Um belo prefácio de Viveiro de Castro a um belo livro que pretendo ler: \" Que temos nós com isso? \"

May 31, 2017 | Autor: L. Montans Braga | Categoria: Antropología filosófica
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“Que temos nós com isso?” Eduardo Viveiros de Castro.

Tive o prazer de conhecer Beatriz Azevedo quando ela assistiu um curso que Alexandre Nodari e eu demos no Museu Nacional em 2012, “Do matriarcado primitivo à sociedade contra o Estado e além. Cartografia da hipótese antropofágica”. Oswald de Andrade era, obviamente, o personagem principal — o convidado de honra, digamos assim — do curso.1 Beatriz nos ajudou imensamente, com seu conhecimento tão extenso como profundo da obra e da biografia de Oswald. Sempre que falhava nossa memória bibliográfica ou gaguejava nossa sapiência magisterial, ela estava lá para nos lembrar ou esclarecer. O livro que ora apresento dá uma ideia do tanto que ela terá contribuído para o curso, e muito mais. Antropofagia – Palimpsesto Selvagem é talvez a primeira leitura realmente microscópica do Manifesto Antropófago, texto fundacional para a sensibilidade cultural contemporânea, tanto “aqui dentro” como, cada vez mais, “lá fora”. O livro de Beatriz Azevedo é um close reading de valor histórico, didático e analítico inestimável. Em um verdadeiro trabalho arqueológico, a autora recobra muitas das fontes esquecidas ou ignoradas das abundantes alusões enigmáticas (sobretudo para o leitor de hoje) contidas no Manifesto; comenta e elucida linha a linha, aforismo a aforismo, esse texto extraordinariamente complexo, por baixo — palimpsesto — de sua concisão telegráfica e sua alegre ferocidade lapidar;2 destaca-lhe a arquitetura rítmica, verbal como visual, sua (a)gramaticalidade poética e sua radicalidade político-filosófica; persegue, na produção posterior de Oswald, os fundamentos, os desenvolvimentos, as explicações — no sentido literal de desdobramento do que estava implicado, implícito,

1 Quem sabe um dia esse curso vire um livro, se Alexandre Nodari tomar o leme que lhe cabe, por seu conhecimento muito maior que o meu da matéria oswaldiana. O curso percorreu o paideuma pré- e pós-antropofágico, partindo de Oswald mas retroagindo a Bachofen e Nietzsche, a Engels e Freud, e indo de Montaigne a Métraux e a Clastres, das Bacantes a El entenado, de Gabriel Tarde a Bataille ao Tiqqun e adiante...

2 Oswald seria o rei do Twitter, hoje. E como sabemos, antecipou o copyleft, com sua famosa licença para “traduzir, reproduzir e deformar em todas as línguas” seu Serafim Ponte Grande.

compactado — e as retomadas em modo dissertativo ou conversacional das teses, revolucionárias então como revolucionárias hoje e amanhã, enunciadas, ou melhor, anunciadas no Manifesto. O livro de Beatriz Azevedo, somando-se à já vasta “oswaldiana”, acrescenta-lhe uma camada de comentário destinada a se tornar referência obrigatória para todo estudante ou estudioso da obra deste que é, sem a menor sombra de dúvida, um dos maiores pensadores do século XX. Já o disse alhures, repito aqui: Oswald de Andrade, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, depois de Machado de Assis, são os verdadeiros autores de uma reflexão filosófica propriamente brasileira, os inventores de uma linguagem estética, metafísica e política original, capaz de trazer à luz as obscuras potências conceituais da(s) língua(s) que falamos em nosso país, como Borges ou Lezama Lima o fizeram para o espanhol americano.3 De todos os supracitados, Oswald é com certeza o mais diretamente — e subversivamente — filosófico, não só por sua apropriação, ou antes, seu apossamento direto e “bárbaro”, de um campo de referências oficialmente identificado a esta disciplina acadêmica, como sobretudo por ser o inventor e burilador infatigável de um autêntico conceito, um dos poucos, senão o único, conceito “genuinamente brasileiro”, por ser uma ideia que sai do Brasil, no duplo sentido: se ele tem suas raízes em uma reflexão sobre o fato e o fatum nacional, visa entretanto uma verdade antropológica e metafísica (ou contra-metafisica) supranacional, melhor dizendo, universal — cosmológica. (Da “poesia de exportação” do Manifesto da Poesia Pau-Brasil de 1924, seus “roteiros” o levam à filosofia de exportação do Manifesto Antropófago de 1928, d’“A psicologia antropofágica”, d’A Crise da Filosofia Messiânica e outros textos tardios.) Refiro-me, bem entendido, ao conceito de Antropofagia. Como já disse definitivamente Augusto de Campos, citado neste livro, a Antropofagia é “a única filosofia original brasileira e, sob alguns aspectos, o mais radical dos movimentos artísticos que produzimos”. Um dos méritos de Antropofagia – Palimpsesto Selvagem é contribuir para dissolver, mesmo que isso seja, talvez, uma tarefa de Sísifo, o bestialógico que se foi construindo em torno da noção de antropofagia a partir dos anos 60 do século passado, que transformou a exportação subversiva em importação mimética, a feroz ruminação canibal em aviltante digestão

