Um estudo sobre a fotografia documental: pensando e repensando conceitos a partir da aplicação de cores na fotografia contemporânea
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Um estudo sobre a fotografia documental: pensando e repensando conceitos a partir da aplicação de cores na fotografia contemporânea Sara Godoy Brito Eu te invento, ó realidade! (Clarice Lispector)
Resumo Procuro, neste artigo, analisar e discutir a questão da fotografia documental como gênero e linguagem fotográfica com o intuito de identificar os acontecimentos e fatores que contribuíram para as mudanças ocorridas em tal gênero no decorrer da história, possibilitando novos olhares e novas formas de se aplicar o aspecto documental da fotografia e, assim, contribuindo para uma extensão do que seria o fotógrafo e a prática da fotografia (surgimento da fotografia-‐expressão). Busco, ainda, estabelecer um diálogo com o papel da cor nesse gênero fotográfico, como forma de elucidar e dar ênfase a esse processo de transformação de valores ocorridos na compreensão da foto-‐documento. Introdução Estamos vivendo em um momento histórico em que cada vez mais é possível constatar a dissolução das fronteiras, das “caixinhas” que se refletem tanto nas áreas do conhecimento, quando na vida cotidiana e nas identidades dos sujeitos. No campo das ciências, vemos com mais frequência, estudiosos apontarem para a importância de se estabelecer um diálogo com áreas diversas a fim de entender melhor a complexidade dos fenômenos ou questões sociais. Ou seja, atualmente a questão da composição de equipes multidisciplinares na condução de pesquisas ou projetos tem sido mais e mais debatida. A fotografia não foge dessa tendência. Hoje em dia existem inúmeros fotógrafos que incluem em seus projetos profissionais da área de arquitetura, engenharia, físicos etc. A produção fotográfica têm, assim, englobado cada vez mais uma equipe multiprofissional, tornando difícil até de delimitar quem é o criador de determinado projeto. Nos dias de hoje a ideia de artista como talento individualizado vai perdendo sentido. A fotografia se apresenta, portanto, como um híbrido que como tal dialoga com
outras áreas. Vivemos na era do transdisciplinar. Ao invés de pensarmos em termos de “isso ou aquilo”, entramos na época onde é possível pensar em “e isso e aquilo e aquilo outro”. Dessa forma, torna-‐se de extrema importância pensar e repensar o conceito de fotografia, em especial o de fotografia documental que é foco desse estudo, notando como as transformações ocorridas contribuíram para que a fotografia se assentasse como uma área extremamente diversificada e múltipla de expressão. Na primeira parte do artigo, busco traçar um breve histórico sobre a fotografia documental, mostrando como que tal gênero foi se consolidando e quais eram os objetivos e propostas que estavam em jogo. Portanto, o intuito aqui é definir o conceito inicial adotado bem como as características da fotografia documental e já apontar para quais elementos e acontecimentos que estão envolvidos na mudança de valores e percepções que se instaura nesse gênero fotográfico. No segundo tópico do artigo, procuro entender quais foram as transformações pelas quais a foto-‐documento passou, com a intenção de repensar e redefinir o conceito de fotografia documental que é nesse período ampliado (passagem da foto-‐documento para a foto expressão). Por fim, traço uma análise sobre as cores na fotografia documental como forma de exemplificar esse processo de ampliação e complexificação do gênero documental, onde analiso (de forma breve) algumas imagens de fotógrafos contemporâneos, tais como Richard Mosse, Martin Parr, Sebastião Salgado e Claudia Andujar. Breve Histórico da fotografia – pensando e repensando a fotografia documental A fotografia surge num contexto histórico em que as sociedades passam por intensas e rápidas transformações, entre elas estão o processo de intensificação dos espaços urbanos (crescimento das grandes metrópoles) e a forte diversificação do sistema econômico. Dessa forma podemos afirmar que o início ou a intensificação da fotografia está relacionada ao surgimento e crescimento das sociedades industriais (séc
