Um Breve Resumo da História das Histórias em Quadrinhos

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Aqui vale um adendo. Para McCloud os hieróglifos não podem ser considerados histórias em quadrinhos, tendo em vista que eles são sistemas de escritas (representam sons) e, por isso, não corresponderiam a sua definição de histórias em quadrinhos (a qual será vista logo a seguir)
CONCEITO E HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
por Luís Carlos de Oliveira Sousa

1. A pré-história

Diferente de muitas mídias e expressões artísticas, a história em quadrinhos não foi reconhecida como tal desde sua primeira manifestação. Vista durante muito tempo como um derivado menor ou marginal da literatura e do desenho, até 1934, com Will Eisner, careceu de um estudo formal que a definisse, elevando seu patamar de entretenimento vazio e despretensioso a expressão comunicativa com características próprias e únicas. Por conta disso, definir com clareza como se deu o início das histórias em quadrinhos enquanto expressão comunicativa da maneira como é popularmente conhecida é uma questão, cuja solução - atribuída à data de publicação da tira The Yellow Kid, em 5 de maio de 1895 (BRANDÃO, 2003) - ainda é questionada por diversas fontes e está intrinsecamente ligada à definição dessa mídia.


Figura 1: Tiras de jornal de The Yellow Kid de Richard Outcat

Assim sendo, este texto tenta traçar uma linha histórica à história em quadrinhos baseada em exemplos que procuram defini-la, colocando uma como razão e consequência da outra e vice-versa, à forma como sugere Moacy Cirne (1975) quando diz que a leitura clara e completa da história em quadrinhos exige o entendimento amplo dos "problemas sociais, culturais e artísticos", e define: "É preciso saber ler formalmente os quadrinhos para que consigamos lê-los ideologicamente".

Estudos de narrativa (BARBOSA, 2009) apresentam as formas de expressão por imagens como uma das primeiras tentativas de descrição da realidade, com sua linguagem podendo ser percebida desde à época das cavernas, quando os homens paleolíticos desenhavam em paredes o que poderia ser algum tipo de mensagem com alguma função específica própria a eles. Tanto Eisner (1996) quanto McCloud (1995) dão reforço a essa ideia, o segundo, inclusive a amplia, exemplificando uma leitura por imagens em um documento pré-colombiano que conta a história do "herói militar e político 8-cervos 'garras de tigre'", além do Bayeux Tapestry, as pinturas egípicias e os vitrais das igrejas. Esses exemplos, apesar de pontuais, demonstram a abrangência da linguagem e, quando em uma análise mais ampla, trazendo leituras de manifestações semelhantes em diversas sociedades e culturas do planeta (a exemplo dos estudos de Campbell, 1990, sobre símbolos, por exemplo), é possível perceber a naturalidade no uso dessa comunicação. É difícil encontrar uma sociedade europeia, asiática e mesmo americana que não tenha utilizado imagens (ou símbolos, enfim, unidades pictóricas de significado) para informar, narrar ou instruir outros. Sendo assim, reconhece-se que contar histórias é um dos mais naturais e enraizados comportamentos humanos (EISNER, 2005). Nisso, contar histórias com imagens (ou transmitir ideias por meio de imagens) se tornou uma comum maneira de expressão de praticamente todos os povos conhecidos das antiguidades, desde antes dos pintados vasos gregos aos hieróglifos egípcios até depois dos pergaminhos chineses, como previamente citados.

2. Os primeiros passos

A história em quadrinhos moderna, no entanto, vista como mídia de massa, comum aos jornais impressos ou em ambiente próprio (cujos nomes para definir variam: comics nos Estados Unidos, bande dessinée na Europa, manga no Japão e gibi no Brasil, só para citar alguns), apesar de vinda das manifestações citadas, ainda se diferencia delas, ampliando as possibilidades de uso dessa linguagem a formas narrativas mais complexas, inserindo elementos simbólicos bastante característicos e dando sustentação a uma indústria de entretenimento e expressão própria.

