Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate

September 4, 2017 | Autor: Mariana Villaça | Categoria: Popular Music
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Revista Brasileira de História

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versão On-line ISSN 1806-9347

Artigo

Rev. bras. Hist. v. 18 n. 35 São Paulo 1998

ReadCube http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000100003

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Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate

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Marcos Napolitano Universidade Fedederal do Paraná

Mariana Martins Villaça Mestranda em História Social-USP

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RESUMO Este artigo procura analisar historicamente o movimento tropicalista de 1968, seguindo dois caminhos: uma breve revisão crítica do debate intelectual em torno do tema; a reflexão sobre a trajetória histórica dos protagonistas e suas criações. Procuramos enfatizar o caráter ambíguo do legado cultural tropicalista, ao propor uma crítica cultural radical dentro das estruturas do consumo de massa. À luz deste projeto tropicalista, procurando evitar juízos de valor, apontamos para algumas problemáticas que possam nortear futuras pesquisas. Palavras-chave: Tropicalismo, Música Popular, história, Brasil: movimentos artísticos (século XX).

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ABSTRACT This article focuses the tropicalist movement, that "blew-up" in 1968. The analysis develops in two scopes: a critic review, concern the intellectual debate that involved the movement and the historical reflection about the protagonists and his creation procedures. We remark the main purpose of the tropicalist "project": To exercise cultural criticism inside mass culture. Finally, we list a few points of problems to be investigate, in followings historical researchs. Keywords: Tropicalism, Popular Song, History, Brazil: artistic moviment (XXth century).

O SURGIMENTO DO TROPICALISMO: EXPLOSÃO OU IMPLOSÃO A comemoração dos 30 anos do chamado Tropicalismo ou Tropicália, incentiva a inclusão deste tema na pauta nas discussões acadêmicas, sem falar na mídia em geral. Discutir a importância histórica do Tropicalismo a partir de uma perspectiva histórica sem nos restringir aos lugares-comuns que dominam o tema não é uma tarefa muito fácil, até porque, em larga medida, somos tributários, cultural, política e esteticamente, daquela tradição cultural iniciada entre 1967 e 1968. O Tropicalismo, logo depois de sua "explosão" inicial, transformou-se num termo corrente da indústria cultural e da mídia. Em que pesem as polêmicas geradas inicialmente (e não foram poucas), o Tropicalismo acabou consagrado como ponto de clivagem ou ruptura, em diversos níveis: comportamental, político-ideológico, estético. Ora apresentado como a face brasileira da contracultura, ora apresentado como o ponto de convergência das vanguardas artísticas mais radicais (como a Antropofagia modernista dos anos 20 e a Poesia

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Concreta dos anos 50, passando pelos procedimentos musicais da Bossa Nova), o Tropicalismo, seus heróis e "eventos fundadores" passaram a ser amados ou odiados com a mesma intensidade. Atualmente, mais amados do que odiados, diga-se. A intervenção histórica operada, sobretudo pelo Tropicalismo musical, foi tão contundente que mesmo aqueles que, na época, não se identificaram com seus pressupostos, não lhe negaram a radicalidade e a abertura para uma nova expressão estético-comportamental. Com o passar dos anos o véu da memória histórica se torna mais espesso e os significados e complexidades em jogo tendem a perder nitidez. Sendo assim, as efemérides são momentos propícios para uma reavaliação crítica. Geralmente, seus eventos fundadores são localizados em 1967, embora o Tropicalismo, como movimento assim nomeado, tenha surgido no começo de 1968: na música - sua maior vitrine - através das inovadoras propostas de Caetano e Gil, no III Festival de Música Popular da TV Record de 19671. No teatro, com as experiências seminais do Grupo Oficina, ou seja, as montagens d' O Rei da Vela e de Roda Viva. No cinema, acompanhando a radicalização das teses do Cinema Novo, em torno do lançamento de Terra em Transe, de Glauber Rocha. Não poderíamos deixar de citar as experiências das artes plásticas, sobretudo as elaboradas por Hélio Oiticica, área menos reconhecida pelo grande público, apesar de ter sido o campo onde a palavra Tropicália ganhou significado inicial, adquirindo as feições gerais que mais tarde a consagrariam2 .Este roteiro histórico nos mostra um movimento surgido da radicalização das questões colocadas pelas artes nos anos 60, na sua interface com a vanguarda mundial e com a indústria cultural brasileira. Questões essas que confluem num ponto: a crise terminal do "nacional-popular" como eixo da cultura e da política. Neste sentido, apesar do seu hiper-criticismo, a Tropicália será a face positiva, prospectiva e culturalmente inovadora, do processo histórico marcado pelos "impasses" catalizados pelo golpe militar de 1964. Expressões como explosão tropicalista - como usou Celso Favaretto em seu trabalho clássico3 - ou susto tropicalista - a que se referiu Heloísa Buarque de Hollanda4 - demonstram o impacto de ruptura que o movimento teve. Para Favaretto5 : A mistura tropicalista notabilizou-se como uma forma sui generis de inserção histórica no processo de revisão cultural que se desenvolvia desde o início dos anos 60. Os temas básicos dessa revisão consistiam na redescoberta do Brasil, volta às origens nacionais, internacionalização da cultura, dependência econômica, consumo e conscientização

Favaretto, considerando que a Tropicália representou uma abertura cultural no sentido amplo, destaca a contribuição musical específica6 : Pode-se dizer que o Tropicalismo realizou no Brasil a autonomia da canção, estabelecendo-a como um objeto enfim reconhecível como verdadeiramento artístico (...) Reinterpretar Lupicínio Rodrigues, Ary Barroso, Orlando Silva, Lucho Gatica, Beatles, Roberto Carlos, Paul Anka; utilizar-se de colagens, livres associações, procedimentos pop eletrônicos, cinematográficos e de encenação; misturá-los fazendo perder a identidade, tudo fazia parte de uma experiência radical da geração dos 60 (...) O objetivo era fazer a crítica dos gêneros, estilos e, mais radicalmente, do próprio veículo e da pequena burguesia que vivia o mito da arte (...) mantiveram-se fiéis à linha evolutiva, reiventando e tematizando criticamente a canção

Embora partindo de algumas premissas semelhantes, Heloísa Buarque de Hollanda percorre outros caminhos de análise7 : O circuito fechado e viciado em que a classe média informada se juntava para falar do `povo' não produzia mais efeito. Era preciso pensar a própria contradição das pessoas informadas, dos estudantes, dos intelectuais, do público.

