Travessias com outros: em nakirigrafias e outros territórios afrodiaspóricos

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Texto aceito para apresentação no III EEBA - Encontro de Estudos Bakhtinianos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ, 16, 17 e 18 de Novembro de 2015

TRAVESSIAS COM OUTROS: EM NAKIRIGRAFIAS E OUTROS TERRITÓRIOS AFRODIASPÓRICOS Geoésley José Negreiros Mendes1 Francilene Brito da Silva2 Resumo: Na história desse texto a capital fluminense é um ponto de encontro que nos conecta a outras histórias, lançando aqui o fio condutor principal dessa reflexão: imagens. A imagem da composição cultural de Conacri - capital da Guiné, em África - e o “congelamento” de uma cena de um vídeo produzido no pátio da Escola III de Forecariá durante a pesquisa de mestrado de Geoésley, que, a partir de experiências afrodiaspóricas como pontos de interação/negociação, nos levam a uma obra de Heitor dos Prazeres e às nossas próprias histórias como redes de conhecimentos. Este entrecruzamento de imagens/nakirigrafias aponta para a incompletude dos sujeitos em uma relação histórica e a necessidade do diálogo entre alteridades para o conhecimento de suas consciências. Palavras-chave: Imagens. Afrodiáspora. Encontro. Diálogo. Nakirigrafias.

Introdução

Sujeitos brasileiros, nordestinos – maranhense da cidade de Imperatriz e piauiense da cidade de Teresina –, eu, menino de tez branca e sangue negro; e eu, menina de tez e sensibilidade artística negra. Somos ambos criados, alimentados e impregnados por mãos, olhares, pensamentos: corpos afrodescendentes negros, brancos, indígenas e mestiços, com histórias diaspóricas tecidas e retecidas no contexto histórico-cultural do qual f(i)azemos parte. Espaços, tempos, nomes dados e demarcados em nossas identificações não obedientes. Somos nós, somos alheios, como bem nos diria Mikhail Bakhtin (1997; 2006). As redes de cultura e conhecimento que nos tecem são retecidas com as nossas histórias a partir de redes de sujeitos que somos, com as quais também 1

Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de pesquisa: Educação. Membro do grupo de pesquisa Culturas e Identidades no Cotidiano (UERJ), [email protected] 2 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí; doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de pesquisa: Educação. Membro dos grupos de pesquisas: Culturas e Identidades no Cotidiano (UERJ) e; Roda Griô GEAfro: Genêro, Educação e Afrodescendência (UFPI), [email protected]

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estamos pontuados. Talvez Oliveira (2013), pensando a importância das redes de conhecimento no processo aprendizagemensino, nos ajude, com sua imagem, a explicar melhor o que queremos com esse texto: tecer redes de conhecimentos, a partir de nossas diásporas, pelas redes de sujeitos que somos, e nos encontramos, e que nos (trans)formam enquanto pessoas, professores, pesquisadores. Este objetivo aponta para um posicionamento político e epistemológico – de cada um de nós – baseado na teoria da linguagem de Mikhail Bakhtin, no contexto das ciências humanas, de produção de conhecimento que não se faz sozinho, nem de forma dominante, mas pelo menos entre duas consciências que interagem entre si. Para tanto, parece-nos importante pensar aqui a partir da ideia do encontro (PASSOS, 2014) – baseada na filosofia bakhtiniana de linguagem – cujo acontecimento suscita um afetamento entre os sujeitos que dele participam, emergindo dali saberes, geração de conhecimentos e narrativas. O encontro, diria Passos (ibid.), pontua o inacabamento dos sujeitos que dele participam e a necessidade que um tem do outro, na constituição de suas consciências, na complexidade de uma realidade. Não nos conhecíamos até março de 2014, quando eu, Geoésley, cursando o mestrado em Educação, cheguei do campo de pesquisa – República da Guiné3 - a partir de

onde

acabei,

como

pesquisador,

sendo

surpreendido

pelo

jogo4

de

relações/interações que compõe a vida no espaçotempo de uma escola pública da cidade de Forecariá, por meio da produção e uso de imagens fotográficas. E, eu, Francilene, professora de Artes da Universidade Federal do Piauí (UFPI), chegava à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) para o doutorado em Educação, muito interessada em imagens de mulheres e crianças afrodescendentes. Entretanto, ao nos ver pela primeira vez, talvez pelo fato de sermos sujeitos nordestinos fazendo pós-graduação em Educação na mesma universidade e na mesma 3