3 “A língua brasileira ainda não [foi] trabalhada pelo pensamento” (C. Lispector).

consumista. Com as devidas e honrosas exceções de praxe, dos Irmãos Campos e Décio Pignatari a José Celso Martinez Correa e outros poucos. Creio ser um equívoco comum nos manuais, o qual (e os quais) se deve a todo custo evitar, a identificação sumária do nome de Oswald de Andrade ao rótulo “modernismo”. Se ele participou da Semana Modernista de 22, se foi uma das forças vivas do movimento homônimo, Oswald seguiu rapidamente adiante, com novos companheiros de viagem (Raul Bopp, Oswaldo Costa, Pagu, Jaime Adour da Câmara, Geraldo Ferraz). O Manifesto de 1928 e a Revista de Antropofagia marcam uma ruidosa ruptura com a “geléia geral” (ainda A. de Campos) em que logo se transformou a geração modernista — com seu esteticismo inconsequente, suas bandeiras políticas para lá de ambíguas, seu nacionalismo de opereta. O “modernismo” antropofágico é absolutamente anti-“modernista” e sobretudo pós-modernista, tanto no sentido local e literal, como no sentido que esse adjetivo ganhou no final do século XX — ou mais; na verdade, a Antropofagia saltou por cima desse outro pós-modernismo tardio, devorando-o antecipadamente, dispensando de passagem, no processo, as dores d’alma, as culpas coloniais, as crises da representação do outro e demais dengos e requebros acadêmicos praticados ultimamente no hemisfério norte, o hemisfério messiânico (dengos e requebros que, naturalmente, não deixaram de fazer seu sucesso em nossas paradas e parasitas paragens universitárias nacionais). O Manifesto Antropófago é “decolonial” muito avant la lettre. E não surgiu de dentro de nenhuma universidade norte-americana... Oswald não conseguiu nem entrar na USP, que diria em Duke, Princeton ou Harvard? Esse homem sem profissão nunca foi um “periférico” profissional, daqueles com tenure. Não teria sentido, neste prefácio, resumir o que Beatriz Azevedo expande e extrai desse sumo/resumo visionário, meteoricamente luminoso que é o Manifesto Antropófago. Limito-me a notas breves. Pareceu-me muito feliz a leitura da noção de “manifesto” no sentido tanto substantivo como adjetivo. Não só o manifesto como grito de guerra, chamada à luta — e, com efeito, o Manifesto Antropófago replica e subverte o Manifesto Comunista (o

