Turismo e Políticas Públicas em torno dos fenómenos da requalificação urbana e gentrificação

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Turismo e Políticas Públicas em torno dos fenómenos da requalificação urbana e gentrificação Fernando Cruz Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Em Portugal e no Brasil, os projetos de enobrecimento urbano, têm implícito a reativação do espaço urbano, proporcionando, deste modo, um retorno ao centro das cidades. Estes processos têm subjacente o fomento da segurança e do comércio no espaço público. Propomos neste artigo analisar as representações de organizadores e patrocinadores de eventos em espaços públicos nas cidades do Porto e Vila Nova de Gaia (Portugal) e Barcelona (Espanha) sobre o tipo de eventos que organizam ou patrocinam e os destinatários dos mesmos, para concluirmos pela clara opção do fenómeno turístico em detrimento dos habitantes da cidade, onde os poderes públicos assumem clara relevância na regulamentação desse mesmo espaço. Palavras-chave: requalificação urbana, gentrificação, turismo.

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INTRODUÇÃO Ao discurso da cidade morta e perigosa se contrapõe o processo de recuperação de algumas áreas centrais degradadas e com potencial simbólico para a cidade. No decorrer da década de 1970, o turismo cultural foi identificado com o fenômeno da gentrificação ou enobrecimento das cidades. A requalificação urbana através da preservação histórica rompeu com estratégias anteriores de demolição para voltar a construir, permitindo a manutenção da identidade e do orgulho da comunidade. Se tratou de conceber uma alternativa à criação de museus, cada vez maiores, para satisfazer as necessidades culturais locais e compreender as implicações do desenvolvimento da cidade pósindustrial, em torno de uma economia simbólica. Em alguns países, o processo de gentrificação concentrou as categorias profissionais de maior rendimento em alguns bairros das comunas (centro) com a consequente exclusão das categorias sociais mais baixas, através de uma política de preços fundiários e imobiliários, transformação do parque habitacional e da estrutura comercial ou mesmo, dos equipamentos públicos. Em Portugal e no Brasil, os projetos de enobrecimento urbano, têm implícito a reativação do espaço urbano, proporcionando, deste modo, um retorno ao centro das cidades. Estes processos têm subjacente o fomento da segurança e do comércio no espaço público.

OBJETIVOS Como objetivos da pesquisa e deste artigo indicamos o seguinte: - Conhecer os objetivos, destinatários e motivações dos organizadores e patrocinadores na organização de eventos em espaços públicos nas cidades do Porto, Vila Nova de Gaia (as duas, em Portugal) e Barcelona (Espanha).

METODOLOGIA Procedemos à realização de doze entrevistas semidiretivas e individuais tendo aplicado quatro em cada espaço em estudo. Procuramos entrevistar responsáveis ou elementos de AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

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instituições – públicas, privadas e associativas – que integrassem a organização de eventos públicos nos locais objeto de estudo (Avenida dos Aliados, na cidade do Porto; Cais de Gaia, na cidade de Vila Nova de Gaia; Ramblas, na cidade de Barcelona). De qualquer forma, abrimos uma exceção por local ao entrevistar pessoas que sem terem participado na organização de eventos públicos, contribuem de alguma forma para a dinamização dos mesmos (Caves Sandeman, no Cais de Gaia e Café Guarany, na Avenida dos Aliados, por exemplo). As entrevistas tiveram em média uma duração de trinta minutos, à exceção da entrevista do responsável da Associação de Bares da Zona Histórica que teve uma duração aproximada de sessenta minutos. Após a gravação e transcrição das entrevistas, procedemos à respetiva análise de conteúdo. A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise que toma por objeto qualquer classe de “texto”. Um texto é então qualquer forma expressiva produzida com algum tipo de intenção comunicativa e que em consequência se ajusta a algum tipo de intenção intersubjetiva. A análise de conteúdo toma o texto como "pretexto" para estudar as convenções socioculturais dos sujeitos entre os que circula e suas posições sociais em relação ao espaço comunicativo. (Rada, 2005: 54) O pressuposto básico da análise de conteúdo consiste na objetivação do assunto ou tema a analisar. (Romero, 1991: 97) A análise de conteúdo implica uma seleção das unidades de análise, tendo em conta, entre outros, o objetivo, a quantidade de material, o tempo de que se dispõe para a elaboração do trabalho e o tipo de material utilizado. (Romero, 1991: 98)

RESULTADOS No âmbito das representações dos organizadores ou dos patrocinadores institucionais, a realização dos eventos quer no espaço público, quer no centro comercial, por nós estudados, revelam que os objetivos são na sua maioria económicos e socioculturais. Os domínios culturais e sociais surgem como uma mais-valia na prossecução de objetivos económicos e turísticos.