Nestes dois livros, que se tornaram clássicos para o estudo dos anos 60, temos duas posições de fundo que ajudam a sintetizar os grandes eixos percorridos pelo debate historiográfico sobre o Tropicalismo: em Favaretto, fica sugerida a idéia de que a" explosão" tropicalista encaminhou uma "abertura" político-cultural para a sociedade brasileira, incorporando os temas do engajamento artístico da década de 60, mas superando-os em potencial crítico e criativo. Se o Tropicalismo foi produto de uma crise, ele mesmo apresentou os caminhos, nem sempre unívocos, para a" solução" dos impasses. Em Heloísa Buarque de Hollanda o Tropicalismo seria o fruto de uma crise8 , tanto dos projetos de poder dos anos 60 (à esquerda, obviamente)9 , quanto da própria crise das vanguardas históricas. Em poucas palavras, no primeiro autor temos a explosão colorida, uma abertura cultural crítica, liderada pelo campo musical. Na segunda, uma implosão político-cultural, perda do referencial de atuação propositiva do artista-intelectual na construção da história. Ismail Xavier10, num balanço bibliográfico das posições divergentes em torno do Tropicalismo, destaca Silviano Santiago11, Gilberto Vasconcelos12 e o já citado Celso Favaretto como a corrente de análise que resgata as contribuições históricas do projeto alegórico-tropicalista. Sistematizando melhor as suas posições ao longo dos anos 70, estes autores reafirmaram a vocação alegórica do Tropicalismo como a expressão mais coerente para um novo conjunto de tensões políticas, culturais e existenciais que passaram a caracterizar a sociedade brasileira urbana. Para Vasconcelos, o Tropicalismo resolve encarar de frente a "dolorosa derrota" de 1964, abrindo novos espaços para a ação de uma consciência crítica renovada. Silviano Santiago, no prefácio do livro de Vasconcelos, vê na alegoria tropicalista a explicitação crítica das" matrizes culturais" do Brasil, procedimento que, ao invés de reafirmá-las à esquerda, desconstruiu-nas radicalmente, explorando as contradições inerentes da cultura brasileira. Favaretto, conforme a leitura de Xavier, vai mais além: o Tropicalismo ao "empilhar as relíquias do Brasil"13 , reafirma a nossa modernidade como ruína, denunciando a formação conflitiva da história brasileira, ocultada pelas sínteses do vencedor. A alegoria seria o "retorno do reprimido" na história e não o recurso para um" diagnóstico geral da nação"14 .

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Roberto Schwarz15 se destaca entre os críticos de primeira hora do Tropicalismo. Por sua densidade teórica e pela sua força argumentativa, seu texto é um dos mais complexos e fundamentados. Mesmo trazendo para a cultura brasileira um "alento desmistificador", ao questionar um tipo de nacionalismo conservador compartilhado à esquerda, o Tropicalismo, para o autor, estaria vinculado a uma tradição de pensamento a-histórico, por isso, ideologicamente incoerente em relação às suas próprias intenções revolucionárias. No final da experiência estética tropicalista (e Schwarz está analisando, basicamente, as experiências do grupo Oficina, notadamente a peça Roda Viva) a melancolia generalizada, de artista e público, toma o lugar da busca da ação e da consciência. A impotência política de ambos frente aos desafios históricos estaria por trás da agressividade simbólica tropicalista, sobretudo nas experiências do Grupo Oficina16. Para Schwarz, a alegoria tropicalista acaba, indiretamente, reforçando a visão ideológica e conservadora dos dois brasis, irreconciliáveis. O autor termina por recuperar a literatura como paradigma da ação ideológica do intelectual 17. Este debate, de cunho fortemente acadêmico, que marcou o final dos anos 60 e boa parte dos anos 70, não só avaliou o sentido histórico e estético do Tropicalismo, mas acabou definindo certos parâmetros a partir dos quais o movimento passou a ser pensado (e lembrado). Apesar dos matizes e sutilezas que existem entre os pólos analíticos, o delineamento das posições é visível. Entre aqueles que lhe reafirmam e aceitam um projeto tropicalista e aqueles que, desde o início se colocam numa atitude cética, a fala das fontes acaba por se confundir com a própria historicidade. Assim, de uma forma ou de outra, o Tropicalismo vai sendo percebido dentro de uma totalidade coerente e programática. As correntes mais críticas ao Tropicalismo partem do princípio que a ambigüidade do movimento reside no seu procedimento criativo básico. Este seria caracterizado pelo inventário de um Brasil absurdo e contraditório, incorporando os impasses nacionais no campo da cultura e da política, considerados historicamente insuperáveis. Já as correntes analíticas mais favoráveis ao movimento procuram enfatizar suas contribuições no campo da crítica cultural, da estética e do comportamento artístico, considerando que o tropicalismo teria atualizado a arte voltada para as massas no Brasil 18. Ultimamente, com a dificuldade cada vez maior em definir satisfatoriamente o espaço da vanguarda, os limites da cultura de massas e a função da arte na sociedade, estas matrizes analíticas vêm sendo redimensionadas e se desdobrando em novos problemas19. Estabelecidos alguns marcos referenciais do movimento e os dois grandes eixos que vêm norteando o debate, podemos tentar avançar um pouco na análise histórica. Partindo do princípio de que não só os fatos históricos têm um tempo e um espaço delimitado, mas também as suas interpretações, nos propomos a examinar, ainda que dentro dos limites deste artigo, o tempo e espaço próprios do Tropicalismo, dialogando, ao mesmo tempo, com os referenciais construídos ao longo do debate em torno do tema.

