Turismo e patrimônio cultural

September 7, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Patrimonio Cultural, Turismo, Turismo Cultural
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Introdução

Turismo é o deslocamento de pessoas de seu domicílio cotidiano, por no mínimo 24 horas, com a finalidade de retorno, segundo definição da OMT (Organização Mundial de Turismo). Por que as pessoas se deslocam, aos milhões? Pelas mais diferentes razões: os objetivos da viagem podem ser o descanso, a diversão, mas também o trabalho, o aprendizado ou o aperfeiçoamento profissional, entre muitos outros. Todas essas movimentações implicam contato humano e cultural, trocas de experiências entre os viajantes e a população local. Essa parece ser a essência mesma do turismo, pois, principalmente com as novas tecnologias, quase tudo se poderia fazer sem sair de nosso ambiente, tanto descansar quanto aprender uma língua estrangeira. Em princípio, portanto, as pessoas só decidem viajar se e quando querem entrar em contato com outros costumes e maneiras de viver, com outros povos e culturas, com outras realidades. No campo dos estudos sobre o turismo, o turismo cultural é definido de maneira estreita como aquele segmento que trata das viagens de estudo, um item importante na pauta de alguns países, especialmente os de língua inglesa, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Contudo, a cultura não se restringe ao estudo formal, ao contrário: todas nossas ações fazem parte da cultura. Vamos lembrar de um caso muito comum e prosaico: a viagem à praia. À primeira vista, é apenas a busca do sol, da água e do descanso que move as pessoas. Mas seria só isso mesmo? Há todo um amplo espectro de aspectos culturais que levam à viagem: a casa na praia, com sua rusticidade caiçara; o churrasco ao ar livre; a paisagem natural e histórica do lugar; o contato e o bate-papo descontraído com os “nativos”; a água de coco do lugar, os pescados típicos, os quitutes feitos à maneira da casa; os passeios pelos recantos únicos daquela paragem... Assim, de uma forma bem ampla, pode-se dizer que todo turismo é cultural. No entanto, é necessário problematizar um pouco isso que poderia parecer óbvio, de um ponto de vista puramente teórico. O fato é que o turismo de massa trouxe novas formas de se fazer turismo sem que se tenha, efetivamente, que se sair de seu próprio ambiente. A idéia que queremos apresentar aqui é a de que não é o 7

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que se vê, mas o como se vê, que caracteriza o turismo cultural. Será que um grupo que se propõe a ver a Europa toda em duas semanas, às pressas, em ônibus nos quais fala-se apenas o português, as paisagens vistas apenas através dos vidros, (que funcionam quase como escudos contra os cheiros, gostos e cores das ruas) faz algum tipo de turismo cultural? Nas rápidas paradas, as pessoas são avisadas que daquele cartão postal deve-se tirar fotos, seja ele a torre Eiffel, a torre de Londres, a muralha da China ou a sereiazinha de Hans Cristian Anderson, em Copenhague. Dispara-se o obturador, perpetua-se a imagem e prova-se aos amigos e familiares que lá se esteve, o que, de resto, é testemunhado pelas lembranças made in Taiwan dos mesmos estereótipos fotografados (oh, quantas miniaturas de torre Eiffel adornam geladeiras ao lado de pingüins) e, generosamente dados de presente a quem ficou. Pode-se e deve-se, portanto, discutir se o fato em si do deslocamento já constitui um fato cultural. Talvez seja mais adequado observar que o turismo cultural efetiva-se quando da apropriação de algo que possa ser caracterizado como bem cultural, seja o que for. Antes que nos entendam mal, não estamos nos estamos nos referindo a apropriar-se de um cinzeiro num café parisiense, um coral em Fernando de Noronha ou um santo barroco sobrevivente em uma igreja de Ouro Preto. Uma caminhada demorada pelo Quartier Latin, em Paris, pode ser culturalmente mais expressiva que uma visita burocrática ao Museu do Louvre (e seguramente mais do que uma tarde de compras no Magazin Printemps), da mesma forma que simples feijão com arroz num pequeno restaurante freqüentado por baianos, na Baixa do Sapateiro, em Salvador, pode nos ajudar a entender mais a cidade do que um vatapá saboreado na companhia de uma legião de turistas. Chegamos então ao ponto do que é e do que pode ser considerado patrimônio cultural. Poderíamos mesmo dizer que patrimônio cultural é tudo aquilo que constitui um bem apropriado pelo homem, com suas características únicas e particulares. Enquanto um sanduíche do MacDonald’s busca ser rigorosamente igual em todo o mundo, dos ingredientes básicos ao tempero, da forma de servir aos acompanhamentos, um mesmo peixe pode ser preparado, à sua maneira, por diferentes cozinheiros: embrulhado em folhas de banana, no litoral paulista; com leite de coco e azeite de dendê no litoral baiano; cozido lentamente em panelas de barro nas moquecas capixabas; como filé, na manteiga, acompanhado de molho de alcaparras em restaurantes elegantes e simplesmente frito “a doré”, na beira da praia. Tanto o hambúrguer do Mac quanto o peixe podem ser vistos como bens culturais. O sanduíche do Mac, porém, representa um bem cultural global, padronizado, que passa a idéia de que as pessoas viajam, mas não saem do lugar. O pescado, neste exemplo, é uma iguaria local e é esta particularidade que muitos

