RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO
AN STUDY ABOUT THE NOTION OF BISEXUALITY IN FREUD UM ESTUDO SOBRE A NOÇÃO DE BISSEXUALIDADE EM FREUD UN ESTUDIO SOBRE LA NOCIÓN DE BISEXUALIDAD EN FREUD
Fabiana Pereira1 Luciana Marques2 Thomas Speroni3 1
Graduanda em Psicologia. Universidade Veiga de Almeida.
[email protected].
2
Psicóloga; Psicanalista; Professora e Supervisora Clínica do Curso de Graduação em Psicologia da
Universidade Veiga de Almeida; Coordenadora do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Veiga de Almeida – campus Cabo Frio; Professora do Curso de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional da Universidade Veiga de Almeida; Doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Psicanálise do IP/UERJ; Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela UVA; Especialista em Psicologia Médica e Gestão de Saúde pela UERJ. Universidade Veiga de Almeida.
[email protected]
em
Psicologia.
Universidade
Veiga
de
Almeida.
[email protected]. Autor Correspondente: Luciana Marques. Universidade Veiga de Almeida – Departamento de Psicologia, Estrada Perynas, s/n, CEP 28.901-970 - Cabo Frio, RJ – Brasil. Telefone: (22) 2647-5275, ramal: 241.
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO RESUMO Objetivo: recuperar os aportes freudianos através de sua obra, abordando os conceitos fundamentais da teoria da sexualidade com foco especial na noção de bissexualidade. Métodos: pesquisa bibliográfica, realizada exclusivamente no âmbito restrito aos textos oficialmente publicados de Freud. Os dados foram coletados na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Resultados: a noção de bissexualidade é encontrada na obra de Freud desde o início de seus pensamentos teóricos, estando na base de toda a constituição do sujeito. Conclusão: não existe qualquer tipo de predeterminação que reja as dinâmicas de relação sexual do sujeito. O que há, ao contrário, é a falta. A partir disto, a noção de bissexualidade abre caminho para as futuras escolhas do sujeito. A falta é primária, então, a bissexualidade é inerente ao ser humano. Não há pré-determinismo, portanto não há uma fundação anatômica para a escolha de objeto sexual. Descritores: psicanálise, bissexualidade, sexualidade. ABSTRACT Objective: to recover the freudian contributions through his work, broaching the fundamental concepts of the theory of sexuality with special focus on the concept of bisexuality. Methods: literature research, conducted exclusively in the restricted ambit of the officially published texts of Freud. The data were collected in The Brazilian Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. Results: the notion of bisexuality is found in Freud's work since the beginning of his theoretical thoughts, being on the basis of the entire constitution of the subject. Conclusion: there is not any type of predetermination that governs the subject dynamics of sexual relation. Instead of this, there is fault. So, the concept of bisexuality paves the way for the future choices of the subject. The fault is primary, then, bisexuality is inherent to the human being. There is no pre-determinism, so there is no anatomical foundation for the choice of sexual object. Descriptors: psychoanalysis, bisexuality, sexuality. RESUMEN Objetivo: recuperar las contribuciones freudianas a través de su obra, abordando los conceptos fundamentales de la teoría de la sexualidad con foco especial en el concepto de bisexualidad. Métodos: investigación bibliográfica, realizada exclusivamente en el ámbito restricto de los textos oficialmente publicados de Freud. Los dados fueron colectados en la Edición Estándar Brasileña de las Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Resultados: la noción de bisexualidad es encontrada en la obra de Freud desde el inicio de sus pensamientos teóricos, estando en el fundamento de toda la constitución del sujeto. Conclusión: no hay ninguna predeterminación que rija loas dinámicas de relación sexual del sujeto. Lo que hay, en cambio, es la falta. A partir de esto, la noción de bisexualidad abre camino para las futuras elecciones del sujeto. La falta es primaria, entonces, la bisexualidad es inherente al ser humano. No hay pre-determinismo, así no hay un fundamento anatómico para la elección de objeto sexual. Descriptores: psicoanálisis, bisexualidad, sexualidad.
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INTRODUÇÃO A noção de bissexualidade psíquica,
psíquica,
permitem
irrefletido
senso
ao
danosamente
comum
da
sociedade
contemporânea alojar em seu imaginário
que permeia toda a obra freudiana, possui
social
caráter
basilar
sexualidade humana. A problemática em
quando
se
na
teoria
apreciam
equivocada
da
torno dos enganos na apreciação da noção
identificam e discorrem sobre os fatores
de bissexualidade psíquica e o errôneo
primordiais da constituição do sujeito. A
entendimento
bissexualidade é congênita ao psiquismo.
homossexualidade
Sua
comunidade
e
preceitos
concepção
que
amplitude
os
psicanalítica
uma
complexidade
deixam
evidente seu caráter essencial na obra de sua
clara
compreensão
para
questão
merece
científica
e
da
atenção um
da
estudo
acadêmico esclarecedor.
Freud e, consequentemente, a importância de
da
Dessa forma, recuperar os aportes
o
freudianos através de sua obra, abordando
entendimento do sujeito pela ótica da
os conceitos fundamentais da teoria da
Psicanálise.
sexualidade, mostra-se deveras importante,
A deficiência de estudos acadêmicos
pois
contribui
para
a
retificação
dos
elucidativos em torno da bissexualidade da
inúmeros desvios teóricos e clínicos que a
qual trata a psicanálise é evidente. A
Psicanálise vem sofrendo dentro e fora de
questão da bissexualidade urge por estudos
seu próprio campo, além de colaborar para a
que visem seu esclarecimento dentro da
desconstrução do imaginário social acerca da
mais legítima esfera teórica freudiana. O
dita naturalidade desejante na escolha do
artigo que aqui se apresenta é resultado dos
parceiro sexual pela via da anatomia.
trabalhos
produzidos,
até
o
primeiro
semestre do ano de 2012, no Projeto de
MÉTODOS
Iniciação Científica “Um estudo sobre a noção
de
bissexualidade
em
Freud:
a
Trata-se de pesquisa bibliográfica,
imaginário
social
a
realizada no âmbito restrito exclusivamente
homossexualidade”,
aos textos oficialmente publicados de Freud.
desenvolvido no curso de graduação em
Portanto, os dados foram coletados na
Psicologia da Universidade Veiga de Almeida
Edição
– campus Cabo Frio.
