeira quanto pelo público: “o público das regiões destes brinquedos tem intimidade com os bonecos e com as figuras, sabendo como se comportar nas diversas situações propostas nas apresentações” (ALCURE, 2007: 120). Esta legitimação a qual o mamulengueiro precisa passar para tornar-se “mestre” demarcaria diferenças e fronteiras internas existentes na rede daqueles que brincam de Mamulengo. No universo do aprendizado e da “transmissão de saberes” há, entretanto, a existência (e importância) de outras dinâmicas que (re)criam e atualizam estes processos. Primeiramente, a própria vivência do brincante no “sistema social” 9

compartilhado da Zona da Mata traz a possibilidade de aprendizado dos saberes da brincadeira (ALCURE, 2007). Segundo que as variações destes saberes são frutos das “linhagens” que “transmitem” formas próprias do brincar e das individualidades dos brincantes que resignificam e dinamizam sua prática através de valorizações e negociações com o “corpus” comum (ALCURE, 2007). Santos salienta ainda a influência da popularização da televisão – associada a uma “cultura de massa” – a partir da segunda metade do século XX o que teria interferido nos processos de aprendizado tanto pelo desinteresse do público da região pelas apresentações da brincadeira (o que reverbera nos interessados a “aprendizes” do brinquedo) quanto, por outro lado, a possibilidade de atualização que o meio de comunicação proporciona aos mamulengueiros atuantes (SANTOS, 1979; ALCURE, 2007). Neste sentido, cabe trazer a fala de João Limoeiro, cirandeiro de Carpina-PE retirada do trabalho de Alcure (2007: 155): Adriana: Desculpe perguntar, João. Mas você tem estudo? Você estudou? João Limoeiro: Olhe, eu sou primário... eu sou primário. Mas eu sou muito atualizado. Eu sempre acompanho muito televisão, que televisão é um professor. O artista ele tem que acompanhar muito televisor. Ele tem que ler jornal, ele tem que ler dicionário, ele tem que... que ver essas coisas todas.

Outros aspectos, além dos citados por João Limoeiro, são o circo e o rádio como “veículos para transmissão de técnicas, deslocamentos e divulgação destas brincadeiras”, como lembra Alcure (ALCURE, 2007: 116). Além disso, atualmente alguns brincantes gravam e vendem em formato de DVD´s suas apresentações, utilizando-os além de um registro audiovisual de sua prática, muitos utilizam as gravações para aprendizado das passagens e músicas da brincadeira. Desta forma, é representativa as distintas fontes de aprendizado na prática da brincadeira, o que, para mim, influencia as descontinuidades do processo de “transmissão de saberes” pautado na relação “mestre-aprendiz”, apesar dos diferentes processos colocados pelos autores. Parece que os deslocamentos e relações ativadas pelos brincantes de mamulengo para continuarem com sua prática (o que muitas vezes não conseguem) vão além das características compartilhadas, legitimadas e transmitidas de geração em 10

geração que possam constituir a brincadeira. Assim, reflito que as fronteiras e os limites que formam o mamulengo da Zona da Mata pernambucana também estão sob (re)configuração dinâmica, ao mesmo na prática e discursos de seus brincantes, como veremos a seguir.

OS RELATOS DOS BRINCANTES: REFLETINDO SOBRE CATEGORIAS E SENTIDOS DA TRANSMISSÃO DE SABERES NO MAMULENGO.

O trabalho de campo realizado este ano na região da Zona da Mata pernambucana foi pensado como um estudo exploratório das possibilidades de estudar o processo de transmissão e (re)criação dos saberes da brincadeira na região. Nos vinte dias que lá permaneci, entrevistei oito donos de mamulengo: quatro na cidade de Carpina – Deca, João Galego, Bibiu e Neide; um em Nazaré da Mata – Vitalino; dois em Glória do Goitá – Biu de Dóia e Zé de Vina; e um em Vicência – Calú. Ao mesmo tempo, entrevistei dois folgazões – Barara (Glória do Goitá) e Antônio (Goiana); a responsável pela a Associação de Mamulengueiros em Glória do Goitá, Edjane; e realizei a etnografia de uma apresentação, entrevistando Daniel, contratante da função em Lagoa do Itaenga – PE, além de conversar com vizinhos que se encontravam na ocasião. Da mesma forma, trabalhei com objetivos gerais que pretendiam investigar (para refletir sobre), além do processo da prática e os sentidos do saber, os diferentes agentes envolvidos na transmissão e atualização dos saberes do mamulengo e dos espaços em que a brincadeira se articula. Para tanto analisei também a possibilidade do uso de categorias (“transmissão”, “mestre”, “linhagem”), testei critérios de seleção dos entrevistados, conversando com diferentes agentes envolvidos no processo (“mestres”, folgazões, artesãos do boneco, público, contratante de apresentação) e busquei percorrer diferentes cidades da região com o intuito de tratar de visões distintas ou não sobre a mesma prática – o mamulengo. Esta postura em campo foi influenciada decididamente pela leitura de Giddens (1993) através da concepção de “consciência prática”. Para o autor, o fluxo das práticas sociais é acompanhado da capacidade reflexiva dos agentes que constroem, monitoram, modificam e articulam significados para suas 11

