Um estudo sobre a noção de bissexualidade em Freud

June 6, 2017 | Autor: Thomas Speroni | Categoria: Psychology, Psychoanalysis, Sexuality, Psicanálise, Sexualidade, Psicologia
Share Embed


Descrição do Produto

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO

AN STUDY ABOUT THE NOTION OF BISEXUALITY IN FREUD UM ESTUDO SOBRE A NOÇÃO DE BISSEXUALIDADE EM FREUD UN ESTUDIO SOBRE LA NOCIÓN DE BISEXUALIDAD EN FREUD

Fabiana Pereira1 Luciana Marques2 Thomas Speroni3 1

Graduanda em Psicologia. Universidade Veiga de Almeida. [email protected].

2

Psicóloga; Psicanalista; Professora e Supervisora Clínica do Curso de Graduação em Psicologia da

Universidade Veiga de Almeida; Coordenadora do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Veiga de Almeida – campus Cabo Frio; Professora do Curso de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional da Universidade Veiga de Almeida; Doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Psicanálise do IP/UERJ; Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela UVA; Especialista em Psicologia Médica e Gestão de Saúde pela UERJ. Universidade Veiga de Almeida. [email protected]

em

Psicologia.

Universidade

Veiga

de

Almeida.

[email protected]. Autor Correspondente: Luciana Marques. Universidade Veiga de Almeida – Departamento de Psicologia, Estrada Perynas, s/n, CEP 28.901-970 - Cabo Frio, RJ – Brasil. Telefone: (22) 2647-5275, ramal: 241.

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 1

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO RESUMO Objetivo: recuperar os aportes freudianos através de sua obra, abordando os conceitos fundamentais da teoria da sexualidade com foco especial na noção de bissexualidade. Métodos: pesquisa bibliográfica, realizada exclusivamente no âmbito restrito aos textos oficialmente publicados de Freud. Os dados foram coletados na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Resultados: a noção de bissexualidade é encontrada na obra de Freud desde o início de seus pensamentos teóricos, estando na base de toda a constituição do sujeito. Conclusão: não existe qualquer tipo de predeterminação que reja as dinâmicas de relação sexual do sujeito. O que há, ao contrário, é a falta. A partir disto, a noção de bissexualidade abre caminho para as futuras escolhas do sujeito. A falta é primária, então, a bissexualidade é inerente ao ser humano. Não há pré-determinismo, portanto não há uma fundação anatômica para a escolha de objeto sexual. Descritores: psicanálise, bissexualidade, sexualidade. ABSTRACT Objective: to recover the freudian contributions through his work, broaching the fundamental concepts of the theory of sexuality with special focus on the concept of bisexuality. Methods: literature research, conducted exclusively in the restricted ambit of the officially published texts of Freud. The data were collected in The Brazilian Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. Results: the notion of bisexuality is found in Freud's work since the beginning of his theoretical thoughts, being on the basis of the entire constitution of the subject. Conclusion: there is not any type of predetermination that governs the subject dynamics of sexual relation. Instead of this, there is fault. So, the concept of bisexuality paves the way for the future choices of the subject. The fault is primary, then, bisexuality is inherent to the human being. There is no pre-determinism, so there is no anatomical foundation for the choice of sexual object. Descriptors: psychoanalysis, bisexuality, sexuality. RESUMEN Objetivo: recuperar las contribuciones freudianas a través de su obra, abordando los conceptos fundamentales de la teoría de la sexualidad con foco especial en el concepto de bisexualidad. Métodos: investigación bibliográfica, realizada exclusivamente en el ámbito restricto de los textos oficialmente publicados de Freud. Los dados fueron colectados en la Edición Estándar Brasileña de las Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Resultados: la noción de bisexualidad es encontrada en la obra de Freud desde el inicio de sus pensamientos teóricos, estando en el fundamento de toda la constitución del sujeto. Conclusión: no hay ninguna predeterminación que rija loas dinámicas de relación sexual del sujeto. Lo que hay, en cambio, es la falta. A partir de esto, la noción de bisexualidad abre camino para las futuras elecciones del sujeto. La falta es primaria, entonces, la bisexualidad es inherente al ser humano. No hay pre-determinismo, así no hay un fundamento anatómico para la elección de objeto sexual. Descriptores: psicoanálisis, bisexualidad, sexualidad.

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 2

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO

INTRODUÇÃO A noção de bissexualidade psíquica,

psíquica,

permitem

irrefletido

senso

ao

danosamente

comum

da

sociedade

contemporânea alojar em seu imaginário

que permeia toda a obra freudiana, possui

social

caráter

basilar

sexualidade humana. A problemática em

quando

se

na

teoria

apreciam

equivocada

da

torno dos enganos na apreciação da noção

identificam e discorrem sobre os fatores

de bissexualidade psíquica e o errôneo

primordiais da constituição do sujeito. A

entendimento

bissexualidade é congênita ao psiquismo.

homossexualidade

Sua

comunidade

e

preceitos

concepção

que

amplitude

os

psicanalítica

uma

complexidade

deixam

evidente seu caráter essencial na obra de sua

clara

compreensão

para

questão

merece

científica

e

da

atenção um

da

estudo

acadêmico esclarecedor.

Freud e, consequentemente, a importância de

da

Dessa forma, recuperar os aportes

o

freudianos através de sua obra, abordando

entendimento do sujeito pela ótica da

os conceitos fundamentais da teoria da

Psicanálise.

sexualidade, mostra-se deveras importante,

A deficiência de estudos acadêmicos

pois

contribui

para

a

retificação

dos

elucidativos em torno da bissexualidade da

inúmeros desvios teóricos e clínicos que a

qual trata a psicanálise é evidente. A

Psicanálise vem sofrendo dentro e fora de

questão da bissexualidade urge por estudos

seu próprio campo, além de colaborar para a

que visem seu esclarecimento dentro da

desconstrução do imaginário social acerca da

mais legítima esfera teórica freudiana. O

dita naturalidade desejante na escolha do

artigo que aqui se apresenta é resultado dos

parceiro sexual pela via da anatomia.

trabalhos

produzidos,

até

o

primeiro

semestre do ano de 2012, no Projeto de

MÉTODOS

Iniciação Científica “Um estudo sobre a noção

de

bissexualidade

em

Freud:

a

Trata-se de pesquisa bibliográfica,

imaginário

social

a

realizada no âmbito restrito exclusivamente

homossexualidade”,

aos textos oficialmente publicados de Freud.

desenvolvido no curso de graduação em

Portanto, os dados foram coletados na

Psicologia da Universidade Veiga de Almeida

Edição

– campus Cabo Frio.

