Um breve relato sobre um estágio para licenciatura que questionou todas minhas convicções sobre educação, pedagogia e relacionamentos sociais

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Educação – Pedagogia
Um breve relato sobre um estágio para licenciatura que questionou todas minhas convicções sobre educação, pedagogia e relacionamentos sociais
Rodrigo Contrera
Eu deveria buscar as devidas referências, mas realmente não sei mais nem como encontrar registros de quando fiz estágio para minha licenciatura em Filosofia para o ensino médio em escolas que ficam no bairro do Jabaquara. Lembro-me de ter feito esse estágio em principalmente duas escolas, uma delas a Heloísa Carneiro, que é aquela abordada aqui em maior detalhamento. Lembro-me também que fiz essas horas de estágio tendo uma liberação momentânea do trabalho na editora em que fiquei por vários anos, trabalhando como jornalista e editor técnico especializado em materiais. Lembro-me que parte desse estágio ocorria em horários estranhos, muito cedo, bastante tarde ou durante parte dos fins de semana. Eram os horários que me restavam. Na verdade, eu deveria ter escrito este texto naquela época, em que a memória ainda estava fresca, mas, seja como for, é extremamente importante ainda para mim reavivar essas lembranças, ainda mais agora, quando estou cada vez mais convencido de minha intenção em dar aula de Filosofia e Teatro.
Histórico
Eu passara muitos anos dedicando minhas noites a ter aulas e a estudar Filosofia. Esses anos foram, mais ou menos, desde 1992, quando passei na graduação pela primeira vez (no total, foram três vestibulares), a 2008. Nesse intervalo, desisti de uma pós-graduação em Comunicações, entrei na pós em Ciência Política, na mesma faculdade da graduação, mas desta também fui obrigado a desistir. Convivi com diversas turmas na graduação, nunca adaptando-me a qualquer uma. Consegui muito poucos amigos, mas com estes mantenho contato até hoje. Meus estudos abarcaram praticamente todos os âmbitos da Filosofia, mas nunca passei de um estudante razoável, quanto muito mediano, que contudo se caracterizava por perguntar bastante durante a aula e focar aspectos muito pontuais do que era ensinado com a intenção de abordar temas de caráter, no fundo, eminentemente pessoal. Eu sempre quis traduzir a Filosofia em questões que dissessem claramente respeito a minhas questões, à minha vida de imigrante de origem chilena que resolveu, em 1992, após questionar suas origens, finalmente naturalizar-se brasileiro.
Quando decidi tentar a licenciatura, fiz as disciplinas respectivas na Faculdade de Educação, da USP, onde tive um comportamento de certa forma errático, criando situações desconfortáveis, ora questionando se a FFLCH, onde estudava Filosofia, ainda existia realmente enquanto instituição – na época, a faculdade encontrava-se tomada por estudantes em greve, e nem as bibliotecas funcionavam –, se a relação entre professorado e alunado era realmente adequada – ao ponto de estar a um triz de brigar a socos com um professor muito considerado, Júlio Groppa Aquino, por razões de que hoje não se lembra –, se eu (estudante) deveria apoiar professora amplamente considerada pela classe como não cumpridora de seus deveres profissionais (a ponto de abandonar a sala, para não se opor a ela, quando todos os outros estudantes se uniram pela sua dispensa do curso), etc. Eu cheguei inclusive a sugerir e defender uma metodologia de ensino de Filosofia Política tendo com base apenas filmes de ação ou similares, que começava com tramas em que se discutia não a política como deveria ocorrer, mas o estado de exceção – sendo questionado duramente por colegas, que achavam a metodologia no mínimo bizarra.
Desses anos, acumulei toda a bibliografia fornecida durante as aulas, que contudo praticamente não li nem durante os cursos nem depois. Sempre me pareceram, essas leituras, como contemporizações diante de uma situação calamitosa (da Educação) que não poderia ser sanada, a meu ver, a não ser por medidas duras e determinadas em que o alunado não fosse mais considerado uma massa de modelar, mas um sujeito consciente e sabedor de vida, embora não necessariamente dos conteúdos programáticos que compõem as sociedades civilizadas. Mesmo após terminar as disciplinas, continuei acumulando e lendo (embora esparsamente) revistas e mesmo artigos sobre Educação, sem contudo conseguir relacionar as abordagens dos diversos teóricos com uma realidade que fizesse sentido para mim. Também nessa época continuava lendo livros (biografias romanceadas ou mesmo romances) de e sobre criminosos de diversos tipos, cujas histórias – por razões estritamente pessoais – me atraíam sobremaneira, como se eles pudessem me trazer luzes quanto a como me relacionar com indivíduos descrentes e limítrofes.