Retornando à linha histórica que a criou e abandonando as manifestações culturais que se utilizam de sua linguagem e são anteriores à imprensa de Gutemberg, Álvaro de Moya (1987) rememora Rudolph Töpffer, em 1827, e sua "literatura em estampas" (apelidadas por Goethe de "romances caricaturados"), inspiradas em seu fascínio pelas estampas inglesas de William Hogarth. Professor e escritor suíço e apaixonado por ilustração, Töpffer criou uma publicação chamada Histories en Estampes, em que suas histórias eram contadas através de imagens sequenciais. A repercussão positiva da publicação fez com que seu autor - que começou o trabalho quase que como um hobby - produzisse mais obras no formato, e em Annonce de l'Histoire de M. Jabot (1837) criasse o cerne das características e temas que permeariam as histórias em quadrinhos por tanto tempo, fazendo-as populares. Nas próprias palavras de Töpffer ao descrever sua obra é possível ver elementos que seriam usados anos mais tarde por Eisner para definir os quadrinhos:
Os desenhos, sem este texto, teriam um significado obscuro, o texto, sem o desenho, nada significaria. O todo, junto, forma uma espécie de romance, um livro que, falando diretamente aos olhos, se exprime pela representação, não pela narrativa. (TÖPFFER, 1837 apud MOYA, 1987)


Figura 2: M. Vieux-Bois (1827) de Rudolph Töpffer.

É importante perceber que, além das características técnicas, o trabalho de Töpffer também apresenta alguns conceitos que tornarão as histórias em quadrinhos populares como mídia de massa, como o uso da comédia, a organização dos quadros em tiras, a necessidade de uma linguagem mais simples e popular. Faz mister lembrar que, apesar dessas características terem tornado-o um produto de fácil acesso e consumo de uma grande quantidade de pessoas, também foram responsáveis por sua estigmatização, como nos elenca Eisner (2010): "por motivos relacionados principalmente ao uso, à temática e ao público-alvo presumido, a arte sequencial foi ignorada por muitas décadas como forma digna de discussão acadêmica". Cirne (1975) enumera uma série de fatores (ou preconceitos) não positivos à abertura e leitura acadêmica da história em quadrinhos e que, durante muito tempo, foram razões preponderantes para essa mídia não ser bem recebida e/ou valorizada enquanto linguagem comunicativa própria em círculos tanto científicos quanto artísticos e outros sociais.

O literato condenará os comics por ler apenas a superfície de seus textos, [...] lerá a tira/estória segundo os princípios estilisticos da narrativa tradicional, sem perceber os recursos simultaneístas de sua paginação [...] nesse caso a imagem desempenhará um papel secundário, a serviço da palavra impressa. [...] O pintor condenará os quadrinhos por ler apenas o desenho ou os elementos composicionais de cada plano, isolando-o do contexto narrativo. [... mas] ler uma estória em quadrinhos é ler a articulação de seus planos. (CIRNE, 1975, pags 13 e 14)

Como linguagem orgânica que é, no entanto, a história em quadrinhos não parou de se desenvolver, descobrindo de forma natural várias outras maneiras de ampliar sua linguagem. Exemplos disso são os trabalhos de Wilhelm Busch: Die Maus oder Die Gestörte Nachtruhe, eine Europäische Zeitgeschichte (1860) e Max und Moritz (1865), esse último chegando a ser publicado no Brasil pela editora Melhoramentos com tradução de Olavo Bilac (MOYA, 1987). Sempre com um agudo humor, seu trabalho é considerado por muitos o verdadeiro precursor dos quadrinhos, apesar de, em si, ser um avança das linguagens desenvolvidas por Töpffer e Georges "Cristophe" Colomb (MOYA, 1987). Busch deu "movimento" aos desenhos em quadros, estabelecendo uma narrativa sequencial mais próxima ao cinema, com isso dando uma integridade maior às imagens, que, não raro, suprimiam a importância do texto agregado. Os trabalhos de Busch e de seus precursores parecem ter influenciado fortemente o piemontês radicado brasileiro Ângelo Agostini, primeiro autor de história em quadrinhos no Brasil (As Cobranças, de 1867, é marco das histórias ilustradas) e forte influenciador de uma tradução temática dos quadrinhos nacionais: a crítica política-social. Sua importância se deve não somente pelo seu pioneirismo, mas por sua extensa produção e envolvimento no primeiro e talvez mais determinante semanário de quadrinhos do Brasil: O Tico Tico (1905), o qual revelou, entre tantos autores, o cearense Luís Sá.