Psicológicas Completas de Sigmund Freud,

desconstrução respeito

do da

A incompreensão das proposições de Freud acerca do sujeito sexual, e de seu discorrimento

sobre

a

bissexualidade

Standard

Brasileira

das

Obras

publicada pela Imago Editora, em 1996. Os livros consultados foram os dos acervos pessoais dos autores e os constantes

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 3

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO na Biblioteca da Unidade I da Universidade

durante 17 anos, entre 1887 e 1904, são uma

Veiga de Almeida – campus Cabo Frio, RJ.

preciosa fonte de informação quando se

Com o auxílio do software Edição

busca entender o desenvolvimento e a

Eletrônica das Obras Psicológicas Completas

evolução do pensamento da Psicanálise.

de Sigmund Freud, levantou-se todas as

Encontram-se nestas cartas, em estado

ocorrências

e

nascente, diversas questões levantadas por

deste

Freud, e acompanha-se através delas o

levantamento foi confrontado com os índices

progresso de seu pensamento ao longo deste

dos volumes da Edição Standard Brasileira,

rico período caracterizado pelo nascimento

de modo a aprimorar e refinar a busca e a

da Psicanálise e esboço de suas bases

conclusão do levantamento.

conceituais.

dos

termos

“bissexualidade”.

A

resultado

foram

Dentre os fatos que urgiam por

selecionados para apreciação os textos:

atenção e que foram apreciados por Freud

Carta 52 (1896), Sobre a Psicopatologia da

neste

Vida Cotidiana (1901), Fragmento da Análise

principalmente, as questões relativas à

de um Caso de Histeria (1905 [1901]), Três

etiologia das neuroses. As cartas aqui

Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade

analisadas datam inicialmente de 1896,

(1905), Fantasias Histéricas e sua Relação

período recente à marcante publicação de

com a Bissexualidade (1908), O Ego e o Id

seus estudos sobre a histeria. É neste

(1923) e a Conferência XXXIII das Novas

contexto

Conferências Introdutórias sobre Psicanálise

primeiras pesquisas em torno das neuroses,

(1933 [1932]). Os textos Rascunho K (1896),

que

Carta 46 (1896), Carta 69 (1897), Carta 71

bissexualidade, conferindo-lhe um caráter

(1897), Carta 75 (1897), Carta 125 (1899) e

íntimo

Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914),

psicanalítica.

apesar

partir

O

“bissexual”

de

não

deste

tesauro,

reportarem

momento

tão

Freud a

inicial, já

toda

encontravam-se,

distinguido

aventa

a

elaboração

pelas

noção da

de

teoria

nenhuma

No decorrer do Rascunho K (1), da

ocorrência de quaisquer dos termos, foram

Carta 46 (1) e do começo da Carta 52 (1),

incluídos na apreciação em razão de sua

Freud

relevância teórica para o tema.

sexualidade na etiologia das neuroses a

vem

costurando

o

papel

da

partir de seus estudos sobre o recalque e sua RESULTADOS E DISCUSSÃO As escreveu

cartas a

seu

relação com o desprazer e a cena sexual

que

Sigmund

Freud

infantil. Freud avança e trata o resultado da

amigo

Wilhelm

Fliess1

experiência sexual prematura a partir do destino dado pelo sujeito à representação do

1

Wilhelm Fliess otorrinolaringologista.

(1858-1928),

médico

trauma sexual. A fim de explicar por que tal

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 4

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO experiência ora resulta em neurose, ora em

na experiência sexual. É justamente porque

perversão,

não há um determinismo biológico que Freud

Freud

levanta

o

fator

da

bissexualidade de todos os seres humanos.

considera a possibilidade da experiência do

[...] valho-me da bissexualidade de todos os seres humanos. Num ser puramente masculino, haveria um excesso de liberação masculina também nas duas barreiras sexuais – isto é, seria gerado prazer e, em consequência, perversão; nos seres exclusivamente femininos, haveria, nessas ocasiões, um excesso de substâncias causadoras de desprazer. (1:286)

sujeito ser vivenciada de maneira ativa ou

Na citação acima, aufere-se que a

Freud: a falta primária e inerente ao

passiva. A partir dessa falta de prerrogativa, o autor vê, no âmbito dos assuntos tratados na Carta 52 (1), uma vertente do conceito de bissexualidade. Enfatiza-se a descoberta feita por

bissexualidade para Freud concerne ao que é

humano.

vivenciado

bissexualidade: o sujeito, desnaturalizado,

sexual

pelo

sujeito

infantil.

experiência

vivência

deriva

a

noção

de

desta

por efeito de sua constituição como sujeito

experiência está contida a possibilidade de

de linguagem, não conserva mais um instinto

polaridade de gozo inerente a todo sujeito:

que responda por seu ser ou por seu objeto.

posicionando-se o sujeito de maneira ativa,

Solidifica-se o entendimento da falta de

a

é

referência a um objeto perfeito, que tenha

terminologicamente concebida por Freud

em si a propriedade da completude; este

como o “masculino”; a passividade no ato,

objeto já é anteriormente perdido, porque

vivenciada como trauma que gera desprazer,

nunca foi tido. A bissexualidade é, então,

é o “feminino”. Em outras palavras, um

inerente ao ser humano.

atividade

Na

na

Daí

que

gera

prazer

excesso de prazer na experiência sexual é a vertente

masculina;

a

Fliess a Carta 52 (1), em 21 de setembro de

como

1897 Freud escreve a emblemática Carta 69

desprazerosa é a vertente feminina. Em

(1), na qual acontece a passagem da “teoria

razão da ausência de um imperativo de

do trauma” para a “teoria da fantasia”.