Para melhor situar geograficamente, a Guiné da qual falamos é uma das três que existem atualmente no continente africano. Conhecida também como Guiné Conacri - se diferenciando de Guiné Bissau (“portuguesa”) e Guiné Equatorial (“espanhola”) - faz fronteira com, entre outros países, Senegal, Mali, Serra Leoa e Guiné Bissau. 4 Esse jogo, entre as políticaspráticas coordenadas e exercidas pela/na escola a partir da narrativa oficial/colonial que dela se cria, e as políticaspráticas que sinalizam as formas com que os sujeitos da vida cotidiana – estudantes, professores, diretor e comunidade - compreendem o mundo - por muitas vezes desloca nossas certezas sobre a escola em África e no Brasil, e nos oferece outras escolhas para pensar a educação escolar e a produção de conhecimento em Ciências Humanas.

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linha de pesquisa – o que parecia nos assegurar um mesmo chão e um mesmo horizonte onde nossas histórias e perspectivas se entrecruzam – foi como se já nos conhecêssemos há algum tempo. Saindo do Maranhão (Brasil) em 2004, em trânsito para chegar à Guiné (em África), passei e morei no Rio de Janeiro (Brasil). Três anos depois, ao retornar de África para o Brasil, mais especificamente para minha cidade no Maranhão, pelo Rio também fiquei, onde estou até hoje por conta dos meus interesses que desembocam na academia. Esta cidade foi/é então o ponto principal de nosso encontro, e de outros encontros que cada um de nós dois teve com outros sujeitos. Destacou-se por ter sido um ponto de trânsito que ligou o Maranhão, Piauí e Forecariá5, na Guiné Conacri – país africano abrigo de populações e culturas que passaram a transformar minha forma de ver o mundo – em muitos sentidos que esses termos podem nos remeter. A cidade Rio de Janeiro, na nossa história, e pelas suas características particulares, é um ponto de encontro de histórias, nos trazendo outras histórias, que lançam o fio condutor que direciona o pensamento principal desse texto: imagens. Imagens que Didi-Huberman (2011) nos indicaria como pequenas luzes, pequenas histórias – apontando o inacabamento de uma realidade - que nós dois lançamos mão para – com os outros que nos habitam, por nós passeiam, e com quem dialogamos - compreender melhor nossos “objetos” de estudo, e compreender a vida, sempre de forma inacabada e regeneradora. Uma imagem – fotográfica ou outro tipo de objeto de representação de imagens – é aqui, portanto, um dispositivo de linguagem/imagens/histórias que escapa ao absolutismo do sistema de significações dominantes, a fim de relacionar

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Localizada no sudoeste do país, há 100 km da capital da Guiné, é considerada uma das principais cidades guineanas. Foi nesta cidade onde, morando e trabalhando (2006-2007) como professor de crianças pequenas em um programa de educação pré-escolar, a escola, por um discurso inserido em um contexto histórico, foi me apresentada por um amigo como “coisa de branco”. Essa surpreendente presença me fez perder o chão e procurar outros horizontes de escola - até então invisíveis ou desconsiderados por mim. Ela se torna responsável pelo deslocamento de minha primeira forma de consideração da escola, pela qual cheguei à Guiné, e, servindo de intervenção político-cultural, gera a busca por atualização de meu pensamento sobre este ambiente educativo - e de minhas práticas pedagógicas. Ela rasura a imagem de escola que eu tinha até então e me aponta uma complexidade na forma de pensá-la. É a partir de então que nasce um incômodo político e mais tarde minha pesquisa de mestrado em Educação.