práticas 13. Neste sentido, o agente além de atuante em sua prática social também reflete racionalmente sobre suas ações que, por sua vez, são situadas no tempo-espaço: no fluxo das práticas. Neste sentido, era pra mim plausível entender que o mamulengo pode ser (e deve ser) traçado a partir do relato dos seus brincantes que, agentes diretos da prática social, são os que melhor constroem, se envolvem e refletem sobre as tramas que ativam para a realização da brincadeira. Cheguei em campo, desta forma, me apresentando como “estudante que procurava saber como os mamulengueiros tinham aprendido mamulengo e como eles ensinavam a brincadeira”. Assim, busquei nas perguntas me desvincular das palavras “transmissão”, “mestre”, “aprendiz”, tentando trazer a partir de suas falas os sentidos e categorias que eles mesmos elaboram e usam para indicar o processo de aprendizado. De início, apareceram frases significativas nos relatos, tais como “A gente interessando, quem puxa é a gente” ou “Eu aprendi nessa situação quase sem ninguém me ensinar. Eu vendo e decorando” ou “Eu não ensinei, mas ele olhou”. Isto revelou para mim outras dimensões, dentre elas a importância do “interesse” para a situação de “aprender o mamulengo”. Talvez a necessidade do “aprendiz” de “interessar-se” para aprender seja maior do que a dedicação do “mestre” em “transmitir”. Outros relatos me fizeram a refletir sobre isso, pois muitos apontaram mesmo a questão da “desmotivação” 14, por vezes dos pais para que seus filhos seguissem a brincadeira. Em um primeiro caso, por exemplo, o pai – mamulengueiro antigo e artesão reconhecido em outros circuitos – não incentivava o filho nem a aprender a fazer o boneco, deixando-o somente lixá-lo e não lhe ensinava a esculpir a forma na madeira, segundo o relato de seu filho. Em um segundo caso, por sua vez, o filho diz que seu pai brincava muito de mamulengo quando ele era criança e que, na época, menino

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Além da construção de significados e da monitoração reflexiva da ação, Giddens fala também das “consequências impremeditadas da ação”, aspecto também importante da agência humana. As conseqüências não previstas referem-se a fatos não premeditados ou refletidos quando da prática da ação. 14 Além dos relatos que aqui cito, quase todos os outros falaram do “não incentivo” em brincar nas brincadeiras da região – cavalo-marinho, mamulengo, maracatu. Segundo as narrativas, até mesmo as brincadeiras lúdicas entre crianças que imitavam o brinquedo eram repreendidas. Outros falam que se aparecessem com um boneco que tinham feito com um galho qualquer ou com pano pra imitar a “brincadeira com os amigos” já era motivo para “entrar no pau” dado pelos pais.

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pequeno não podia acompanhar o mamulengo nas caminhadas por vezes noturnas até o sítio em que a brincadeira ia acontecer. Por isso ele pouco acompanhou o pai, a não ser quando as apresentações eram perto de casa e, mesmo assim, ele não o incentivava, pois “brincar cansava”15. Seu pai vendeu seu mamulengo completo e não brincou mais por anos. Tempos depois o filho resolve formar seu mamulengo e seu pai, ainda relativamente novo, não o acompanhou nas apresentações. Pretendo agora apresentar algumas categorias e outros possíveis sentidos da idéia de “transmissão” a partir de blocos de reflexão que introduzem estas questões, buscando exercitar a partir dos relatos outras dimensões, compreensões e dinâmicas em jogo nos processos de aprendizado e “transmissão de saberes”. Viver, olhar e aprender: “Eu nasci e me criei aqui” 16 A idéia de “criar-se” é representativa de como o processo de aprendizado é percebido pela maioria dos brincantes entrevistados. A narrativa começa a partir de um tempo antigo em que o mamulengo vivia pelos sítios rurais – ou “no mato”, como falam. Esta referência é compartilhada até mesmo entre aqueles mais novos que não tiveram a possibilidade de se apresentar nestes espaços, como o casal Neide e Bibiu, mas que buscam narrar estas histórias das apresentações e trazer as passagens características deste tempo para seus brinquedos, através do contato com “os antigos” (brincantes que participaram das apresentações deste tempo) e da articulação com suas vivências e leituras a eles disponibilizadas. Desta forma, cria-se uma narrativa comum que permite o diálogo entre os brincantes, através da referência de um tempo antigo em consonância com o que é novo. Por outro lado, a prática do criar-se na região traz a possibilidade do contato (constante ou não) com a brincadeira de mamulengo para o desenvolvimento do interesse e a continuação do desejo individual de aprendê-