ordem filogenética e/ou biológica, todo

Baseado na escuta de seus pacientes na

sujeito

clínica, que lhe relatavam, no momento em

experiência

tem

ao

sexual

em

passo

concebida

si

a

que

Quase um ano depois de escrever a

ambivalente

possibilidade de igualmente experimentar o

que

prazer e o desprazer, o masculino e o

histéricos, lembranças de cenas reais de

feminino; configurando, assim, nada mais

sedução ocorridas durante a infância, Freud

que um caráter bissexual.

postulou a “teoria do trauma”. Entretanto,

eclodiam

os

primeiros

sintomas

Ressalta-se, porém, a importância

ao avançar em seus estudos, o próprio Freud

do entendimento da falta anterior de uma

começou a reconsiderar a consistência das

premissa que determine a posição do sujeito

cenas de sedução que seus pacientes lhe

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 5

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO relatavam. À parte a improvável quantidade

menina. Ao verificar, porém, que as duas

de

atos

formas de desdobramento do complexo de

perversos contra uma criança, Freud afirma

Édipo (Édipo masculino e Édipo feminino)

o papel preponderante da fantasia sexual

são

inconsciente sobre a vivência de fato. A

mesmo sujeito, Freud, em 1923, no seu

cena é vivenciada pelo sujeito de acordo

artigo O Ego e o Id (3), fundamenta essa

com sua fantasia; é ela que possui o caráter

dupla possibilidade edipiana na noção de

determinante. Assim, passa-se da “teoria do

bissexualidade2.

adultos

dispostos

a

realizar

completamente

possíveis

para

um

trauma” para a “teoria da fantasia”. Para

Trinta dias depois Freud dá inicio,

respaldar sua mudança de concepção, Freud

na Carta 75 (1), ao que seria a conceituação

compartilha com seu amigo a “descoberta

do

comprovada de que, no inconsciente, não há

relacionando

indicações da realidade, de modo que não se

infantis, as zonas erógenas e a neurose,

consegue distinguir entre a verdade e a

Freud abandona a ideia de explicar a libido

ficção que é catexizada com o afeto”

como fator masculino e o recalcamento

(1:310).

como fator feminino, já considerando a

recalque.

Após as

fazer

considerações

experiências

sexuais

Foi a partir da descoberta da teoria

possibilidade de a primeira experiência

da fantasia inconsciente que Freud pôde, ao

sexual infantil – real ou fantasística – causar

retornar de uma peça do mito do “Édipo

no sujeito diferentes efeitos. Embora ainda,

Rei”, de Sófocles, identificar, em sua

Freud

vivência, aquilo que acontece na ficção.

independente

de

Após menos de um mês, na Carta 71 (1),

feminina/passiva

ou

Freud relata uma espécie de descoberta

responsável pela transformação de uma

pessoal nevrálgica do seu processo de

fonte de prazer em repugnância interna,

autoconhecimento: “verifiquei, também no

promovendo o afastamento da lembrança

meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do

infantil da consciência pela via do recalque.

percebe

que

tal sua

experiência, vivência

masculina/ativa,

é

pai, e agora considero isso como um evento

Mais de dois anos após a Carta 75

universal do início da infância [...]” (1:316).

(1), na Carta 125 (1), datada de 9 de

É clarividente que aqui está o germe da

dezembro de 1899, Freud deixa claro ter

teoria do complexo de Édipo, que Freud

abandonado o princípio cronológico como

encerrará posteriormente em 1924. Nesta

fator determinante da escolha inconsciente

Carta 71 (1), Freud já menciona a Fliess o

do

desdobrar do Édipo no menino. Em 1924, no

definitivamente a ideia de periodicidade

texto A Dissolução do Complexo de Édipo

proposta por Fliess. Assim, Freud retoma a

tipo

clínico

do

sujeito,

rejeitando

(2), Freud descreverá o processo edipiano da 2

Trataremos desse tópico posteriormente.

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 6

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO escolha da neurose aliada à teoria da sexualidade. Após a Carta 125 (1), Freud publica, no primeiro ano do século XX, sua grande e

lembrei-me de todo o incidente, que fora exatamente como meu amigo tentara fazer-me evocar, e até da resposta que lhe dei na época: ‘Ainda não aceitei isso; não estou inclinado a entrar nessa questão’. (5:150)

fundamental obra, A Interpretação dos

Vale

ressaltar

a

diferença

do

Sonhos (4). Um ano mais tarde, em 1901,

posicionamento teórico entre Freud e Fliess

Freud traz um grande texto a respeito do

que é sinalizada neste lapso.

inconsciente: Sobre a Psicopatologia da Vida

perceber que o lapso de Freud aponta para o

Cotidiana (5). Nele, é abordada a teoria do

que ele tomava como um equívoco teórico

determinismo psíquico inconsciente por trás

de Fliess, o que acabou por marcar a

dos episódios cotidianos de esquecimento,

divergência entre os amigos. Ao passo que

lapsos

Fliess lança a noção de bissexualidade como

da

superstições

fala, e

equívocos erros.

A

na noção

ação, de

bissexualidade está presente no texto no

fundamentalmente

biológica,

É

fácil

orgânica,

Freud concebe-a como psíquica.

exemplo narrado por Freud para tratar do

Neste

escrito,

no

qual

Freud

esquecimento de impressões já vividas e

ressalta os fenômenos descritos como algo

conhecimentos já adquiridos:

presente tanto no cotidiano da vida das 3

Um dia [...] observei a um amigo [...]: ‘Esses problemas neuróticos só poderão ser resolvidos quando nos basearmos integralmente na hipótese da bissexualidade originária do indivíduo’. Ao que ele respondeu: ‘Isso foi o que eu lhe disse há dois anos e meio em Br. [Breslau], quando dávamos aquele passeio à tardinha. Só que, na época, você não queria ouvir falar nisso’. [...] Eu não conseguia lembrar-me nem dessa conversa, nem do comunicado de meu amigo. Um de nós dois devia estar enganado e, pelo princípio do ‘cuiprodest?’,4 devia ser eu mesmo. De fato, no decorrer da semana seguinte, 3