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conhecimento e verdade, na linha do pensamento bakhtiniano, na dimensão das ciências humanas (JOBIM E SOUSA, 1997). Para isso, com Bakhtin, parece-nos importante, na reflexão que fazemos, colocar ao lado das nossas experiências tecidas nos nossos trânsitos, e sua forte significância para nós, uma história que também nos serve de orientação para o que discutimos em nossas pesquisas: experiências afrodiaspóricas como perspectiva de interação/negociação e deslocamentos imaginativos. Uma é a história da composição cultural da península Kalum, atualmente território da capital da Guiné. E a outra é o congelamento de uma cena de um vídeo produzido no pátio da Escola III de Forecareá durante a pesquisa de mestrado do professor maranhense (Geoésley). Esta última nos levou, como num espaço reticular de nossas lembranças artísticas africanas e afrobrasileiras, a uma pintura de Heitor dos Prazeres. E, poderia nos levar a muitas outras imagens/narrativas tecidas em nossas diásporas, de nosso(s) corpo(s) “assinado(s) por muitos outros” (CERTEAU, 1998, p.171). A ideia de polifonia de Bakhtin (2006) nos permite uma conexão à/de corpo polifônico, de fotografia/pintura polifônica, que, para sua condição, possui existência de muitos outros/imagens, outras consciências.

A Primeira Imagem – histórias na/de/com a Guiné

Rivière (apud MENDES, 2015), contando a história da composição cultural da atual capital da Guiné – Conacri - a partir da tradição oral dos povos Baga que habitavam a região anos antes da invasão europeia, nos remete à península Kalum a um espaçotempo de trânsito e encontros, de uma dinâmica de deslocamentos. Esse trânsito era o que potencializava os encontros entre os povos na península. Consequentemente,

as experiências, trocas de

saberes

e

emergência

de

conhecimentos e narrativas. A partir da história dos povos Baga, diríamos, no contexto de nossas histórias, que tanto a cidade do Rio de Janeiro – mais especificamente o espaçotempo do

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Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - quanto a história desse texto, é a história do encontro entre nakirikai. Na perspectiva cultural Sosso – a do povo que fora deslocado das terras de Kirina, no antigo Império do Mali6, e passara a chegar ao Kalum trazendo-lhe sua língua e a amplitude de sua cultura - eram chamadas de nakirikai todas as pessoas que estavam na península e nas ilhas que ficam à sua ponta. Mas o que caracterizava primordialmente “um nakirikai” não era simplesmente o seu lugar oposto ao ângulo de visão de quem o percebia. Como condição de ser nakirikai, era necessário o trânsito e o diálogo. Particularidade vista pelos Sosso ao chegarem no Kalum. Uma pessoa, na estética Sosso, só é nakirikai no processo da travessia, na busca pelo outro que lhe completa - com o(s) outro(s) que lhe movem - num movimento que propõe um olhar/ato diaspórico: a busca pelos outros em si como condição da humanidade. Quem se deslocava das ilhas à península era chamado de nakirikai, assim como quem estava em trânsito por entre a península, ou para as ilhas. No encontro dos Sosso com os povos que estavam no Kalum, percebemos aqui que aquilo que só os Sosso – por conta de suas experiências - tinham dos povos que habitavam o Kalum, e destes escapava, passa a existir na interação, no encontro. Possivelmente isto tenha acontecido com os Sosso nos seus encontros com outros povos, cujo acontecimento diante de outra consciência possibilitou o conhecimento da sua como nakirikai. Um apontamento da incompletude dos sujeitos e da necessidade de diálogo nas tentativas de compreensão de uma realidade. A partir de estudos bakhtinianos (1997), o excedente de visão é considerado como aquilo que surge a partir da posição que cada sujeito ocupa no mundo, o que lhe permite um ponto de vista particular e singular/único sobre as outras pessoas. O excedente de visão, no contexto do Kalum, parecia ser o principal dispositivo (enunciação) de caracterização de um sujeito nakirikai. De outro modo, ao se enunciarem, ou seja, passando a existir para os outros (FANON, 2008), os Sosso também diziam como se compreendiam naquele mundo: nakirikai. Fanon (ibid.)

