Um calígrafo/pintor de manuscritos em Vila Rica no século XVIII - reflexões sobre interlocuções culturais

July 5, 2017 | Autor: Márcia Almada | Categoria: Art History, History of Reading and Writing, Calligraphy
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Actas do IV Congresso de História da Arte Portugesa em Homenagem a José-Augusto França

21 NOVEMBRO SESSÃO TEMÁTICA 1 – DA “ARTE COLONIAL” ÀS “ARTES E A EXPANSÃO”: DINÂMICAS RECENTES

Um calígrafo/pintor de manuscritos em Vila Rica no século XVIII: reflexões sobre interlocuções culturais Márcia Almada1 Escola de Belas-Artes –Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Este artigo tem por objetivo apresentar o trabalho de um calígrafo/pintor que atuou na região de Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. A partir de suas obras, a atenção recairá sobre as formas de aprendizado e trabalho nesta atividade que, ainda no século XVIII, era revestida de importância e significação. Os documentos adornados veiculam não só o texto, mas também a imagem, que é constituída pelo planejamento gráfico do documento, o tipo de letra escolhido e os elementos decorativos e simbólicos das pinturas e desenhos que os adornam. Analisados sob uma perspectiva cultural, mostram-se em toda a sua complexidade. Assim, trabalhar sobre a caligrafia e a pintura em manuscritos exige necessariamente uma interdisciplinaridade que envolve os campos da história da arte, história da cultura escrita e história da educação. A partir das condições materiais dos documentos, buscam-se respostas sobre questões em torno de sua produção, circulação e recepção, envolvendo os sujeitos e instituições e suas práticas sociais. Ainda é novo o interesse por este tema no meio acadêmico no Brasil e são poucas as pesquisas que têm sido desenvolvidas; por este motivo, os resultados ainda são incipientes. O calígrafo/pintor de Vila Rica ainda não tem seu nome conhecido, tão-pouco a sua formação e origem. Ainda assim, ele será visto como um representante de profissionais que, como ele, trabalharam na ornamentação de documentos em uma sociedade em intensa transformação durante no início do século XVIII. Não se pode considerar que ele é totalmente anônimo, pois suas produções já identificadas lhe conferem pessoalidade. O seu trabalho pode iluminar três pontos da reflexão sobre a pintura em manuscritos na Era Moderna: 1) a permanência e a importância desta prática durante o século XVIII; 2) a confluência de interesses culturais em um âmbito mundializado, que se traduz tanto pela demanda de bens simbólicos quanto pela sua capacidade de realização, circunstância que será analisada através da produção de documentos adornados em Minas Gerais; e 3) a adaptação necessária quanto às exigências técnicas, estéticas e iconográficas, relacionada tanto à forma de aprendizado dos profissionais quanto às exigências dos comitentes. Em primeiro lugar, é necessário discorrer sobre a importância da ornamentação de manuscritos durante o século XVIII. Esta é uma prática que se iniciou no período Clássico e que se firmou como tradição durante a Idade Média. A imprensa não aniquilou a circulação de informações através dos manuscritos, como pode ser confirmado em diversas pesquisas recentes sobre o assunto.2 Pelo contrário, quando a tipografia se tornou preponderante na difusão de informações em grande escala, a individualidade foi uma das qualidades destacadas do manuscrito em relação ao impresso, sendo usada como elemento de particularização. Além disso, a prática de ornamentação do documento se coadunava com a importância da visualidade na sociedade setecentista e acabava por revestir solenemente alguns manuscritos de um caráter de raridade, poder e tesouro. 1

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais pelo apoio concedido para participação no evento. 2 BELO, 2004; BOUZA ÁLVAREZ, 2001; CHARTIER, 2003; LISBOA; MIRANDA, 2009.