Psicológicas Completas de Sigmund Freud,
desconstrução respeito
do da
A incompreensão das proposições de Freud acerca do sujeito sexual, e de seu discorrimento
sobre
a
bissexualidade
Standard
Brasileira
das
Obras
publicada pela Imago Editora, em 1996. Os livros consultados foram os dos acervos pessoais dos autores e os constantes
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO na Biblioteca da Unidade I da Universidade
durante 17 anos, entre 1887 e 1904, são uma
Veiga de Almeida – campus Cabo Frio, RJ.
preciosa fonte de informação quando se
Com o auxílio do software Edição
busca entender o desenvolvimento e a
Eletrônica das Obras Psicológicas Completas
evolução do pensamento da Psicanálise.
de Sigmund Freud, levantou-se todas as
Encontram-se nestas cartas, em estado
ocorrências
e
nascente, diversas questões levantadas por
deste
Freud, e acompanha-se através delas o
levantamento foi confrontado com os índices
progresso de seu pensamento ao longo deste
dos volumes da Edição Standard Brasileira,
rico período caracterizado pelo nascimento
de modo a aprimorar e refinar a busca e a
da Psicanálise e esboço de suas bases
conclusão do levantamento.
conceituais.
dos
termos
“bissexualidade”.
A
resultado
foram
Dentre os fatos que urgiam por
selecionados para apreciação os textos:
atenção e que foram apreciados por Freud
Carta 52 (1896), Sobre a Psicopatologia da
neste
Vida Cotidiana (1901), Fragmento da Análise
principalmente, as questões relativas à
de um Caso de Histeria (1905 [1901]), Três
etiologia das neuroses. As cartas aqui
Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade
analisadas datam inicialmente de 1896,
(1905), Fantasias Histéricas e sua Relação
período recente à marcante publicação de
com a Bissexualidade (1908), O Ego e o Id
seus estudos sobre a histeria. É neste
(1923) e a Conferência XXXIII das Novas
contexto
Conferências Introdutórias sobre Psicanálise
primeiras pesquisas em torno das neuroses,
(1933 [1932]). Os textos Rascunho K (1896),
que
Carta 46 (1896), Carta 69 (1897), Carta 71
bissexualidade, conferindo-lhe um caráter
(1897), Carta 75 (1897), Carta 125 (1899) e
íntimo
Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914),
psicanalítica.
apesar
partir
O
“bissexual”
de
não
deste
tesauro,
reportarem
momento
tão
Freud a
inicial, já
toda
encontravam-se,
distinguido
aventa
a
elaboração
pelas
noção da
de
teoria
nenhuma
No decorrer do Rascunho K (1), da
ocorrência de quaisquer dos termos, foram
Carta 46 (1) e do começo da Carta 52 (1),
incluídos na apreciação em razão de sua
Freud
relevância teórica para o tema.
sexualidade na etiologia das neuroses a
vem
costurando
o
papel
da
partir de seus estudos sobre o recalque e sua RESULTADOS E DISCUSSÃO As escreveu
cartas a
seu
relação com o desprazer e a cena sexual
que
Sigmund
Freud
infantil. Freud avança e trata o resultado da
amigo
Wilhelm
Fliess1
experiência sexual prematura a partir do destino dado pelo sujeito à representação do
1
Wilhelm Fliess otorrinolaringologista.
(1858-1928),
médico
trauma sexual. A fim de explicar por que tal
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO experiência ora resulta em neurose, ora em
na experiência sexual. É justamente porque
perversão,
não há um determinismo biológico que Freud
Freud
levanta
o
fator
da
bissexualidade de todos os seres humanos.
considera a possibilidade da experiência do
[...] valho-me da bissexualidade de todos os seres humanos. Num ser puramente masculino, haveria um excesso de liberação masculina também nas duas barreiras sexuais – isto é, seria gerado prazer e, em consequência, perversão; nos seres exclusivamente femininos, haveria, nessas ocasiões, um excesso de substâncias causadoras de desprazer. (1:286)
sujeito ser vivenciada de maneira ativa ou
Na citação acima, aufere-se que a
Freud: a falta primária e inerente ao
passiva. A partir dessa falta de prerrogativa, o autor vê, no âmbito dos assuntos tratados na Carta 52 (1), uma vertente do conceito de bissexualidade. Enfatiza-se a descoberta feita por
bissexualidade para Freud concerne ao que é
humano.
vivenciado
bissexualidade: o sujeito, desnaturalizado,
sexual
pelo
sujeito
infantil.
experiência
vivência
deriva
a
noção
de
desta
por efeito de sua constituição como sujeito
experiência está contida a possibilidade de
de linguagem, não conserva mais um instinto
polaridade de gozo inerente a todo sujeito:
que responda por seu ser ou por seu objeto.
posicionando-se o sujeito de maneira ativa,
Solidifica-se o entendimento da falta de
a
é
referência a um objeto perfeito, que tenha
terminologicamente concebida por Freud
em si a propriedade da completude; este
como o “masculino”; a passividade no ato,
objeto já é anteriormente perdido, porque
vivenciada como trauma que gera desprazer,
nunca foi tido. A bissexualidade é, então,
é o “feminino”. Em outras palavras, um
inerente ao ser humano.
atividade
Na
na
Daí
que
gera
prazer
excesso de prazer na experiência sexual é a vertente
masculina;
a
Fliess a Carta 52 (1), em 21 de setembro de
como
1897 Freud escreve a emblemática Carta 69
desprazerosa é a vertente feminina. Em
(1), na qual acontece a passagem da “teoria
razão da ausência de um imperativo de
do trauma” para a “teoria da fantasia”.
ordem filogenética e/ou biológica, todo
Baseado na escuta de seus pacientes na
sujeito
clínica, que lhe relatavam, no momento em
experiência
tem
ao
sexual
em
passo
concebida
si
a
que
Quase um ano depois de escrever a
ambivalente
possibilidade de igualmente experimentar o
que
prazer e o desprazer, o masculino e o
histéricos, lembranças de cenas reais de
feminino; configurando, assim, nada mais
sedução ocorridas durante a infância, Freud
que um caráter bissexual.