O BATISMO: ENTRE O NOME E A COISA Em 1969, Hélio Oiticica tentou definir a sua obra-ambiência, chamada Tropicália, montada numa exposição no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro em 1967 e que, pouco tempo depois, emprestaria o nome para a composição de CaetanoVeloso. Vale a pena a longa citação20 : Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem caminhos alternativos para a saída. Quando você entra nele não há teto, nos espaços que o espectador circula há elementos táteis. Na medida em que você vai avançando, os sons que você ouve vindos de fora (vozes e todos tipos de som) se revelam como tendo sua origem num receptor de televisão que está colocado ali perto. É extraordinário a percepção das imagens que se tem: quando você se senta numa banqueta, as imagens de televisão chegam como se estivessem sentadas à sua volta. Eu quis, neste penetrável, fazer um exercício de imagens em todas as suas formas: as estruturas geométricas fixas (se parece com uma casa japonesamondrianesca), as imagens táteis, a sensação de caminhada em terreno difícil (no chão ha três tipos de coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na parte escura, numa sucessão de uma parte a outra) e a imagem televisiva.(...) Eu criei um tipo de cena tropical, com plantas, areias, cascalhos. O problema da imagem é colocado aqui objetivamente, mas desde que é um problema universal, eu também propus este problema num contexto que é tipicamente nacional, tropical e brasileiro. Eu quis acentuar a nova linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa extremamente ambiciosa em criar uma linguagem que poderia ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos nos colocar contra uma imagética internacional da pop e pop art, na qual uma boa parte dos nossos artistas tem sucumbido.

Em fins de 1967 a poesia de Caetano Veloso, numa verdadeira afinidade eletiva, remete ao espírito da obra-ambiência de Oiticica, ao propor um inventário das imagens de brasilidade vigentes até então: O monumento não tem porta/ a entrada é uma rua antiga estreita e torta/ e no joelho uma criança sorridente feia e morta/ estende a mão (...) no pátio interno há uma piscina/ com água azul de amaralina/ coqueiro brisa e fala nordestina e faróis (...) emite acordes dissonantes/ pelos cinco mil alto-falantes/ senhoras e senhores ele põe os olhos grandes sobre mim (...)/ O monumento é bem moderno/ não disse nada do modelo do meu terno/ que tudo mais vá pro inferno meu bem (....)

Enquanto Oiticica esboça um roteiro para a sua obra-ambiência, Caetano hiperdimensiona a amplitude deste roteiro, transformando a própria idéia de Brasil-nação num imenso monumento, ambiência fantasmagórica e fragmentada, onde o espectador-ouvinte tem diante de si um desfile das relíquias arcaicas e modernas do Brasil. Não por acaso, a canção de Caetano começa citando a carta de Pero Vaz de Caminha, em tom de blague, tendo ao fundo o som de uma floresta tropical e de percussão indígena. Ao contrário da proposta da esquerda nacionalista, que atuava no sentido da superação histórica dos nossos males de origem e dos elementos arcaicos da nação (como o subdesenvolvimento sócio-econômico), o Tropicalismo nascia expondo estes elementos de forma ritualizada. A ritualização paródica operada nas obras e discursos dos eventos e personagens que vão

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convergir em 1968 sob o nome de Tropicalismo, pôde assumir dois significados: por um lado, se afasta da crença da superação histórica dos nossos arcaísmos, provocando no espectador a estranheza diante de todos os discursos nacionalistas. Neste sentido, afirma o Brasil como absurdo, como imagem atemporal, estática e sem saída. Por outro, ao justapor elementos diversos e fragmentados da cultura brasileira, o Tropicalismo retoma a antropofagia, na qual as contradições são catalogadas e explicitadas, numa operação desmistificadora, crítica e transformadora21 . As ambigüidades e tensões constituintes das obras e discursos, que são tomadas como marcos do movimento, acabam por validar os dois eixos básicos de análise, anteriormente comentados. O problema está em entender não só os significados singulares da obras tropicalistas mas também as opções históricas que elas sintetizaram. Procurando fugir da filiação restrita a esta ou aquela corrente de interpretação, nos parece mais propício, ao campo da reflexão histórica, mapear a objetivação das contradições político-ideológicas no conjunto de obras e discursos (portanto para além das obras-primas singulares) e na maneira como os tropicalistas, em todos os seus campos de atuação, articularam o binômio arte-sociedade. Uma tese inicial que gostaríamos de sugerir é que não devemos partir da idéia de que existiu um movimento artístico-ideológico coeso, que se abrigou sob o leque tropicalista, nem de um significado técnico-semântico unívoco para a palavra. A rigor, esta não é uma tese nova. O caráter de movimento tem sido ora negado, ora afirmado pelos próprios protagonistas, nas suas constantes entrevistas. Em outras palavras, o Tropicalismo (vamos manter o termo para efeitos práticos, mesmo se tratando de um movimento de grande e heterogênea amplitude) não só provocou a reação das outras correntes estéticoideológicas, basicamente ligadas às matrizes nacionalistas de esquerda (que também não devem ser objeto de tábula rasa). O que se chama de Tropicalismo pode ocultar um conjunto de opções nem sempre convergentes, sinônimo de um conjunto de atitudes e estéticas que nem sempre partiram das mesmas matrizes ou visaram os mesmos objetivos.

VÁRIOS TROPICALISMO As artes plásticas O batismo do novo termo coube às artes plásticas, diga-se, a Hélio Oiticica e sua tentativa de estabelecer uma nova objetividade como corrente principal da vanguarda brasileira. Entre parangolés, táteis e móbiles, Oiticica encontrou na sua obra-ambiência Tropicália a síntese das experiências mais atualizadas da vanguarda com a tradição popular brasileira mais despretenciosa. Logo após essa sua obra sintética, proclamou22. A arte já não é mais instrumento de domínio intelectual, já não poderá mais ser usada como algo supremo, inatingível, prazer do burguês tomador de whisky e do intelectual especulativo. Só restará da arte passada o que puder ser apreendido como emoção direta, o que conseguir mover o indivíduo do seu condicionamento opressivo, dando-lhe uma nova dimensão que encontre uma resposta no seu comportamento.