Mas a licenciatura compõe-se também da parte prática. E dessa parte eu como que fugia tal qual o Diabo da Cruz. Amedrontado com relatos de colegas que durante as aulas teóricas pouco menos que diziam que os alunos humilhavam, batiam e traumatizavam psicologicamente (e até fisicamente) os professores, seja lá quais forem suas formações e proteções, eu temia que durante o estágio eu passasse, em escala ainda menos protegida, pelas mesmas supostas provações. O fato é que, por mais que houvesse colegas que não concordavam com essas opiniões que pintavam os professores como vítimas indefesas, o clima geral na aula era de que estávamos todos condenados a entrar na jaula dos leões, tal qual cristãos na Roma antiga. Isso fez com que eu adiasse cada vez mais a decisão por fazer o estágio, embora esse fosse na época mais uma interessante direção para minha carreira de homem crente no saber filosófico ou em sua divulgação ou mesmo em seu ensino. Um dia eu me decidi e optei por finalmente ir às escolas e tentar fazer o que era devido.
Não me lembro muito bem por que escolhi a escola Heloísa Carneiro, localizada em uma avenida bem agitada do Jabaquara, região Sul da cidade. Sim, era próxima à minha residência na época – eu morava a poucos quarteirões da estação Jabaquara do metrô. Localizava-se também a caminho de meu serviço – que ficava no Morumbi. Mas era, antes de mais nada, uma escola comum, que não tinha praticamente nada em que se destacasse das outras. Eu, na época, optara por seguir o caminho dos reles mortais, de todos os meus colegas que eu, de forma bastante arrogante, considerava inferiores em formação a mim mesmo. Tudo uma simples mente deturpada, só porque há mais de 20 anos eu havia passado em Jornalismo na USP – como se isso me tornasse superior a alguém. Fato é que eu já me cansara da suposição de eventualmente eu ter educação superior à de mais alguém – ao contrário, decidira trilhar a via comum, a via a ser percolhida por qualquer um. A escola Heloísa Carneiro cumpria esse meu desígnio. Falei com a direção e ela me encaminhou ao professor de Filosofia da escola, que eu me lembro de haver encontrado naquele dia mesmo. Formado também pela USP, o professor, cujo nome não lembro, conversou brevemente comigo e convidou-me então a assistir algumas de suas aulas, ministradas à noite em diversas salas da escola. Eu topei e apareci posteriormente.
A experiência
Lembro-me bem do cenário lúgubre que foi entrar pela primeira vez na escola. Algo de minha antiga vivência, enquanto estudante, em escolas do bairro da Barra Funda, no meu ginásio, e nos Campos Elíseos, durante o meu então colegial, veio imediatamente à tona ao percorrer os corredores similares aos de prisões (que eu já visitara, como o antigo Carandiru), as portas quase podres de tão toscas e sem graça, e as salas desprovidas de qualquer encanto ou incentivo à boa educação. Mas o que vi na primeira sala que me coube ocupar como estagiário foi distante de qualquer pesadelo que eventualmente eu pudesse vir a ter: pelo menos 2/3 das carteiras quebradas, todas as cadeiras e mesas dos alunos espalhadas desordenadamente pela área da sala, piso de madeira quebrado em incontáveis lugares, janelas quebradas em diversos pontos (são aquelas janelas que abrem verticalmente), luz mortiça, e – finalmente – alunos atomizados, divididos em grupelhos sem aparente comunicação entre si e absolutamente imersos em atividades sem norte algum. Ninguém parecia estar em uma sala de aula. Um pátio de recreio poderia ser mais ordenado do que aquilo. Além do que o frio e o vento eram de matar – eu estava com pouca roupa e passei o tempo todo tremendo.