XIX). Momento em que observamos o surgimento e aprimoramento de diversas técnicas científicas, a ascensão de grandes potências e as grandes guerras. É, pois, um período de grandes mudanças não só estruturais, mas também de valores, em que a concepção de indivíduo e coletividade vão sendo ressignificados. Existe um ponto importante a ser enfatizado nessa contextualização histórica. É que é nesse período, século XIX, em que a questão do pensamento racional e ênfase na individualização (o homem econômico) vão ganhando cada vez mais importância e que as ciências e suas técnicas, principalmente a medicina, vão também ganhando força, reconhecimento e legitimidade para falar sobre os acontecimentos e as coisas. A fotografia era vista e pensada como um registro ou documento do objeto retratado. A imagem fotográfica era, pois, uma prova de que aquilo existia, ela era o “espelho do real”. A fotografia era assim, entendida como oposta as artes, uma vez que esta alocava-‐se no campo das subjetividades. Ela vinculava-‐se a ciência. Ou seja, enquanto a pintura (por exemplo) detinha um valor artístico e estético, no qual reconhecia-‐se no pintor o talento ou algo próprio de si, o que entendemos por “dom”. A fotografia era aplicada para retratar realidades científicas, era usada para comprovar procedimentos científicos, ilustrar doenças ou o funcionamento do corpo humano (estava muito ligada aos procedimentos de anatomia por exemplo) ou até conferir prova de existência a povos não ocidentais, tais como inúmeras tribos indígenas que foram foco de estudos etnográficos. Ainda que a pintura estivesse muito ligada em replicar, retratar as coisas tal como se era visto e observado (época do renascimento, onde a pintura era bem realista, retratos, paisagens e a natureza morta são alguns exemplos) e ainda que a pintura envolva uma técnica (o conhecimento dos pigmentos bem como sua aplicação, a proporcionalidade dos objetos, luz e sombra etc), conferia-‐se a tal prática um vínculo com o artístico, que pode estar ligado a figura do pintor e sua habilidade. Envolve-‐se ai o talento, a destreza, aspectos que se situam na pessoalidade ou individualidade do sujeito.
A fotografia apresenta-‐se, pois, como uma técnica muito mais precisa e fiel em relação a essa intenção de se retratar a realidade e as coisas tal como a vemos. Ela vai, então, liberar a pintura dessa preocupação. É a partir disso que começamos a ver o surgimento de movimentos de vanguarda tais como o surrealismo, o dadaísmo, o cubismo (entre outros) que vão deixando de lado essa preocupação de se retratar os objetos, os cenários e os retratos de forma realista. Assim, a fotografia se encarrega de ocupar da representação do real, a provar a existência das coisas e acontecimentos. Volta-‐se, pois, a ciência e ao regime de verdade. “Apreender o silêncio, o espírito, as metáforas, o vento, a pureza ou o abandono. O poeta Manoel de Barros coloca em palavras a possibilidade de apreendê-‐los, todos, através da fotografia. No início do século XIX, época de seu surgimento, provavelmente quem propusesse tais feitos seria apontado como louco ou desprovido de razão. O que haveria de ser a fotografia além de um meio técnico cuja função era apreender a realidade tal qual se mostrava diante dos olhos, de uso especialmente útil à ciência?” (Gabriela Freitas. “Configurações da Linguagem Fotográfica na Internet”, Pág 18. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social, 2009) Dessa forma, as discussões sobre fotografia estiveram por um bom tempo orientadas pelas dicotomias razão e poesia, técnica e arte. No entanto, com o decorrer dos avanços na técnica fotográfica (maior agilidade no processo de registro da imagem e maior facilidade no transporte do material fotográfico) e sua decorrente difusão, a fotografia vai gradativamente ampliando seu leque de objetos a serem retratados. A fotografia vai se relacionando cada vez mais com o cotidiano e os acontecimentos da vida social e se distanciando de um objetivo puramente aliado as áreas cieníficas. Além disso, devido aos avanços da técnica, o tempo entre a ocorrência de um fato ou acontecimento e o seu registro vai diminuindo até o ponto em que passa-‐se a entender o fotográfo como testemunha do acontecimento (Gabriela Freitas). Porém, ainda nesse período, a fotografia era vista e entendida como espelhamento e reflexo do real, silenciando, assim, o debate sobre o ponto de vista desse ator. A fotografia-‐documento é, assim, essencialmente representativa. É a fotografia do instante decisivo (Cartier Bresson), do “isto foi”, da “imagem-‐ação”,