Figura 3: As Cobranças (1867) de Angelo Agostini.

3. O primeiro

Apesar de toda a expressividade e da importância das obras alemãs e brasileira para a linguagem da história em quadrinhos, The Yellow Kid (1895), de Richard Outcault, é a primeira obra a receber o título de "história em quadrinhos", sendo seu ano de publicação marco oficial do nascimento dessa mídia. Muitos são os fatores que justificam esse pioneirismo. Socialmente, havia muito a ser favor, tendo em vista que, na época, os Estados Unidos ainda eram bastante receptivos a imigrantes, e a cidade de New York um satélite para muitos povos vindos de vários lugares do mundo, principalmente a Europa. Os imigrantes estabelecidos na nova terra viam as histórias em quadrinhos (publicadas em jornais) como uma leitura mais receptiva e compreensível, sendo seus grandes consumidores e favorecendo seu desenvolvimento rápido. Anos mais tarde, muitos dos filhos desses leitores imigrantes se tornaram produtores dessa mídia, descobrindo nos quadrinhos uma forma de trabalho e expressão, alavancando a linguagem dos comics a direções até então inesperadas, unindo a tradição artística do "velho mundo" com a necessidade de criação e expressão do novo.

Estruturalmente, The Yellow Kid abandonou o texto abaixo da imagem desenhada (como faziam a maioria de seus precursores) e com caráter meramente acessório (ou vice-versa, com o desenho, na verdade, elucidando o texto) e o integrou ao desenho, fazendo com que ambos fossem uma coisa só e funcionassem sempre juntos, nunca separados. Tal alternativa começou com os textos de fala do "Menino Amarelo" em seu grande camisolão, sendo posteriormente colocados em balões com apêndices que apontavam para suas bocas, os conhecidos balões de fala. Independente de qualquer forma de expressão que tenha surgido antes que se utilizasse de igual linguagem ou fosse similar a essa, com certeza, foi eclipsada pela popularidade do Menino Amarelo e a alavancada nas vendas de jornais que esse novo gênero trazia, fazendo com que muitas histórias em quadrinhos fossem encomendadas, criando assim os Syndicates, trustes econômicos que contratavam e distribuíam histórias em quadrinhos (principalmente em formato tiras) para os Estados Unidos e outros lugares do mundo (MOYA, 1977).

A partir daí, as histórias em quadrinhos se tornaram populares e fizeram com que as gerações seguintes fossem não somente de profissionais interessados em trabalhar no ramo, mas de amantes dessa forma de expressão, que estavam empenhados em desenvolver sua linguagem e seu mercado, criando nichos e subdivisões dentro do ramo (CARTER, 2010). Não é errado dizer, no entanto, que as histórias em quadrinhos ainda não tiveram todo seu potencial explorado. A cada avanço da tecnologia e novo elemento de comunicação que surge, uma nova maneira de reinterpretar a mídia de história em quadrinhos nasce, utilizando-se daquilo que fora previamente usado e apropriando-se de ferramentas modernas.
As possibilidades quase ilimitadas da criação digital abrem caminho para uma infinidade de estilos e métodos de expressão, alçando os quadrinhos para além do "estilo revista de quadrinhos" [...] À medida que a tecnologia digital ultrapassar os limites [...], o mesmo ocorrerá com as opções criativas de produção e publicação digital para os artistas sequenciais. (EISNER, 2010, pag 167).

4. Para definir e ler as histórias em quadrinhos

No prefácio do livro Quadrinhos e Arte Sequencial, Eisner (2010) relembra seu trabalho na Escola de Artes Visuais de New York e deixa clara sua percepção acerca das características únicas que uma história em quadrinhos exigia a seus produtores e, por sua vez, a seus leitores:

A organização do programa desse curso revelou claramente que [...] estive lidando com um veículo que exigia mais habilidades e intelecto do que eu e meus contemporâneos imaginávamos [...] Quando comecei a desvendar componentes complexos [...] descobri que estava envolvido mais com uma "arte de comunicação" do que com uma simples aplicação de técnicas artísticas. (EISNER, 2010)

