«Último quilómetro» da fruta e hortaliças

May 24, 2017 | Autor: Domingos Almeida | Categoria: Retail Management, Fruits, Vegetables
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«Último quilómetro» da fruta e hortaliças Os estudos em curso no Freshness Lab do Instituto Superior de Agronomia têm como objetivo compreender, quantificar e reduzir as perdas em loja e em casa dos consumidores. Uma melhor compreensão do «último quilómetro» é indispensável para que haja avanços significativos na redução de perdas de fruta e hortaliças e no aumento da satisfação do consumidor.

Domingos P.F. Almeida Instituto Superior de Agronomia, Universidade de Lisboa [email protected]

O que é o «último quilómetro»? O conceito de «último quilómetro» ou «last mile» aplica-se às etapas finais de redes de distribuição, nomeadamente entrega ao utilizador final. O conceito é válido para qualquer tipo de rede de distribuição, como por exemplo distribuição de dados nas telecomunicações ou de passageiros e mercadorias no caso dos transportes. Em todos os casos, o «último quilómetro» é caracterizado por uma redução da capacidade e da eficiência da rede de distribuição, relacionada com um grande aumento dos constrangimentos, com a falta de economias de escala que existem nas etapas a montante e com o aumento dos custos unitários da entrega. O conceito de «último quilómetro» foi introduzido na pós-colheita hortofrutícola por Almeida (2016) e está a ser operacionalizado num programa de investigação em curso no Freshness Lab do Instituto Superior de Agronomia. Os estudos em curso têm como objetivos compreender, quantificar e reduzir as perdas em loja e em casa dos consumidores. Uma melhor compreensão do «último quilómetro» é indispensável para a redução de perdas, para o adequado manuseamento e para a melhoria da satisfação do consumidor de fruta e hortaliças.

Onde começa e onde acaba o «último quilómetro»? Na moderna distribuição alimentar o «último quilómetro» começa com a receção da fruta e hortaliças no entreposto logístico e prolonga-se através da loja até casa do consumidor ou local de restauração. Nos circuitos curtos o «último quilómetro» começa com transporte para o local de venda (e.g., mercado ou local de entrega), inclui a exposição no local de venda e o subsequente transporte e manutenção em casa do consumidor ou restaurante. Em todos os casos, o «último quilómetro» da fruta e das hortaliças termina com a preparação para a ingestão. Por que é que o «último quilómetro» é uma realidade diferente? O «último quilómetro» hortofrutícola é uma realidade distinta do «primeiro quilómetro» e dos quilómetros intermédios. Uma analogia ajuda a entender as diferenças. Numa viagem de automóvel o condutor pode viajar a uma velocidade de cruzeiro na autoestrada – os quilómetros intermédios – e, nestas condições, o sistema de navegação e o computador de bordo preveem com precisão o tempo de viagem e o consumo de combustível. Mas todos conhecem por Nº 122 . outubro de 2016

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Em foco experiência própria a imprecisão das previsões no último quilómetro da viagem numa cidade como Lisboa. Pensar no «último quilómetro» da fruta e hortaliças da mesma forma como se consideram os quilómetros primeiro e intermédios só resulta por acaso. O «último quilómetro» requer uma nova operacionalização de conceitos adequada a esta realidade. Por que é importante? Importante para quem? Consumidor? Cadeia de retalho alimentar? Organização de produtores? Produtor de fruta e hortaliça? A resposta simples é: para todos os agentes da cadeia de abastecimento. É hoje minha convicção que uma melhor compreensão do «último quilómetro» é indispensável para que haja avanços significativos na redução de perdas de fruta e hortaliças e no aumento da satisfação do consumidor. Admito que esta resposta tão simples seja insatisfatória. Importa perceber em que medida a compreensão e melhoria do «último quilómetro» é relevante para cada um dos intervenientes na cadeia de abastecimento. Antes de mais, o «último quilómetro» é relevante para cada consumidor. É o consumidor que opera a parte mais importante, mais desconhecida e menos controlada do «último quilómetro», desde que compra no ponto de venda até que prepara a fruta e hortaliças para a ingestão. É também o consumidor que sofre perdas e desilusões quando o morango ganha bolor, quando o tomate não tem aroma e quando a polpa dos pêssegos e da pera está castanha. Este facto é normal, estas ineficiências fazem parte da natureza do «último quilómetro» das redes de distribuição. O que não é normal é o desconhecimento desta realidade. Aos consumidores apenas se pode exigir que tenham uma ideia geral, mas os operadores profissionais da cadeia de abastecimento não podem continuar a melhorar o desempenho da cadeia sem conhecer esta realidade. E conhecer, para os profissionais, começa com a medição. O que não se mede não se gere. É aqui que entra a moderna distribuição alimentar. O «último quilómetro» é importante para as empresas de distribuição moderna por três ordens de razões: é nos seus entrepostos logísticos que se inicia o «último quilómetro» de fruta e hortaliças, as suas lojas estão em contacto direto com milhões