O Tropicalismo, no âmbito das artes plásticas, é tributário de uma corrente de vanguarda que, desde a cisão dos artistas concretos e neo-concretos em 1959-1960, procurava apostar na emoção e na desvalorização da arte em si, como procedimento de crítica da instituição-arte e como desmistificação do artista como arauto de um projeto intelectual e ideológico coerente que deveria ser comunicado às massas. Nem pedagogia conteudista (base da arte de esquerda), nem elevação do gosto médio do público (utopia presente nas vanguardas construtivistas, como a Poesia Concreta; que defendiam a aproximação da arte e da linguagem não para desvalorizar a instituição-arte mas para valorizar e incrementar a percepção do mundo, por parte do homem moderno). As experiências de Hélio Oiticica visavam sobretudo resolver o problema de criação e intervenção artístico-cultural na sociedade brasileira, sem imitar os procedimentos e problemáticas das artes plásticas dos grandes centros internacionais, fugindo ao mesmo tempo do vanguardismo construtivista e do pedagogismo nacionalista. O que nos importa destacar é que as experiências das artes plásticas acabaram sendo uma espécie de ponta de lança para as problemáticas que as artes de público massivo, como o teatro e a música (no sentido das cancões de mercado), acabariam radicalizando. Além disso, estas áreas de criação encontrariam públicos nos quais o choque do novo teria um efeito mais perturbador.

O TEATRO COMO O GRANDE LABORATÓRIO TROPICALISTA Já virou quase um lugar-comum destacar o impacto que a montagem d' O Rei da Vela teve no público freqüentador de teatro e entre artistas e intelectuais como um todo. Escrita por Oswald de Andrade em 1937 e dirigida por José Celso Martinez Corrêa, a peça foi montada pela primeira vez em 1967, estreando em São Paulo em outubro daquele ano. Caetano Veloso destaca as convergências da "retomada oswaldiana" em seu trabalho artístico23. Você sabe, eu compus Tropicália uma semana antes de ver o Rei da Vela, a primeira coisa que eu conheci de Oswald. Uma outra coisa muito importante de Oswald para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos

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para discutir e para continuar criando, para conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas idéias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem argumentos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo.

Alguns elementos que se tornarão mais tarde parte da estética tropicalista já estavam explicitados no programa-manifesto da peça O Rei da Vela. Ao assumir a estética do "mau-gosto" como parte dos procedimentos de vanguarda, o programa diz que esta seria a "única forma de expressar o surrealismo brasileiro" colocando Nelson Rodrigues e Chacrinha como os grandes cultores desta estética24 . Fugindo completamente dos padrões da crítica de esquerda de então, ao abrir mão do pensamento que se pressupunha revolucionário, José Celso e os signatários do programa-manifesto denunciavam a sociedade brasileira como "teatralizada" e a nossa história como "farsa", acusando o pensamento da elite intelectual burguesa de: Mistificar um mundo onde a história não passa do prolongamento da história das grandes potências. E onde não há ação real modificando a matéria do mundo, somento o mundo onírico onde só o faz-de-conta tem vez (...) Tudo procura mostrar um imenso cadáver que tem sido a não-história do Brasil destes últimos anos, à qual todos acendemos nossa vela para trazer, através da nossa atividade cotidiana, alento25 . Para o Grupo Oficina, ao contrário do que significava para a esquerda nacionalista/ populista e para os ufanistas conservadores de direita, Oswald de Andrade representava a" consciência cruel e anti-festiva da realidade nacional e dos difíceis caminhos para revolucioná-la"26. A peça estreou no mesmo mês das apresentações do III Festival de Música Popular da TV Record, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil concorriam com músicas consideradas inovadoras, demonstrando uma busca de maior abertura estética, em direção ao chamado" som universal" e ao universo da cultura pop27 . Por outro lado, vale lembrar que o espetáculo O Rei da Vela foi dedicado à Glauber Rocha, diretor de Terra em Transe, o filme de maior impacto artístico de 1967 entre a intelectualidade brasileira. Como num jogo de espelhos, fechava-se a trindade que mais tarde iria se transformar nos ícones máximos da ruptura tropicalista28 . Esta homologia entre expressão teatral e musical/ popular, naquilo que viria a ser mais tarde designado pelo nome de Tropicalismo, esboçada no final de 1967, explodiria com toda força no início de 1968. As polêmicas em torno da radicalização da proposta de agressividade do Grupo Oficina, potencializadas na peça Roda Viva (que estreou em janeiro de 1968) tornaram público o debate em torno das "novidades" surgidas, sobretudo na música e no teatro. Neste momento, as polêmicas começam a apontar para a idéia de que aquilo tudo poderia se traduzir num movimento. Paralelamente ao sucesso da peça, em março de 1968 o debate em torno de um novo movimento cultural e comportamental, já com o nome de Tropicalismo, ganha as páginas da mídia cultural, com grande destaque. Numa seqüência de manifestos e contra-manifestos, a palavra foi se popularizando e adquirindo ora um sentido de blague ora um sentido de crítica cultural radical. O primeiro manifesto, intitulado Cruzada Tropicalista, teria sido escrito por Nelson Motta, a partir de uma reunião de artistas e intelectuais, que ironizavam a situação político-cultural do Brasil naquele começo de 1968. Tratando-se de uma paródia do ufanismo conservador, o manifesto Cruzada Tropicalista acabou provocando um conjunto de reações na mídia e nas artes em geral. Logo em seguida, Torquato Neto assume o movimento, escrevendo Tropicalismo para Principiantes29 , que esboça um súmula programática para o movimento, ainda que incorporasse o tom de blague do primeiro manifesto. Os dois primeiros manifestos provocaram uma sequência de réplicas e artigos a favor ou contra a nova atitude. Todos, porém, incorporavam a palavra Tropicalismo ou Tropicália, ajudando, direta ou indiretamente, a consolidá-la como moda cultural 30 . A peça do Grupo Oficina, ao incorporar a agressão, o mau-gosto, a linguagem dos meios de comunicação de massa, consagrava a idéia de um movimento de vanguarda dessacralizadora que operasse sobre as bases políticas e comportamentais da classe média brasileira. À frente única sexual, proposta no 2º ato do Rei da Vela, paródica e carnavalizante, Roda Viva somava o elemento da agressão, estética e comportamental, como procedimento básico da vanguarda tropicalista. No primeiro semestre de 1968, na medida em que o movimento era nomeado como tal, as críticas se concentravam na aparente alienação daquela atitude de blague e paródia. Outra crítica freqüente era a supervalorização da liberação comportamental-individual feita pelos adeptos do novo movimento. Alguns artistas e intelectuais mais engajados não perdoaram. Augusto Boal31 por exemplo, tendo como alvo o teatro tropicalista (termo que ele aceitava, mas acrescentando os adjetivos chacrinianodercinesco-neo-romântico") considerou esta opção um grande equívoco para a arte de esquerda. Para ele, o Tropicalismo retomava o teatro "burguês", incitando uma platéia burguesa a tomar iniciativas individuais contra uma opressão difusa e abstrata. Boal ainda enumera as características do Tropicalismo: é" neo-romântico", pois só atinge a aparência da sociedade e não a sua essência; é "homeopático", pois quer criticar a cafonice, endossando-a; é" inarticulado", pois culmina numa crítica a-sistêmica; é "tímido e gentil" com os valores da burguesia; e, finalmente, não passaria de uma estética" importada"32 . Como se pode ver, num primeiro momento, a blague e a paródia compunham elementos difusos e confusos, alvo de severas críticas, e que aguardavam uma sistematização mais profunda. E ela viria com o disco-manifesto