Levantar essas questões estéticas contribuem para encontrar uma definição clara do que seriam as histórias em quadrinhos, o que, por sua vez também enriquece a experiência de ler um trabalho que se utilize dessa forma de comunicação. A análise histórica feita procura ver o que elas realmente seriam além da simplista expressão "nona arte": "a leitura da história em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual" (EISNER, 2005). Na definição de Eisner:

Arte Sequencial [histórias em quadrinhos] é uma forma artística e literária que lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia. (EISNER, 1989)

Essa definição, no entanto, não diferencia quadrinhos de charges ou mesmo de uma placa de trânsito ou animação (já que os frames destas nada mais são que imagens umas sobre as outras em sequências aceleradas). Assim, por mais clara que pareça, até mesmo sua definição acadêmica, "arte sequencial", não retrata os quadrinhos como deveria.

Assim, na busca por uma definição que pudesse ser concisa e específica às histórias em quadrinhos, Scott McCloud (1995) chegou ao seguinte: "[histórias em quadrinhos são] Imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador." Essa definição exclui uma característica essencial das histórias em quadrinhos: a possibilidade do leitor criar sua própria medida de tempo à trama (McCLOUD, 1995). No entanto, ela por si só já é o suficiente para dar integridade necessária ao objeto deste trabalho. Como terminologias únicas história(s) em quadrinhos e arte sequencial são largamente utilizados (esse segundo, mais como uma opção de sinônimo e por sua tradição de uso iniciada por Will Eisner). Eventualmente, o termo novela gráfica (do inglês graphic novel) também é bem comum.

Indo ao âmbito da leitura da história em quadrinhos, revendo os "elementos complexos" anteriormente explicitados na fala de Eisner, Scott McCloud comenta sobre eles de forma muito clara em sua trilogia de livros (Desvendando os Quadrinhos, Desenhando os Quadrinhos e Reinventando os Quadrinhos), avançando nas interpretações e estudos de seu precursor, chegando a considerar pontos que o grande mestre - talvez por estar fortemente presente como autor, mais do que analista ou crítico de quadrinhos - simplesmente citou ou não discorreu analiticamente. McCloud (2006) estabelece 5 tipos de escolhas que são necessárias aos autores de quadrinhos para produzirem, mas que servem também como análise da mídia que pode gerar uma melhor compreensão leitora dela. São elas:

Escolha do momento;
Escolha do enquadramento;
Escolha das imagens;
Escolha das palavras; e
Escolha do fluxo.

O diagrama a seguir, baseado no modelo descritivo sugerido por Alex Abad-Santos (2015), procura exemplificar esses momentos colocando-os sob o ponto de vista do leitor.

Uma página dominical do Capitão Rapadura, personagem do cartunista Mino, protagonizada por Brinquedo, seu sobrinho, que originalmente foi publicada no finado suplemento infantil do Diário do Nordeste:

Figura 4: Capitão Rapadura e Brinquedo: Chuva (19__) por Daniel Brandão e Denílson Albano.

Agora a mesma tira analisada com marcações dos momentos de McCloud:

Figura 4: Capitão Rapadura e Brinquedo: Chuva (19__) por Daniel Brandão e Denílson Albano