O cenário mais lúgubre, porém, não era o físico, o estado lamentável da sala de aula, entremeado com minha repentina indignação em ver alunos de colegial (hoje, ensino médio) sendo tratados como lixo. Mais estranho era reparar no comportamento dos alunos diante do professor de Filosofia que havia me pedido para acompanhá-lo enquanto, dizia ele, ministrava uma aula. Pois essa aula não existia. Literalmente. O professor mal conseguia falar uma frase que os alunos o interrompiam. Levantava um pouco a voz para falar alguma coisa e era desautorizado por este ou aquele aluno – que nem pareciam ser os mais problemáticos dos presentes. Lembro-me que ele, o professor, se levantou para escrever algo na lousa quebrada, com o resto de algum giz molhado que ainda descansava por lá. Ninguém viu. Ninguém olhou para ele. Ninguém fez sequer menção de que ele estava presente. Não havia a menor, digo, a menor comunicação entre professor e alunado. Não havia qualquer conexão. O professor mantinha um olhar baço, como se não soubesse o que acontecia bem na frente dos meus olhos. Mas isso naquele momento não me convenceu inteiramente. Havia algo errado. Não era possível que uma aula de Filosofia fosse dar naquilo. Isso não cumpria o mínimo do mínimo no entendimento daquilo que deveria ser uma aula. Danem-se os discursos sobre conteúdo. Neste caso, não havia QUALQUER conteúdo. Porque, primeiro, não havia qualquer relação entre aquele que é contratado para ensinar e aquele que é obrigado a frequentar a escola para aprender. Todo aquele lenga-lenga de ensinar algo além do conteúdo parecia coisa advinda de Marte, pois nessa Terra que eu vivenciava não existia sequer algum vestígio de conteúdo que pudesse eventualmente ser questionado. Dava para notar que a realidade estava, de fato, a anos-luz (atrás) de qualquer eventual pensamento refletido sobre o ato de ensino. Saí chapado da experiência. Não acreditei que algo como isso pudesse acontecer na cidade em que eu passava minha vida – a poucos metros de casa, inclusive.
Não me lembro bem se eu assisti outras "aulas" de Filosofia como essa, desse professor, mas sei que aos poucos fui reparando que esse descalabro, essa desconsideração total desses alunos para com esse professor, era localizado, ou seja, referia-se, ao menos aparentemente, apenas a ele, ou quase apenas a ele. Vim saber, bem depois, que esse professor tinha problemas sérios de relacionamento e psicológicos mesmo, mas até hoje não sei o que uma coisa tinha realmente a ver com a outra – ou seja, se os problemas psicológicos eram anteriores à atividade de dar aula – o que parecia ser a verdade, dado que o cara parecia mesmo bem estranho – ou se esses problemas no fundo acabaram se originando da situação absurda que era vê-lo dar aula para alunos como aqueles, absolutamente distanciados de qualquer relação com o saber. Lembro-me, aliás, razoavelmente do perfil dos garotos, alguns verdadeiramente amedrontadores, pelo aspecto físico e pela energia que emanavam, e confesso não haver tido nenhuma grande impressão a respeito. Pareciam-me, em poucas palavras, praticamente uns marginais, todos ou quase todos. Seja como for, como eu estava dizendo, os problemas que verifiquei em sua sala de aula eram realmente localizados. Pois, vim ver depois, e não sei bem como – afinal, eu estava fazendo estágio de licenciatura em Filosofia, e não necessariamente deveria acompanhar aulas de outras disciplinas –, que com outras matérias e outros professores os alunos, dessa e de outras salas, comportavam-se de forma diferente, dando valor àquilo que o professor ou professora dizia e realizando, de forma mais ou menos eficaz e eficiente, aquilo que deles era esperado. Foi interessante ver como um aluno que em uma determinada disciplina era simplesmente intratável em outra tornava-se praticamente um aluno exemplar, disciplinado, determinado e até mesmo muito bom. Isso, eu reparei com diversos alunos de diversos tipos, inclusive com alunos que eu, em s consciência, talvez viesse a considerar absolutamente inaproveitáveis, insalváveis, casos perdidos. Hoje não acredito nisso – mas também devido a eventos que vieram a acontecer posteriormente.