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Alusão à histórica batalha de Kirina (Século XIII). Sugestão de leitura NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata, ou, a epopeia mandinga. Tradução de Oswaldo Biato. São Paulo: Ática, 1982.

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potencializa nossa compreensão dessa cena dizendo que “falar é existir absolutamente para o outro” (p. 33).

A Segunda Imagem – entre a Escola III em Forecariá e Heitor dos Prazeres

A outra imagem/história que pode potencializar nossa reflexão de uma realidade necessariamente composta por sujeitos em atravessamentos/diaspóricos é a do pátio da Escola III de Forecariá, a escola guineana escolhida para minha pesquisa de campo do mestrado, por conta da primeira experiência vivida naquela cidade, em 2007, que me levou de volta à localidade 7 anos depois. O pátio desta, que é uma das 8 escolas públicas da cidade, foi o signo físico que mais me chamou a atenção desde a minha primeira visita à escola. Isto parece ter acontecido pela forte sensação de desestabilização da ideia de escola – estática, fechada, acabada – que eu ainda levara ao campo da pesquisa, esperando encontrá-la como realidade acabada. Descíamos uma das principais ruas em direção ao centro da cidade, lá onde se encontra o mercado popular, e geralmente local de encontro diário entre muitas pessoas. Estava com uma amiga brasileira que morava na cidade na época, e com minha companheira, Eliana. Como representação das grandes transformações físicas da cidade, aquela rua estava sendo asfaltada, e marcava, assim, a expansão de bairros que na minha época de morador não existiam. Passávamos em frente a um espaço que na minha visão não parecia ser uma “escola”. Não tinha nomes nas paredes que identificassem pra mim aquele lugar como uma escola. Muito menos muros e portões. Foi Sarah (a amiga que morava na cidade) quem me disse: Geo, ali é uma escola. Ainda de longe, e extremamente duvidoso, visualizei três pavilhões divididos por várias salas. Entre eles, três largas passagens que permitem a circulação de pessoas da comunidade pelo espaço. Os três pavilhões se aproximam da estrutura de um círculo aberto ao dividir o terreno com casas de pessoas da comunidade que não necessariamente fazem parte da comunidade escolar mais diretamente. Neste

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primeiro encontro, as cenas de pessoas da população local7 transitando e se encontrando no pátio da escola, enquanto aconteciam as aulas, foram responsáveis por começar a me proporcionar uma negociação/uma releitura do sentido que eu tinha de meu “objeto” de estudo, a escola. Todo o movimento presenciado por mim nesse lugar de trânsito – “neste Kalum e nesta Rio de Janeiro” - naquela primeira visita em frente às salas de aula marcou pra mim aquele cenário escolar, semelhante à uma feira, ou praça pública do contexto de François Rabelais, onde aconteciam diversas manifestações que Bakhtin (2013) talvez chamasse de carnavalescas, porque surgidas nos diálogos, no tom de voz, no vocabulário, gestos, risos, nos encontros, e outras particularidades entre pessoas mais próximas. Cena que desestabilizava/subvertia a seriedade/formalidade e representação/existência supostamente absoluta da instituição escolar latente em mim. A escola aberta – aparentemente ilimitada, território de travessias, trocas e influências de diversos saberes – problematiza o acabamento de uma existência, de uma ideologia, de um discurso, um espaço, um tempo, um nome – e nos leva ao que Bakhtin (2006) fala da palavra (estendemos sua imagem à península, à cidade carioca, ao pátio da escola) como uma arena de disputas e afetos, portanto um campo dialógico/polifônico marcado pelas relações de caráter político, sensitivo e ideológico. Essa

observação

do

espaço

escolar

marca

a

existência,

necessária,

de

consciências/verdades transitórias naquela realidade, que precisam ser levadas em consideração. Aprendemos

com

Bakthin,

e

a

partir

de

sua

perspectiva

dialógica/polifônica/alteritária, necessariamente fundamentada no diálogo entre diferenças e incompletudes, que a palavra é um signo sempre carregado de sentidos/ideologias porque foi/está sendo composta em interação com outros, no/a partir do meio social com os sujeitos que fazem parte desse diálogo, em um contexto 7