A escolha do momento (1) procura apresentar ao leitor somente as informações necessárias para o desenvolvimento da narrativa. Cada momento funciona como um aspecto específico, com informações por si só esclarecedoras, mas também como uma célula dentro do organismo maior que é a "página", ou seja, sua função vai além dele como unidade, mas como peça fundamental que se comunica com todos os outros quadros. No entanto, um quadro sozinho é a escolha de um momento específico de uma ação contínua, seja ela um instante de uma conversa ou, como em nosso exemplo, o fotográfico instante de uma ação. A escolha do momento possui também uma função estética, a qual é pautada na clareza do instante, na eficiência de suas informações e no desejo de despertar em seu leitor o interesse de se manter olhando para aquele momento, assim como seguir para o próximo. "Quando artistas fazem quadros grandes e largos, eles querem que o leitor diminua a velocidade, gastando algum tempo examinando uma imagem de perto. [...] Ao diminuir o quadro, artistas fazem o caminhar ser mais frenético." (ABAD-SANTOS, 2015). Em nosso exemplo, Brinquedo está brincando de futebol, não somente a representação gráfica do objeto aos seus pés me diz isso, mas o plano inclinado do quadro adicionado ao desenho de seu corpo (a cabeça aponta para a esquerda e os pés para a direita) dão a sensação de movimento, fazendo-nos crer que esse personagem foi "capturado" no instante de uma ação, dando dinamismo ao que poderia ser uma imagem tediosa. Para McCloud (2006) a escolha do momento objetiva "'unir os pontos', mostrar os momentos que importam e cortar os que não importam".
A escolha do enquadramento (2) permite que a escolha do momento funcione dentro da estrutura de página - é como a utilização de uma câmera no cinema. Enquanto a escolha do momento responde a pergunta "o que deve ser mostrado?", a escolha do enquadramento responde "como deve ser mostrado?". A escolha do enquadramento procura "mostrar aos leitores o que eles precisam ver, criar um senso de espaço, posição e enfoque" (McCLOUD, 2006). Em nosso exemplo, a escolha do enquadramento do último quadro em comparação aos cinco anteriores é essencial para a construção da conclusão da história. Os primeiros 5 quadros são como "câmeras" muito próximas: o personagem está sempre sendo retratado de corpo inteiro, mas em planos fechados ou próximos, assim podemos perceber seus movimentos e sua expressão facial (alegre, contente), praticamente "sentindo" esses sentimentos, pela decisão do autor de "aproximar" Brinquedo do leitor. O último quadro, no entanto, mostra Brinquedo de costas em cima de uma casa. Através do plano aberto temos a clareza do resultado das chuvas e de como isso afetou profundamente a alegria previamente mostrada do personagem. Mostrá-lo de costas também possui uma função chave, permitindo que o leitor "conclua" essa história (McCLOUD, 1995), pois, ao não mostrar o rosto de Brinquedo, as possibilidades de sua expresão facial são inúmeras, mas a responsabilidade de tal é dada ao leitor que, naquele momento, deve se identificar com o personagem e, de alguma forma, transmitir seus sentimentos a ele, concluindo em sua cabeça como está Brinquedo.
A escolha das imagens (3) define o "nível" de clareza que determinado enquadramento pode ter (McCLOUD, 2006). Isso implica dizer que o "desenho" (a demonstração gráfica de um determinado símbolo ou do conjunto deles), mesmo em sua representação mais "cartunesca", deve ser compreensível de alguma forma - em linhas simples: a representação de uma pessoa deve lembrar a ideia que temos de uma pessoa etc. No exemplo, o quinto quadro deve deixar claro de que a chuva se tornou mais forte sem revelar o desfecho da história como um todo (último quadro), assim, uma atenção ao topo desse quadro: a representação gráfica das nuvens tenta mostrá-las mais escuras, com o excesso de linhas (hachuras) em sua "borda" demonstrando que ela está "carregada". As linhas retas que compõe a maior parte do quadro procuram representar a chuva e as caóticas elipses na parte inferior do quadro são uma solução que procurar evocar a ideia de muitos pingos de chuva caindo em poças de água. Sendo assim, tudo nessa quadro tenta elucidar em uma representação gráfica a ideia mental que possivelmente a maior parte das pessoas possuem de uma forte chuva.
Uma das maiores questões na leitura e mesmo produção das histórias em quadrinhos envolve a escolha das palavras (4) - em história em quadrinhos, o texto junto às imagens é chamado de letreiramento (EISNER, 1989). Longe de ser um mero acessório dentro da história em quadrinhos, as palavras servem para dar especificidade a uma ideia que poderia levar muito tempo e imagens para ser esclarecida. Em nosso quadrinho exemplo, os textos dos quadros 2 e 3 servem exatamente para isso: mostrar que Brinquedo gosta de chuva, já que o mesmo significado poderia tomar quadros e desenhos demais (podendo, inclusive gerar uma nova história explicando como surgiu esse seu gosto), mas a inclusão de textos de fala já permitem essa clareza, inclusive possibilitando rapidamente o entendimento que sua alegria não é (somente) pelo futebol, mas pela chuva, senso que poderia não ficar claro se existissem somente desenhos aí. Uma boa e compreensiva leitura de uma história em quadrinhos não envolve simplesmente ler o texto ou ver ("ler") as imagens, mas é a correta leitura de ambos os aspectos, como define McCloud (2006): "... nos quadrinhos as duas coisas [palavras e imagens] têm de trabalhar juntas sem emendas, a ponto de os leitores mal notarem quando estão passando de uma para a outra". Eisner (2010) nos lembra que o letreiramento não deve ser somente uma inclusão de palavras que casam com os desenhos, mas essas devem possuir um grafismo, uma estética relacionada à história que está sendo contada: "O letreiramento [...], tratatado 'graficamente' e a serviço da história, funciona como uma extensão da imagem. [...] ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa e a sugestão de som". Os comics (termo utilizado para definir as histórias em quadrinhos americanas e, em grande parte, as histórias de super-heróis) são ricos em exemplos do casamento gráfico de texto com imagem, principalmente na amostragem de onomatopeias. No exemplo a seguir, uma página do quadrinho estadunidense Spider-woman, a onomatopeia que simula o motor da motocicleta é utilizada na parte inferior do primeiro quadro, depois na parte inferior dos quadros 2 e 3, por sua vez, unindo-os - percebe-se que essa "união" vão além da ligação entre os dois quadros, mas a mudança da própria onomatopeia (que passa de "ROAR" para "SCREECH" sem separação das duas palavras por expaço) demonstra que ela "freiou" o veículo inesperadamente, dando uma qualidade narrativa ao texto. A representação do grito de "socorro" ("HELP"), no entanto, é a que demonstra uma das mais criativas potencialidades do uso de texto com imagem numa história em quadrinho: a palavra "HELP" se torna ao mesmo tempo texto de fala e enquadramento (requadro) de situação, isso permite a leitura do pedido de socorro como tendo sido um "grito", tendo em vista seu tamanho, que tomou todo o ambiente daquela situação e foi além: o "grito-requadro" é vazado, ou seja, "entra" no quadro seguinte, em que está a heroína da história, uma estratégia discreta utilizada para fazer perceber que a personagem Spider-woman ouviu o grito, ou que este chegou até ela. A onomatopeia servindo como requadro para uma situação de perseguição, sugerida pelas silhuetas, tenta demonstrar o "onde" (um lugar um pouco mais distante dali) e o "por que" (uma moça sendo perseguida) do grito e prenuncia a situação que a heroina vai enfrentar, seu fundo vermelho acrescenta uma porção de drama e perigo à narrativa.