A prova
Não me lembro com que fim, mas ao que parece devido ao então Provão, em um determinado momento do estágio, que não demorou muito desde que comecei a fazê-lo, veio a decisão, de cima para baixo, de implantar uma prova na sala – aquela do descalabro – para avaliação por níveis superiores – ou seja, não era uma prova necessariamente interna, válida apenas para a escola Heloísa Carneiro. Sugeri ao professor de Filosofia que eu ficasse de bedel, tomando conta da sala enquanto os garotos e garotas faziam a prova. Ele topou. A experiência foi inédita – eu nunca havia feito isso –, e descobri que meu jeito macambúzio aplicava-se muito bem à situação. Eu sorrio com relativa dificuldade, e isso causava uma certa estranheza em todos ou quase todos os garotos e garotas, e assim eu conseguia, por último, desempenhar relativamente bem a função. Durante a prova, os garotos pareceram, olhando detidamente, se conter nos esforços de colarem uns dos outros, mas no fundo eu sentia que eles realmente sabiam que não sabiam nada, e que sentiam que precisavam fazer alguma coisa a respeito – ou seja, colar, encontrar alguma resposta adequada àquelas questões que pareciam não lhes dizer nada. Isso eu também senti aos poucos, percebendo como eles tentavam, de qualquer forma, conseguir alguma resposta àquelas perguntas da prova. Mas eles tentavam também se conter, seja para não causar má impressão, seja para não serem pegos por mim. A prova em si era primária, só fazia perguntas factuais mesmo, sem qualquer contextualização ou tentativa real de ensinar algo que eventualmente pudesse valer a pena. A prova terminou, eu peguei os materiais de todos os alunos e fiquei com eles. Perguntei ao professor o que fazer. Ele me perguntou se eu toparia em corrigi-las. Eu concordei. Levei as provas para casa e, em um dos poucos momentos em que consegui ficar tranquilo e isolado, comecei a analisá-las.
Se eu achara um descalabro a aula do professor de Filosofia, naquele dia fatídico em que saí tremendo de frio da escola, isso provou-se absolutamente nada diante do descalabro que, desta vez, sim, eu sentia ao ver o resultado – expresso nas provas preenchidas pelos alunos daquela sala, que analisei uma a uma com uma atenção desmedida – afinal, eu também nunca havia feito isso, o que me parecia extraordinário – eu sempre me colocara na posição de aluno, jamais de professor, ou que seja, de estagiário em licenciatura. Em poucas palavras, o que eu tinha diante de mim? Nada. Nenhuma, ou realmente quase nenhuma, resposta correta. Ninguém parecia, diante de mim, conseguir responder sequer UMA questão da forma adequada. Eu parecia ver as folhas em branco, diante de mim. Havia rabiscos que nada queriam dizer nas margens das folhas. Havia palavras quase impossíveis de descrever de tão mal escritas. Havia branco e branco e branco. Não me recordo de haver dado sequer uma nota 1,0 a alguém. Ninguém parecia sequer passar de 0,25, quando muito. E olha que a prova era para ter nota máxima 10. Eu nunca vira isso. Achei que eu estava sonhando, ou tendo um pesadelo. Não entendia como NINGUÉM da sala conseguia sequer acertar uma questão. Pois, se isso acontecesse, eu ainda poderia achar que havia alguma salvação para eles, para o sistema, para a disciplina e quem sabe para o saber. Mas não, não havia sequer uma resposta correta naquelas dezenas e dezenas de folhas e de provas. Tudo era em vão. Tudo. Não havia saída, e com isso entendi parte do descalabro da educação brasileira naquela noite. Não havia como acreditar em saber ou em ensinar depois disso, não era possível. Como imaginar que esses garotos poderiam um dia pensar de forma tal a fazerem uma redação que pudesse eventualmente ser REPROVADA numa prova da FFLCH, do curso de Filosofia, um dos mais fáceis de se passar na época? A distância entre uma coisa e outra parecia incomensurável. Não parecia haver sequer motivos para acreditar em qualquer solução, sendo as coisas dessa forma. E o pior é que eu via os garotos e garotas e eles me pareciam mais espertos do que eu mesmo, eles raciocinavam, eles pensavam, sim, sabiam lidar com o mundo, mas este parecia não lhes dizer absolutamente nada, ao menos no quesito de conhecimento a ser adquirido, de saber que sustenta a sociedade civilizada.