“[Apenas em 1901 e 1904: ‘Um dia, no verão deste ano, observei a meu amigo F., com quem mantenho um animado intercâmbio de idéias...’ O amigo era Wilhelm Fliess. A data da conversa não foi 1901, mas 1900. Na verdade, essa foi a última ocasião em que os dois homens estiveram juntos. Um relato completo desse episódio pode ser encontrado em Jones, 1953, 344 e segs. O exemplo acima, é claro, foi escrito em fins de 1900 e depois erroneamente datado.]” (6:150n) 4 “[‘Quem se beneficia?’ – pergunta tradicional cuja resposta aponta o culpado de um crime.]” (6:150n)

pessoas “normais” como dos “doentes”, o autor toma a questão da bissexualidade como um fator necessário ao entendimento do mecanismo de esquecimento da neurose, afirmando que os “problemas neuróticos só poderão

ser

resolvidos

quando

nos

basearmos integralmente na hipótese da bissexualidade

originária

do

indivíduo”

(5:150). A proeminência desta passagem se justifica, pois se percebe nela um primeiro apontamento da relação da bissexualidade com o recalque enquanto mecanismo de defesa do neurótico. O autor mais tarde teorizará a respeito desse ponto. É fato que durante o outono de 1900 Freud estivera dedicado ao artigo que aqui se aprecia. Paralelamente, começou a atender Dora, uma jovem mulher, cujo caso

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 7

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO clínico

foi

que

humana enquanto algo não pré-determinado

simultaneamente ao artigo aqui analisado e

e naturalmente polimorfo, Freud lança ao



público, em 1905, seu polêmico Três Ensaios

publicado

escrito anos

quase

depois,

em

1905,

intitulado Fragmento da Análise de um Caso

Sobre a Teoria da Sexualidade (7).

de Histeria (6). A relevância deste texto se

Freud

dedica-se,

no

primeiro

dá ao fato dele tratar da bissexualidade na

ensaio, a desconstruir o imaginário social,

fantasia histérica. Apesar de Freud apenas

científico

mencionar o termo “bissexualidade” no

homossexualidade. Para tal, o autor lança

posfácio do texto - enquanto uma disposição

mão da noção de bissexualidade. Após

constitucional

dos

discorrer sobre a concepção da inversão e

fundamentos do sintoma, juntamente com

discutir a hipótese do caráter inato, Freud

“os germes infantis da perversão e as zonas

conclui que tanto a suposição do caráter

erógenas” – esta concepção está presente de

inato, quanto o seu contrário - a hipótese do

maneira intrínseca na teorização de Freud a

caráter

respeito da fantasia histérica inconsciente

insuficientes

apresentada no caso Dora. Esta noção de

homossexualidade.

a

bissexualidade,

ela

como

enquanto

um

psíquica,

será

e

religioso

adquirido

da

a

respeito

inversão

para

-

da

são

explicar

a

A esta altura do texto, Freud

posteriormente elaborada e discutida por

assevera

que

existe

no

sujeito

uma

Freud de maneira mais refinada quando da

característica própria de sua constituição

discussão a respeito da homossexualidade,

que está substancialmente presente em todo

aberta por ele em 1905.

o processo de desenvolvimento psicossexual

Diante da importância do fator da

que culmina na escolha de um objeto. Freud

sexualidade na constituição do sujeito, já

afirma claramente que há “algo” no sujeito

solidificada na teoria psicanalítica, Freud,

que é fator-chave para o entendimento da

atento ao contexto da época – no qual

escolha

reinava uma ciência empenhada na tarefa

(consequentemente da escolha de um objeto

de

e

do mesmo sexo, já que Freud está tratando,

sexuais,

nesta passagem, da homossexualidade). Esse

concebendo como patológico tudo o que era

fator-chave começa a ser desenvolvido por

desviante da ciência em voga – rechaçou o

Freud no próximo tópico: “O recurso à

entendimento da sexualidade dentro da

bissexualidade”, reafirmando que a escolha

esfera médica-moral proposto por sexólogos

objetal tem algo próprio da constituição

– como Krafft-Ebing, por exemplo. De

psicossexual do ser humano.

classificação

estabelecimento

de de

comportamentos padrões

de

objeto

sexual

maneira a subverter o saber então vigente, e

Freud inicia o tópico a respeito da

com o intuito de esclarecer a sexualidade

bissexualidade afirmando que “certo grau de

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 8

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO hermafroditismo

anatômico

constitui

a

É digno de destaque que nesse

norma; em nenhum indivíduo masculino ou

momento ocorre a elaboração precisa por

feminino de conformação normal faltam

Freud da hipótese de um hermafroditismo

vestígios do aparelho do sexo oposto [...]”

psíquico congênito ao sujeito, e atenta-se

(7:134). O autor prossegue ponderando que:

para a inter-relação entre o “algo” no

A concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de uma predisposição originariamente bissexual, que, no curso do desenvolvimento, vai-se transformando em monossexualidade, com resíduos ínfimos do sexo atrofiado. (7:134, grifo nosso)

Dada esta conjuntura, concebida

sujeito, tratado anteriormente, e a hipótese da bissexualidade psíquica. A hipótese clara da

bissexualidade

psíquica,

exatamente

nesses termos, é mencionada e concretizada por Freud aqui, neste ponto dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (7).

terminologicamente com base na sexologia

Refutando a ideia de um alicerce

da época, Freud cogita que seria sugestivo

anatômico na escolha objetal sexual – o

transpor esta concepção de hermafroditismo

conceito de que, nesta escolha, a anatomia

anatômico para o campo psíquico, e explicar

é o destino, em nota de rodapé Freud alude

a homossexualidade como a expressão de um

à bissexualidade na questão da escolha de

hermafroditismo

objeto pelo sujeito:

psíquico.

Freud,

entretanto, afirma não ser cabível conceber o hermafroditismo psíquico a partir do já comprovado hermafroditismo anatômico. Não é possível imaginar relações tão estreitas entre o suposto hibridismo psíquico e o hibridismo anatômico comprovável. [...] cabe reconhecer que a inversão e o hermafroditismo somático são, no conjunto, independentes entre si. (7:134)

Observa-se Freud

que

abandona

nesta

não

a

bissexualidade

psíquica,

possibilidade

de

hermafroditismo totalmente

a

passagem

hipótese mas

sim

sustentá-la físico;

noção

de

da a no

abandona bissexualidade

proposta por Fliess, que se alicerçava no orgânico.