de consumidores e, nas atuais condições, são os únicos agentes com capacidade de coordenar a cadeia de valor hortofrutícola. Por exemplo, importa entender por que razão no Reino Unido as perdas são proporcionalmente mais elevadas nas pequenas mercearias do que nos supermercados e hipermercados de maior dimensão (Quested & Johnson, 2009). E, antes de mais, importa conhecer esta realidade. Conhecemos a do Reino Unido, intuímos o que se passa por cá, cada um de acordo com a sua conveniência. Finalmente, as organizações de produtores que preparam a fruta e hortaliça para o mercado e os produtores são parte interessada no desempenho da cadeia. O que se passa no «último quilómetro» determina as suas vendas e proporção do valor que podem lograr captar. O «último quilómetro» da cadeia de abastecimento de fruta e hortaliças Fruta e hortaliças são produzidas em sistemas de produção primária com diferentes graus de especialização, de intensificação e de controlo. Após a colheita, seguem uma cadeia de abastecimento de comprimento variável e com um número variável de intermediários, até um ponto de venda. Aí são adquiridas pelo consumidor que as transporta e as mantém durante um período variável antes da preparação culinária ou consumo em natureza. Consideremos, para simplificar, a produção nacional destinada ao mercado nacional e distribuída por uma cadeia de retalho alimentar, com a configuração esquematizada na figura 1. O produtor fornece uma estrutura de preparação para o mercado (aqui designada, sem precisão, por Organização de Produtores), onde é feito o armazenamento, a seleção e o acondicionamento, antes de a fruta e as hortaliças serem entregues no entreposto de uma cadeia de distribuição. É a partir destes entrepostos que são fornecidas as lojas das insígnias dessa cadeia e é nas lojas que o comprador dos agregados familiares se abastece, transportando a fruta e as hortaliças para casa. Em Portugal, uma dúzia de entrepostos logísticos das cadeias de distribuição, entrega fruta e hortaliças em milhares de lojas, nas quais se abastecem milhões de consumidores. Estas ordens de grandeza permitem entender a natureza do «último quilómetro» da cadeia de abastecimento hortofrutícola.

C

M

Y

CM

MY

CY

CMY

K

Produtor

Organização de produtores

Entreposto de cadeia de distribuição

Loja

Consumidor

Figura 1 . Representação esquemática de uma cadeia de abastecimento hortofrutícola.

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Revista da Associação Portuguesa de Horticultura

Numa cadeia com esta configuração, o entreposto de distribuição é o local onde é efetuado o último controlo de qualidade e é também o último elo onde se pode, de forma adequada, controlar as condições. A partir do entreposto, ocorrem duas situações que dificultam a subsequente análise e otimização das condições que conduzem a perdas qualitativas e quantitativas de fruta e hortaliças: 1. A preparação das encomendas a entregar em cada loja, que implica a passagem de unidades logísticas (e.g. paletes) monoproduto para cargas multiproduto. 2. Uma enorme multiplicação dos «equipamentos» (e.g., condições de transporte para as lojas, condições de exposição na loja, veículos de transporte entre a loja e a casa, frigoríficos e despensas domésticas) e dos «manuseadores» (operadores de loja, compradores, vários membros do agregado familiar) do produto e uma redução do seu grau de especialização. A primeira destas situações conduz à impossibilidade prática de criar condições pós-colheita ótimas (e.g. temperatura e humidade relativa) para conservar cada um dos produtos. Passa então a trabalhar-se com um número reduzido de grupos de compatibilidade que se reduzem a dois na maioria das condições de loja e domésticas: temperatura ambiente e frigorífico. Cuprital SC_APH_210x148_AF.pdf

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A segunda situação, a grande quantidade de lojas, móveis de frio, despensas habitacionais e frigoríficos domésticos, impossibilita a uniformização de condições. O que estamos a fazer? Operacionalizar é desenvolver procedimentos específicos para representar uma realidade com base em factos empíricos. A realidade do «último quilómetro» hortofrutícola, pela sua diversidade e complexidade, está mal caracterizada. No entanto, sem uma adequada caracterização não é possível avançar com a análise das consequências dessas condições na depreciação da qualidade e nas perdas nem com a subsequente identificação e implementação de ações conducentes à melhoria. O programa de investigação no «último quilómetro» da fruta e hortaliças dará resposta às seguintes questões: 1.