Não sei bem o que aconteceu, então, em primeiro lugar. Se uma coisa ou outra. Mas sei que ambas aconteceram na mesma noite, quando eu analisava e "corrigia" as provas. Lá estava eu, assoberbado por zeros sem conta, torcendo para que alguém, quem sabe, pudesse levar, quem sabe, um 1, uma resposta correta, quando me deparei com uma prova em cujo fim havia uma flor desenhada. Uma flor, bem desenhada, perfeitamente desenhada (ou não, mas lembro-me de que não era uma flor comum, simplesmente rabiscada). Ao lado da flor, havia uma mensagem, de cujas palavras não me lembro EXATAMENTE, mas cuja mensagem era: "ah, professor, eu não sei nada, não, mas só queria fazer o senhor sorrir". Ou algo do tipo. Isso me derrubou. Eu já lhes disse que não costumo sorrir muito – e quando rio (até agora), rio de forma esganiçada ou, para ser mais exato, como um trovão que mais assusta do que agrada. Pois então. Aquela mensagem – penso hoje – estava direcionada a mim, à minha pessoa mesmo. Pois na hora eu nem pensara nisso. Eu achava que a mensagem era direcionada aos professores em geral – e assim pensei durante anos. Pois então, aquilo me derrubou, porque pelo meu entendimento era uma espécie de pedido de socorro, de intenção de contato, de vontade de comunicação. Ou seja, o aluno ou aluna queria um contato, queria mostrar que, apesar de tudo, apesar de nada saber, apesar de ser um caso perdido, ou de ser assim considerada/o pelo sistema, ela/e queria ainda manter contato, queria que não houvesse uma quebra de relação (específica, ligada ao mérito, que todo mundo tanto diz prezar) entre ele – o professor – e ele/a, o aluno. Confesso-lhes que chorei. Não entendia como as coisas poderiam se dar dessa forma. Como tudo parecia estar condenado ao fracasso, mas ao mesmo tempo como ainda existia vontade de manter a relação intacta, sem que isso – o fracasso do sistema – realmente determinasse o fim da esperança. Foi triste, chocante e ao mesmo tempo interessante. Hoje sorrio ao me lembrar da experiência. Podem achar que eu estou exagerando. Ocorre que eu ainda tinha esperança no sistema – e ele, ao menos nesse microcaso, provou-se absolutamente desprovido de razão de ser. Por outro lado, foi o aluno/a quem retomou a esperança, tentando, mesmo com tamanho fracasso, mantê-la, a ela, à esperança, acesa. Bom, enxuguei as lágrimas – que não foram tantas assim, admito, embora tenham sido muito intensas – e segui em frente. As provas se seguiam naquele mesmo lenga-lenga de sempre: zeros, zeros e zeros. Pois então, após uns 10 ou 20 minutos, de repente deparei-me com uma prova perfeita. Sim, um 10 perfeito. Caligrafia bonita, interessante, perfeita, redondinha, e respostas todas corretas. Nada a acrescentar. Literalmente, nada a acrescentar. O sujeito ou garota que fez essa prova correta parecia não dever nada a ninguém, parecia saber até mais do que eu mesmo. Fiquei estupefato, pois eu acompanhara a prova o tempo todo. Quem era essa pessoa? Como ela conseguira esse milagre? Afinal, eu vira que ninguém sabia nada, que todo mundo queria colar uns dos outros. Que tudo era uma ópera bufa, sem sentido, um absurdo completo. De onde surgira esse fenômeno? Até hoje não sei. Claro, dei-lhe um 10 mais do que merecido. Mas aí, depois de corrigir todas as provas, meti-me a pensar. Peraí, por que eles tentavam colar uns dos outros? Afinal, nenhum deles