Freud

pontua

que

o

campo

anatômico e o psíquico são independentes entre si: o âmbito anatômico não responde pelas demandas do âmbito psíquico.

A investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular. Ao estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta, ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente. As vinculações por sentimentos libidinosos com pessoas do mesmo sexo desempenham, inclusive, um papel nada insignificante como fatores da vida anímica normal, e um papel ainda maior do que as vinculações semelhantes com o sexo oposto como motor do adoecimento. A psicanálise considera, antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas préhistóricas, é a base originária da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido. No sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 9

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química. (7:137-8n, grifo nosso)

Pontua-se,

aqui,

a

conclusão

freudiana a respeito da bissexualidade na escolha do sexo do objeto sexual pelo sujeito: é tão possível escolher um objeto

A importância da bissexualidade psíquica

humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual” (7:137n). O sujeito, então,

por

não

trazer

consigo

uma

determinação anterior do seu objeto sexual, dispõe livremente de todas as opções que estão ao seu alcance. A bissexualidade é marcada por Freud nas possibilidades de escolha objetal verificadas na infância, quando, antes de ser cerceada pela “moral sexual civilizada”, a criança

dispõe

masculinos plenamente

igualmente

e

femininos, sua

de

objetos

vivenciando

bissexualidade



reafirmada

quando

se

compreende que daí parte a possibilidade de escolha

do

sujeito,

afastando

toda

a

concepção de uma atração heterossexual pré-determinada. É sabido que o entendimento da

sexual do mesmo sexo, quanto do sexo oposto. Freud afirma que “todos os seres

é

questão

da

escolha

objetal

pela

compreensão

primordialmente propriedades

da

pulsão.

Ao

passa

falar

das da

“inversão” e do que à época era considerado como desvio em relação ao objeto sexual, é digna de apreciação uma nota de rodapé acrescentada por Freud em 1910: A diferença mais marcante entre a vida amorosa da Antigüidade e a nossa decerto reside em que os antigos punham a ênfase na própria pulsão sexual, ao passo que nós a colocamos no objeto. Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto. (7:141n)

bissexualidade, esta, que por estar presente

Não obstante a explanação sobre o

desde os primórdios de sua vida, é originária

papel da noção de bissexualidade na escolha

e constituinte do sujeito. Dessa forma,

de objeto sexual, Freud já diz que a ênfase

Freud conclui afirmando que a escolha de

deve ser dada à pulsão, e não ao objeto,

um

ser

visto que é a pulsão que dispõe da

problematizada tanto quanto a escolha de

prerrogativa de apresentar a demanda de

um objeto do mesmo sexo - já que se

satisfação

dispõe, originariamente, de maneira igual

esclarecerá que, devido às particularidades

dos

a

da pulsão, o objeto é o que de mais variável

bissexualidade do sujeito, não cabe atribuir

há nela, configurando uma plasticidade

a escolha objetal “heterossexual” a uma

pulsional do objeto comum a todos.

objeto

dois

do

sexos

sexo

de

oposto

objeto.

deve

Dada

atração filogenética, instintiva, ou de base química, como bem diz Freud.

sexual.

Freud

posteriormente

No mais, avançando na leitura dos “Três Ensaios”, Freud articula: [...] ficaríamos tentados a relacionar a presença simultânea desses [pares de]

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 10

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO opostos [sadismo-masoquismo] com a oposição entre masculino e feminino que se combina na bissexualidade, oposição que amiúde é substituída na psicanálise pelo contraste entre ativo e passivo.5 (7:151)

puberdade,

Freud,

ao

falar

sobre

a

diferenciação entre o homem e a mulher, lança mão da infância para mostrar a atividade contida na dinâmica autoerótica

A bissexualidade tratada por Freud

da menina. Freud afirma que “[...] a

nesta passagem diz respeito à posição do

atividade auto-erótica das zonas erógenas é

sujeito na dinâmica de obtenção do prazer:

idêntica em ambos os sexos [...]” (7:207),

se é posição ativa ou posição passiva6. Freud

mostrando, assim, que a sexualidade das

emprega, como sinônimo de “atividade” e

meninas tem um caráter ativo – masculino,

“passividade”, os conceitos de “masculino”

visto

que

a

energia

pulsional

é

7

e “feminino”, respectivamente. Daí, uma

necessariamente ativa . Freud, ao trazer

concepção mais clara da bissexualidade à

este exemplo da dinâmica sexual na menina,

qual se refere: “A particularidade mais

mostra

notável dessa perversão reside, porém, em

possibilidade de atividade e passividade é

que suas formas ativa e passiva costumam

própria do ser humano, independente de seu

encontrar-se juntas numa mesma pessoa”

sexo. Freud

(7:151). A coexistência das posições ativa e passiva – masculina e feminina –configura a

que

a

bissexualidade

continua

em

enquanto

seu

texto,

pontuando uma questão substancial:

humana, e não uma aberração: “[...] o

A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino” e “feminino” um conteúdo mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é, regular e normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher. (7:207)

contraste entre atividade e passividade [...]

Dez anos depois de redigir esse

pertence às características universais da

trecho, Freud agrega-lhe uma nota de

vida sexual” (7:150).

rodapé a fim de lançar luz à problemática

bissexualidade

exposta

por

Freud;

a

bissexualidade da posição do sujeito ante o gozo. Freud afirma ser essa bissexualidade uma propriedade ordinária da sexualidade

Prosseguindo para o terceiro ensaio,

por ele levantada. Nesta nota de rodapé

no qual são apreciadas as transformações da

Freud esclarece a polissemia da palavra “bissexualidade”, demarcando três sentidos:

5

“[Essa última oração não aparecia nas edições de 1905 e 1910. Em 1915 acrescentou-se o seguinte: ‘oposição cujo significado se reduz, na psicanálise, ao contraste entre ativo e passivo.’ Essa formulação foi substituída em 1924 pela que agora aparece no texto” (6:151n) 6 Posteriormente Freud retorna a essa questão pontuando que o caráter da libido é sempre ativo, “masculino”. Esse tema será apreciado mais à frente.