do fotógrafo como testemunha. O que está implicado aqui, é que ao conceber a fotografia como registro do real, a dimensão material ganha maior relevância e importância. Tal como coloca Roullie, o real é aqui entendido apenas como corpos e coisas, desconsidera-‐se os “acontecimentos incorporais”, a subjetividade, o imaginário. Portanto essa fotografia-‐documento desconsidera o papel da linguagem na formação ou criação de realidades, bem como desconsidera a individualização do fotógrafo que também irá refletir nessa produção de realidades. O início dessa fotografia documental esteve ligado, muitas vezes, a um desejo de mudança, de transformação da ordem vigente. Tal gênero fotográfico buscava promover um testemunho com compromisso social. É, pois, que vemos uma grande gama de fotografias de guerras, de pessoas marginalizadas e em condições precárias. Entedia-‐se que tais imagens fotográficas consistiam em registros objetivos, ou seja, exprimiam um reflexo neutro do e sobre o mundo. Esse caráter de verdade relaciona-‐se com o fato de que a fotografia era a expressão ou símbolo do progresso industrial e a principal fonte de informação. Entretanto com o desenvolvimento de uma tecnologia de informação muito mais rápida, a televisão, a fotografia vai perdendo espaço no terreno do registro das coisas e dos acontecimentos. Com a televisão as pessoas têm acesso instantâneo aos acontecimentos. A Guerra do Vietnam é um marco nessa crise da fotografia, pois pela primeira vez as pessoas tiveram acesso em tempo real as imagens de guerra. Há nesse período uma banalização da violência que irá refletir em um maior controle das imagens que se propagam, ou tal como disse Roullie, é mediante tal banalização que vemos um “fechamento do mundo” para as imagens. O impacto que as imagens da guerra do Vietnam trouxeram fez com que se percebesse o peso político que uma fotografia ou uma imagem podem ter no andar dos acontecimentos, fazendo, por consequência, que o governo passasse a deter um maior controle sobre as imagens. Os militares passam, portanto, a controlar a produção e reprodução das imagens, tornando os fotógrafos como meros contempladores. O fotógrafo tinha um espaço limitado para tirar fotos, o que tornou as imagens muito mais padronizadas. É a partir dessas condições que o chamado “furo” de reportagem ganha força.
Diante desse contexto, muitos fotógrafos passaram a não mais perseguir o tão ambicionado furo e foram buscar novas formas de registrar o real, os acontecimentos. Impedidos ou limitados em sua escolha para registrar as guerras ou fatos de reportagem, os fotógrafos passam cada vez mais a encenar realidades. A preocupação em se retratar o instante vai cedendo espaço para a antecipação desse instante, abre-‐se espaço para a pose dos personagens, para a construção de cenários etc. Passa-‐se, portanto a não só registrar, mas também a construir imagens. O estatuto de verdade da fotografia vai sendo questionado e repensado dando lugar para se pensar sobre a subjetividade do fotógrafo e a criatividade na produção de imagens. Tal como coloca Susan Sontag a imagem fotográfica é um enquadramento, um recorte. A fotografia por si só não se basta, ela é um registro de um instante contextualizado e portanto para de fato compreende-‐la ela deve vir seguida de legenda. O que quero dizer aqui, é que a fotografia deve estar acompanhada de sua contextualização, pois só assim o expectador, o outro que observa, irá de fato entender a narrativa daquela imagem sendo sensibilizado ou perturbado. Parece que o vínculo com a verdade, com o real, está (sob esta perspectiva) relacionado a essa contextualização da imagem, sua inserção num período histórico, em narrativas sociais, políticas e culturais que extrapolam a imagem observada. É dessa contextualização que se tira a autenticidade e confiabilidade da imagem, e não a imagem em si. O que está implicado aqui é que passa-‐se a enxergar que o próprio enquadramento da fotografia já pressupõe uma construção, já representa uma tomada de posição do fotógrafo. Ou seja, já é exclusão e inclusão, já possui uma subjetividade do sujeito que tira a foto. A fotografia pensada desta forma nunca poderá ser neutra. Isto, por sua vez, não a opõe ao caráter de registro, de documentação do real. O que está em jogo aqui, é que um outro regime de verdade toma conta, com outros critérios e outras expectativas. Novos Regimes de Verdade: a fotografia-‐expressão e o Documentário Imaginário