Figura 5: Spider-Woman (2010) por Dennis Hopeless e Javier Rodriguez.

A escolha do fluxo (5) demonstra visualmente, através de semelhanças e contrastes, aspectos da história que funcionem para o engrandecimento de sua narrativa, fazendo, de forma discreta ou não, que o leitor seja guiado através dos quadros para compreensões e direcionamentos possíveis. É um dos mais importantes aspectos de uma história em quadrinhos porque é o que realmente sugere um raciocínio de leitura. Antes disso, no entanto, é preciso que autores e leitores tenham em mente que a ordem de leitura (ocidental) parte da esquerda para a direita e de cima para baixo. Nosso exemplo da figura 4 segue essa lógica, mas é importante lembrar que ela não é a única. Os quadrinhos orientais (japoneses) tratam a leitura da direita para esquerda e de cima para baixo, enquanto o autor norte-americano Chris Ware, principalmente em seus livros Jimmy Corrigan: O menino mais esperto do mundo (Companhia das Letras, 2009) e Building Stories (Patheon Books, 2012), procura quebrar essa lógica trazendo inúmeras possibilidades de "direções" de leitura ao adotar a linguagem dos gráficos e dos quebra-cabeças para dar ao leitor um maior poder na construção da história. Em nosso exemplo da figura 4, foi desenhada uma linha verde que procura demonstrar como as linhas do desenho ajudam o leitor no direcionamento da história: os olhos de Brinquedo estão apontando para o título da história, lugar de onde (espera-se) partiu o leitor, assim, eles servem como "porta de entrada" do leitor nessa narrativa gráfica. Acompanhando o desenho do corpo do personagem, seu pé esquerdo (o que está à frente no movimento) aponta para o quadro seguinte, cujo desenho possui uma discreta "sugestão de ângulo" entre o braço esquerdo e a perna direita do personagem que tenta funcionar com o primeiro "agarrando" o olhar do leitor que veio do quadro 1 e "arremessa-o" com a segunda para o quadro 3. Neste, o corpo do personagem, especificamente na forma como estão dispostas suas pernas, cria linhas imaginárias que guiam o olhar para o quadro 4, em que a representação gráfica do relâmpago forma um ângulo com a onomatopeia de trovão "CABRUM!", a qual já nos guia para o quadro seguinte, em que a representação das linhas da chuva direcionam o leitor para o derradeiro quadro. Todos esses direcionamentos foram feitos sem setas ou indicações textuais, mas se utilizando de uma lógica gráfica existente no desenho, em que linhas "imaginárias" vão dando "sugestões" discretas da maneira de ler a história em quadrinho a fim de compreendê-la por completo.