postulou a “teoria do trauma”. Entretanto,
eclodiam
os
primeiros
sintomas
Ressalta-se, porém, a importância
ao avançar em seus estudos, o próprio Freud
do entendimento da falta anterior de uma
começou a reconsiderar a consistência das
premissa que determine a posição do sujeito
cenas de sedução que seus pacientes lhe
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO relatavam. À parte a improvável quantidade
menina. Ao verificar, porém, que as duas
de
atos
formas de desdobramento do complexo de
perversos contra uma criança, Freud afirma
Édipo (Édipo masculino e Édipo feminino)
o papel preponderante da fantasia sexual
são
inconsciente sobre a vivência de fato. A
mesmo sujeito, Freud, em 1923, no seu
cena é vivenciada pelo sujeito de acordo
artigo O Ego e o Id (3), fundamenta essa
com sua fantasia; é ela que possui o caráter
dupla possibilidade edipiana na noção de
determinante. Assim, passa-se da “teoria do
bissexualidade2.
adultos
dispostos
a
realizar
completamente
possíveis
para
um
trauma” para a “teoria da fantasia”. Para
Trinta dias depois Freud dá inicio,
respaldar sua mudança de concepção, Freud
na Carta 75 (1), ao que seria a conceituação
compartilha com seu amigo a “descoberta
do
comprovada de que, no inconsciente, não há
relacionando
indicações da realidade, de modo que não se
infantis, as zonas erógenas e a neurose,
consegue distinguir entre a verdade e a
Freud abandona a ideia de explicar a libido
ficção que é catexizada com o afeto”
como fator masculino e o recalcamento
(1:310).
como fator feminino, já considerando a
recalque.
Após as
fazer
considerações
experiências
sexuais
Foi a partir da descoberta da teoria
possibilidade de a primeira experiência
da fantasia inconsciente que Freud pôde, ao
sexual infantil – real ou fantasística – causar
retornar de uma peça do mito do “Édipo
no sujeito diferentes efeitos. Embora ainda,
Rei”, de Sófocles, identificar, em sua
Freud
vivência, aquilo que acontece na ficção.
independente
de
Após menos de um mês, na Carta 71 (1),
feminina/passiva
ou
Freud relata uma espécie de descoberta
responsável pela transformação de uma
pessoal nevrálgica do seu processo de
fonte de prazer em repugnância interna,
autoconhecimento: “verifiquei, também no
promovendo o afastamento da lembrança
meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do
infantil da consciência pela via do recalque.
percebe
que
tal sua
experiência, vivência
masculina/ativa,
é
pai, e agora considero isso como um evento
Mais de dois anos após a Carta 75
universal do início da infância [...]” (1:316).
(1), na Carta 125 (1), datada de 9 de
É clarividente que aqui está o germe da
dezembro de 1899, Freud deixa claro ter
teoria do complexo de Édipo, que Freud
abandonado o princípio cronológico como
encerrará posteriormente em 1924. Nesta
fator determinante da escolha inconsciente
Carta 71 (1), Freud já menciona a Fliess o
do
desdobrar do Édipo no menino. Em 1924, no
definitivamente a ideia de periodicidade
texto A Dissolução do Complexo de Édipo
proposta por Fliess. Assim, Freud retoma a
tipo
clínico
do
sujeito,
rejeitando
(2), Freud descreverá o processo edipiano da 2
Trataremos desse tópico posteriormente.
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO escolha da neurose aliada à teoria da sexualidade. Após a Carta 125 (1), Freud publica, no primeiro ano do século XX, sua grande e
lembrei-me de todo o incidente, que fora exatamente como meu amigo tentara fazer-me evocar, e até da resposta que lhe dei na época: ‘Ainda não aceitei isso; não estou inclinado a entrar nessa questão’. (5:150)
fundamental obra, A Interpretação dos
Vale
ressaltar
a
diferença
do
Sonhos (4). Um ano mais tarde, em 1901,
posicionamento teórico entre Freud e Fliess
Freud traz um grande texto a respeito do
que é sinalizada neste lapso.
inconsciente: Sobre a Psicopatologia da Vida
perceber que o lapso de Freud aponta para o
Cotidiana (5). Nele, é abordada a teoria do
que ele tomava como um equívoco teórico
determinismo psíquico inconsciente por trás
de Fliess, o que acabou por marcar a
dos episódios cotidianos de esquecimento,
divergência entre os amigos. Ao passo que
lapsos
Fliess lança a noção de bissexualidade como
da
superstições
fala, e
equívocos erros.
A
na noção
ação, de
bissexualidade está presente no texto no
fundamentalmente
biológica,
É
fácil
orgânica,
Freud concebe-a como psíquica.
exemplo narrado por Freud para tratar do
Neste
escrito,
no
qual
Freud
esquecimento de impressões já vividas e
ressalta os fenômenos descritos como algo
conhecimentos já adquiridos:
presente tanto no cotidiano da vida das 3
Um dia [...] observei a um amigo [...]: ‘Esses problemas neuróticos só poderão ser resolvidos quando nos basearmos integralmente na hipótese da bissexualidade originária do indivíduo’. Ao que ele respondeu: ‘Isso foi o que eu lhe disse há dois anos e meio em Br. [Breslau], quando dávamos aquele passeio à tardinha. Só que, na época, você não queria ouvir falar nisso’. [...] Eu não conseguia lembrar-me nem dessa conversa, nem do comunicado de meu amigo. Um de nós dois devia estar enganado e, pelo princípio do ‘cuiprodest?’,4 devia ser eu mesmo. De fato, no decorrer da semana seguinte, 3
“[Apenas em 1901 e 1904: ‘Um dia, no verão deste ano, observei a meu amigo F., com quem mantenho um animado intercâmbio de idéias...’ O amigo era Wilhelm Fliess. A data da conversa não foi 1901, mas 1900. Na verdade, essa foi a última ocasião em que os dois homens estiveram juntos. Um relato completo desse episódio pode ser encontrado em Jones, 1953, 344 e segs. O exemplo acima, é claro, foi escrito em fins de 1900 e depois erroneamente datado.]” (6:150n) 4 “[‘Quem se beneficia?’ – pergunta tradicional cuja resposta aponta o culpado de um crime.]” (6:150n)
pessoas “normais” como dos “doentes”, o autor toma a questão da bissexualidade como um fator necessário ao entendimento do mecanismo de esquecimento da neurose, afirmando que os “problemas neuróticos só poderão
ser
resolvidos
quando
nos
basearmos integralmente na hipótese da bissexualidade
originária
do
indivíduo”
(5:150). A proeminência desta passagem se justifica, pois se percebe nela um primeiro apontamento da relação da bissexualidade com o recalque enquanto mecanismo de defesa do neurótico. O autor mais tarde teorizará a respeito desse ponto. É fato que durante o outono de 1900 Freud estivera dedicado ao artigo que aqui se aprecia. Paralelamente, começou a atender Dora, uma jovem mulher, cujo caso
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO clínico
foi
que
humana enquanto algo não pré-determinado
simultaneamente ao artigo aqui analisado e
e naturalmente polimorfo, Freud lança ao
só
público, em 1905, seu polêmico Três Ensaios
publicado
escrito anos
quase
depois,
em
1905,
intitulado Fragmento da Análise de um Caso
Sobre a Teoria da Sexualidade (7).