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“por um lado fazer que as pessoas desfrutem de uma forma diferente a rua e que a desfrutem pois os que trabalham, aqueles que vêm a ela e também os que aí vivem. É um pouco reunir toda esta gente e dinamizar a zona, é uma forma de fazer que as pessoas façam sua a rua e portanto fazer com que a zona seja mais… tenha mais participação cívica” (Xavi Masip i Pesquer, Presidente da Associação de Amigos, Vizinhos e Comerciantes da Rambla) Como excepção aos objetivos económicos e turísticos, aparecem-nos dois eventos, designadamente a atividade da Subcomissão para a Reforma da Lei Eleitoral, em Barcelona e a Exposição de Equipamentos dos Bombeiros Voluntários dos Carvalhos, no Arrábida Shopping. Sobre esta última atividade podemo-nos interrogar se efetivamente estará fora do âmbito comercial, uma vez que se não era esse o intuito da participação da corporação de bombeiros, já o seria por parte da Administração do Arrábida Shopping, ao procurar oferecer uma atividade de cariz social e cultural, aumentando desta forma a procura comercial deste espaço. “O objetivo da nossa parte seria passar um bocado uma imagem dos bombeiros que não só para apagar os incêndios mas que são para criar também digamos uma cultura de segurança, uma sensibilização para a segurança” (Ricardo Magalhães, Comandante da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários dos Carvalhos) Os objetivos turísticos são, por outro lado, bem evidentes na maioria dos eventos organizados no espaço público, mas já não tão relevantes no âmbito de um shopping comercial, como o Arrábida Shopping. “O objetivo é que os gigantones saiam segundo um critério artístico e um sentido, uma razão. E por alastramento, que se consiga da Praça Castela que está aqui na Rua Pelayo até à Praça S. Jaime, passando pela Rambla cerca de 80.000 e 90.000 espetadores para ver o desfile.” (Joan Manel Camps Jaraba, Técnico de Atividades Tradicionais no Instituto de Cultura do Ayuntamiento de Barcelona)

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Fig. 1 – Festas de La Mercé, nas Ramblas (Barcelona), em 24 de setembro de 2010.

Porém, outros objetivos estão presentes nas representações dos organizadores dos diversos eventos, objeto de entrevista, como aqueles relacionados com critérios artísticos ou estéticos, ambientais, religiosos, éticos e de lazer ou ócio. “O projeto Homem T que tinha o nome (…) Homem T - um projeto felicidade (…) tinha três objetivos, juntos, e que de alguma maneira não era só fazer um projeto de arte pública, mas sim fazer um projeto de arte pública, criar fontes de financiamento através do projeto em si mas mais importante de tudo isso era criar uma sinergia com o público e tentar fazer com que o público refletisse sobre o que é o ser humano, ou seja, nós seres humanos achamos que somos eternos, achamos que somos (…) infalíveis e no fundo se calhar não somos nada disso.” (Jorge Oliveira, Presidente da Direção do Espaço t – Associação para o Apoio à Integração Social e Comunitária)

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Fig. 2 – Projeto Homem T, na Avenida dos Aliados (Porto), em 18 de julho de 2009.

Quanto às representações dos organizadores e patrocinadores institucionais sobre os destinatários dos eventos que organizam, verificamos um contraste entre aqueles que são realizados no espaço público e aqueles que são organizados num centro comercial. Deste modo, enquanto nos eventos organizados no Arrábida Shopping não há públicos definidos, isto é, destinam-se ao público em geral, ao nível dos espaços públicos procura-se normalmente atingir públicos específicos. A maioria dos que participam na organização de eventos no espaço público ou em espaços privados contíguos, assumem que os seus destinatários são os turistas, quer nacionais, quer estrangeiros. “Os turistas são todos os que nos visitam, todos os que têm interesse, sejam nacionais, ou estrangeiros. Todos os que têm interesse em conhecer, nós temos muito gosto em ensinar.” (Isabel Morais, Chefe do Enoturismo na Sogrape Vinhos)

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Fig. 3 – Visita guiada às Caves Sandeman, no Cais de Gaia, em 7 de fevereiro de 2009.

Barcelona é uma cidade em cujo centro histórico, nomeadamente nos bairros por nós estudados – Gótico, Raval e Dreta de l’Eixample – existem muitos turistas que deambulam pelos espaços públicos, ocupando bancos e esplanadas destes espaços. Daí que se compreenda que através da organização de eventos se pretenda incluir a participação da população residente. “é mais para os habitantes a participação no Festival que procuramos é mais para os habitantes, para as pessoas que trabalham, para os de Barcelona do que para os turistas. Os turistas já vêm e encontram atrativos na Rambla.” (Xavi Masip i Pesquer, Presidente da Associação de Amigos, Vizinhos e Comerciantes da Rambla)

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Fig. 4 –Estátuas humanas nas Ramblas (Barcelona), em 28 de julho de 2009.