Mulheres vendendo comidas, caminhando pelo pátio com seus baldes sobre a cabeça e seus bebês às costas; mães que passavam com seus filhos para outras escolas ou centro de saúde; senhores e senhoras; bicicletas, até motos; pessoas que se encontravam no pátio da escola para conversar e contar alguns episódios da vida cotidiana, e crianças que não eram estudantes ali, mas que consideravam aquele espaço como “de ninguém”.

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histórico. Este caráter da linguagem na palavra, para Bakhtin, é essencialmente cultural e polifônico porque há nela (na palavra) sempre outras histórias/imagens – que se tecem e são tecidas - querendo ser contadas por diversas perspectivas e, que, nos faz pensar, geralmente estão interligadas. Uma não existe sem a outra. Falamos/escrevemos até aqui para dizer que o espaçotempo escolar ao qual nos referimos – de conflito/diálogo/interação entre políticaspráticas8 (OLIVEIRA, 2013) impostas à comunidade escolar (professores, diretores, estudantes, entre outros) por uma ideologia fundamentada numa filosofia cartesiana – eurocêntrica e colonial porque tem intuito de fixidez e totalitarismo e é imposta de longe – foi local de produção de um vídeo que mostra imagens que Bhabha (1998) – parte da corrente de pensamento chamada de pós-colonialismo9 que se tornou uma linha de análise da sociedade – talvez as caracterizasse de prerrogativas pós-coloniais (p. 77). Esta ideia trazida por Bhabha, que é um estudioso de Mikhail Bakhtin, tem a ver com enunciações que marcam a posição política ativa (discurso/práticas) de pessoas que, na perspectiva política hegemonicamente dominante, jamais se enunciariam; ou seja, não teriam credibilidade diante da atitude predatória do discurso colonial/científico moderno/globalizador; portanto, imagens/histórias que seriam produzidas como inexistente10 (SANTOS, 2010, p. 32), desaparecendo enquanto parte da realidade. Esta ideia de Homi Bhabha – a qual apontamos para a “fotografia” – imagem congelada do vídeo em questão - é “linkada” aqui à condição humana do sujeito falante trazida pela filosofia bakhtiniana, e ao mesmo tempo nos ajuda pensar na imagem produzida no pátio da escola guineana como uma nakirigrafia. Isto por algumas razões: uma delas é que se a etimologia da palavra fotografia, a partir do 8

Concordamos com Oliveira de não se separar política de prática, pois não há prática que não demonstre uma escolha política, do mesmo modo que não há política que não se exprima por meio de práticas, e que não seja influenciada por elas. 9 Vale lembrar, antes de continuar, Bhabha não compreende, nem pensa o prefixo “pós” como uma polaridade, algo ascendido. E sim como um “além” que “não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado. Stuart Hall (2003), um dos pioneiros dos Estudos Culturais, explica também que, no que concerne à ambivalência do termo “pós-cultural”, com o mesmo sentido do “pós-colonial”, não se trata necessariamente de um “antes” e um “agora”, uma linearidade na forma de ver as relações (neo)coloniais. Para ele, o termo “pós-colonial” trata-se de uma releitura/negociação da “colonização”. Entendendo melhor o prefixo “pós”, podemos pensar nas relações, portanto, a partir de um conflito travado necessariamente entre ambas as partes que delas participam. 10 Inexistência significa não existir em qualquer forma de ser importante ou válido.

