Um Espinho no Coração do Mundo - Racialização, Sexualidade e Insubordinação Subjetiva

June 14, 2017 | Autor: Osmundo Pinho | Categoria: Queer Studies, Black/African Diaspora, Masculinities, Frantz Fanon, Pagode
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Mesa - Racismo, Gênero e Sexualidade: Politizando a Violência e o Amor



Um Espinho no Coração do Mundo Racialização, Sexualidade e Insubordinação Subjetiva



Osmundo Pinho1

Em “Pele Negra, Máscaras Brancas” Fanon demora-se na análise da posição de sujeito representada por Jean Veneuse, personagem do romance de René Maran “Um homem entre os Outros”. Veneuse sofre porque busca aceitação, reconhecimento, humanidade através da conquista da mulher branca. Ele deseja o

poder refletido em sua carne: “Esposo a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca. /Nestes seios brancos que minhas mãos onipresentes acariciam, é da civilização branca, da dignidade branca que me aproprio” (Fanon, 2008: 69). Mas Veneuse seria um abandonico, antecipa a rejeição passada que se repete como uma mania, autonegação e fuga para fora de si mesmo: “Jean Veneuse gostaria de ser um homem como os outros, mas sabe que sua situação é insustentável. Ele é um pedinte. Ele procura tranquilidade, a permissão nos olhos do branco. Pois ele é o ‘outro’”. (Fanon, 2008: 78). Veneuse, não pode ter paz, nem encontra reconciliação com o próprio desejo, pois o seu próprio desejo é a sua própria negação. Jean Veneuse é um neurótico? Um “cruzado da vida interior”? Enfrentando o mundo que nega, assumindo-o por denegação? Ora, diz Fanon, o romance na verdade é uma impostura, que posiciona a neurose, a “tara” da cor como fundamento do sofrimento, do desconsolo, da perpetua inadequação de Veneuese. A “cura” de Vaneuse passa por enfrentar o “mundo”, enfiar-se em seu coração como um espinho, “deslocar se necessário, o sistema de comando; em todo caso, seria preciso como determinação, enfrentar o mundo” (p. 80). (Ênfase no original)

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Professor Adjunto IV no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, campus de Cachoeira, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no Mestrado Profissional em Historia da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas da mesma universidade. E no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Universidade Federal da Bahia. Osmundo Pinho Brasília, 11 de novembro de 2015

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É considerando esse complexo que Lewis Gordon insiste na articulação de gênero para a “precariedade ontológica” que definiria a negritude no mundo antinegro ou colonial. Como outros tantos tem insistido, a racialização da sexualidade e a sexualização da raça, são dispositivos fundamentais de uma biopolítica póscolonial. Desse ponto de vista, a negritude como condição estrutural que se conforma como uma estrutura de disposições subjetivas, essencialmente violentadas, é fundamentalmente uma ausência, ou vazio, definida por uma precariedade ontológica baseada em uma fenomenologia do racismo vivido no corpo, como “a experiência vivida do homem negro”, tal qual uma esvaziamento, abandono de si mesmo, e a busca de reconhecimento por meio do olhar branco, o único que poderia, malogradamente, oferecer ao Homem negro a certeza de que ele de fato “é”. Dessa forma, para Gordon a negritude é um ser-buraco, o homem negro é o seu próprio pênis que é um buraco e as mulheres negras são vaginas que são buracos. Haveria uma ambiguidade essencial na negritude, buracos que são buracos. O “buraco” é o modo institucional da má-fé para o feminino – porque a mulher é um “homem mutilado”, do ponto de vista da psicanalítica burguesa - e todos os negros estão dessa forma em uma condição feminina, porque extrairiam sua completude da relação com esse Outro poderoso que os preenche2. A conexão entre o racismo anti-negro e a misoginia poderia ser assim melhor entendida, na medida em que mulheres brancas podem ter filhos brancos ou negros, mas mulheres negras só podem ter filhos negros. Sendo que a mulher branca é a matriz primária da afeição para com a negritude e sendo o homem branco pura presença, a masculinidade plena, em sua forma mais gloriosa e que é negada ao homem negro que não se completa na virilidade ou masculinidade como a figura de negação que fecha, preenche ou completa buracos ou o vazio, porque ele próprio é esse vazio. Em presença da masculinidade branca, o homem negro é um buraco a ser 2 Em uma ocasião repetia argumentos como esse um evento publico na Bahia, e uma moca branca, com sotaque estrangeiro, me interrompeu irritada acusando-me de machista e misógino, enquanto seu namorado negro permanecia ao seu lado em silêncio