de Histeria (6). A relevância deste texto se
Freud
dedica-se,
no
primeiro
dá ao fato dele tratar da bissexualidade na
ensaio, a desconstruir o imaginário social,
fantasia histérica. Apesar de Freud apenas
científico
mencionar o termo “bissexualidade” no
homossexualidade. Para tal, o autor lança
posfácio do texto - enquanto uma disposição
mão da noção de bissexualidade. Após
constitucional
dos
discorrer sobre a concepção da inversão e
fundamentos do sintoma, juntamente com
discutir a hipótese do caráter inato, Freud
“os germes infantis da perversão e as zonas
conclui que tanto a suposição do caráter
erógenas” – esta concepção está presente de
inato, quanto o seu contrário - a hipótese do
maneira intrínseca na teorização de Freud a
caráter
respeito da fantasia histérica inconsciente
insuficientes
apresentada no caso Dora. Esta noção de
homossexualidade.
a
bissexualidade,
ela
como
enquanto
um
psíquica,
será
e
religioso
adquirido
da
a
respeito
inversão
para
-
da
são
explicar
a
A esta altura do texto, Freud
posteriormente elaborada e discutida por
assevera
que
existe
no
sujeito
uma
Freud de maneira mais refinada quando da
característica própria de sua constituição
discussão a respeito da homossexualidade,
que está substancialmente presente em todo
aberta por ele em 1905.
o processo de desenvolvimento psicossexual
Diante da importância do fator da
que culmina na escolha de um objeto. Freud
sexualidade na constituição do sujeito, já
afirma claramente que há “algo” no sujeito
solidificada na teoria psicanalítica, Freud,
que é fator-chave para o entendimento da
atento ao contexto da época – no qual
escolha
reinava uma ciência empenhada na tarefa
(consequentemente da escolha de um objeto
de
e
do mesmo sexo, já que Freud está tratando,
sexuais,
nesta passagem, da homossexualidade). Esse
concebendo como patológico tudo o que era
fator-chave começa a ser desenvolvido por
desviante da ciência em voga – rechaçou o
Freud no próximo tópico: “O recurso à
entendimento da sexualidade dentro da
bissexualidade”, reafirmando que a escolha
esfera médica-moral proposto por sexólogos
objetal tem algo próprio da constituição
– como Krafft-Ebing, por exemplo. De
psicossexual do ser humano.
classificação
estabelecimento
de de
comportamentos padrões
de
objeto
sexual
maneira a subverter o saber então vigente, e
Freud inicia o tópico a respeito da
com o intuito de esclarecer a sexualidade
bissexualidade afirmando que “certo grau de
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO hermafroditismo
anatômico
constitui
a
É digno de destaque que nesse
norma; em nenhum indivíduo masculino ou
momento ocorre a elaboração precisa por
feminino de conformação normal faltam
Freud da hipótese de um hermafroditismo
vestígios do aparelho do sexo oposto [...]”
psíquico congênito ao sujeito, e atenta-se
(7:134). O autor prossegue ponderando que:
para a inter-relação entre o “algo” no
A concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de uma predisposição originariamente bissexual, que, no curso do desenvolvimento, vai-se transformando em monossexualidade, com resíduos ínfimos do sexo atrofiado. (7:134, grifo nosso)
Dada esta conjuntura, concebida
sujeito, tratado anteriormente, e a hipótese da bissexualidade psíquica. A hipótese clara da
bissexualidade
psíquica,
exatamente
nesses termos, é mencionada e concretizada por Freud aqui, neste ponto dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (7).
terminologicamente com base na sexologia
Refutando a ideia de um alicerce
da época, Freud cogita que seria sugestivo
anatômico na escolha objetal sexual – o
transpor esta concepção de hermafroditismo
conceito de que, nesta escolha, a anatomia
anatômico para o campo psíquico, e explicar
é o destino, em nota de rodapé Freud alude
a homossexualidade como a expressão de um
à bissexualidade na questão da escolha de
hermafroditismo
objeto pelo sujeito:
psíquico.
Freud,
entretanto, afirma não ser cabível conceber o hermafroditismo psíquico a partir do já comprovado hermafroditismo anatômico. Não é possível imaginar relações tão estreitas entre o suposto hibridismo psíquico e o hibridismo anatômico comprovável. [...] cabe reconhecer que a inversão e o hermafroditismo somático são, no conjunto, independentes entre si. (7:134)
Observa-se Freud
que
abandona
nesta
não
a
bissexualidade
psíquica,
possibilidade
de
hermafroditismo totalmente
a
passagem
hipótese mas
sim
sustentá-la físico;
noção
de
da a no
abandona bissexualidade
proposta por Fliess, que se alicerçava no orgânico.
Freud
pontua
que
o
campo
anatômico e o psíquico são independentes entre si: o âmbito anatômico não responde pelas demandas do âmbito psíquico.
A investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular. Ao estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta, ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente. As vinculações por sentimentos libidinosos com pessoas do mesmo sexo desempenham, inclusive, um papel nada insignificante como fatores da vida anímica normal, e um papel ainda maior do que as vinculações semelhantes com o sexo oposto como motor do adoecimento. A psicanálise considera, antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas préhistóricas, é a base originária da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido. No sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química. (7:137-8n, grifo nosso)
Pontua-se,
aqui,
a
conclusão
freudiana a respeito da bissexualidade na escolha do sexo do objeto sexual pelo sujeito: é tão possível escolher um objeto
A importância da bissexualidade psíquica
humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual” (7:137n). O sujeito, então,
por
não
trazer
consigo
uma
determinação anterior do seu objeto sexual, dispõe livremente de todas as opções que estão ao seu alcance. A bissexualidade é marcada por Freud nas possibilidades de escolha objetal verificadas na infância, quando, antes de ser cerceada pela “moral sexual civilizada”, a criança
dispõe
masculinos plenamente
igualmente
e
femininos, sua
de
objetos
vivenciando
bissexualidade
–
reafirmada
quando
se
compreende que daí parte a possibilidade de escolha
do
sujeito,
afastando
toda
a
concepção de uma atração heterossexual pré-determinada. É sabido que o entendimento da
sexual do mesmo sexo, quanto do sexo oposto. Freud afirma que “todos os seres
é
questão
da
escolha
objetal
pela
compreensão
primordialmente propriedades
da
pulsão.
Ao
passa
falar
das da
“inversão” e do que à época era considerado como desvio em relação ao objeto sexual, é digna de apreciação uma nota de rodapé acrescentada por Freud em 1910: A diferença mais marcante entre a vida amorosa da Antigüidade e a nossa decerto reside em que os antigos punham a ênfase na própria pulsão sexual, ao passo que nós a colocamos no objeto. Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto. (7:141n)
bissexualidade, esta, que por estar presente
Não obstante a explanação sobre o
desde os primórdios de sua vida, é originária
papel da noção de bissexualidade na escolha
e constituinte do sujeito. Dessa forma,
de objeto sexual, Freud já diz que a ênfase
Freud conclui afirmando que a escolha de
deve ser dada à pulsão, e não ao objeto,
um
ser
visto que é a pulsão que dispõe da
problematizada tanto quanto a escolha de
prerrogativa de apresentar a demanda de
um objeto do mesmo sexo - já que se
satisfação
dispõe, originariamente, de maneira igual
esclarecerá que, devido às particularidades
dos
a
da pulsão, o objeto é o que de mais variável
bissexualidade do sujeito, não cabe atribuir
há nela, configurando uma plasticidade
a escolha objetal “heterossexual” a uma
pulsional do objeto comum a todos.
objeto
dois
do
sexos
sexo
de
oposto
objeto.
deve
Dada
atração filogenética, instintiva, ou de base química, como bem diz Freud.
sexual.
Freud
posteriormente
No mais, avançando na leitura dos “Três Ensaios”, Freud articula: [...] ficaríamos tentados a relacionar a presença simultânea desses [pares de]
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO opostos [sadismo-masoquismo] com a oposição entre masculino e feminino que se combina na bissexualidade, oposição que amiúde é substituída na psicanálise pelo contraste entre ativo e passivo.5 (7:151)
puberdade,
Freud,
ao
falar
sobre
a
diferenciação entre o homem e a mulher, lança mão da infância para mostrar a atividade contida na dinâmica autoerótica
A bissexualidade tratada por Freud
da menina. Freud afirma que “[...] a
nesta passagem diz respeito à posição do
atividade auto-erótica das zonas erógenas é
sujeito na dinâmica de obtenção do prazer:
idêntica em ambos os sexos [...]” (7:207),
se é posição ativa ou posição passiva6. Freud
mostrando, assim, que a sexualidade das
emprega, como sinônimo de “atividade” e
meninas tem um caráter ativo – masculino,
“passividade”, os conceitos de “masculino”
visto
que
a
energia
pulsional
é
7
e “feminino”, respectivamente. Daí, uma
necessariamente ativa . Freud, ao trazer
concepção mais clara da bissexualidade à
este exemplo da dinâmica sexual na menina,
qual se refere: “A particularidade mais
mostra
notável dessa perversão reside, porém, em
possibilidade de atividade e passividade é
que suas formas ativa e passiva costumam
própria do ser humano, independente de seu
encontrar-se juntas numa mesma pessoa”
sexo. Freud
(7:151). A coexistência das posições ativa e passiva – masculina e feminina –configura a
que
a
bissexualidade
continua
em
enquanto
seu
texto,
pontuando uma questão substancial:
humana, e não uma aberração: “[...] o
A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino” e “feminino” um conteúdo mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é, regular e normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher. (7:207)
contraste entre atividade e passividade [...]
Dez anos depois de redigir esse
pertence às características universais da
trecho, Freud agrega-lhe uma nota de
vida sexual” (7:150).
rodapé a fim de lançar luz à problemática
bissexualidade
exposta
por
Freud;
a
bissexualidade da posição do sujeito ante o gozo. Freud afirma ser essa bissexualidade uma propriedade ordinária da sexualidade
Prosseguindo para o terceiro ensaio,
por ele levantada. Nesta nota de rodapé
no qual são apreciadas as transformações da
Freud esclarece a polissemia da palavra “bissexualidade”, demarcando três sentidos:
5
“[Essa última oração não aparecia nas edições de 1905 e 1910. Em 1915 acrescentou-se o seguinte: ‘oposição cujo significado se reduz, na psicanálise, ao contraste entre ativo e passivo.’ Essa formulação foi substituída em 1924 pela que agora aparece no texto” (6:151n) 6 Posteriormente Freud retorna a essa questão pontuando que o caráter da libido é sempre ativo, “masculino”. Esse tema será apreciado mais à frente.
“ora se empregam ‘masculino’ e ‘feminino’ no sentido de atividade e passividade, ora no sentido biológico, ora ainda no sentido sociológico” (7:207, grifo do autor). Freud 7
Freud ratificará essa concepção logo em seguida.