sabia absolutamente nada, e eles sabiam muito bem disso! Não, vocês poderão me dizer que eles, isoladamente, achavam que o outro poderia saber mais do que eles. Mas isso não era exato. Eles sempre souberam que ninguém sabia nada. E mesmo assim tentavam colar. O que isso significava? Que eles ainda queriam acertar. Que, mesmo não sabendo nada, e sabendo mais do que qualquer um que colar não prova nada, eles ainda assim queriam acertar. Ou seja, que eles, apesar de tudo, apesar das aulas absolutamente catastróficas, apesar do sem sentido do esforço, apesar de tudo, e apesar até mesmo de eles provavelmente considerarem que de nada vale a pena estudar, se afinal isso não é valorizado no mundo real, eles ainda assim queriam acertar. Por outro lado, aquela garota/o que tirou 10, contrariamente a qualquer esperança mesmo que distante, simplesmente não dependia de nada para conseguir tal resultado. Não precisava essa pessoa sequer da escola. Ela já tinha tido dado de antemão. Essa pessoa, garoto ou garota, não precisava de nada. Provavelmente iria tornar-se um professor, um profissional bem-sucedido, um artista, quem sabe. Esse nota 10 não precisava de mim. O corolário da discussão foi então dado pela pessoa que me desenhou aquela rosa, sugerindo que eu sorrisse, ou seja, indicando que queria na verdade tirar um sorriso de mim. Essa garota, ou cara, quem sabe, entendia que apesar de tudo era necessário manter as relações na medida em que elas é que sustentam tudo, a relação professor-aluno, e tudo o mais. Muito bem. Foi então que eu entendi. A educação deveria ser direcionada, ao menos por mim, para quem mais necessitasse dela, pois só essa aparentemente fazia sentido, enquanto o resultado, o prodígio, a recompensa pelo mérito, acabaram, nesse caso, ficando para trás. Claro, eu sempre dei suprema importância àquilo que se prova correto, às notas 10, à eficiência, à excelência no ensino e tudo o mais – eu disputava notas com meus colegas até na faculdade –, e ainda dou tamanha importância a isso, mas com esta lição eu tive que contextualizar a questão, e reparar que, mutatis mutandis, essa ênfase na excelência muitas vezes provinha não do sistema mas muito provavelmente de sua ausência. Ou seja, tudo – todo o mérito, e tudo o mais – aparentava provir de lugares que nada tinham a ver com aquilo a que todo mundo se dedicava – o sistema educacional. Claro, muitas reflexões foram e são feitas a respeito disso, mas isso também não me interessava – o meu foco é que mudou. Foi interessante, tudo isso. Muito interessante. Algo havia acontecido em mim, comigo, e com minha relação com o saber e com a educação em geral.
Bom, mas o estágio continuava. E as provas do Provão estavam aí. Eu precisava acumular horas de estágio e precisava fazer alguma coisa. A direção da escola e eu nos acertamos: eu daria, mais uma vez, uma de bedel e com isso cumpriria as horas necessárias, sem que com isso eu tivesse de assistir muitas aulas mais – era fim de ano letivo – de Filosofia – algo que, venhamos e convenhamos, eu não queria mais MESMO. Bom, aprontei-me para isso, reservei uns dias para a tarefa e comecei. Não sei bem quantos dias isso levou, mas dei uma de bedel em diversas ocasiões, para diversas disciplinas, com diversos professores, tudo quase ao mesmo tempo, correndo para acumular, como eu queria, horas valiosas de estágio.