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Panis et Circensis, gravado pelo grupo baiano e lançado em agosto de 1968.

"BANANAS AO VENTO" (O DEBATE EM TORNO DO TROPICALISMO MUSICAL) No campo musical o movimento tropicalista ganhou seu maior público e fama. Já em fins de 1967, Gilberto Gil assume a busca do som universal, próximo à estética pop internacional. Numa entrevista ao Jornal da Tarde, ainda cercado do sucesso de Domingo no Parque, Gil declarou33: Música pop é a música que consegue se comunicar - dizer o que tem a dizer - de maneira tão simples como um cartaz de rua, um outdoor, um sinal de trânsito, uma história em quadrinhos. É como se o autor estivesse procurando vender um produto ou fazendo uma reportagem com textos e fotos.

Mesmo colocando-se como um autor participante, Gilberto Gil declarou, em plena efervecência do Festival de Música Popular de 196734: A demarcação dos interesses de uma nacionalidade está muito difusa. O que se poderia chamar de uma mentalidade nacionalista não quer dizer hoje, o que Sartre chama de `idealismo voluntarioso (...) Em nome do nacionalismo adota-se uma posição ufanista bem próxima à mentalidade nazista que deveria obrigar as pessoas de determinada nação a simplesmente ignorar qualquer tipo de influência que a cultura e os costumes de outros povos pudessem exercer sobre ela.

Em abril de 1968, após o rompimento com a TV Record, Caetano Veloso, alçado à condição de enfant terrible da mídia brasileira, também assumia o movimento indagado por Augusto de Campos, sobre o que seria o Tropicalismo, movimento musical ou comportamental, ele responde, aparentemente displicente35 : Ambos. E mais ainda: uma moda. Acho bacana tomar isso que a gente está querendo fazer como Tropicalismo. Topar este nome e andar um pouco com ele. Acho bacana. O Tropicalismo é um neo-antropofagismo.

O sucesso e a vitalidade criativa do Tropicalismo musical acabaram por fazer com que o debate fosse centralizado neste campo artístico. Se Caetano, Gil, Guilherme Araujo, Gal Costa, Tom Zé se esquivavam em definir o movimento no momento de sua emergência, suas experiências poético-musicais e sua nova postura frente à tradição musical e ao mercado fonográfico acabaram por acirrar a polêmica deflagrada em outros campos da arte. Seria o Tropicalismo uma expressão musical alienada e de baixa qualidade? Seria o Tropicalismo o demarcador de um novo momento musical no Brasil, como tinha sido a Bossa Nova? As controvérsias em torno do Tropicalismo musical, no campo cultural de esquerda, não foram poucas. O jornalista, crítico e compositor Chico de Assis, um dos membros do CPC da UNE, atacou36 : Tropicalismo beira a pilantragem (...) Gil com seus gritos não agride a sensibilidade ou os valores, agride fisicamente o ouvido.

Mais analítico, Sidney Miller, compositor de alguma fama na época, elaborou um longo artigo, no qual faz uma análise crítica da tendência universalista na MPB, faixa ocupada pelo Tropicalismo. Neste artigo, Sidney Miller recorre a Mário de Andrade contra a retomada osvaldiana tão em voga. Pensando nas relações culturais e comerciais impostas pelos países capitalistas centrais, Miller escreveu37. Universalização [da música popular brasileira] responde a um processo de estagnação do mercado interno (novas demandas não estendidas) e a um `mecanismo empresarial' que reflete uma iniciativa internacional no sentido da universalização do gosto popular (...) Não se pode querer ser universal quando o universo tem dono. Comercialmente interessa mais não distribuir uma linguagem nacional, esquisita e apimentada, do que uma linguagem vulgar, por ser mais técnica e menos filiada a essa cultura específica, poderia ameaçar o produto original do país distribuidor, via de regra, tecnicamente mais perfeito e culturalmente gasto.

Ao contrário do que pregavam os tropicalistas mais militantes, Miller denunciava que o universalismo em música popular era apenas uma fórmula mais eficaz para, "através da universalização do gosto popular, firmarem posição os grupos que dominam o mercado de disco"38 . Nesse sentido não seria a tradução nem do progresso, nem de uma nova realidade sócio-econômica. Pura divisão de mercado e rótulo para vender. O lançamento do LP Tropicália ou Panis et Circensis, em agosto de 1968, foi o grande acontecimento musical do movimento. O LP trazia uma colagem de sons, gêneros e ritmos populares, nacionais e internacionais. Em meio às composições do disco, assinadas por Gil, Caetano, Torquato Neto, Capinam e Tom Zé, com arranjo de Rogério Duprat, pode-se ouvir diversos fragmentos sonoros e citações poéticas, num mosaico cultural saturado de crítica ideológicas: Danúbio Azul, Frank Sinatra, A Internacional, Quero que vá tudo pro inferno, Beatles, ponto de umbanda, hino religioso, sons da cidade, sons da casa, carta de Pero Vaz de Caminha etc. As relíquias do Brasil explodiam sem muita preocupação de coerência sistêmica por parte dos autores. Entre as composições de outros autores, destacam-se duas: As três caravelas, versão ufanista de João de Barro para uma rumba cubana que deslocada de seu contexto, soa ambígua: ora como uma paródia ao nacionalismo ufanista, ora como alusão difusa a um latino-americanismo libertário; Coração materno, opereta grotesca de Vicente Celestino que na voz de Caetano oscila entre a blague dadaísta (ao se utilizar de uma música desvalorizada pelo gosto vigente na MPB, justamente para problematizá-la) e a nostalgia da redundância (na medida em que traz à tona o material musical cultural recalcado pela linha evolutiva, mas parte formativa de uma sensibilidade musical arcaica). O disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis serviu como ponto de convergência para o grupo baiano, e selou