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Assim, estava o calígrafo/pintor de Vila Rica a trabalhar nas primeiras décadas do século XVIII na região das Minas, uma sociedade urbana em intensa transformação (lembre-se que as primeiras vilas foram criadas naquela região a partir de 1711). São quatro as suas obras atualmente identificadas (Figs. 1 a 4); todas são compromissos de irmandades realizados entre 1725 e 1735, sendo três para irmandades de Vila Rica e um para uma irmandade de Congonhas do Sabará, duas importantes freguesias instituídas em torno de áreas mineradoras a partir de fins do século XVII. É possível que tenha realizado outros trabalhos, que ainda não foram localizados e listados, pois este é sem dúvida um dos nomes que marcaram a atividade da ornamentação de manuscritos naquela região na primeira metade do século XVIII. A primeira pergunta sobre esse profissional refere-se à forma de aprendizado do ofício. É sabido que o ensino da escrita em Portugal, antes do século XVIII, estava ligado aos calígrafos, que dividiam suas múltiplas atividades profissionais com o ensino.3 Poderia ser também um complemento profissional de sacristães, bacharéis ou mesmo de outros profissionais cujas atividades não se relacionassem com a escrita. Era comum que os professores ensinassem em sua própria casa, mesmo que fossem aulas ligadas às instâncias político-administrativas, mas a prática também se realizava durante a aula de catequese ou de canto. Na América portuguesa, a educação dos meninos, na maior parte, era feita pelos próprios pais, por parentes, capelães ou por mestres particulares. A caligrafia poderia ser aprendida também sem o auxílio de mestres, fazendo uso de obras impressas ou cópias manuscritas, como dizem alguns dos tratadistas da arte da escrita que publicaram suas obras entre os séculos XVII e XVIII.4 Um dos exercícios era copiar as letras em seus tracejados inúmeras vezes, para cada estilo que se quisesse aprender e para isso existiam pranchas específicas. Após o domínio das letras, o aluno passava a copiar boas mostras de textos, que poderiam tanto ser processos judiciais quanto textos de caráter religioso ou de educação moral, contendo exemplos de grandes cavalheiros. Dessa forma, as mostras de letras cumpriam função doutrinária e pedagógica, ao pretender treinar a mente e as mãos dos jovens. Essas pranchas poderiam estar impressas em manuais ou ser elaboradas pelo próprio punho do professor. Quanto aos impressos, discípulos e mestres portugueses utilizaram livros editados em outras línguas devido à ausência de impressões nacionais destinadas ao ensino da caligrafia durante mais de um século (entre a suposta edição de 1572 de Manoel Barata5 e a obra de Manoel de Andrade de Figueiredo, em 1722, decorreram-se 150 anos). A proximidade cultural e linguística fazia que manuais espanhóis fossem os preferidos até à primeira metade do século XVIII. Essa aproximação também se revelava na produção dos calígrafos portugueses: Giraldo Fernandez de Prado, em seu tratado de caligrafia manuscrito em 1560-61, seguiu de perto os conceitos visuais da letra do espanhol Juan de Iciar, expostos em sua obra publicada dez anos antes. O próprio Manoel de Andrade de Figueiredo, o expoente máximo da caligrafia portuguesa do século XVIII, usou referências dos seus colegas espanhóis: no que se refere à elegância e galhardia do traço, Andrade, por exemplo, era comparado a Pedro Díaz Morante, chegando a ser identificado como o “Morante português”; já nas questões pedagógicas e conceituais da letra, Andrade seguiu muito de perto José de Casanova, que publicou seu livro em 1650 em Madrid. As letras ornamentadas e volteios decorativos eram igualmente aprendidos através da cópia. Morante pedia a seus alunos mais avançados que treinassem volteios para que soltassem a mão e os usassem de forma moderada nos documentos. Andrade mostrava em seu livro vários exemplos de letras adornadas e desenhos caligráficos para bordaduras e vinhetas, que poderiam ser copiados por quem quisesse (e assim foi feito, pois alguns desses elementos se tornaram populares e repetidos à

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MAGALHÃES, 1994. ANDRADE, 1722; MORANTE, 1629 e 1631. 5 BARATA, 1590. A edição de 1572 é citada por alguns autores, porém não existe um exemplar conhecido atualmente. 4