Por último, queremos ainda chamar a atenção para o fato dos eventos organizados nos espaços públicos não serem normalmente organizados para as famílias, mormente aquelas que incluam crianças, ao nível das representações. Apenas um dos nossos entrevistados relativamente ao Desfile de Gigantones nas Festividades da Nossa Senhora da Misericórdia, em Barcelona, assumiu claramente que os destinatários seriam, em primeiro lugar, as famílias. “Público familiar. Públicos familiares, isto é, pais e mães com filhos, avós… mas um público familiar. O destinatário seria a cidade de Barcelona mas o alvo seria o público familiar.” (Joan Manel Camps Jaraba, Técnico de Atividades Tradicionais no Instituto de Cultura do Ayuntamiento de Barcelona) Quanto às motivações para a organização de eventos quer nos espaços públicos, quer no Arrábida Shopping, se destaca a categoria ação/dinamização na maioria dos eventos.

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Verificamos a vontade de agir no âmbito social, seja nos espaços públicos, seja em espaços privados de acesso público. “A indignação, o cansaço, saem-me as lágrimas, estou no limite… [com] as pessoas que se queixam e não fazem nada.” (Maurízio Pisu, Coordenador da Subcomissão para a Reforma da Lei Eleitoral) Por outro lado, as motivações se fundam muitas vezes na tradição e na memória, sobretudo, nos eventos realizados no espaço público. “a festa começa à meia-noite com a largada do fogo. Cerca da meia-noite e meia, mais ou menos, termina o fogo e então depois as pessoas deslocam-se aos milhares de Vila Nova de Gaia para o Porto e então depois aí no Porto, em sítios emblemáticos como são as Fontainhas, como é o Castelo do Queijo, como é a Boavista, então aí, as pessoas na rua ou até mesmo ali nas zonas ribeirinhas, em Massarelos, aqueles bailes de rua em que as pessoas se divertem ao som de um conjunto que num palco debita som da melhor forma que sabe e que pode e fruto daquilo que lhes é colocado à sua disposição.” (Paulo Peres, Adjunto do Vereador do Turismo)

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Fig. 5 – Fogo de artifício no Rio Douro, visto do Cais de Gaia, em 24 de junho de 2011.

É ainda de referir as motivações para a organização de eventos, quer nos espaços públicos, quer nas áreas dos centros comerciais, como o Arrábida Shopping, que se baseiam em intuitos de divulgação e sensibilização. “ali com aquele espaço todo tudo é colocado, quer aqueles que estão mesmo em venda efetiva, não é, os, o último grito do livro, quer aquele que já está um bocado arrumado na prateleira do fundo e que é colocado lá também por causa…por isso, o objetivo aqui é mostrar mesmo toda a panóplia, toda a imensidão de livros que há” (Avelino Soares, Director da Feira do Livro) A mediatização das relações sociais, políticas, culturais e desportivas transformou a sociedade atual numa sociedade do espetáculo. Os eventos estudados, enquadrando-se ao nível do espetáculo, são sobretudo relações sociais mediadas por imagens onde tudo se transforma em representação. (Debord, 2008: 13-14) A sua acumulação nega, por conseguinte, a vida real. (Debord, 2008: 138)

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CONCLUSÃO Em conclusão, os eventos, objeto da nossa pesquisa, visam na sua maioria objetivos socioculturais, económicos e turísticos tendo como principais destinatários os turistas nacionais e estrangeiros. As principais motivações para a organização destes são então da índole da ação/dinamização, alguns dos quais para efeitos de preservação da tradição. Quanto às principais motivações para a realização de eventos, neste espaço comercial, são sobretudo do domínio da ação/dinamização. Ora os poderes públicos locais aparecem a apoiar e a promover estes eventos já que se trata de espaços regulamentados, surgindo nos mesmos no papel de organizador e/ou patrocinador. Por último, são espaços requalificados dava a elevada procura de turistas e visitantes pelo que os poderes públicos assumem não só a sua promoção como uma forma de criar uma marca (da cidade), a partir desses mesmos espaços como se fossem ícones.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DEBORD, G. A sociedade do espectáculo (10ª reimp.). Rio de Janeiro: Contraponto. 2008. RADA, Á. Etnografía y Técnicas de investigación antropológica. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia. 2005. ROMERO, A. Metodologia de análise de conteúdo. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 1991.

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