5. Conclusões

Existe uma forte corrente de estudos que procura arduamente mostrar que as histórias em quadrinhos são mais que aparatos de entretenimento infantil ou uma forma de arte marginalizada, surgida em meios pouco consagrados, mas uma linguagem única, com milhares de possibilidades de comunicação e expressão e que poderia ser utilizada em diferentes meios para diversos fins. Will Eisner, célebre quadrinista e estudioso americano, talvez não tenha sido o primeiro a levar a linguagem das histórias em quadrinhos para a academia com esse objetivo, mas com certeza foi o mais consagrado. Scott McCloud ampliou os estudos de Eisner e diversos brasileiros, como Moacy Cirne e Álvaro de Moya, extenderam as discussões para além dos gibis de bancas.

A ideia deste artigo é apresentar um acesso rápido a parte das conclusões desses estudos, continuando esses debates sobre a linguagem das histórias em quadrinhos e servindo de introdução a um aprofundamento de seus conceitos.

6. Bibliografia

Livros
CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1972.
CIRNE, Moacy. História e crítica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro: Ed. Europa/Ministério da Cultura - Fundação Nacional de Arte, 1990.
CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: Da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1975.
EISNER, Will. BOIDE, Alexandre & BORGES, Luís Carlos (trad). Quadrinhos e Arte Sequencial. 4. ed. WMF Martins Fontes: 2010
EISNER, Will. MANTO, Leandro Luigi Del (trad). Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir, 2005
VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (org.). Muito além dos quadrinhos: Análises e Reflexões sobre a 9ª Arte. São Paulo: Devir, 2009.
McCLOUD, Scott. SANTOS, Roger Maioli dos (trad). Desenhando Quadrinhos: Os segredos das narrativas de quadrinhos, mangás e graphic novels. São Paulo: M. Books, 2008
McCLOUD, Scott. SANTOS, Roger Maioli dos (trad). Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books, 2005
McCLOUD, Scott. Reinventing Comics. Canada: Paradox Press/DC Comics, 2000.
MOYA, Álvaro de. Shazam. São Paulo: Perspectiva, 1977.

Filmes
CARTER, Mac. Secret Origin: The story of DC Comics. [Filme-DVD]. Produção de Janet Fries Eckholm, Gregory Noveck e Sean Welch, direção de Mac Carter. Estados Unidos, DC Entertainment, 2010. Documentário, vídeo, 90 minutos. Dolby digital, Inglês.
MANN, Ron. Comic Book Confidential. [Filme-DVD]. Produção de Don Haig, Martin Harbury e Charles Lippincott, direção de Ron Mann. Estados Unidos, Canada, Sphinx Productions, 1988. Documentário, vídeo, 90 minutos. 35mm, Inglês.

Sites
ABAD-SANTOS, Alex. How to read a comic book: Appreciating the story behind the art. Vox. Disponível em http://www.vox.com/2015/2/25/8101837/ody-c-comic-book-panels. Acesso em 16 mar. 2015.
AGOSTINI, Angelo. As Cobranças. Disponível em: http://www.platinumagecomics.org/gallery/main.php?g2_view=slideshow.Slideshow&g2_itemId=120 Acesso em 9 mar. 2015.
HOPELESS, Dennis & RODRIGUEZ, Javier. Spider-Woman #5. Disponível em http://www.comicbookresources.com/?page=article&id=58671. Acesso em 2 abr. 2015.

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