que nos une não é a exploração, mas a antropofagia),4 mas o manifesto como o que se opõe ao latente ou oculto. O Manifesto “antropófago” como o Antropófago “manifesto”, a manifestação do antropófago, sua explicitação. A “descida antropofágica” proclamada pela Revista de Antropofagia teve assim como sua condição de possibilidade a “subida” do latente ao manifesto, a emergência à luz do dia do (in)consciente cultural humano — não o inconsciente edipiano e patriarcal, mas o “consciente antropofágico”, dionisíaco e matriarcal. O desejo anti-narcísico do outro, o “só me interessa o que não é meu” como lei do homem, porque o que é “meu” é exclusivamente esse interesse. Do homem ao cosmos (“parte do Eu”): a devoração universal como lei do cosmos, a avidez metafísica — metafísica porque antes física — que regerá o universo até sua auto-devoração final. Nietzsche, como argumenta, preuves à l’appui, Beatriz Azevedo, é o gênio tutelar da antropofagia oswaldiana, o pensador que mostrou que o logos é uma espécie degenerada do gênero phagos (falar ou comer? a questão de Alice). O espírito que “não pode conceber o espírito sem o corpo” — espírito-estômago. A Genealogia da Moral funda a equação antropologia = antropofagia. Antropofagologia. Única forma de escapar do antropologocentrismo cristão, europeu, modernista. Nietzsche contra Freud e contra Marx, fulminados os dois magistralmente, por Oswald, como meras contrafaces, respectivamente, do cristianismo e do capitalismo. O que não os faz deixar de terem seus usos para Oswald. Desde que despidos por Nietzsche e pelos Tupinambá. Assim como Deleuze falava em imaginar-se um “Hegel filosoficamente barbudo”, Oswald imagina um Nietzsche antropofagicamente nu, de cocar e tacape, devorando alegremente um inimigo “sagrado” — isto é, o inimigo como positividade transcendental, não como mera facticidade negativa a serviço da afirmação de uma Identidade, um não-Eu que me serve para definir-me como um Eu. Comer o inimigo não como forma de “assimilá-lo”, torná-lo igual a Mim, ou de “negá-lo” para afirmar a substância identitária de um Eu, mas tampouco transformar-se nele como em um outro Eu, mimetizá-lo. Transformar-se, justo ao contrário, por meio dele, transformar-se em um eu Outro, autotransfigurar-se com a ajuda do “contrário” (assim os velhos cronistas

4 A exploração capitalista é o protótipo do que Oswald chama de “baixa antropofagia”, em contraposição à antropofagia superior, a original-matriarcal, aquela que “transforma o Tabu em Totem” sem esquecer a origem do totem: daí o conciente antropofágico contra o inconsciente edipiano.

traduziam a palavra tupinambá para “inimigo”). Não um ver-se no outro, mas ver o outro em si. 5 Identidade “ao contrário”, em suma — o contrário de uma identidade. A Antropofagia não é uma ideologia da brasilidade, da “identidade nacional”. Ela não surgiu no Brasil por acaso, sem dúvida. Mas o Brasil surgiu por acaso — e, infelizmente, como se sabe, em dia de chuva. Daí o português... O Manifesto Antropófago é um “Manifesto do menos”, para recordarmos novamente Deleuze, outro nietzscheano, ou seja, outro europeu meio louco (OA: “O sentimento órfico é, evidentemente, a dimensão louca do homem”). “Nós já tínhamos” o comunismo, o surrealismo (não precisamos de vocês). “Nunca tivemos” a gramática ou a lógica — não somos pré-logicos, mas pós-lógicos. “Sem nós, vocês não teriam nem sua pobre Declaração dos Direitos do Homem”. Declaração, lembremos, “universal”. Ou seja, ao contrário: somos nós que temos o universal superior, o universal rico, em sua generosidade cósmico-antropofágica. Contra a Declaração Antropocêntrica dos Direitos, a declaração antropofagológica da “vingança codificação da justiça”. A vingança — o direito contra o “monopólio legítimo” da vingança; a vingança contra o Estado, contra o monoteísmo (“Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor” – Rom 12:19). Um manifesto do “des-”: desvepucianizar, descolombizar, descabralizar, descatequizar, dessublimar, desontologizar. Um “Brasil”, ou um Novo Mundo do qual se retirou a Europa. A Antropofagia é tudo menos a absorção da metafísica messiânica europeia. Queremos, porém, a técnica. Os povos hiperbóreos são idiots savants que fazem lá suas invenções interessantes. Oswald é um primitivista, mas um tecnoprimitivista. Sua admiração pela América do Norte (os EUA) é inequívoca, centrando-se no “cinema, o divórcio, o box, o crédito e sobretudo o apetite”. E as girls... Mas essa América hipertécnica (notem-se os curiosos exemplos) é ao mesmo tempo dada como exemplo da invencibilidade do “ciclo primitivista”. Os americanos são os bárbaros tecnizados. Só lhes falta, e a falta é crucial, a Antropofagia — falta-lhes uma filosofia de vida compatível com o tecnoprimitivismo. A admiração oswaldiana pela técnica é não-messiânica, porque não está atrelada a uma escatologia do