Vimos que a fotografia documental ou foto-‐documento, foi durante muito tempo pensada como prova científica, como registro neutro dos acontecimentos e das coisas. Porém com ao avanço das tecnologias, o surgimento da TV e as novas configurações do papel do fotógrafo (fotógrafo que passa de testemunha a contemplador), a forma de pensar a fotografia também vai ganhando novas formas e novas configurações. O regime de verdade, vai sendo aos poucos quebrado e ressignificado, conferindo espaço para a criatividade, a subjetividade, a imaginação, a encenação etc. Entra em cena, assim, a fotografia-‐expressão. Foi no século XX que a fotografia passou a ser entendida como transformadora do real. Como não só documentos, mas também interpretações, criações dos acontecimentos. A câmera já não é vista como inocente. Parte-‐se da ideia de que a imagem retratada passa por inúmeras escolhas do fotógrafo (o próprio objeto ou acontecimento retratado, o ângulo, o tempo de exposição etc), escolhas, estas, que estão relacionadas com as experiências de vida de cada um, da sua inserção social ou posição política. Em suma, são escolhas orientadas por um código cultural, histórico e político.. A imagem é reveladora de uma verdade tanto exterior (fotografia como índice) quanto interior (fotografia como símbolo). De acordo com Arlindo Machado, a compreensão da fotografia como índice (que alia-‐se ao regime de verdade) acabou privilegiando o aperto do botão como o momento fundamental que define o ato fotográfico. Nessa valorização do “click”, do “momento decisivo”, tanto os preparativos anteriores (arranjo do cenário, enquadramento, ajustes, tempo de exposição etc) como os processos posteriores (retoque, revelação e edição) são colocados em segundo plano ou simplesmente esquecidos no debate do que seria a fotografia. “Todo o demais, isto é, o antes e o depois do “clique”, é considerado afetação pictórica (icônica) ou “manipulação” intelectual (simbólica), fugindo portanto do âmbito do “específico” fotográfico. A insistência, por parte de muitas teorias e práticas ainda em voga, numa suposta natureza indicial da fotografia, produziu, como resultado, uma restrição das possibilidades criativas do meio, a sua redução a um destino meramente documental e, portanto, o seu empobrecimento como sistema significante, uma vez que
grande parte do processo fotográfico foi eclipsado pela hipertrofia do “momento decisivo”.” (Arlindo Machado. “A fotografia como expressão do conceito”, pág.08) Já quando pensamos a fotografia como símbolo o contrário ocorre. Ao invés de o processo fotográfico se hipertrofiar, ele se amplia, se complexifica, ganha novos horizontes e perspectivas. A fotografia como símbolo abre espaço para se pensar a produção de imagens como instrumento de ressignificação da realidade. Olhando sob essa perspectiva, cada imagem é antes uma interpretação, uma assimilação, um ponto de vista sobre fatos e coisas. Ela não é reflexo neutro do mundo. A fotografia seria uma forma de conhecimento sobre o mundo a partir de múltiplos pontos de vista que se ligam as particularidades de cada sujeito (Gabriela Freitas). Tudo aquilo que a fotografia-‐documento ignorava a fotografia-‐expressão irá reforçar. Dessa forma, podemos afirmar que a fotografia-‐expressão se caracteriza por reconhecer ou dar maior importância ao elogio da forma, a subjetividade do fotógrafo, reconhecendo que a fotografia é uma linguagem. Esse entender a fotografia como linguagem tem um efeito importante, qual seja, o de entender a imagem como não só uma representação mas antes, fabricação de acontecimentos e coisas. A fotografia-‐expressão mais intervém nas coisas do que as representa (Roullier). A fotografia-‐expressão não se opõe completamente a fotografia-‐documento. Ela pode ser um documento, porém além da característica documental ela engloba a expressão, a subjetividade. Dessa forma, a fotografia documental ganha outros contornos, no qual o “Documentário Imaginário” (Kátia Hallak Lombardi) é expressão. Dentro dessa vertente, os fotógrafos (tais como: Trent Park, Robert Frank, Walker Evans, Diane Arbus, Miguel Rio Branco, Cláudia Andujar etc) passam a questionar a objetividade e a ênfase que se dava aos acontecimentos imediatos e momentos significativos que a tradição da foto documental carregava, passando a incluir nas suas imagens o âmbito dos sonhos, dos desejos, dos mitos e das crenças. Um aspecto importante de ser ressaltado aqui é que os fotógrafos do documentário imaginário ainda abarcam temas e características da tradição documental (ainda se preocupam em registrar as experiências sociais e a vida