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preenchido, o que para Gordon definiria uma situação homoerótica. Diante do homem negro, a mulher branca se torna o homem branco que o preenche, outra situação homoerótica, porque no mundo anti-negro o phallus – o símbolo máximo do poder penetrante da lei, da ordem e do significado - é a pele branca. Rejeitando sua feminilidade o Homem negro não pode fazer outra coisa se não rejeitar sua negritude, o que é, obviamente impossível, e assim temos Jean Veneuse. Como diz entretanto Fanon, a subjetividade abandonica de Veneuse, não é exatamente o problema, mas sim o “mundo”, que deveríamos destruir. Esse mundo no qual a sexualização incorporada do homem negro o coloca diante de impasses intransponíveis. Historicamente as comunidades negras tem buscado escapar a esse dilema fugindo em direção às chamadas politicas da respeitabilidade. Assumindo, para nossa própria desgraça, os mesmos valores eurocêntricos, burgueses, patriarcais que nos oprimem. Em ambos os lados da fronteira das preferências sexuais encontramos a mesma ansiedade em corresponder por negação as expectativas de incorporação da cultura dominante, notadamente do ponto de vista moral. E como Mara Viveros (2015) , e outros tem demonstrado, nas sociedades pós-coloniais da América Latina a moralidade como uma fronteira, efetivamente colonial, define quem somos “nós” e os “outros”. Nesse contexto, a resposta, do ponto de vista das comunidades negras, tem sido muitas vezes de hiper-moralização e demonização de mulheres de comportamento sexual autônomo ou de homens com praticas homoeróticas. E, nesse sentido, o ponto que queremos enfatizar nessa apresentação é o significado politico da insubordinação sexual negra, como fonte de desestabilização para politicas de integração, que elegem a moralidade burguesa, o patriarcado e a norma heterossexual como paradigmas. Ora, entretanto, a cidade (diríamos o território-corpo) do colonizado, a cidade fantasma, engolida pela neblina intoxicante da sombra da morte “é um lugar mal afamado” (Fanon, 2005). A sexualização da raça e a racialização do sexo dependem da operação dessas fronteiras morais que são assim basicamente

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coloniais, definindo epistemologias corporais que produzem, tentam produzir, a docilidade dos corpos, um novo habitus “assimilado”, mas em permanente contradição com o fato fundamental, epidérmico, fobogênico, da negritude. Harney e Motem insitem com maior vitalidade: “Negritude é o lugar onde a absoluta nãoexistência (nothingness)e o mundo das coisas convergem” (2013: 95). Como temos discutido em outros locais a indissociabilidade entre a negritude e a forma-mercadoria - absolute nothigness and the world of things - é histórica e estruturalmente estabelecida como o antagonismo racial geral, o que define uma condição estrutural para fungibilidade a que se referem Saxton e Hartman, como elemento definido da morte em vida, ontologia do escravo que persiste como modelo paradigmático de formação dos sujeitos racializados. Desse ponto de vista, a experiência do porão (hold) para esse corpus paradigmático é uma experiência de vertigem e fantasia – alucinação - em meio ao terror da opressão e a luta incessante contra o próprio corpo – encarnado. Como diz Frank Wilderson: “A subjetividade negra é uma encruzilhada onde a vertigem se encontra, a interseção do performativo e da violência estrutural”. (Wilderson, III). Ou como aparece em Manthia Diawara, para quem o imaginário negro está longe de ser um espaço fixo, muito menos um mero repositório de estereótipos coloniais, ainda que não possa evitar dialogar com estes. Mas é, inversamente, um espaço em transformação e autoprodução em diálogo com formas, estereótipos e/ou tradições não reconhecidas, que está implicado em reinventa-lo continuamente. Como a sexualidade e a licenciosidade presentes na cultura negra, ou no imaginário da diáspora, podem ser canal de expressão, ou ponto de partida para desconstruções criticas e reinvenções é uma matéria aberta definida pela “guerra de posições” em torno da legitimidade sobre as representações do corpo negro, sua “respeitabilidade” ou possibilidade de integração, assim como pela supressão de comportamentos sexualmente inadequados, incompatíveis com a “civilização”. Edmund Gordon lança mão da conceito de “repertórios culturais”, para iluminar as políticas de identidade pragmáticas que organizam subjetividades