“ora se empregam ‘masculino’ e ‘feminino’ no sentido de atividade e passividade, ora no sentido biológico, ora ainda no sentido sociológico” (7:207, grifo do autor). Freud 7

Freud ratificará essa concepção logo em seguida.

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 11

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO afirma

que

a

representante

bissexualidade do

binômio

enquanto “atividade-

cabível falar em monossexualidade. Como já deixou

claro

que

anatômico

âmbito da psicanálise. O autor também

bissexualidade psíquica (e assim não possui

expõe que está na concepção biológica de

relevância para os estudos psicológicos),

bissexualidade

cunhar

Freud encerra o texto sobre a diferenciação

“masculino” como sinônimo de “atividade” e

do homem e da mulher reafirmando a sólida

“feminino” como sinônimo de “passividade”,

importância da noção de bissexualidade

visto que:

psíquica

razão

de

A atividade e suas manifestações mais concomitantes – desenvolvimento muscular mais vigoroso, agressividade, maior intensidade da libido – costumam ser vinculadas à masculinidade biológica, embora não seja uma associação necessária, já que existem espécies animais em que essas propriedades correspondem, antes, à fêmea. (7:207-8n)

para

o

associa

com

entendimento

a

da

sexualidade humana: Desde que me familiarizei com a noção de bissexualidade, passei a considerá-la como o fator decisivo e penso que, sem levá-la em conta, dificilmente se poderá chegar a uma compreensão das manifestações sexuais efetivamente no homem e na mulher. (7:208)

Observa-se que Freud, em Três

Portanto:

das

se

hermafroditismo

passividade” é essencialmente utilizada no

a

não

o

A isso se deve que a libido seja descrita no texto como masculina, pois a pulsão é sempre ativa, mesmo quando estabelece para si um alvo passivo. (7:207n, grifo nosso)

Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (7),

Freud assevera, então, que diante

feminino, atividade e passividade. Alguns

conclusões

tecidas

no

texto

trata da questão de escolha de objeto e faz algumas considerações acerca da pulsão e da bissexualidade

enquanto

masculino

e

a

destes pontos, entretanto, são revisitados

monossexualidade não é encontrada nem no

pelo autor em 1908 no texto Fantasias

campo psicológico – mediante a constatação

Histéricas

da coexistência de atividade e passividade

Bissexualidade (8). Nele, o autor decide

no ser humano – nem no biológico – visto que

fazer

o homem exibe uma “mescla de seus

inconscientes e seus sintomas neuróticos –

caracteres sexuais biológicos com os traços

descritos principalmente no Caso Dora (6).

biológicos do sexo oposto” (7:208n). Nessa

Embora tenha percebido desde 1897 – na

linha de pensamento Freud conjuga, em uma

Carta 69 (1) – a importância das fantasias

só passagem, a síntese de dois pontos por

como base dos sintomas histéricos, foi em

ele desenvolvidos no primeiro ensaio: em

Fantasias Histéricas e sua Relação com a

nenhum

campo

Bissexualidade (8) que Freud indicou a

anatômico e tampouco no psíquico, é

necessidade de preparar-se para encontrar

8

dos

campos,

nem

no

um

e

sua

novo

Relação

exame

das

com

a

fantasias

no tratamento psicanalítico sintomas com 8

Com o perdão do neologismo

significado sexual, apontando para o fato de

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 12

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO que a sexualidade revela, nas fantasias

lhe coloque em posição ativa [masculina] no

histéricas, duas faces que assinalam a

ato sexual, e outra que lhe coloque em

presença

posição passiva [feminina] neste mesmo ato.

do

componente

bissexual

na

neurose em geral.

Assim, ao passo que o sintoma histérico

O próprio Freud afirma que “[...] as

promove a solução de compromisso entre

fantasias inconscientes são os precursores

desejos conflitantes, ele também sintetiza

psíquicos imediatos de toda uma série de

“a união de duas fantasias libidinais de

sintomas histéricos” (8:151). Os sintomas

caráter sexual oposto” (8:153).

histéricos

são

substitutos

do

desejo

É relevante ressaltar que o ponto

recalcado – que nada mais são do que

aqui

fantasias inconscientes exteriorizadas por

intimamente com suas considerações

meio de “conversão” – que servem à

respeito de “atividade-passividade” feitas

realização de um desejo. Ao definir as

nos

propriedades

Sexualidade (7), quando o autor afirma que

basilares

destes

sintomas,

Freud diz:

trabalhado

Três

por

Ensaios

Freud

Sobre

a

afina-se

Teoria

a da

a oposição entre masculino e feminino – ou

Os sintomas histéricos surgem como uma conciliação entre dois impulsos afetivos e pulsionais opostos, um dos quais tenta expressar uma pulsão componente ou um inconsciente da constituição sexual, enquanto o outro tenta suprimi-lo. (8:152)

Freud assevera, neste texto de

seja, a bissexualidade – está presente em todo

sujeito,

sendo

tal

oposição

transportada para psicanálise através do contraste entre atividade e passividade. Estas

novas

explanações

também

e

1908, que a natureza dos sintomas histéricos

primordialmente alcançam as fantasias de

é

Dora, quando das suas relações com o Sr. e a

bissexual.

Analisando-se

o

sintoma

conhece-se a fantasia sexual inconsciente do

Sr.ª K.

sujeito. Deste modo, Freud disserta que a

Dora,

investigação psicanalítica mostra que há

neurótica de 18 anos, foi

muitos sintomas nos quais a presença de

levada a Freud por seu

uma só fantasia sexual é insuficiente para

pai

substituir o desejo recalcado. Para atender a esta demanda é necessária a presença de

uma

devido

jovem

a

graves

Figura 1 – Tela “Les Jours Gigantesques” (1928), de René Magrette. Expressão artística da fantasia bissexual própria da neurose. A imagem sintetiza a coexistência de atividade e passividade, do masculino e do feminino, em um mesmo ser humano. O indivíduo dividido entre o lugar de seduzir e o de ser seduzido; entre ser sujeito e ser objeto.

sintomas

duas fantasias sexuais: uma fantasia de

histéricos.