cotidiana por exemplo ou ate a fazer denuncias de uma dada realidade). Ainda enxergam o valor do documento, do registro, porém o que muda aqui é que o fotógrafo passa a colocar a expressão dos sonhos ou da sua subjetividade de forma mais aberta, mais escancarada na produção de suas imagens. É permitido utilizar, portanto, o desfoque, o borrado, a sobreposição de planos etc. Faz-‐se necessário definir algumas características fundamentais da linguagem fotográfica documental presente tanto nos fotógrafos da tradição documental, quanto nos contemporâneos. De acordo com Lombardi, a proposta da fotografia documental é narrar uma história mediante uma sequência de imagens, na qual, muitas vezes, busca-‐se problematizar uma realidade social. “A fotografia documental pode ser pensada como um conjunto de imagens que forma uma narrativa cujos traços indiciais se deslocam de acordo com o olhar de cada fotógrafo. Desse modo, qualquer objeto ou situação pode ser representado esteticamente de acordo com a ênfase pretendida pelo fotógrafo.” (Lombardi. “Documentário Imaginário”, pág.43. In: Fotos e discursos gráficos) Outro aspecto importante diz respeito ao fato que o trabalho do fotógrafo documentarista exige uma pesquisa prévia e envolvimento com o tema, ou seja, são projetos ou ensaios que exigem um tempo maior para realização. Tais características permanecem na fotografia documental contemporânea. O que vai diferir tal linguagem da tradição documental é que a preocupação com a objetividade e o espelhamento do real é deixada em segundo plano. A “ficção” ou “manipulação” de elementos e arranjos é permitida e desejada. Aqui, o “mundo real” e o “mundo da imaginação” não são opostos, eles interagem mutuamente. Uma breve reflexão sobre as cores na fotografia documental Quando pensamos em fotografa documental, a primeira imagem que desponta são as fotografias em preto e branco, que durante algum tempo representou a única opção dos fotógrafos. A fotografia colorida foi explorada no século XIX, porém devido as limitações tecnológicas, as emulsões disponíveis ainda não eram totalmente capazes de
serem sensibilizadas pela cor verde ou pela vermelha. Foi só no século XX que a cor vermelha foi obtida com êxito total. A primeira foto colorida foi tirada em 1861 e o primeiro filme colorido, Autocromo, chegou ao mercado em 1907. Entretanto, tal como relata Lombardi, esse filme ainda tinha uma utilização bastante restrita, pois necessitava de uma forte fonte de luz, era mais lento e precisava de maior tempo de exposição. Características não muito desejadas para um trabalho documental. Atualmente, com os inúmeros avanços na técnica fotográfica e o advento das câmeras digitais, não temos mais uma separação entre filme colorido e filme em preto e branco. O fotógrafo pode tirar a foto em cores e digitalmente passar para o preto e branco se assim preferir. A câmera digital facilitou o processo de manipulação das imagens. Dessa forma, com o desenvolvimento e aprimoramento tecnológico, os fotógrafos foram tendo uma gama maior de opções e escolhas de elementos e técnicas para compor seu estilo e sua proposta. Ainda assim, a fotografia documental apresenta uma tradição em se utilizar o preto e branco na construção de imagens. Isso pode estar relacionado ao fato de que o preto e branco confere um “ar” de seriedade e confiabilidade que se aproxima do aspecto ou caráter de real (que na tradição documental era fundamental). Aqui já existe uma contradição, pois ao mesmo tempo em que a cor “preto e branco” confere um ar de verdade e de real, no mundo dos referentes (no mundo concreto, “real”) não vemos as coisas apenas no preto e branco. Pelo contrário, esse mundo de referentes é composto por uma gama extremamente diversificada de cores. Portanto, a tradição documental já compartilhava valores que, antes de refletir o real ou as coisas tal como são ou foram, representam uma construção de um ideal de verdade, uma construção de um real imaginário. Com a fotografia-‐expressão e, mais especificamente, com o surgimento do Documentário imaginário, os fotógrafos passam a explorar de forma mais livre e mais aberta as diferentes opções existentes. Dessa forma existem fotógrafos como Michael Ackerman que utiliza o preto e branco de forma abstrata, já Antoine D’Agata utiliza o colorido abstrato e temos ainda Miguel Rio Branco que utiliza de cores fortes e radicais como estratégia de compor seu argumento ou sua proposta.