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grego, significa “escrita/desenho/narrativa” com luz, a imagem em questão – umas das centenas de outras nakirigrafias emergentes da pesquisa de campo na Guiné - propõenos ser vista como “escrita/desenho/enunciação” de nakirikai, dos “de outro lado que estão em trânsito e em diálogo”. Enunciação política e culturalmente diversa dos que estão em travessias/trânsito/movimentos/interação - alusão mais uma vez aos sujeitos da narrativa baga e à função política à que a imagem se propõe: anunciar outras histórias (em interação) – de escola, de criança, jovem, estudante – “dando acabamento” (BAKHTIN, 1997) – porque é linguagem viva e em trânsito – à ideia sempre incompleta/ambivalente de diversas existências, de modo a provocar outros saberes de/com África-América, no diálogo com pessoas cujas vidas foram narradas geralmente de forma eurocêntrica, infernal, totalitariamente pontuando. Fotografia 1 – Estudantes dançando e cantando no pátio da Escola III de Forecariá, contando pelo menos outra história de sua escola.

Fonte: Acervo particular de Geoésley Mendes

Esta imagem, que na verdade é mais bem compreendida como um objeto de apresentação de imagens em interação, consiste, como já dissemos, no “congelamento” de um momento do vídeo produzido no pátio da escola, durante a pesquisa de mestrado de Geoésley, na tentativa de registrar manifestações vivas e políticas dos/das estudantes, mas cerceadas pelas leis da instituição escolar. Percebemos na imagem como os/as estudantes fazem uso (CERTEAU, 1998) do espaço para potencializar suas enunciações e veicular suas expressões, desejos e interesses.

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No dia da produção do vídeo não houve aula na escola. Era o dia de recepcionar a Primeira Dama do país que estaria em visita à cidade de Forecariá. Todas as comunidades escolares da cidade foram convocadas pela Secretária de Educação para dar boas vindas à autoridade política. Era meu terceiro dia de pesquisa na Escola III. Sem saber da convocação à recepção, eu cheguei mais cedo do que os dois primeiros dias com objetivo de observar como se davam os primeiros momentos dos/das estudantes na escola. Percebi de longe que um grupo de meninas conversava fora da sala. Outras chegavam pouco a pouco. No compasso de suas chegadas à escola, naquele dia, elas se agrupavam pelo pátio, suscitando-me estranhamento da organização do ambiente sem repressões de professore(a)s e diretor, sem um comando de ordem, principalmente de entrada às salas - o que não era comum diariamente. Hoje não tem aulas. Vamos recepcionar a Primeira Dama que vem visitar a cidade, disse-me o diretor da escola com um semblante de importância. Então era por isso que o ambiente parecia descontraído, pensei! Até que chegasse o momento dos/das estudantes em filas se deslocarem da escola para o local da recepção, eu me sentei em uma cadeira perto de uma das entradas do pátio, de frente a uma das salas de aula. Percebi que alguns tímidos passos de dança agrupavam algumas meninas em círculo do lado oposto do pátio, em escapada desprogramada, já que há uma proibição formal de danças e cânticos em línguas étnicas guineanas dentro da escola. Como que em uma disputa, ou apresentações de umas para as outras, elas se revezavam incentivadas pelas palmas e cânticos sussurrados, para que não tivessem suas ações percebidas pelas reconhecidas autoridades da escola. Achei que era propício o momento para tirar a máquina fotográfica da mochila e começar a fazer algumas fotos e alguns vídeos. Não querendo ser diretamente percebido com a máquina a punho – embora sendo conhecido por toda a comunidade escolar como o brasileiro que estava ali fazendo uma pesquisa e registros imagéticos do que acontecia naquele cotidiano escolar – “discretamente” deixei minha máquina ligada sobre a mochila às minhas pernas, tentando capturar as ações daquele