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as afinidades com a vanguarda paulista do grupo Música Nova39 . Nos festivais de música de 1968, o Tropicalismo, além de servir como rótulo comercial, possuía sua torcida e seus entusiastas entre os jurados. Ficava claro, pouco a pouco, que havia uma tentativa da indústria cultural em transformar as experiências poético-musicais do grupo baiano em uma fórmula reconhecível, no limite de tornar-se mais que um estilo, um gênero. No vácuo das polêmicas abertas por Caetano e Gil surgiam duas novas estrelas; Tom Zé (ganhador do Festival da TV Record de 1968) e Gal Costa.

"VOCÊS NÃO ESTÃO ENTENDENDO NADA": TROPICALISMO E VANGUARDA O Tropicalismo musical foi o campo que mais se serviu às teorizações em torno da idéia de linha evolutiva nas artes brasileiras. Ou seja, em torno do movimento revitalizou-se a discussão do papel histórico, social e estético da vanguarda. Num trecho de um famoso debate promovido pela Revista de Civilização Brasileira, Caetano Veloso dizia, já em 196640 : Ora, a música brasileira se moderniza e continua brasileira, à medida que toda informação é aproveitada (e entendida) da vivência e da conpreensão da realidade brasileira (...) Para isso nós da música popular devemos partir, creio, da compreensão emotiva e racional do que foi a música popular brasileira até agora; devemos criar uma possibilidade seletiva como base na criação. Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela, não só temos que sentí-la mas conhecê-la. É este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerente com ela. Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação (...) Aliás João Gilberto, para mim, é exatamento o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular.

Assim definido, o termo linha evolutiva pode sugerir uma temporalidade própria da idéia de vanguarda: a reafirmação, cultural e ideológica, de rupturas, como eixos determinantes da relação arte-sociedade. O surgimento e o impacto do Tropicalismo nos meios de comunicação e a hegemonia que o campo musical acabou ganhando no conjunto do movimento, a partir de meados de 1968, catalisaram os interesses dos representantes da última vanguarda histórica brasileira: o concretismo. Sentindo aproximação com sua teoria da informação, assim como da discussão formalista da obra, os concretistas pioneiros do grupo Noigrandes realizaram, em 1968 - uma definitiva aliança com os músicos tropicalistas. Na verdade desde 1966, sobretudo após a declaração de Caetano sobre a "linha evolutiva" no já citado debate, os representantes da vanguarda paulista na poesia, na crítica e na música já vislumbravam algumas possibilidades de união com o grupo baiano. Com o lançamento do livro-manifesto de Augusto de Campos, O Balanço da Bossa, essa convergência se torna pública e assumida41 . Ao lado do LP Panis et Circensis, o livro organizado por Augusto de Campos tem uma importância fundamental para o processo que estudamos, na medida em que se afirma não só como manifesto em favor do Tropicalismo (ainda que seus artigos tenham intenções críticas), mas também como programa de criação estética e projeto de memória histórica com base nos seguintes marcos históricos das vanguardas: 1922, 1956, 1968. Modernismo Antropofágico (osvaldiano), Poesia Concreta e Tropicalismo. Ao relacionar tudo que não era Bossa Nova e Tropicalismo como TFM (Tradicional Família Musical), Augusto de Campos consegue não só dar uma isomorfia aos adversários, como delimita a própria tradição tropicalista, colocando-a dentro de um esquema clássico de afirmação das vanguardas históricas42. Campos afirma o Tropicalismo em duas instâncias básicas: 1) Plano teórico/ histórico-literário (elaboração de uma paideuma (nova tradição) e de uma historiografia revisionista); 2) Plano técnico (estabelecimento de regras e procedimentos de composição). Estes dois planos se aliavam à consolidação de um evento fundador (o III Festival de MPB); um "panteão" (Caetano e Gil) e a afirmação de obras-primas (Alegria Alegria e Domingo no Parque). O tom geral do livro-manifesto converge para a personalidade e para os procedimentos artísticos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, heróis fundadores dessa nova modernidade. Gilberto Mendes, músico signatário do manifesto Musica Nova, e um dos autores presentes na coletânea, vê no artista de vanguarda uma espécie de herói civilizador, dotado de uma consciência de ruptura43. Essa consciência tiveram Caetano e Gil, que souberam sentir o momento exato em que a própria massa espera que o artista não se repita. Essa consciência faltou a Vandré, por exemplo, a quem escapou este paralelo com sua própria estória: assim como o boiadeiro troca o cavalo pelo caminhão, o violeiro acaba seduzido a trocar a viola pela guitarra elétrica.

Em outro artigo da coletânea, intitulado O passo à frente de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Augusto de Campos vê nos dois artistas os continuadores do novo aberto por Tom Jobim e João Gilberto com a Bossa Nova. Para o poeta paulista44 : (Sobre Alegria, Alegria): "Caetano não foi o vencedor do festival. Mas venceu todos os preconceitos do público, acabando com a `discriminação' musical entre MPB e `jovem guarda' (...) Ainda sendo, com `Domingo no Parque', a mais original, acabou também como a mais popular das composições do festival.