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masculinas na comunidade afro-americana. Tal “repertório” incluiria a “respeitabilidade”, com raízes em releituras patriarcais de tradições africanas e influenciadas por ideias cristãos de decência e responsabilidade, e que visaria em larga medida, como aponta Cathy Cohen (2004), integração social e minimização dos efeitos do racismo por meio da morigeração do comportamento e do controle da sexualidade e do corpo da mulher. Acreditamos dessa forma, como Cathy Cohen, que é fundamental a consideração politica da formas vernáculas de “desvio” como plataforma para politização de sexualidades, corpos e subjetividades dissidentes, desconformes, nãorespeitáveis e antagônicas aos valores sociais dominantes. E essas incorporações do desvio não são exclusivamente, e eu diria, nem principalmente, LGBT’s. No contexto do Brasil contemporâneo interpelam uma série de outros sujeitos, representados como desviantes, perigosos, pornográficos, inassimiláveis, abjetos, não-respeitáveis. Ou, em uma palavra queers. Os estudos queers, continua Cohen, esquecem da raça e das relações de classe para considerar a produção de subjetividades insurgentes. Os estudos “black” esquecem da sexualidade e dos comportamentos não-respeitáveis, ou inassimiláveis, para construir uma teoria emancipatória. Dessa forma, mães solteiras, ou com comportamento sexual não-convencional, homens negros não-homossexuais que fazem sexo com outros homens (down low), sujeitos institucionalizados, ou egressos de presídios e outras instituições “totais”, transexuais, transgêneros, trabalhadorxs sexuais, e arranjos familiares não-nucleares ou patriarcais, são excluídos dos modelos reconhecidos de identidade e subjetividade. Cathy Cohen apela para a radicalização da política e da teoria queer de modo a incorporar a agenda e as experiência de sujeitos oprimidos e marginalizados em função de sua sexualidade e ou comportamento de gênero e que não são apenas LGBT (2004). Num horizonte de crescente normalização e integração das identidades gays e lésbica no aparato político geral da supremacia branca e de classe, normalização sancionada pelos modos narcisistas de representação política da agenda LGBT no Brasil, onde a

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palavra queer tornou-se senha para uma modernização das velhas politicas de identidade ou penduricalho exótico em carreiras acadêmicas, tal exortação me parece fundamental: “Lamentavelmente, deixado largamente inexplorado tem sido o papel da raça e de sua relação com o poder dominante na construção do conjunto de possibilidades públicas e privadas para tais conceitos fundamentais - comportamentos como desejo, prazer e sexo. Assim, enquanto nós podemos falar de heterossexuais e queers, esses rótulos-categorias nos dizem muito pouco sobre as diferenças de poder relativo entre, por exemplo, homens gays brancos de classe média e mulheres negras pobres heterossexuais”. (Cohen, 2004: 29). Nesse sentido, argumentamos pela consideração das subjetividades e performances articuladas da dissidência sexual negra, que não é apenas homossexual, como instâncias contestadas de representação para posições de sujeito insubmissas. E mais, entendemos como uma tarefa política e crítica fundamental abordar o corpo negro, em suas encarnações performadas, e em suas articulações discursivosubjetivos, de modo a interpelar os vetores críticos de insubordinação e resistência, presentes, em modos contraditórios nessa articulações, sobre-determinadas pelo racismo, pela alienação e pela colonialidade do poder, como uma política queer do desvio. Por fim, uma nota final de caráter etnográfico. Em Cachoeira, na orla da Feira do Porto, como em diversos outros contextos, a música do pagode baiano ou pagodão, mobilizada a partir do que aprendi recentemente se chama de “som automotivo”, ou dos “paredões”, é a ocasião para a celebração ritualizada de determinados valores e estruturas formais, agenciadas nesse contexto como a performação ritualizada de contradições sócio-históricas e estruturais. Tais valores e estruturas formais não tem nada a ver com o repertório de valores burgueses associadas à respeitabilidade e ao decoro (Gordon, 1997). Pelo contrário, há o ambiente de devassidão e hipersexualização, a evolução coreográfica de sujeitos inassimiláveis e “abjetos”, como travestis, e outros inconformistas de gênero e dissidentes sexuais; além de rapazes da periferia, portando a hexis corporal “vida loka”, boné, tatuagem, batidão (Pinho & Rocha, 2011); e mulheres e garotas, Osmundo Pinho Brasília, 11 de novembro de 2015