O

caráter

tratamento tem como palco a relação com o

masculino9 - trata-se da dúplice existência,

casal “K”. O cenário compõe-se do romance

em um mesmo sujeito, de uma fantasia que

do

caráter

feminino

e

outra

de

pai

de

Dora

com

a

Sr.ª

K

e,

paralelamente ao caso extraconjugal de seu 9

Sendo, uma dessas fantasias, originária de um impulso homossexual.

pai, das investidas do Sr. K (esposo da Sr.ª K)

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 13

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO em direção a Dora. Como é comum na

sistematiza essas considerações e marca

histeria, o tratamento de Dora foi marcado

uma nova norma: “Os sintomas histéricos são

pela forte presença de suas questões a

a expressão, por um lado, de uma fantasia

respeito de “o que é ser uma mulher?”,

sexual inconsciente masculina e, por outro

sendo a Sr.ª K (esposa do Sr. K e amante de

lado,

seu pai) vista por Dora como a chave para a

Textualmente o autor ressalta:

resolução deste enigma.

de

uma

feminina”

(8:153).

A natureza bissexual dos sintomas histéricos [...] constitui uma interessante confirmação da minha concepção de que, na análise dos psiconeuróticos, se evidencia de modo especialmente claro a pressuposta exigência de uma disposição bissexual inata no homem. (8:154)

A partir da conjuntura do caso Dora, Freud ratifica duas de suas proposições iniciais. A primeira, referente à repulsa ao sexo, confirma a teoria da existência de uma experiência sexual prematura, sentida pelo

Dado este caráter bissexual da

sujeito como desprazerosa, que, neste caso,

fantasia inconsciente que rege a dinâmica

inconscientemente conduzia a jovem Dora a

de realização de desejo, Freud abordará a

substituir a realização de seus anseios

questão do investimento libidinal do sujeito

fantasísticos pelos sintomas que apresentava

no icônico texto Sobre o Narcisismo: uma



caráter

introdução (9). Estudando o fenômeno do

segunda

narcisismo pela ótica da vida erótica dos

fantasia

seres humanos, Freud analisa que a libido

bissexual, confirma o amor homossexual

investida no Eu e a libido investida nos

latente de Dora pela Sr.ª K, visto que tal Sr.ª

objetos

era tida por Dora como representante da

conjunta, ou seja, no momento em que o

feminilidade; alguém capaz de ensinar-lhe

sujeito retira a libido do seu Eu para investir

de que maneira se enlaça o desejo do outro.

num objeto externo, ele nada mais visa do

Assim, ao passo que se posicionava de

que o retorno desta libido ao seu próprio Eu.

maneira passiva, furtando-se das investidas

No “narcisismo primário” o sujeito investe

amorosas do Sr. K, Dora concomitantemente

sua libido em si mesmo; no “narcisismo

dirigia-se a Sr.ª K, numa postura ativa, na

secundário” o investimento libidinal passa a

ânsia de saber o quê e como uma mulher

ser direcionado a objetos externos. O

deve fazer para ser desejada pelos homens.

sujeito, numa atitude masculina, investe

comprovando,

também,

conversivo

dos

proposição

ratificada,

Este

sintomas.

trecho

o A

sobre

é

uma

a

releitura

externos

ativamente

sua

libido

modo

que

de

em

maneira

um

externo,

fundamentais da fantasia do sujeito que,

feminina ele passivamente espera que o

como se sabe, é um componente-chave na

objeto lhe responda, aguardando o retorno

estrutura neurótica. De tal modo, Freud

de

investimento.

numa

objeto

extremamente importante das propriedades

seu

de

existem

atitude

Atividade

e

passividade, masculinidade e feminilidade:

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 14

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO juntos, coadunados em nome do prazer, da

claramente expressa no redirecionamento

realização do desejo, a serviço da pulsão.

que ele faz ao amor pela mãe, no caso do

Ora, é bissexualidade.

menino.

Freud, além de esboçar algo em torno

de

uma

instância

intrapsíquica,

Na

dissipação

do

complexo

de

Édipo, ao abandonar o objeto de desejo –

denotando uma ideia de divisão, também

agora

afirma que grandes quantidades de libido

identificar-se com ele (algo perfeitamente

homossexual caracterizadas pelo narcisismo

cabível, dado o narcisismo do sujeito) e

são

assumir sua posição. Freud afirma que é

introduzidas

instância. estrutural

na

formação

Cristalizando

do

sujeito

a

ao

sujeito

possibilidade

de

escreve um de seus grandes trabalhos

Assim, o menino que antes se identificava

teóricos, O Ego e o Id (3), em 1923,

com o pai, após o interdito da lei pode

contemplando a bissexualidade inata do

passar – a partir da possibilidade de escolha

sujeito na questão da origem do ideal de Eu

da posição sexuada – a se identificar com a

e sua relação com a identificação primária

mãe,

do sujeito com os pais. Freud afirma que “a

predominar a feminilidade presente em sua

dificuldade do problema se deve a dois

disposição constitucional. Freud pontua que

fatores: o caráter triangular da situação

“a força relativa das disposições sexuais

edipiana e a bissexualidade constitucional

masculina e feminina é o que determina se o

de cada indivíduo” (3:44). Adiantando o

desfecho da situação edipiana será uma

conteúdo que posteriormente tratou em

identificação com o pai ou com a mãe”

1924,

do

(3:45). O autor continua, afirmando que

Complexo de Édipo (2), Freud descreve a

“esta é uma das maneiras pelas quais a

dinâmica do que chama de “complexo de

bissexualidade

Édipo positivo simples num menino”. Nesta

vicissitudes subsequentes do complexo de

conjuntura edipiana, o menino, colocando a

Édipo” (3:45), complementando que:

texto

psíquico,

própria

cabível

instalação de seu objeto perdido no seu Eu.