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momento no pátio, sem que elas fossem previamente programadas pelos/pelas estudantes diante do aparelho11. No lado oposto do pátio, aos poucos as meninas dançavam menos timidamente, mas ainda aparentemente preocupadas com a presença do diretor que a qualquer momento as surpreenderia, “lembrando-lhes” que é proibido dançar e cantar na escola. Depois de alguns minutos, ao perceberem que estavam sendo assistidas por mim e pelo aparelho fotográfico, foram sorrateiramente para o centro do pátio. Aí formaram um círculo maior com outras meninas e meninos, e algumas das meninas começaram a dançar no centro da roda, sempre se alternando sob o ritmo das palmas que naquele momento substituíam os tan-tans guineanos, instrumentos de percussão e símbolos de expressão de alegria, também proibidos na escola. Quanto mais palmas e gritos de apoio das outras estudantes, mais as meninas que estavam no centro da roda dançavam! Uma ação alimentava a outra! De repente, ao dar espaço para que eu e minha máquina fotográfica também entrássemos simbólica e politicamente no círculo, uma das estudantes que havia saído por um instante chegara com um aparelho celular. Fato que me pareceu costumeiro, dançar ao som do celular. Como caixa de som, o aparelho, que não pode ser utilizado na escola para efetuar e receber ligações – função também proibida –, era/é usado (CERTEAU, 1998) para outros fins, como potencializador da circulação da palavra/enunciações, do que agrupa(va) pessoas através de músicas, trazendo-lhes senso de coletividade e pertencimento, além de fortalecer a demonstração de outros desejos e interesses na escola. Naquela roda, parecia faltar algo mais. E isto parece ter chegado por meio do aparelho celular trazido por outra menina e posto na roda da dança, da vida, como sinal de uma metamorfose de perspectivas em geração de uma outra, que não fosse nem “esta” e nem “aquela”.

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Era comum, ao me verem com o aparelho fotográfico apontado para algum lugar ou pessoa, estudantes se posicionarem em frente à lente e fazerem poses, caras e bocas, a fim de serem fotografados ou filmados.

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Embora em poucos minutos o diretor da escola chegasse e dispersasse as estudantes – num esforço tremendo de desfazer o círculo, acabar com a “desordem” na escola e a proposta do grupo com suas danças, palmas, ritmo, música, celular, palavra – esta história nos dá sinais de que a vida/realidade é mais complexa do que o que se diz, se quer dizer sobre ela, de um ângulo que se pretende dominante e totalitário/absoluto. Quando esta história, por meio da “fotografia das estudantes no pátio” (Fotografia 1), chegou a mim (Francilene) soou como a ideia de um vaga-lume de DidiHuberman (2011), trazendo lampejo de uma história que não se faz sem outra(s) (Benjamim apud HUBERMAN, 2011). Então eu disse para meu amigo Geoésley: lembrei-me de um quadro de Heitor dos Prazeres – artista brasileiro que viveu no Rio de Janeiro de 1898 a 1966 – que tive a oportunidade de fotografar quando visitei o Museu Afro Brasil no Parque do Ibirapuera em São Paulo (Brasil) no dia 30 de abril de 2015. Fotografia 2 – Sem Título, 1963. Óleo sobre tela. Museu Afro Brasil.

Fonte: Fotografia, acervo particular de Francilene Brito da Silva, 2015.

O que essas imagens têm de semelhantes? Que conhecimentos podem emergir do encontro entre uma cena fotografada em um contexto africano negro de 2014 e uma pintura feita em um contexto afrobrasileiro de 1963, visitado em 2015?