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO afirma
que
a
representante
bissexualidade do
binômio
enquanto “atividade-
cabível falar em monossexualidade. Como já deixou
claro
que
anatômico
âmbito da psicanálise. O autor também
bissexualidade psíquica (e assim não possui
expõe que está na concepção biológica de
relevância para os estudos psicológicos),
bissexualidade
cunhar
Freud encerra o texto sobre a diferenciação
“masculino” como sinônimo de “atividade” e
do homem e da mulher reafirmando a sólida
“feminino” como sinônimo de “passividade”,
importância da noção de bissexualidade
visto que:
psíquica
razão
de
A atividade e suas manifestações mais concomitantes – desenvolvimento muscular mais vigoroso, agressividade, maior intensidade da libido – costumam ser vinculadas à masculinidade biológica, embora não seja uma associação necessária, já que existem espécies animais em que essas propriedades correspondem, antes, à fêmea. (7:207-8n)
para
o
associa
com
entendimento
a
da
sexualidade humana: Desde que me familiarizei com a noção de bissexualidade, passei a considerá-la como o fator decisivo e penso que, sem levá-la em conta, dificilmente se poderá chegar a uma compreensão das manifestações sexuais efetivamente no homem e na mulher. (7:208)
Observa-se que Freud, em Três
Portanto:
das
se
hermafroditismo
passividade” é essencialmente utilizada no
a
não
o
A isso se deve que a libido seja descrita no texto como masculina, pois a pulsão é sempre ativa, mesmo quando estabelece para si um alvo passivo. (7:207n, grifo nosso)
Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (7),
Freud assevera, então, que diante
feminino, atividade e passividade. Alguns
conclusões
tecidas
no
texto
trata da questão de escolha de objeto e faz algumas considerações acerca da pulsão e da bissexualidade
enquanto
masculino
e
a
destes pontos, entretanto, são revisitados
monossexualidade não é encontrada nem no
pelo autor em 1908 no texto Fantasias
campo psicológico – mediante a constatação
Histéricas
da coexistência de atividade e passividade
Bissexualidade (8). Nele, o autor decide
no ser humano – nem no biológico – visto que
fazer
o homem exibe uma “mescla de seus
inconscientes e seus sintomas neuróticos –
caracteres sexuais biológicos com os traços
descritos principalmente no Caso Dora (6).
biológicos do sexo oposto” (7:208n). Nessa
Embora tenha percebido desde 1897 – na
linha de pensamento Freud conjuga, em uma
Carta 69 (1) – a importância das fantasias
só passagem, a síntese de dois pontos por
como base dos sintomas histéricos, foi em
ele desenvolvidos no primeiro ensaio: em
Fantasias Histéricas e sua Relação com a
nenhum
campo
Bissexualidade (8) que Freud indicou a
anatômico e tampouco no psíquico, é
necessidade de preparar-se para encontrar
8
dos
campos,
nem
no
um
e
sua
novo
Relação
exame
das
com
a
fantasias
no tratamento psicanalítico sintomas com 8
Com o perdão do neologismo
significado sexual, apontando para o fato de
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO que a sexualidade revela, nas fantasias
lhe coloque em posição ativa [masculina] no
histéricas, duas faces que assinalam a
ato sexual, e outra que lhe coloque em
presença
posição passiva [feminina] neste mesmo ato.
do
componente
bissexual
na
neurose em geral.
Assim, ao passo que o sintoma histérico
O próprio Freud afirma que “[...] as
promove a solução de compromisso entre
fantasias inconscientes são os precursores
desejos conflitantes, ele também sintetiza
psíquicos imediatos de toda uma série de
“a união de duas fantasias libidinais de
sintomas histéricos” (8:151). Os sintomas
caráter sexual oposto” (8:153).
histéricos
são
substitutos
do
desejo
É relevante ressaltar que o ponto
recalcado – que nada mais são do que
aqui
fantasias inconscientes exteriorizadas por
intimamente com suas considerações
meio de “conversão” – que servem à
respeito de “atividade-passividade” feitas
realização de um desejo. Ao definir as
nos
propriedades
Sexualidade (7), quando o autor afirma que
basilares
destes
sintomas,
Freud diz:
trabalhado
Três
por
Ensaios
Freud
Sobre
a
afina-se
Teoria
a da
a oposição entre masculino e feminino – ou
Os sintomas histéricos surgem como uma conciliação entre dois impulsos afetivos e pulsionais opostos, um dos quais tenta expressar uma pulsão componente ou um inconsciente da constituição sexual, enquanto o outro tenta suprimi-lo. (8:152)
Freud assevera, neste texto de
seja, a bissexualidade – está presente em todo
sujeito,
sendo
tal
oposição
transportada para psicanálise através do contraste entre atividade e passividade. Estas
novas
explanações
também
e
1908, que a natureza dos sintomas histéricos
primordialmente alcançam as fantasias de
é
Dora, quando das suas relações com o Sr. e a
bissexual.
Analisando-se
o
sintoma
conhece-se a fantasia sexual inconsciente do
Sr.ª K.
sujeito. Deste modo, Freud disserta que a
Dora,
investigação psicanalítica mostra que há
neurótica de 18 anos, foi
muitos sintomas nos quais a presença de
levada a Freud por seu
uma só fantasia sexual é insuficiente para
pai
substituir o desejo recalcado. Para atender a esta demanda é necessária a presença de
uma
devido
jovem
a
graves
Figura 1 – Tela “Les Jours Gigantesques” (1928), de René Magrette. Expressão artística da fantasia bissexual própria da neurose. A imagem sintetiza a coexistência de atividade e passividade, do masculino e do feminino, em um mesmo ser humano. O indivíduo dividido entre o lugar de seduzir e o de ser seduzido; entre ser sujeito e ser objeto.
sintomas
duas fantasias sexuais: uma fantasia de
histéricos.
O
caráter
tratamento tem como palco a relação com o
masculino9 - trata-se da dúplice existência,
casal “K”. O cenário compõe-se do romance
em um mesmo sujeito, de uma fantasia que
do
caráter
feminino
e
outra
de
pai
de
Dora
com
a
Sr.ª
K
e,
paralelamente ao caso extraconjugal de seu 9
Sendo, uma dessas fantasias, originária de um impulso homossexual.
pai, das investidas do Sr. K (esposo da Sr.ª K)
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO em direção a Dora. Como é comum na
sistematiza essas considerações e marca
histeria, o tratamento de Dora foi marcado
uma nova norma: “Os sintomas histéricos são
pela forte presença de suas questões a
a expressão, por um lado, de uma fantasia
respeito de “o que é ser uma mulher?”,
sexual inconsciente masculina e, por outro
sendo a Sr.ª K (esposa do Sr. K e amante de
lado,
seu pai) vista por Dora como a chave para a
Textualmente o autor ressalta:
resolução deste enigma.
de
uma
feminina”
(8:153).