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No artigo A explosão de `Alegria, alegria', Augusto de Campos vai mais longe e considera que Alegria, alegria tem uma importância histórica semelhante à Desafinado45 . (Alegria, alegria é um) desabafo-manifesto ante a crise de insegurança que, gerando outros preconceitos, ameaçava interromper a marcha evolutiva da MPB (...) Furando a maré redundante de `violas' e `marias' a letra de Alegria traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada isomorficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentada.

Comparando aquela canção com a Banda (de Chico Buarque), Augusto de Campos provoca, dizendo que a primeira descreve o caminho inverso da segunda46: Das duas marchas esta mergulha no passado, na busca evocativa das purezas das bandinhas e dos coretos da infância. `Alegria' ao contrário, se encharca de presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da comunicação moderna, urbana, do Brasl e do mundo.

E finaliza retomando os diversos manifestos concretistas e o manifesto Música Nova47 : É preciso acabar com essa mentalidade derrotista, segundo a qual, um país subdesenvolvido só pode produzir arte subdesenvolvida.

Quando o grupo baiano assume o Tropicalismo e radicaliza seus procedimentos, Augusto de Campos acirra os termos do debate. No artigo É proibido proibir os baianos, de 1968, escrito sob o impacto dos acontecimentos do III Festival Internacional da Canção, quando Caetano enfrentou as vaias com seu famoso discurso dirigido à platéia e ao juri48, Campos reafirma as definições do termo Tropicália. Para ele, a Tropicália é um" neo-antropofagismo" que supera a `macumba-pra-turistas' (termo oswaldiano), representada pela folclorização da arte. A Tropicália, por outro lado, supera o protesto banalizado: "Não adianta transformar Che em clichê". Conforme Campos, Caetano e Gil produziram um happening no III FIC49 : Em síntese, o artista dinamita o código e dinamita o sistema. Caetano, Gil e os Mutantes tiveram a inteligência e a coragem de lançar mais esse desafio e de romper, deliberadamente, com a própria estrutura de festival, dentro do qual os compositores tudo fazem para agradar o público, buscando na subserviência ao código de convenções do ouvinte a indulgência e a aprovação para as suas músicas `festivalescas'.

ALGUMAS QUESTÕES PARA A ANÁLISE Para finalizar, gostaríamos de sublinhar algumas questões que nos parecem pertinentes, apontando algumas problemáticas que ainda permanecem instigantes50. - Partindo do princípio que o Tropicalismo é um momento da reflexão sobre o papel da canção na sociedade brasileira, qual leitura podemos inferir a partir de suas obras em relação ao problema da linha evolutiva, freqüentemente associada ao movimento. - Qual seria o núcleo gerador daquilo que chamamos Tropicalismo: o pop-neo concreto-supra-sensorial (de Hélio Oiticica) ou o concretismo-construtivista da Poesia Concreta? Herdeiro da racionalidade construtivista, incrementada pela super-informação ou da modernidade despojada da bossa nova, incrementada pelo pop? Dadaísta? Kitsch? - Qual seria o telos histórico do Tropicalismo? Poderíamos situá-lo dentro da tradição da canção de massa, aberta às inovações desde sempre? Foi uma faceta da crise de expressão classista, notadamente uma fração intelectualizada da classe média, diante da modernização conservadora? Foi a última vanguarda moderna, já apontando para uma diluição das fronteiras entre gêneros e estratificações estéticas? Esboçou uma nova forma de engajamento que ampliou a noção de resistência (político-cultural) da música dos anos 70 e gerou uma nova subjetividade? Mitificado como última vanguarda brasileira, o Tropicalismo se beneficiou das próprias clivagens da indústria cultural que ele ajudou a problematizar. Não pode ser visto como puro senso de negócio a incorporação quase imediata do movimento (ao menos no campo musical), realizada pelo conjunto da indústria cultural. Ao problematizar o consumo da canção (e a canção enquanto consumo), o Tropicalismo abriu um leque de novas possibilidades de escuta, que a diretriz ideológica do nacional-popular, já em crise como gênero reconhecível pelo público, não mais comportava. Enquanto legado para a música popular, o Tropicalismo ajudou a incorporar tanto o consumo do material musical recalcado, pelo gosto da classe média intelectualizada, como o do ruído, do exagero e arcaísmos colocados lado a lado, em valor, aos sussurros e às sutilezas expressivas desenvolvidas pelas tendências socialmente mais valorizadas da música popular. Neste ponto cabe um quase-axioma: quanto mais massivo o campo artístico mais ambíguo o sentido histórico, estético e ideológico objetivado nas suas obras. Por isso, o Tropicalismo, criado e desenvolvido no turbilhão de mutações pelas quais passava a indústria cultural brasileira, foi tudo aquilo e mais alguma coisa "sem perder o tom". A dificuldade do historiador está em entender os diversos sentidos e tradições da "geléia geral" tropicalista e estabelecer com rigor as temporalidades em jogo e o papel singular de cada protagonista e de cada campo de expressão. E isso não é uma tarefa muito simples, principalmente quando pesquisamos acontecimentos tão recentes e vivos, operados mais no campo da memória do que no da história.

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Mumificar o Tropicalismo, num conjunto de mitos historiográficos apologéticos, como a mídia (mesmo a mais sofisticada) muitas vezes tem feito, nos parece a pior homenagem a um movimento de intenções dessacralizadoras, ainda que visceralmente ambíguo em relação ao seu material de inspiração (aliás, talvez sua riqueza estética resida justamente nesta contradição). Como ponto de partida, as análises devem encarar, em todas as suas contradições, o legado maior do Tropicalismo: a incorporação com intenções de crítica cultural, dos impasses e dilemas gerados pela modernização da sociedade brasileira, no universo do consumo. Ajudando a problematizar (e quando não, a confundir) a própria dicotomia entre cultura versus consumo, as relíquias do Brasil, altamente valorizadas, já podem ficar expostas nas melhores lojas; vendidas não como antigüidades exóticas, mas em meio às últimas novidades do mercado... Explosão ou implosão tropicalista?