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exaustão). Outro autor, José Lopes Baptista de Almada,6 ensinava alguns truques para que os volteios parecessem ter sido feitos de uma só vez, perícia só alcançada pelos melhores calígrafos. Essa matéria dos desenhos feitos a partir de volteios caligráficos era tão complexa que havia uma distinção conceitual entre eles: os chamados “naturais” eram aqueles elaborados sem estudos prévios, tracejados pelos grandes calígrafos; os “artificiais” eram feitos a partir de um desenho prévio, que depois era copiado para o documento através da técnica do “picado” ou spólvero e que poderia ser usado inúmeras vezes; os “de memória” eram aqueles que eram constantemente repetidos por um calígrafo com pouco repertório decorativo; e os “de fantasia” eram aqueles em que a pena era trabalhada livremente, com enredos primorosos, sem planejamento prévio, executados com tanta liberalidade que nem mesmo poderiam ser repetidos. Também o aprendizado da pintura decorativa de manuscritos era feito através da relação mestrediscípulo ou através da leitura de tratados de pintura e de manuais práticos, os livros conhecidos como “segredos das artes liberais”, comuns nos séculos XVII e XVIII. Isso porque a letra pintada e os desenhos ornamentais não eram ensinados na maioria das publicações de caligrafia. As obras de Morante, por exemplo, apresentam vários desenhos caligráficos primorosos de sua mão, mas não fornecem explicações de como fazê-los. Já Andrade gravou diversos modelos de letras capitulares, algumas de caráter pictórico, mas não forneceu as receitas de tintas para iluminação nem ensinou como traçar ou copiar os modelos disponibilizados. Em alguns tratados de pintura, a técnica da iluminação também era abordada, muito embora as regras de utilização das cores, de composição e de proporção fossem apresentadas como comuns à pintura em outros suportes. Sabemos que a relação do espectador com a pintura está associada ao suporte que a abriga e à sua localização e função. Asencio y Merojada, outro calígrafo espanhol setecentista, explicava como a clareza e a visibilidade das letras se transformavam de acordo com o suporte, a técnica de inscrição e a combinação de cores, tal como a pintura.7 Ainda que as letras tivessem sempre uma mesma figura, sua legibilidade dependia da distância ou da altura em que estivessem inscritas e da cor e superfície do suporte. Mesmo tendo um mesmo corpo, os efeitos de nitidez se modificavam conforme uma série de variáveis que estavam relacionadas com o conjunto estético da obra que recebia a inscrição, sendo ela um documento, uma pintura em tela ou em forro, uma lápide ou um monumento. Por isso o autor defendia a necessidade de dominar os conceitos da geometria e da perspectiva, assim como as teorias da cor, considerando o ponto de vista do observador, definindo deste modo um campo de conhecimento que aproximava a escrita da pintura. O calígrafo/pintor, portanto, deveria saber manejar essas especificidades. A prática e a observação, aliadas ao domínio de alguns conceitos teóricos, eram os verdadeiros mestres dos iluminadores. Dos tratados que abordavam a pintura em manuscritos podemos destacar a Arte da pintura: symetria e perspectiva de Filipe Nunes, um dos poucos títulos em língua portuguesa que foram impressos no século XVII, tendo sido reeditado no século XVIII. Foi bastante utilizado em sua época e copiado intensivamente ao longo dos séculos XVII e XVIII, em versões integrais ou parciais, para compor as bibliotecas conventuais e particulares. Havia também edições mais populares, como a já citada obra de José Lopes Baptista de Almada – Prendas da Adolescencia ou Adolescencia Prendada – no formato de dicas e receitas que ensinavam de forma direta os métodos operativos, incluindo as técnicas de cópias de modelos. Ainda devem ser lembradas as muitas obras formadas a partir dos cadernos de anotações dos amadores da arte da pintura sobre papel, que sintetizavam as informações coletadas em diversos campos e que acabaram por circular entre vários proprietários. Algumas vezes esses cadernos continham, além da informação textual sobre as “receitas” de pinturas, uma série de modelos iconográficos que poderiam ser reproduzidos e que faziam parte do aprendizado do pintor de manuscritos.

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ALMADA, 1749. ASENSIO Y MEJORADA, 1780.