A natureza bissexual dos sintomas histéricos [...] constitui uma interessante confirmação da minha concepção de que, na análise dos psiconeuróticos, se evidencia de modo especialmente claro a pressuposta exigência de uma disposição bissexual inata no homem. (8:154)
A partir da conjuntura do caso Dora, Freud ratifica duas de suas proposições iniciais. A primeira, referente à repulsa ao sexo, confirma a teoria da existência de uma experiência sexual prematura, sentida pelo
Dado este caráter bissexual da
sujeito como desprazerosa, que, neste caso,
fantasia inconsciente que rege a dinâmica
inconscientemente conduzia a jovem Dora a
de realização de desejo, Freud abordará a
substituir a realização de seus anseios
questão do investimento libidinal do sujeito
fantasísticos pelos sintomas que apresentava
no icônico texto Sobre o Narcisismo: uma
–
caráter
introdução (9). Estudando o fenômeno do
segunda
narcisismo pela ótica da vida erótica dos
fantasia
seres humanos, Freud analisa que a libido
bissexual, confirma o amor homossexual
investida no Eu e a libido investida nos
latente de Dora pela Sr.ª K, visto que tal Sr.ª
objetos
era tida por Dora como representante da
conjunta, ou seja, no momento em que o
feminilidade; alguém capaz de ensinar-lhe
sujeito retira a libido do seu Eu para investir
de que maneira se enlaça o desejo do outro.
num objeto externo, ele nada mais visa do
Assim, ao passo que se posicionava de
que o retorno desta libido ao seu próprio Eu.
maneira passiva, furtando-se das investidas
No “narcisismo primário” o sujeito investe
amorosas do Sr. K, Dora concomitantemente
sua libido em si mesmo; no “narcisismo
dirigia-se a Sr.ª K, numa postura ativa, na
secundário” o investimento libidinal passa a
ânsia de saber o quê e como uma mulher
ser direcionado a objetos externos. O
deve fazer para ser desejada pelos homens.
sujeito, numa atitude masculina, investe
comprovando,
também,
conversivo
dos
proposição
ratificada,
Este
sintomas.
trecho
o A
sobre
é
uma
a
releitura
externos
ativamente
sua
libido
modo
que
de
em
maneira
um
externo,
fundamentais da fantasia do sujeito que,
feminina ele passivamente espera que o
como se sabe, é um componente-chave na
objeto lhe responda, aguardando o retorno
estrutura neurótica. De tal modo, Freud
de
investimento.
numa
objeto
extremamente importante das propriedades
seu
de
existem
atitude
Atividade
e
passividade, masculinidade e feminilidade:
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO juntos, coadunados em nome do prazer, da
claramente expressa no redirecionamento
realização do desejo, a serviço da pulsão.
que ele faz ao amor pela mãe, no caso do
Ora, é bissexualidade.
menino.
Freud, além de esboçar algo em torno
de
uma
instância
intrapsíquica,
Na
dissipação
do
complexo
de
Édipo, ao abandonar o objeto de desejo –
denotando uma ideia de divisão, também
agora
afirma que grandes quantidades de libido
identificar-se com ele (algo perfeitamente
homossexual caracterizadas pelo narcisismo
cabível, dado o narcisismo do sujeito) e
são
assumir sua posição. Freud afirma que é
introduzidas
instância. estrutural
na
formação
Cristalizando
do
sujeito
a
ao
sujeito
possibilidade
de
escreve um de seus grandes trabalhos
Assim, o menino que antes se identificava
teóricos, O Ego e o Id (3), em 1923,
com o pai, após o interdito da lei pode
contemplando a bissexualidade inata do
passar – a partir da possibilidade de escolha
sujeito na questão da origem do ideal de Eu
da posição sexuada – a se identificar com a
e sua relação com a identificação primária
mãe,
do sujeito com os pais. Freud afirma que “a
predominar a feminilidade presente em sua
dificuldade do problema se deve a dois
disposição constitucional. Freud pontua que
fatores: o caráter triangular da situação
“a força relativa das disposições sexuais
edipiana e a bissexualidade constitucional
masculina e feminina é o que determina se o
de cada indivíduo” (3:44). Adiantando o
desfecho da situação edipiana será uma
conteúdo que posteriormente tratou em
identificação com o pai ou com a mãe”
1924,
do
(3:45). O autor continua, afirmando que
Complexo de Édipo (2), Freud descreve a
“esta é uma das maneiras pelas quais a
dinâmica do que chama de “complexo de
bissexualidade
Édipo positivo simples num menino”. Nesta
vicissitudes subsequentes do complexo de
conjuntura edipiana, o menino, colocando a
Édipo” (3:45), complementando que:
texto
psíquico,
própria
cabível
instalação de seu objeto perdido no seu Eu.