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De fato, as brincadeiras que ocorriam nos sítios rurais no passado exigiam um grande esforço do brincante para realizá-las: deslocamento a pé para o local da apresentação, pouco ou nenhum retorno financeiro, esforço para transportar e manter os bonecos. 16 Trecho da Entrevista com Biu de Dóia em Glória do Goitá – PE, março de 2010.

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la, já que muitas das vezes mesmo na infância, a atuação da brincadeira não é incentivada. Outra influência neste bloco é o fraco acesso que os brincantes tiveram à escola primária. Pelo fato do aprendizado (de um ofício, por exemplo) estar vinculado a este tipo de vivência, geralmente nas narrativas aparece a questão da “criação” e não a do “aprender”. Neste caso, a influência maior reside nas relações sociais de família, parentesco e vizinhança (COMERFORD, 2003). Segue o representativo relato de seu Vitalino, dono de mamulengo em Nazaré da Mata-PE:

Débora: ...seu Vitalino como eu falei com o senhor eu estou estudando como os mamulengueiros aprenderam o mamulengo e como eles ensinam... Vitalino: Eu mesmo to aprendendo agora. Porque eu nunca trabalhei. Meus pais também não trabalharam. Meus pais o negócio deles era enxada. E eu também quando comecei a me entender de gente aí eu passei a trabalhar logo...o negócio dele era enxada. Eu trabalhava de domingo a domingo, no domingo eu tinha folga de 4 hora da tarde. Agora como eu era traquina, eu via carro de boi de engenho e fazia. Eu chegava em casa e fazia um carro de boi pra eu brincar. Aí fazia carro de boi, brincava com ele, mas tinha que esconder no mato porque se ele visse [o pai] quebrava [...] Tudo escondido. Papai não queria q eu fizesse (...) Aí quando foi depois eu sai de casa, fui morar na casa de um carpinteiro em Ilha Grande. Aí eu tinha machado, fazia mesa, fazia madeira, fazia banco, quando ele vinha tava tudo pronto...mas não pegava nas coisa da carpintaria...eu não tinha tempo...A minha vontade era aprender alguma coisa, porque antigamente era difícil mesmo, não tinha com quem aprender (...) então tudo que eu sei foi obra da natureza porquê ...o primeiro mamulengo que eu vi em Ilha Grande, quando eu cheguei em casa tentei fazer um boneco, agora q eu só fiz esse. Não tinha matéria mesmo o que a gente ia fazer? Eu fazia um bocado de boneco quadrado. Agora quando eu tava dentro de casa eu tentei faze um mamulengo pra eu. Aí eu achava q era bom e tentei faze um pra mim. Peguei já v, depois vendii. Depois resolvi fazer outro. Continuar ou parar: “Aí peguei fazendo, fazendo, passei um ano fazendo” 14

Muitos brincantes não possuem a brincadeira como atividade contínua, parando de brincar e voltando quando puderem posteriormente; outros podem possuí-la como principal fonte de renda familiar. Em um caso ou noutro, a manutenção do aprendizado e a “transmissão” do mesmo aparece como dependente primeiramente do interesse e dedicação do indivíduo no “criar-se na brincadeira”. De qualquer modo, afastar-se da prática do mamulengo não quer dizer necessariamente desligar-se dele ou do universo das brincadeiras da Zona da Mata, ou mesmo não poder retornar posteriormente. Parece que o mais importante aqui é manter os laços que a qualquer momento pode ser novamente ativados. Influenciam neste campo o desejo individual, as questões financeiras, a vivência, as dinâmicas de sociabilidade, os vínculos com pesquisadores, compradores de bonecos de mamulengo e/ou contratantes das apresentações; e as redes de amizade e parentesco que conduzem as continuidades e descontinuidades do aprendizado na brincadeira. Transcrevo um relato sobre esta questão: “A turma já conhece meu trabalho lá fora, aí fica mai fácil pra mim. Como não conhece o dele, fica difícil pra ele... Aí já conhece lá no meu trabalho... Vai chama três mamulengueiro ou quatro...Ah! Chama Bibiu do Boneco mesmo, chama João Galego, ah chama Miro, chama de Glória do Goitá...seu Zé Lopés, seu Zé do Rojão ...mas tem um aqui antigo, mas ninguém tem conhecimento com ele...ai fica mais dificil pra ele ainda...eu já tentei levar ele, e já não consegui... mas vou tentá leva denovo (..) eu chamo o mamulengo perdido... tem o mamulengo e não brinca”. Entrevista concedida em 24 de fevereiro de 2010. Disputas em torno da prática: “A história que eu sempre escuto é isso né. Que os mamulengueiro fica com raiva do outro porque o outro tem um mamulengo”. Os relatos dos conflitos e disputas em torno da prática da brincadeira são constantes de modo geral entre os brincantes e entre alguns agentes que entrevistei: folgazões, artesões, contratantes das apresentações.