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Para dar subjetividade e esse processo de formação profissional, podemos usar as anotações autobiográficas de Manuel de Faria e Sousa, extensamente trabalhadas por Edward Glaser e por Diogo Ramada Curto.8 Faria e Sousa era originário de uma família da nobreza da região do Minho. Seu avô e seu pai dominavam a escrita e a leitura e foi este último quem lhe ensinou a ler e a escrever, rompendo com uma tradição aldeã do Seiscentos português. A leitura aprendeu pela repetição de poemas de autores latinos, italianos e espanhóis. A escrita exercitou a partir das obras de Manuel Barata e do espanhol Ignácio Perez,9 emprestadas de um escudeiro vizinho. Tendo muito interesse pela caligrafia e pelos documentos adornados, passou a copiar figuras de livros religiosos impressos e depois a desenhar e a pintar. Após esse início autodidata, aos nove anos foi encaminhado a um mosteiro beneditino com o objetivo de estudar a gramática com um abade amigo de seu pai, mas acabou por se interessar mais pelas aulas de caligrafia que outro religioso lhe ministrava. Dos 10 aos 14 anos, foi discípulo de um clérigo teólogo, tendo se transferido em sua companhia para Braga. Naquele período, apesar de todos os esforços, pouco se dedicava à gramática e continuava mais preocupado com as boas letras e as pinturas e desenhos de frontispícios. Posteriormente, enquanto prestava serviço ao Bispo do Porto, foi novamente discípulo de um cônego beneditino, um excelente calígrafo, quando pôde se aperfeiçoar nas artes da iluminura e da boa letra. Quanto ao calígrafo/pintor de Vila Rica, tendo em vista a qualidade técnica e estética dos trabalhos e seu desenvolvimento posterior, é possível que tenha aprendido o ofício a partir de receitas simplificadas de preparo e aplicação das tintas e copiando uma série de modelos que lhe estavam disponíveis. Nas suas quatro obras, o calígrafo seguiu dois modelos distintos de planejamento visual. Os dois realizados em 1725, para duas localidades diferentes, pouco se diferem no que se refere ao desenho gráfico das páginas, especificadamente o tipo de capitulares, as vinhetas e a letra usada no texto; além disso, as obras são marcadas pela cópia direta, com algumas adaptações, dos modelos de letras de Andrade (Fig. 5) e de vinhetas do espanhol Pedro Díaz Morante (Fig. 6). Os outros dois, realizados em 1734 e 1735 para duas irmandades diferentes da Matriz de Vila Rica, apresentam as mesmas características de pintura e design da página, embora o profissional tivesse promovido uma diversificação maior quanto à escolha dos elementos decorativos individuais, como as letras capitulares e as vinhetas (Figs. 3 e 4). Ao longo de dez anos, o calígrafo foi capaz de se desenvolver no estilo e na técnica do uso das cores e dos traços do desenho. Ele manteve seu padrão executivo, mas conseguiu ampliar seu repertório, que foi posteriormente apropriado por outros profissionais que trabalharam para irmandades da Matriz de Vila Rica. O calígrafo/pintor de Vila Rica possuía uma apurada cultura visual da escrita, pois dominava variados tipos de letras e claramente teve contato com mais de uma obra sobre caligrafia. Utilizou modelos de capitulares usados em compromissos portugueses de fins do século XVI, fez uso extensivo da obra de Manoel de Andrade de Figueiredo, especialmente no uso das capitulares para iluminação, e copiou desenhos de Pedro Díaz Morante, cujas vinhetas caligráficas lhe serviram de molde e modelo em mais de uma situação. É impossível, hoje, saber qual era o acervo do calígrafo: se exemplares completos da publicação de Andrade e de duas obras de Morante, se gravuras avulsas (que eram vendidas mesmo na escola de Morante e depois por vários comerciantes) ou se possuía cópias manuscritas. Quanto ao modelo de capitular encontrado na caligrafia portuguesa de fins do Quinhentos, é correto afirmar que este padrão manteve-se atualizado pelas inúmeras repetições na clicheria de capitulares de obras impressas. A manutenção de referências tradicionais da caligrafia explica-se porque, como afirma João Adolfo Hansen,10 neste período a invenção era mais uma combinação de elementos já coletivizados, dispostos de uma forma aguda e nova, do que propriamente um rompimento com a tradição.