seu
aparelho
concepção
é
Freud
no
do
a
desta
proibido,
A
Dissolução
masculinidade em voga, identifica-se com o pai e sua posição desde o começo, tendo com ele uma atitude ambivalente – de admiração e hostilidade – e com a mãe uma relação unicamente afetuosa. Na conjectura subsequente ao interdito da lei, que dissolve o complexo de Édipo e criminaliza o amor parental, a bissexualidade do sujeito fica
seu
objeto
é
perdido,
fazendo
responsável
pelas
Um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. Isto equivale a dizer que um menino não tem simplesmente uma atitude ambivalente para com o pai e uma escolha objetal afetuosa pela mãe, mas que, ao mesmo tempo, também se comporta como uma menina e apresenta uma atitude afetuosa feminina para com o pai e um ciúme e uma
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO hostilidade correspondentes em relação à mãe. (3:45-6)
É
justamente
tratando
desta
predeterminação que reja as dinâmicas de relação sexual do sujeito. Não há um imperativo, de qualquer ordem, que afirme
duplicidade do complexo de Édipo que
ao sujeito que por
Freud, na Conferência XXXIII (10) de suas
biológicos genitais masculinos ele deve
Novas
posicionar-se
Conferências
Introdutórias
sobre
de
ter
os caracteres
maneira
ativa
ou
Psicanálise (10), ao falar da feminilidade –
relacionar-se com tal objeto. O que há,
baseado
de
primariamente, é, ao contrário, a falta. A
bissexualidade – descreverá em detalhes o
falta intrínseca à passagem da natureza para
processo edipiano na menina, mostrando
a cultura, que marca o ser humano como ser
que
pré-
de linguagem, dividido pelo significante que
determinado e que, tanto no menino quanto
o precede e constitui. A partir desta falta do
na menina, o amor pela mãe é primário. O
objeto
complexo de Édipo é bissexual na medida
bissexualidade abre caminho para as futuras
em que, seja o sujeito biologicamente
escolhas do sujeito. A falta é primária,
menino ou menina, todas as relações são
então, a bissexualidade é inerente ao ser
perfeitamente
humano.
integralmente
seu
amor
pelo
na
pai
possíveis
noção
não
com
é
as
figuras
parentais. A disposição do sujeito, o jogo de combinatórias, está aberta desde a infância: Se um menino se identifica com seu pai, ele quer ser igual a seu pai; se fizer dele o objeto de sua escolha, o menino quer têlo, possuí-lo. No primeiro caso, seu ego modifica-se conforme o modelo de seu pai; no segundo caso, isso não é necessário. Identificação e escolha objetal são, em grande parte, independentes uma da outra; no entanto, é possível identificar-se com alguém que, por exemplo, foi tomado como objeto sexual, e modifica o eu segundo esse modelo. (10:68-69, grifo do autor)
que
complete,
a
noção
de
A anatomia não é o destino, e é exatamente indivíduo
em
razão
disto
tem,
por
sua
que
todo
natureza
constituinte, a ambivalente possibilidade de psiquicamente passear de maneira livre pelo masculino e pelo feminino – pela atividade e pela passividade. É a bissexualidade inata. Em razão da falta, do não pré-determinismo, não há uma fundação anatômica para a escolha de objeto sexual. A
ausência
deste
imperativo
também caracteriza o âmbito da escolha de objeto sexual. Igualmente há falta. Não existe objeto pré-determinado. A pulsão
CONCLUSÃO Ao
sexual não reconhece um objeto específico conceber
o
ser
humano
a
Psicanálise deixa extremamente claro que não
existe
qualquer
tipo
de
de caráter anteriormente deliberado, sendo absolutamente possíveis todos os objetos que estejam à disposição do sujeito. Se a
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RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO pulsão não possui uma atração pré-definida,
sujeito está afinado com a concepção
por que reconheceria o genital? De fato não
psicanalítica de ser humano, que o concebe
o reconhece. As demandas de satisfação
como um sujeito que é, necessariamente,
apresentadas pela pulsão não têm relação
um sujeito de escolhas.
com o campo biológico. A escolha de um objeto sexual do mesmo sexo é tão possível
REFERÊNCIAS
quanto a escolha de um objeto sexual do sexo oposto. O
1. Freud S. Extratos dos documentos que
define
claramente
a
dirigidos a Fliess (1950 [1892-1899]).
bissexualidade é a coexistência intrínseca no
In:
sujeito dos pares de opostos, a partir dos
completas de Sigmund Freud: edição
quais, sob a atuação do recalque, ele faz sua
standard brasileira. Rio de Janeiro:
escolha:
Imago, 1996. 1:217-331.
atividade
versus
passividade,
Freud
S.
Obras
psicológicas
masculino versus feminino; posição sexuada
2. Freud S. A dissolução do complexo de
versus escolha de objeto. A possibilidade de
Édipo (1924). In: Freud S. Obras
posicionar-se
a
psicológicas completas de Sigmund
possibilidade de optar por assumir uma
Freud: edição standard brasileira. Rio
posição ativa ou passiva só é possível porque
de Janeiro: Imago, 1996. 19:189-199.
diante
da
castração;
há bissexualidade. Se o sujeito não fosse bissexual
seu
inconsciente
seria
pré-
3. Freud S. O ego e o id (1923). In: Freud S. Obras psicológicas completas de
determinado, e, no entanto, desde os
Sigmund
tempos de Freud sabemos que não o é. Só há
brasileira. Rio de Janeiro: Imago,
possibilidade de escolha porque há opção; e
1996. 19:13-80.
só há opção porque há bissexualidade. Mais além:
só
há
heterossexualidade,
Freud:
edição
standard
4. Freud S. A interpretação dos sonhos
em
(1900). In: Freud S. Obras psicológicas
oposição à homossexualidade, porque há
completas de Sigmund Freud: edição
bissexualidade psíquica.
standard brasileira. Rio de Janeiro:
O sujeito, então, está partido.
Imago, 1996. 4-5:1-650.
Fadado a escolher entre o masculino e o
5. Freud S. Sobre a psicopatologia da vida
feminino; entre a atividade e a passividade;
cotidiana (1901). In: Freud S. Obras
entre todas as relações de desejo possíveis
psicológicas
com
Freud: edição standard brasileira. Rio
o
objeto
graças
à
plasticidade
pulsional. Está aí a bissexualidade originária
completas
de
Sigmund
de Janeiro: Imago, 1996. 6.
do sujeito, que marca seu aparelho psíquico
6. Freud S. Fragmento da análise de um
como algo estruturado, fraturado, partido. O
caso de histeria (1905 [1901]). In: Freud
R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18
Página 17
RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO S. Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud:
edição
standard
brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 7:13-116. 7. Freud S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Freud S. Obras psicológicas
completas
de
Sigmund
Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 7:117-231. 8. Freud S. Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908). In: Freud S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 9:145-154. 9. Freud S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: Freud S. Obras psicológicas
completas
de
Sigmund
Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 14:75-108. 10. Freud
S.
Novas
conferências
introdutórias sobre Psicanálise (1933 [1932]). In: Freud S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 22:11-177.
Recebido em: 01/08/2012 Aprovado em: 24/09/2012
R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18
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