Cada professor comportava-se, ao ministrar a prova, de forma diferente. Eu mesmo nem tinha muito relacionamento com cada professor. Simplesmente eu ficava ali, parado, fazendo cara de mau, rs, tentando fazer com que aqueles alunos e alunas não colassem, ou mantivessem silêncio, pelo menos. E assim as coisas iam. De repente, um sujeito, um aluno que eu havia visto antes, numa cadeira no meio da sala, começou a dar uns gritos aparentemente desconexos. Aproximei-me, ele estava gritando, dizendo que assim não dava, que como é que ele poderia fazer a prova se não tinha lápis ou caneta, nem papel, nem nada. Perguntei-lhe calmamente se o problema era mesmo esse. Ele disse que sim, meio aos gritos também. Pois eu desci então, à secretaria, peguei um lápis, uma caneta e um papel, subi e dei-lhe todo o material. O sujeito parecia não acreditar no que via. Pegou o material, gritou dizendo que finalmente alguém reparava nele, que etc e tal, e tudo o mais. Pois aos poucos foi-se calando e concentrando-se na prova. Não falou praticamente mais nada – naquela ocasião, é claro (teve mais depois). Creio que foi nessa mesma ocasião que uma garota me chamou para falar a sós. Eu me aproximei meio estranhado com o "convite" e aproximei meu rosto do dela, para ouvir melhor. Ela então perguntou: o sr. é professor de quê? Eu disse que ainda não era professor, mas que estava para ser professor de Filosofia. Ela arregalou os olhos e disse: oba... Eu não soube o que fazer na hora. Pensei, o que é isso? Não acreditei na imensidão da esperança que eu acabara de presenciar. Afastei-me, surpreso. Continuei na tarefa até a prova ser dada por concluída. Aquele mesmo garoto que gritou pelo lápis e pela caneta iria arrumar outra encrencazinha depois, em outra prova. Foi assim: a professora entrou, na hora da prova, gritando, deste jeito: agora, todo mundo cala a boca, ninguém grita! O que ele fez, então? Gritou (é claro): mas a senhora também não! Perfeito. Não me lembro se alguém ouviu ou entendeu, só sei que eu me lembro. Lógica perfeita. O cara foi direto ao ponto. Querem melhor? Deixem que eu conte: terminei meu estágio numa prova de geografia, no andar de baixo do prédio. Fiquei observando o ambiente e reparando na presença de um sujeito, um aluno, que me metia medo. Um cara que realmente passava a impressão de ser um perfeito marginal. Pois bem, o cara sentou-se no meio da sala, e estava lá, quieto, quando entrou o professor – que, vim saber depois, fez Geografia na USP. O professor entrou também aos gritos, e apontando na cara do sujeito, acusando-o de coisas que eu não sabia que existiam ou que quem sabe nem existissem. Sei apenas que o rapaz estava quieto, e que o professor o agredia verbalmente sem o menor motivo – até porque não existia qualquer acusação em sua fala. Fiquei estupefato. O sujeito não fazia nada e levava bronca, do nada! Meu, que foda. O caso continuou em seguida, eu já assumindo a função de bedel. A prova avançava, quando aquele mesmo sujeito, o com cara de marginal, me chamou, discretamente. Eu me aproximei, ressabiado. Sabem o que ele me disse? Disse, ô, professor, assim não dá. Como, assim não dá, eu retruquei. Ele me disse para olhar para a frente. À sua frente, uma garota. Ele me apontou então o traseiro dela. Lá, dava para ver algo da bunda, do cu mesmo. Ele me disse, então, como é que eu me concentro, professor, vendo isso aqui na minha frente? Eu sorri suavemente e disse, ok, tudo bem, e mudei ele de lugar. Só isso. Ele não falou mais nada.
Já se vão quase 4500 palavras de texto e concluo este meu relato. Não sei bem, de tudo o que vi, o que restou em mim. Simplesmente muitas de minhas convicções acabaram, após essa experiência, indo por terra. Continuava no fundo o mesmo, acreditando em excelência e tudo o mais, mas de forma sub-reptícia, com este relato sensível, eu também deixara de acreditar em muitas coisas que me eram dadas como feitas. Os alunos, especialmente os que em aparência eram menos capazes, ou mais bagunceiros, ou mais condenados a serem ninguém, foram os que mais me surpreenderam com seu bom senso e coragem. Os alunos ditos bons, com bom futuro, deixaram de me chamar a atenção. Havia uma esperança genuína entre toda aquela galera de jovens e moças, expressa de um número infindável de formas, no valor do estudo e na intenção de vencer nesse campo. Mas só conseguia ver isso quem aguçasse os olhos e ouvidos. Nada era tão simples, mas nada também tão complicado. Pareciam, muitos deles, depositar esperança em alguém que simplesmente fizesse o que é justo sem condená-los de antemão à ninguénzada. Eles mostraram querer algo a mais na vida, também a partir da escola. Mas pensavam por conta própria e não davam tanto valor a coisas que no fundo pareciam-lhes realmente não ter valor. Vi mais erros cometidos pelos professores do que pelos alunos. Vi intenção de vencer e ausência absoluta de condições – não necessariamente materiais – para isso. Foi emocionante e chocante. Eu me tornara mais um colega dos que nada têm do que um professor dos que não precisam de mim. Só queria dividir com vocês minha experiência agora, que começo a me dedicar a outros vôos, em diversas áreas e com diversas ambições. Considero este relato um dos mais importantes por que passei em toda minha vida.
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