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CURTO, 2007; GLASER, 1975. BARATA, 1590; PEREZ, 1599. 10 HANSEN, 2004. 9

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A segunda pergunta refere-se à forma de relacionamento entre o calígrafo/pintor de Vila Rica e os comitentes. Ele atendia principalmente às irmandades situadas em Vila Rica, mas não fazia distinção da qualidade social de sua clientela. Dos seus dois trabalhos de 1725, um foi feito para uma irmandade do Santíssimo Sacramento, que reunia homens brancos, com posses e com “ascendência pura”, e o outro para uma irmandade devota a São Gonçalo, que reunia homens pardos, que realizavam atividades econômicas diversas. Apesar de os públicos serem tão diferentes entre si, não existe nenhuma distinção entre qualidade material, modelos utilizados ou decoração adotada nesses dois documentos. Este é um exemplo claro de que grupos sociais distintos, da elite às camadas mais populares, fizeram uso da escrita, em suas formas gráficas rebuscadas ou mais simplificadas, superando a suposta dicotomia entre letrados e iletrados. Os outros dois trabalhos foram realizados para duas irmandades situadas na Matriz de Vila Rica: a de Nossa Senhora do Pilar (1734) e a de São Miguel (1735), repetindo um mesmo padrão de design, mas usando tipos diferentes de capitulares e vinhetas. As capitulares de tradição quinhentista encontradas na obra de 1734 foram posteriormente adotadas por outro calígrafo na elaboração do compromisso da irmandade do Santíssimo Sacramento da mesma Matriz, em 1738. Este calígrafo, por sua vez, repetiu o trabalho em compromissos para irmandades de outras duas localidades, sendo, portanto, um difusor de modelos entre irmandades e localidades. Seguindo o caminho dos calígafos/pintores, compreende-se o mecanismo de propagação dos padrões: ora por auto-referência, ora por emulação de trabalhos de profissionais próximos, seja por demanda de comitentes que exigiam determinados modelos de documentos já conhecidos, seja por iniciativa do próprio calígrafo/pintor. Igualmente percebem-se as maneiras pelas quais o conhecimento circulava no século XVIII: impressos e manuscritos, cadernos pessoais, oralidade e visualidade. As ideias eram propagadas em modelos e fórmulas que se repetiam e conformavam as práticas sociais acostumadas à repetição. O calígrafo/pintor de Vila Rica seguiu esse processo: ao mesmo tempo que fazia uso de tradições de ornamentação quinhentistas e seiscentistas, com muita rapidez se apropriou de um estilo recém-divulgado em Portugal através do livro de Andrade. A despeito do contato com referências significativas da sua área profissional, a maneira de aplicação das técnicas pictóricas e dos modelos sugere a informalidade de seu desenvolvimento artístico. Isso remete para uma terceira pergunta importante: como, das Minas, esse profissional teve acesso tão rápido aos modelos publicados somente três anos antes em Lisboa? Tiago Miranda lançou a hipótese de que ele poderia ser originário do Reino e ter se transferido para aquela região já com experiência adquirida, passando a exercer sua atividade no âmbito privado. A resposta a essa pergunta só poderá começar a ser construída após se conhecer o seu nome, origem, formação e destino. São, sem dúvida, caminhos importantes a ser percorridos porque têm relação com as questões que abordei anteriormente: a transmissão, a recepção e a transformação de padrões e conhecimento em uma cultura mundializada. Mas, independentemente disso, ele representa um paradigma da circulação de valores, saberes e modelos na Era Moderna.

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Fig. 1 – Compromisso da Irmandade de São Gonçalo, da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Vila Rica, Minas Gerais, 1725. Acervo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Portugal

Fig. 2 – Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas, Minas Gerais, 1725. Acervo Arquivo Público Mineiro, Brasil.

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Fig. 3 – Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora Pilar, Matriz de Villa Rica, Ouro Preto, Minas Gerais, 1734. Acervo Arquivo Eclesiástico da Paróquia do Pilar de Ouro Preto, Brasil

Fig. 4 – Compromisso da Irmandade do Arcanjo São Miguel, Freguesia de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto, Minas Gerais, 1735. Acervo Arquivo Eclesiástico da Paróquia do Pilar de Ouro Preto, Brasil.

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Fig. 5 – Letra adornada de Manoel de Andrade de Figueiredo e letra do Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas sobrepostas.

Fig. 6 – Desenhos de Pedro Díaz Morante e vinheta do Compromisso da Irmandade de São Gonçalo, da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Vila Rica sobrepostas

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BIBLIOGRAFIA

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