NOTAS 1 Caetano e Gil apresentaram, respectivamente, as músicas Alegria, Alegria (4ºlugar) e Domingo no Parque (2ºlugar). 2 A ambiência Tropicália foi apresentada no MAM/RJ, em 1967. Há uma polêmica se Caetano teria visto pessoalmente esta instalação. De qualquer forma, a canção Tropicália teria sido inspirada, em parte, pelo trabalho e pelas proposições de Oiticica e, em parte, pelo filme Terra em Transe. 3 FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo, Kairos, 1979.

[ Links ]

4 HOLLANDA, Heloisa B. Impressões de Viagem. CPC, Vanguarda, Desbunde. São Paulo, Brasiliense, 1979

[ Links ]

5 FAVARETTO, Celso. op.cit., p. 13 6 Idem, p. 23 7 HOLLANDA, H. B., op.cit., p. 62. 8 Idem, p. 55. 9 Idem, p. 74. 10 XAVIER, I. "Alegoria , modernidade , nacionalismo (Doze questões sobre cultura e arte). In Seminários, Rio de Janeiro, Funarte/MEC, 1984.

[ Links ] 11 SANTIAGO, S." Fazendo perguntas com o martelo". In Vasconcelos, G. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro, Graal, 1977. 12 VASCONCELOS, G. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro, Graal, 1977.

[ Links ]

[ Links ]

13 XAVIER, I. op. cit., p. 24 14 Idem, p.25 15 SCHWARZ, R. "Cultura e política: 1964-1969". In O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

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16 Aliás, neste caso a agressividade nem sempre foi simbólica, já que o público era fisicamente agredido e provocado a título de sair da sua passividade de espectador. 17 Schwarz elege Quarup, de Antonio Callado, como síntese de obra de arte portadora de consciência histórica, não porque fosse pedagógica mas

porque era crítica, no sentido de explorar as contradições do intelectual engajado num contexto autoritário. 18 O conjunto de textos seminais, dessa corrente, pode ser visto em CAMPOS, A. O balanço da Bossa e outras bossas. 5ªed., São Paulo, Perspectiva, 1993. [ Links ] 19 Uma análise muito instigante, que recoloca o problema da ambigüidade da ação cultural do tropicalismo, pode ser vista em MAMMI, Lorenzo.

"Erudito/Popular". In PAIVA, M. et alli (orgs.). Cultura: substantivo plural. Rio de Janeiro, Ed.34 / Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, pp. 185-191. [ Links ] 20 OITICICA, Hélio. Catálogo da Exposição na Whitechapel Gallery. Londres, 1969.

[ Links ]

21 FERREIRA, N. P." Tropicalismo: retomada oswaldiana". In Revista Vozes, ano 66, 10, dez/1972.

[ Links ]

22 OITICICA, Hélio. "O aparecimento do supra-sensorial na arte brasileira". 1968 In Arte em Revista nº 7, ago. 1983, pp. 40-42.

[ Links ]

23 Depoimento a Augusto de Campos In CAMPOS, A. (org). op. cit., pp.204-205. 24 Grupo Oficina. O Rei da Vela. Manifesto. In Arte em Revista nº 1, 04 de setembro de 1967, pp. 62-63.

[ Links ]

25 Idem. 26 Idem. 27 "O som universal (de Caetano e Gil)". In Folha de S.Paulo, vol.02, nº 3, 12/out/1967.

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28 MACIEL, L.C. Geração em transe. Memórias do tempo do Tropicalismo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996. 29 NETO, T. Os últimos dias de Paupéria. In SAILORMOON, Wally (org.). Rio de Janeiro, Eldorado, 1973, pp. 309-310.

[ Links ] [ Links ]

30 Entres os artigos que traduzem a polêmica inicial sobre o Tropicalismo, destacamos os seguintes: SANT'ANNA, A.R. "Tropicalismo: abre as asas sobre nós". In Cad.B, JB, março de 1968, republicado em Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis, Vozes, 1978, pp.88-95. [ Links ] CHAMIE, M. "O trópico entrópico da tropicália". In Suplemento literário, OESP, 06/abr/1968, p. 4 [ Links ] LOUZADA FILHO, O.C. "O contexto tropicalista". In Aparte, nº2, mai-jun 1968. [ Links ] 31 BOAL, A. O que você pensa da arte de esquerda? Manifesto da I Feira Paulista de Opinião, 1968.

[ Links ]

32 Idem. 33 PAIANO, E. Do `Berimbau ao Som Universal. Dissertação de Mestrado, ECA/USP, 1994, p. 146. 34 Folha de S.Paulo, 06/10/67.

[ Links ]

[ Links ]

35 CAMPOS, A. op. cit., 1993, p. 207. 36 ASSIS, F. de. In Revista Realidade , nº7, dez/1968.

[ Links ]

37 MILLER, S. "O universalismo e a MPB". In Revista de Civilização Brasileira, vol. 04, nº 21/22, set/dez. 1968, pp. 207-221.

[ Links ]

38 Idem. 39 O grupo Musica Nova, surgido por volta de 1963, era composto por jovens maestros e compositores da vanguarda paulista da música erudita, que

buscavam um novo código e um novo mateiral sonoro para compor suas peças. Destacam-se Rogério Duprat, Gilberto Mendes, Julio Medaglia, entre outros. 40 FAVARETTO, C. op. cit., p. 23. 41 Para um aprofundamento das relações entre concretistas e tropicalistas ver: SANTAELLA, M.L. Convergências: poesia concreta e tropicalismo. São

Paulo, Nobel, 1984.

[ Links ]

42 SIMON, I. M." Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969)". In Novos Estudos CEBRAP, nº 26, março 1990. [ Links ] 43 CAMPOS, A. op.cit, p.135. 44 Idem, p.145. 45 Idem, p.152. 46 Idem, p.153. 47 Idem, p.156. 48 Durante a música É proibido proibir, apresentada no TUCA em São Paulo, no final de setembro de 1968, Caetano Veloso proferiu um violento

discurso criticando a estética da esquerda nacionalista e a estrutura dos festivais da canção. 49 Idem, p.266. 50 Num certo sentido o trabalho do professor Celso Favaretto, citado anteriormente, já equacionou boa parte destas questões. De qualquer modo, seria interessante revisitá-las, à luz de uma pesquisa documental mais detalhada, sistemática e abrangente 50.

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