5 “Pode-se chamar de alteridade ao sentimento do outro, isto é, de ver-se o outro em si [...] A alteridade é no Brasil um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal” (OA)

progresso radicada do cristianismo. Donde o “erro de Marx”.6 O famoso “bárbaro tecnizado” de Keyserling é uma utopia — mas a utopia oswaldiana está ancorada na terra, “em comunicação com o solo”; “a terrena finalidade” — e uma acronia, pois pula do passado ao futuro por cima do presente, vendo o índio em ambas as direções do círculo temporal (eterno retorno?). “Somos a utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do norte”. Uma tecnofilia não utilitarista ou mecanicista, mas desejante, orgânica e multissensorial. A antropofagia é um vitalismo. Tupi or not tupi, that is the question. A indecisão hamletiana se torna uma decisão épica/epocal, que indica a opção pelo matriarcado antropofágico contra o patriarcado hiperbóreo de Elsinor ou aquele apolíneo da República platônica. Uma outra Grécia, a arcaica, primitiva, dionisíaca — com a vantagem do clima. E sobretudo, uma decisão contra-ontológica: o “tupi” cancela e inverte o to be, a antropofagia é uma contra-ontologia, é o privilégio do haver ávido de alteridade — “só me interessa...” — contra a soberania solipsista do Ser (Gabriel Tarde). A verdadeira questão é “Tupi or to be”. E a resposta já está contida na questão: tupi, é claro. A gramática é uma metafísica: toda gramática começa pelo ser. “O índio não tinha o verbo ser. Daí ter escapado ao perigo metafísico que todos os dias faz do homem paleolítico um cristão de chupeta, um maometano, um budista, enfim um animal moralizado. Um sabiozinho carregado de doenças”. Donde a pergunta crucial: “Mas o que temos nós com isso?” De faro, o que temos nós com isso, agora? O que podemos fazer com esse dar as costas antropofágico, agora que nos curvamos servilmente diante do “utilitarismo mercenário e mecânico” como se este fosse, enfim, a verdadeira única “lei do mundo”? A Antropofagia fez o seu caminho desde seu inventor. Mas “caminhamos”, realmente? A “generosa utopia de nossa antropofagia” (A. de Campos, sempre) perdeuse no caminho? A floresta e a escola, dizia o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Nem uma, nem outra. Hoje há cada vez menos floresta, e quanto à escola, é como diz o poeta André Vallias: agora ela se escreve “esfola”. Onde quer que ainda se veja mata, se diz: “desmata”. E onde escola, “esfola”. A “Pátria Educadora” é uma patranha grotesca, e a pátria desmatadora, uma sanha assassina, uma pátria sem mãe. O mundo não datado

6 “A ideia de um progresso humano indefinido (adotada por mais de um intérprete de Marx) traria finalmente o quadro proposto pela Idade Média. No começo o pecado original; no fim, o céu.”

nem rubricado com que sonhava Oswald se torna cada vez mais datado — nada mais “datado”, mais anacrônico que nosso progressismo crescimentista, em face da baixa antropofagia praticada pelo capitalismo sobre a Terra, que perdeu toda “comunicação com o solo” que não se traduza em lucro — e cada vez mais rubricado, com a gula insaciável dos donos do Brasil em privatizar o que ainda nos resta de território mantido fora do mercado — as terras indígenas, as áreas de proteção ambiental, os territórios quilombolas, todos os regimes tradicionais de territorialização que ainda não foram rubricados pelo latifúndio e o agronegócio. “Será esse o Brasileiro do século XXI?” Ou, quem sabe, a generosa utopia de nossa antropofagia, mundializada como era seu destino e como anunciava Oswald, sobreviva ainda, rexista nas revoltas indígenas na América Latina, nas ocupações “selvagens” urbanas que retomam o espaço público, no ativismo ecopolítico que quer a terra, e a Terra, de volta? Pois como disse Oswald em seu testamento: “Desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo”.

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