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perigosas ou “bandidas” que descendendo até o chão e “esfregando a tcheca no asfalto” escarnecem dos bons costumes e da moralidade. Tais sujeitos “indignos” ou “abjetos” são usualmente identificados de maneira agressiva com o pagodão, lócus dessa “abjeção”, sujo, perigoso e território da “baixaria” anticivilizacional (Pinho, 2014). Tanto do ponto de visto histórico, quanto do ponto de vista estrutural, a indignidade fundamental, vale dizer desumanidade, dos sujeitos racializados passa ou depende de sua sexualização. A raça como sexualidade é o que motiva tanto as denúncias que se repetem contra a impropriedade dos negros e seus batuques quantos os esforços daqueles que pretenderem convencer ao mundo branco que poderíamos ser tão respeitáveis como qualquer raça, as mulheres honestas, os homens morigerados (Gordon, 1997) . Entretanto, no pagode, como em outros contextos, entendido como a performance coletiva de uma dissidência subjetiva, observamos o alucinante cortejo de sujeitos obscuros que se movem em meio a cenários deteriorados: a “puta”, o “ladrão”, o “viado”.

Referências Bibliográficas COHEN, Cathy. Deviance as Resistence. A New Research Agenda for the Study of Black Politics. Du Bois Review. 1:1. (2004). Pp. 27-45 DIAWARA, Manthia. The Absent One: The Avant-Garde and The Black Imaginary in Looking for Langston. In. ___. BLOUNT, Marcellus & CUNNINGHAM, George P. (Eds.). Representing Black Men. New York and London. Routledge. 1996. Pp. 205-224. FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador. Edufba. 2008 FANON, F. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora. Editora UFJF. 2005. GORDON, Edmund T. Cultural Politics of Black Masculinity. Transforming Anthropology, volume 6, Numbers 1&2, 1997, pp. 36-53. GORDON, Lewis. Bad Faith and Anti-Black Racism. Amherst. Humanity Books. 1999. Pp. 1-6; 29-44; 124-129.

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HARNEY, Stefano & MOTEN, Fred. The Undercommons. Fugitive Planning & Black Study. Winvehoe/New York/Port Watson. Minor Compositions. 2013. HARTMAN, Saidya V. Scenes of Subjection. Terror, Slavery, and self-making in Nineteenth-Century America. New York Oxford. Oxford University Press. 1997. PINHO, Osmundo e ROCHA, Eduardo. Racionais MC’s: Cultura Afro-Brasileira Contemporânea como Política Cultural. Afro-Hispanic Review. Volume, 30, Number 2. Fall 2011. PINHO, Osmundo. The Black Male Body and Sex Wars in Brazil. In: ______. LEWIS, Elizabeth Sarah et all. Queering Paradigms IV. South-North Dialogues on Queer Epistemologies, Embodiments and Activisms. Oxford: Peter Lang, 2014. pp. 301- 319. SEXTON, Jared. The Social Life of Social Death: On Afro-Pessimism and Black Optimism. InTensions Journal 2011 Issue 5 (Fall/Winter 2011). VIGOYA, Mara Viveros. La Sexualizacion da la Raca y la Racializacion de La Sexualidad en El Contexto. Latinoamericano Actual. Ponencia. http://ucaldas.edu.co/docs/seminario_familia/Ponencia_MARA_VIVEROS.pdf. 2015. WILDERSON, III, Frank B. The Vengeance of Vertigo: Aphasia and Abjection in the Political Trials of Black Insurgents. InTensions Journal. Toronto. New York University. Issue 5, 2011.

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