A que condições e durante quanto tempo estão expostas a fruta e as hortaliças nos entrepostos logísticos, caixas de carga de transporte rodoviário, lojas, bagageiras de automóveis particulares e frigoríficos domésticos? 2. Qual a variabilidade destas condições e quais os períodos de residência? 3. Quais as consequências destes períodos e condições em termos de perdas ou de insatisfação do consumidor?

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Nº 121 . julho de 2016

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Em foco Que resultados temos? Estudos empíricos do programa de investigação do «último quilómetro» do Freshness Lab do Instituto Superior de Agronomia mostram que o consumidor pode transportar a sua fruta e hortaliças

em bagageiras que atingem 50 ºC (figura 2), que a temperatura nos seus frigoríficos é muito variável e normalmente acima do que seria ótimo (figura 3) e que isso tem consequências na qualidade e nas perdas.

Figura 2 . Variação da temperatura de bagageiras e cinco automóveis na região de Lisboa em quatro dias consecutivos no verão de 2016.

Figura 3 . Variação da temperatura em cinco frigoríficos domésticos na região de Lisboa. A evaporação de água é uma causa significativa de perdas. Para a perceber bem, o Freshness Lab determinou coeficientes de transpiração que permitem calcular a perda de água de frutos nas diversas condições de «último quilómetro». Por exemplo, a taxa de perda de água de abacaxi é muito mais elevada do que a pera, em igualdade de condições psicrométricas. Os valores determinados para os respetivos coeficientes de transpiração foram 98 a 274 e 21 a 65 mg kg-1 s-1 MPa-1. 24

Revista da Associação Portuguesa de Horticultura

A do tomate em rama é significativamente menor do que a do tomate redondo (Bernardo et al., 2016a). A velocidade com que ocorrem perdas efetivas no «último quilómetro» pode ser ilustrada através da figura 4 (Bernardo et al., 2016b). Lotes de tomate disponíveis no mercado nacional em março, abril e maio podem iniciar-se 2 dias após a receção no entreposto e evoluir rapidamente, implicando perdas nas lojas ou na casa com consumidor.

Figura 4 . Evolução da percentagem de frutos de tomate redondo descartado a duas condições de temperatura após a receção num entreposto.

0ºC

5ºC

10ºC

15ºC

20ºC

Figura 5 . Efeito da temperatura no morango. Cuvetes de morango após 7 dias a 0, 5, 10, 15 e 20 ºC.

Finalmente, estudos das temperaturas ao longo da cadeia de abastecimento de morango conjugados com estudos em condições controladas permitiu desenvolver modelos de previsão da probabilidade de perdas na casa do consumidor (figuras 5 e 6; Alcéo & Almeida, 2016a, b, c). Perspetivas A operacionalização e caracterização do «último quilómetro» são indispensáveis ao avanço da pós-colheita hortofrutícola no sentido da redução de perdas e da melhoria da satisfação do consumidor.

Referências Alcéo, R.G.A. & Almeida, D.P.F. 2016a. Último quilómetro da pós-colheita: temperatura em bagageiras de automóveis e frigoríficos domésticos. IX Simpósio Ibérico de Maturação e Pós-Colheita, Lisboa, Portugal, 2 a 4 de novembro. Alcéo, R.G.A. & Almeida, D.P.F. 2016b. Último quilómetro da pós-colheita: temperatura na cadeia de abastecimento de morango. IX Simpósio Ibérico de Maturação e Pós-Colheita, Lisboa, Portugal, 2 a 4 de novembro. Alcéo, R. & Almeida, D.P.F. 2016c. Evolução da qualidade e causas de perdas de morango a diferentes temperaturas: implicações para retalhistas e consumidores. Atas Portuguesas de Horticultura 26: 279287. Almeida, D.P.F. 2016. «Último quilómetro» da fruta e

Figura 6 . Modelo de previsão da probabilidade de perdas de morango na loja ou em casa do consumidor em função das condições da cadeia de abastecimento.

hortaliças: conceptualização e operacionalização. IX Simpósio Ibérico de Maturação e Pós-Colheita, Lisboa, Portugal, 2 a 4 de novembro. Bernardo, M., Fontes, J. & Almeida, D.P.F. 2016a. Último quilómetro da pós-colheita: perda de água de frutos em condições de loja simuladas. IX Simpósio Ibérico de Maturação e Pós-Colheita, Lisboa, Portugal, 2 a 4 de novembro. Bernardo, M., Fontes, J. & Almeida, D.P.F. 2016b. Último quilómetro da pós-colheita: causas de perdas de frutos e batata em condições de loja simuladas. IX Simpósio Ibérico de Maturação e Pós-Colheita, Lisboa, Portugal, 2 a 4 de novembro. Quested, T. & Johnson, H. 2009. Household food and drink waste in the UK. Final Report. Waste and Resources Action Programme, Banbury, Oxon, UK, 95 p. Nº 122 . outubro de 2016

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