Introdução

de nós buscam quando vão viajar (ainda que possamos, também, refugiarmo-nos no sanduíche, quando cansamos da imersão na cultura local). Às vezes, a solenidade atribuída ao termo patrimônio sugere que dele façam parte apenas os grande edifícios ou as grandes obras de arte, mas o patrimônio cultural abrange tudo que constitui parte do engenho humano e, por isso, pode estar no cerne mesmo do turismo. Dessa forma, podemos e devemos ampliar muito a nossa compreensão do conceito, com todas as implicações decorrentes, das epistemológicas às práticas. O turismo tende a considerar o patrimônio cultural como aquele que se volta para certos tipos de atividades mais propriamente “culturais”, tais como as visitas a museus, a cidades históricas ou a roteiros temáticos, como a rota dos queijos e dos vinhos, por exemplo. Este é um aspecto importante do Turismo moderno, pois os maiores países, regiões e cidades receptoras de turistas podem ser identificados como destinos de turistas ávidos por cultura, como o é o caso da Itália, o país como maior número de patrimônios tombados pela Unesco, mas também da França, Egito, Grécia, Turquia e Grã-Bretanha. No Brasil, este é o caso das cidades coloniais de Minas Gerais e das missões jesuíticas no Sul. Para discutir essas questões indicamos os capítulos sobre Museus e Patrimônio Histórico que mostram como, também em nosso país, os bens culturais podem constituir-se em importantes elementos de atração turística e, porque não, de conscientização social. Ainda que a política de patrimônio tenha preservado muito desigualmente os bens culturais, com o predomínio do grandioso e rebuscado em detrimento daquilo que representava os costumes e anseios de muitos, não cabe dúvida que o contato direto com museus, edifícios e artefatos históricos permite uma salutar abertura para a variedade cultural, no passado e no presente. Neste volume, procuramos reunir textos que mostrassem também outras faces, às vezes menos conhecidas, do patrimônio cultural e que se relacionam, intimamente, com o turismo, como as cidades e as festas. Cerca de um terço dos turistas estrangeiros visitam a cidade do Rio de Janeiro, e grande parte das viagens turísticas dão-se por ocasião de festividades como o Carnaval, mas também muitas outras, como é o caso das festas juninas, em diversas regiões do Brasil. Em certo sentido, o folclore pode ser considerado como a expressão cultural mais legítima de um povo, sua alma expressa de forma figurada em mil histórias e rituais que, além de encantarem o turista, permitem que se trave contato direto com as muitas manifestações de identidade. Neste âmbito, inserem-se os eventos culturais como fator de movimentação turística, compreendendo ações educacionais, comunitárias e sociais que visam a promover o maior acesso do cidadão aos bens e serviços da cultura. 9