Além da

relação pai-filho, este tipo de posicionamento também pode ser visto entre os chamados “mestres-aprendizes”, como mesmo lembrou Alcure (2007) em seu trabalho.

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Me parece aqui que esta dimensão é representativa para problematizar uma idéia de “transmissão de saberes”, pois neste caso as relações contextuais influenciam o modo como ocorre a ação, o que acredito que deve aparecer em projetos acadêmicos, como no meu caso. Transmissão de conhecimento: “O mamulengueiro é meio perdido por aqui. Ninguém chega pra olhar o boneco gente de dentro não, só gente de fora” Esta fala, também recorrente, reflete em grande parte o relativo desinteresse da população local da região lembrado pelos brincantes. Entretanto, este desinteresse em aprender e/ou participar de alguma forma com o/do mamulengo é colocado como referência sempre quando se compara com a atividade da brincadeira no passado, ou seja, pelos menos na época dos sítios rurais. Esta reflexão do “desinteresse” pela brincadeira na Zona da Mata de Pernambuco é contrastada com o interesse da “gente de fora”. Estas pessoas são identificadas por alguns como os “produtores de cultura” que são os pesquisadores, compradores, empresários que contratam a brincadeira, alguns políticos, profissionais das ciências humanas. Neste bloco, proponho pensar justamente se este grupo de “produtores” auxilia ou não a reforçar uma idéia (ou ideal) de transmissão. Diante destes outros olhares mais sensíveis, busquei durante a qualificação do mestrado realizada no mês passado, relativizar a partir dos relatos as categorias em que pautei a escrita primeira do meu projeto de pesquisa. A “transmissão dos saberes” conforme aparecia em bibliografia estudada não era uma esfera autônoma capaz de explicar a criação e atualização da brincadeira do mamulengo, estando sim imbricada em relações sociais contextuais que precisariam ser consideradas para revelar outras dimensões presentes no processo mais amplo de compreensão de como o mamulengo permanece, recriando-se e atualizando-se. Acredito que outras dimensões de pesquisa como os conflitos e as disputas em torno da prática, as redes de relações, as cadeias de agenciamento, as mediações, assim como os espaços de sociabilidade construídos ou fortalecidos a partir da brincadeira, também se fazem pertinentes a uma investigação que comprometa-se a estudar esta questão. 16

CONCLUSÃO

A brincadeira de mamulengo foi, a exemplo de outras brincadeiras da região e práticas culturais no Brasil, denominada e reconhecida como manifestação da “cultura popular” ao longo de processos mais amplos de mudanças políticas, sociais e a atuação de intelectuais. Penso que o uso desta categoria – “cultura popular” – traz um conjunto de outras categorias, classificações, enquadramentos e processos identitários, rompendo com algumas referências, resignificando e articulando uma diversidade de dimensões (transmissão, tradição, identidade, mercado, patrimônio, projeto, dentre outras) que, por sua vez, articulam outro conjunto de processos que atualiza a prática cultural. É neste sentido que pretendo ter contribuído para a reflexão sobre a construção de um objeto, e ao mesmo tempo, a problematização dele e das categorias utilizadas para sua construção. Reforçando que faz-se necessário trazer

o

discurso

nativo

para

melhor

traçar

as

continuidades

e

descontinuidades relativas a qualquer processo, seja ele a transmissão de saberes ou outros objetos pertinentes à prática que se pesquisa.

AGRADECIMENTOS Ao Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) pela bolsa de mestrado concedida. Aos brincantes de mamulengo Neide e Bibiu (Carpina-PE), seu Biu de Dóia (Glória do Goitá-PE), seu Vitalino (Nazaré da Mata-PE), seu Calú (Vicência-PE) e Zé de Vina (Glória do Goitá-PE), os quais cito neste trabalho pelas conversas e generosa atenção. A Prof. Dr. Claudia Job Schmitt pela orientação de mestrado em andamento e ao cientista social M Sc. Gabriel Vidal Cid pelas valiosas sugestões concernentes a este estudo.

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