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Lembrei-me de minha história: como Heitor dos Prazeres, cresci vendo as ferramentas da marcenaria de meu pai no quintal onde estendia as noites em laboriosas peças esculpidas de madeira para formar móveis de tipos variados. E, as peças de roupas produzidas por minha mãe nas costuras encomendadas ou feitas para nós, como forma de nos vestir sem ter tanto gastos. Heitor dos Prazeres no Rio de Janeiro, na primeira metade dos anos de 1900 e eu, Francilene, na Teresina dos idos de 1980. Duas crianças afrobrasileiras em contextos distintos, com experiências deslocando-se para o encontro a partir da arte e da vida. Nessa rede de travessias e contatos significativos me envolvo na história também como nakirikai, me deslocando para Forecariá através do encontro com a Imagem 1. Como de nakirikai parecia também ser as histórias daqueles/daquelas estudantes guineanas. O diálogo é provocativo! A mensagem das crianças em círculo e uma delas ao centro, os corpos deslocando-se e a gente quase a ouvir o som da música no celular, me traz a lembrança direta da Fotografia 2. A leveza dos movimentos combina com o flutuar da peteca solta ao ar na obra de Prazeres; o envolvimento das crianças na circularidade lúdica da vida nos ensinando que fazemos parte de uma mesma família: a afrodiásporica e afrodescendente – desde quando a história milenar de africanos se espalhou pelo mundo até agora no tilintar de nossos envolvimentos continentais produzidos como política, arte, conhecimentos para serem ensinados numa invenção chamada “escola”, mas, que antes aprendemos com a vida (que também abriga a escola). Movimentos, gestos comungando, envolvimento, deslocamentos anunciando encontros. Possibilidades. As experiências de uns que crescem, se espalham e se resignificam em rede de outros. Metaforicamente, dançar é deslocar-se, atravessar(-se). A dança das figuras fotografadas, a dança cultural das estudantes de Forecariá, de Teresina, de Imperatriz, do Rio de Janeiro, de São Paulo, a dança dos nakirikai. Quantos deslocamentos, e quantos outros envolvidos! Aprender em circularidade com aqueles de outro lado, sempre em trânsito, sempre em diálogo. O diálogo do corpo aprendiz que se desloca em suas andanças de experiências pulsantes e contagiantes causa envolvimento com outros corpos/lugares/modos de ser. Ser nakirikai é ser um dançarino da experiência.

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Texto aceito para apresentação no III EEBA - Encontro de Estudos Bakhtinianos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ, 16, 17 e 18 de Novembro de 2015

A música que toca, ou que nos toca, são as ondas que levam ao conhecimento de nós naqueles que nos afetam. Heitor dos Prazeres, além de pintor, era músico (ensinado pelo pai), e, entre clarinetes e cavaquinhos, sambas e marchinhas, nos convidou a experimentar e conhecer a vida carioca de seu tempo, como aprendi no Curso de Arte. As crianças da Escola III de Forecariá, e as de Heitor, nos convidam, a mim e ao meu amigo parceiro de academia, a sentir o conhecimento como saber de si nos/dos/com outros, nos deslocamentos de nós mesmos pelo envolvimento das experiências. Essa forma de conceber a escola, a academia, uma realidade pontuada no tempo e no espaço, os conhecimentos que tecemos e produzimos, é algo que nos desperta a uma resposta ativa e ética (responder aos meus outros com alguma coisa/de alguma forma pelos meus próprios atos) em diálogo com nossos outros, como nos instiga Bakhtin (1997): responsavelmente, também.

Considerações Iniciais sobre o Fim Provisório desse Diálogo

Nas narrativas que travamos de nós mesmos com outros, emergem conhecimentos e responsabilidades de forma ética, estética e epistemológica. Afinal, ser pesquisador, professor, estudante requer empatia e compromissos. Sobre esse compromisso estético (acabamento) com – e não sobre – o outro, que torna-se um compromisso conosco mesmo, queremos contrapor aqui as muitas imagens de África e de América Latina (sobretudo com relação às crianças) que sempre carregam mensagens eurocêntricas que apontam silenciamento, invisibilização, miséria e subdesenvolvimento em seus contextos. Nesse texto, optamos por trazer imagens de uma afrodiáspora – em travessias/diálogo – que quer tensionar essas outras imagens de subalternidade. Conhecer-se enquanto brasileira/o para nós, é, sobretudo, enxergar essas imagens/histórias lançadas por Mendes, Silva e Prazeres. Trazê-las na contramão de danças colonizadoras. No prazer de nos encontrarmos e produzirmos conhecimentos com nossos outros!

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Texto aceito para apresentação no III EEBA - Encontro de Estudos Bakhtinianos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ, 16, 17 e 18 de Novembro de 2015

Referências Bibliográficas

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