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Um grande vetor de viagens turísticas, em um país tão urbanizado como o Brasil, são as fugas da vida urbana, em direção aos parques ou ao retiro rural. De um lado, a natureza preservada com suas características próprias nos grandes parques permite que o turista entre em contato e reflita sobre o meio ambiente, com forças indomadas e apenas parcialmente controladas pelo homem. Trata-se de uma experiência cultural notável para o indivíduo acostumado com uma natureza ausente, ou totalmente submetida aos desígnios humanos. A forma pela qual nos apropriamos da natureza, a maneira pela qual tentamos inseri-la em nossa vivência, tem a ver com a nossa natureza e vivência, como indivíduos e como seres culturalmente construídos. Por outro lado, o turismo rural fornece a possibilidade de vivenciar o dia a dia do campo, a ordenha, a caminhada, a quietude e o senso de tempo e distância que já se lhe escapam na vida conturbada cotidiana do citadino. Em alguns países, a arqueologia constitui importante estimulador de viagens turísticas, como é o caso, talvez mais famoso, do Egito, tão visitado por interessados nos vestígios faraônicos. Também em nosso país, a arqueologia pode constituir um atrativo turístico, em especial se considerarmos as raízes indígenas de nossa cultura e de nosso povo. Mais de um terço da população brasileira possui alguma ascendência ameríndia e nossa língua, costumes, alimentos e muito mais estão impregnados de elementos indígenas. Este volume procura, portanto, por meio de textos escritos por especialistas e harmoniosamente integrados, apresentar uma visão original e criativa de questões discutidas até agora apenas em textos estrangeiros e sobre problemáticas às vezes bem distantes das nossas. Uma leitura atenta deste livro nos permitirá questionar, por exemplo, projetos litorâneos preocupados em criar “cancuns” brasileiras. Será que um país com um patrimônio cultural tão variado como o nosso precisa criar paraísos artificiais como os caribenhos (que têm a inegável vantagem de serem mais próximos dos principais centros de oferta de turistas) ou deveria investir na busca de outro tipo de turista? Não seria o caso de explorar os aspectos com os quais levamos nítida vantagem comparativa? Este livro preocupa-se em problematizar a cultura como fator essencial da prática e da reflexão sobre o turismo. Os capítulos mostram, cada um à sua maneira e sobre os diversos temas abordados, como turismo e cidadania são termos, no fundo, intimamente relacionados. As viagens permitem não apenas conhecer outras realidades, mas perceber e valorizar a grande e rica diversidade cultural brasileira. A cidadania só se constrói com o reconhecimento e respeito pelas muitas formas de se viver e de se pensar o mundo e, neste livro, procura-se mostrar como o patrimônio cultural está presente em toda parte, não para ser simplesmente consumido pelo turista, mas para servir-lhe de elemento de reflexão. Para

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que não volte para casa apenas bronzeado, mas modificado, com a cabeça cheia de lembranças que lhe façam refletir sobre sua vida e sobre nossa sociedade. Em seguida, e também de forma original, procura-se mostrar que a interação com as comunidades e grupos sociais visitados é imprescindível, tanto para a fruição do passeio, como para o crescimento do cidadão turista. No contexto dos cursos de turismo, este volume vem, assim, suprir uma lacuna, ao tratar de um aspecto essencial, mas ainda pouco explorado: o patrimônio cultural. A abordagem tampouco é usual, pois toma-se a cultura como componente central dos deslocamentos e como importante instrumento de conscientização social. O turista atento à cultura apreciará melhor seus interlocutores locais e seus costumes, aproveitará melhor seu lazer e poderá valorizar a diversidade cultural, contribuindo, desta forma, para a formação de uma cidadania mais crítica. Não serão apenas consumidores passivos da cultura, mas poderão interagir com as diversas manifestações culturais. Os capítulos aqui reunidos contribuem para uma prática turística, a um só tempo, mais prazerosa e mais criativa.

Pedro Paulo Funari e Jaime Pinsky

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