De acordo com Guran, a utilização de cores na fotografia pressupõe uma busca pela cópia da realidade, uma tentativa de imitação: “Guran (1992) adverte sobre o uso de cores em fotografias. Segundo o autor, fotografia em cores pretende imitar a realidade ao contrário das fotografias em preto e branco que a representa. O uso de cores pode ocasionar uma repetição mecânica da realidade, acarretando em prejuízos na
interpretação
fotográfica.”
(Bruno
Pereira,
“Documento
e
representatividades nas fotografias de um conflito: análise da produção imagetica de Richard Mosse no Congo” – pág.11) Entretanto existem fotógrafos que desafiam essa lógica. A exemplo de Richard Mosse que utiliza o filme de infra vermelho analógico para retratar os conflitos no Congo. Tal filme possui um espectro de cores diferenciado do filme usual. Ele torna os tons de verde em tons de rosa-‐avermelhado. Tal técnica, a utilização do infravermelho, foi utilizada pelos alemães na Segunda Guerra Mundial como forma de identificar os inimigos camuflados na mata.
Imagens de Richard Mosse – The Enclave, La Biennale Di Vennezia, 2012.
Tendo esses aspectos em mente bem como as fotos acima, percebe-‐se que a utilização da cor é aqui fundamental para construir o ponto de vista do fotógrafo sobre os conflitos no Congo. O colorido não está sendo aplicado com o intuído de copiar as cores do mundo ou objetos referentes, pelo contrário, ela entra como forma de compor o imaginário, a subjetividade do fotógrafo sobre uma dada realidade. O próprio fato de ele utilizar o infra vermelho, adotado como estratégia de guerra, já indica a construção de um imaginário do conflito que se
vincula a realidade das guerras. A cor, neste caso, é fundamental para a composição de um argumento, de um ponto de vista, ela é expressão de criatividade e subjetividade. O fotógrafo, Martin Parr, também desafia essa ideia de que a utilização de cores representa uma intenção de cópia do real. Seu trabalho é caracterizado pela utilização de um colorido saturado, e “snap shots” que trazem ângulos inesperados. A utilização de cores fortes e saturadas é adotada aqui como estratégia para compor uma interpretação sobre a vida urbana, onde ele procura ressaltar o banal e o humor.
Martin Parr
Dessa forma, a crítica e a ironia que o fotógrafo faz dos espaços urbanos, bem como do estilo de vida está ligado justamente a utilização do colorido. As cores possuem um papel ativo na elaboração desse argumento, na construção dessa
crônica sobre os espaços urbanos. É como se ele quisesse elaborar uma sátira da vida urbana por meio das cores (mas não só). De outro lado, existem fotógrafos contemporâneos que resgatam os padrões e estilos da tradição da fotografia documental, onde o preto e branco é referência. Um exemplo são as fotos de Sebastião Salgado que seguem o estilo do “instante decisivo” de Cartier Bresson, ou seja, são fotos diretas, tiradas a partir do momento crucial que define a mensagem a ser passada. Dessa forma, as imagens de Sebastião Salgado procuram passar toda a narrativa, todo o impacto e drama da situação retratada a partir de um único “shot”. Como economista, ele tende a retratar temas relacionados a desigualdade econômica, pobreza, efeitos da globalização etc.
Sebastião Salgado
A utilização do preto e branco nas suas fotos se apresenta como um mecanismo para manter o foco do observador nas expressões, nos traços sem que ele se distraia com as diversas cores que naquele cenário poderia se apresentar. Ele busca com o preto e branco construir imagens de ausência, ausência de informação, de distração. As imagens devem ser claras, o que importa é a situação, o momento mostrado. O preto e branco não é apenas utilizado seguindo a lógica tradicional da fotografia documental. Existem inúmeros fotógrafos que ainda que utilizem o preto e branco, procuram subverter a lógica tradicional da foto-‐documento. Um importante exemplo é o trabalho da Claudia Andujar sobre os Yanomami na Amazônia.
Claudia Andujar
Ela utiliza do desfoque, da explosão das luzes, dos contrastes de claro e escuro como forma de ilustrar a diversidade cultural, em especial, voltando-‐se para a vida dos yanomami, sem no entanto exotizar. Ela não estabelece hierarquias entre eles e nós, a câmera não se impõe, não é invasiva, ao contrário é antes intima. Diante de todos esses fatores estéticos e de forma, a autora constrói um diálogo entre a ficção e a documentação. Um aspecto bastante ressaltado é a questão do transcendente que permeia o cotidiano dos yanomami, seja mediante os rituais, seja estabelecendo um diálogo com a relação do transcendente e a natureza. Para ilustrar esse aspecto, a fotógrafa utiliza do desfoque como forma de exemplificar ou se fazer sentir os efeitos e alter-‐ações (Eduardo Viana Vargas) do uso do pó da árvore yãkõanahi.
Ainda sobre a utilização do preto e branco, podemos dizer que tal escolha muitas vezes consiste em uma estratégia de aproximação e sensibilização dos expectadores diante das imagens. Muitas fotografias que buscam mostrar ou se fazer pensar sobre situações de sofrimento, guerra, tortura, violência ao serem colocadas no colorido podem se tornar insuportáveis para quem observa, fazendo com que as pessoas fechem os olhos ou pulem para a próxima imagem. Assim, um aspecto fundamental da fotografia documental que em muitos casos se propõe a tratar de temas mais delicados, voltados para a dor e o sofrimento do outro (isso se aplica também para documentários que lidam com tais temas) e que procuram realizar uma denuncia social é saber a fronteira do acessível e inacessível, do suportável e insuportável. Sem isto, o fotógrafo ou documentarista corre o risco de apenas causar um sentimento de rejeição ou “nojo” no expectador, fazendo com que ele se recuse a olhar aquelas imagens. O expectador ao se fechar para a imagem não participa do processo de reflexão, de perturbação, de construção da narrativa. Podemos observar, portanto, como a cor e os seus diferentes significados ilustram e evidenciam a ampliação e transformação do que se entende por foto documental, ilustrando essa ressignificação de conceitos. Dessa forma a utilização de cores nas fotografias documentais podem ganhar os mais diversos significados e estratégias. As possibilidades de uso da cor são múltiplas e vai depender da proposta e do projeto de cada fotógrafo. Considerações Finais Conclui-‐se, pois, que a fotografia documental contemporânea apresenta um conceito muito mais amplo do que aquele preconizado pela tradição documental que via nas fotos o espelho do real. Os fotógrafos documentais podem, hoje, explorar as diferentes possibilidades técnicas, bem como subverter a própria técnica com o intuito de construir uma proposta narrativa que reconhece tanto o seu referente como o imaginário, a subjetividade e a criatividade. Observamos, portanto, fotógrafos que subvertem a lógica documental tradicional através de recursos como o desfoque, a sobreposição de planos, a explosão de luz, a utilização de cores super-‐saturadas, entre outros elementos.
O debate sobre a prática fotográfica, em especial a fotografia documental, se complexificou e ganhou novos contornos. Os fotógrafos de tal gênero (documental) já não se limitam na busca de um referente, de retrato fiel do real. Ainda que exista sim uma preocupação com o referente e uma busca por questionar realidades ou problematizar situações sociais, tais problemáticas tornaram-‐se mais complexas e ricas mediante a possibilidade de se explorar a forma e a estética, na qual volta-‐se um olhar tanto para o aspecto do referencial quanto do imaginário. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Roullie, André. “A fotografia -‐ entre documento e arte contemporânea”, 2009. Lombardi, Kátia Hallak. “Documentário Imaginário: reflexões sobre a fotografia documental contemporânea”. In: Fotos discursos gráficos - Revista do Curso de Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico e do Mestrado em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, 2005. Machado, Arlindo. “A fotografia como expressão do conceito”, 2000. Sontag, Susan. “Diante da dor dos outros” (1993). Tradução de Rubens Figueireido, Editora Companhia das Letras, 2003. Freitas, Gabriela Pereira. “Dos bancos de imagens às comunidades virtuais: configurações da linguagem fotográfica na internet”. Dissertação apresentada ao curso de mestrado em Comunicação Social da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, 2009. Soares, Carolina. “No limite do ierreal – a Amazônia de Claudia Andujar”. Pereira, Bruno Cavalcante. “Documento e representatividades nas fotografias de um conflito: análise da produção imagetica de Richard Mosse no Congo”, 2012.
Lombardi, Kátia Hallak. “Documentário Imaginário - Novas potencialidades na fotografia documental contemporânea”. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007. Links: http://www.irelandvenice.ie/archive/exhibition/richard-mosse http://paulabauab.wordpress.com/tag/martin-parr/ http://www.martinparr.com
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