seu

aparelho

concepção

é

Freud

no

do

a

desta

proibido,

A

Dissolução

masculinidade em voga, identifica-se com o pai e sua posição desde o começo, tendo com ele uma atitude ambivalente – de admiração e hostilidade – e com a mãe uma relação unicamente afetuosa. Na conjectura subsequente ao interdito da lei, que dissolve o complexo de Édipo e criminaliza o amor parental, a bissexualidade do sujeito fica

seu

objeto

é

perdido,

fazendo

responsável

pelas

Um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. Isto equivale a dizer que um menino não tem simplesmente uma atitude ambivalente para com o pai e uma escolha objetal afetuosa pela mãe, mas que, ao mesmo tempo, também se comporta como uma menina e apresenta uma atitude afetuosa feminina para com o pai e um ciúme e uma

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 15

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO hostilidade correspondentes em relação à mãe. (3:45-6)

É

justamente

tratando

desta

predeterminação que reja as dinâmicas de relação sexual do sujeito. Não há um imperativo, de qualquer ordem, que afirme

duplicidade do complexo de Édipo que

ao sujeito que por

Freud, na Conferência XXXIII (10) de suas

biológicos genitais masculinos ele deve

Novas

posicionar-se

Conferências

Introdutórias

sobre

de

ter

os caracteres

maneira

ativa

ou

Psicanálise (10), ao falar da feminilidade –

relacionar-se com tal objeto. O que há,

baseado

de

primariamente, é, ao contrário, a falta. A

bissexualidade – descreverá em detalhes o

falta intrínseca à passagem da natureza para

processo edipiano na menina, mostrando

a cultura, que marca o ser humano como ser

que

pré-

de linguagem, dividido pelo significante que

determinado e que, tanto no menino quanto

o precede e constitui. A partir desta falta do

na menina, o amor pela mãe é primário. O

objeto

complexo de Édipo é bissexual na medida

bissexualidade abre caminho para as futuras

em que, seja o sujeito biologicamente

escolhas do sujeito. A falta é primária,

menino ou menina, todas as relações são

então, a bissexualidade é inerente ao ser

perfeitamente

humano.

integralmente

seu

amor

pelo

na

pai

possíveis

noção

não

com

é

as

figuras

parentais. A disposição do sujeito, o jogo de combinatórias, está aberta desde a infância: Se um menino se identifica com seu pai, ele quer ser igual a seu pai; se fizer dele o objeto de sua escolha, o menino quer têlo, possuí-lo. No primeiro caso, seu ego modifica-se conforme o modelo de seu pai; no segundo caso, isso não é necessário. Identificação e escolha objetal são, em grande parte, independentes uma da outra; no entanto, é possível identificar-se com alguém que, por exemplo, foi tomado como objeto sexual, e modifica o eu segundo esse modelo. (10:68-69, grifo do autor)

que

complete,

a

noção

de

A anatomia não é o destino, e é exatamente indivíduo

em

razão

disto

tem,

por

sua

que

todo

natureza

constituinte, a ambivalente possibilidade de psiquicamente passear de maneira livre pelo masculino e pelo feminino – pela atividade e pela passividade. É a bissexualidade inata. Em razão da falta, do não pré-determinismo, não há uma fundação anatômica para a escolha de objeto sexual. A

ausência

deste

imperativo

também caracteriza o âmbito da escolha de objeto sexual. Igualmente há falta. Não existe objeto pré-determinado. A pulsão

CONCLUSÃO Ao

sexual não reconhece um objeto específico conceber

o

ser

humano

a

Psicanálise deixa extremamente claro que não

existe

qualquer

tipo

de

de caráter anteriormente deliberado, sendo absolutamente possíveis todos os objetos que estejam à disposição do sujeito. Se a

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 16

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO pulsão não possui uma atração pré-definida,

sujeito está afinado com a concepção

por que reconheceria o genital? De fato não

psicanalítica de ser humano, que o concebe

o reconhece. As demandas de satisfação

como um sujeito que é, necessariamente,

apresentadas pela pulsão não têm relação

um sujeito de escolhas.

com o campo biológico. A escolha de um objeto sexual do mesmo sexo é tão possível

REFERÊNCIAS

quanto a escolha de um objeto sexual do sexo oposto. O

1. Freud S. Extratos dos documentos que

define

claramente

a

dirigidos a Fliess (1950 [1892-1899]).

bissexualidade é a coexistência intrínseca no

In:

sujeito dos pares de opostos, a partir dos

completas de Sigmund Freud: edição

quais, sob a atuação do recalque, ele faz sua

standard brasileira. Rio de Janeiro:

escolha:

Imago, 1996. 1:217-331.

atividade

versus

passividade,

Freud

S.

Obras

psicológicas

masculino versus feminino; posição sexuada

2. Freud S. A dissolução do complexo de

versus escolha de objeto. A possibilidade de

Édipo (1924). In: Freud S. Obras

posicionar-se

a

psicológicas completas de Sigmund

possibilidade de optar por assumir uma

Freud: edição standard brasileira. Rio

posição ativa ou passiva só é possível porque

de Janeiro: Imago, 1996. 19:189-199.

diante

da

castração;

há bissexualidade. Se o sujeito não fosse bissexual

seu

inconsciente

seria

pré-

3. Freud S. O ego e o id (1923). In: Freud S. Obras psicológicas completas de

determinado, e, no entanto, desde os

Sigmund

tempos de Freud sabemos que não o é. Só há

brasileira. Rio de Janeiro: Imago,

possibilidade de escolha porque há opção; e

1996. 19:13-80.

só há opção porque há bissexualidade. Mais além:





heterossexualidade,

Freud:

edição

standard

4. Freud S. A interpretação dos sonhos

em

(1900). In: Freud S. Obras psicológicas

oposição à homossexualidade, porque há

completas de Sigmund Freud: edição

bissexualidade psíquica.

standard brasileira. Rio de Janeiro:

O sujeito, então, está partido.

Imago, 1996. 4-5:1-650.

Fadado a escolher entre o masculino e o

5. Freud S. Sobre a psicopatologia da vida

feminino; entre a atividade e a passividade;

cotidiana (1901). In: Freud S. Obras

entre todas as relações de desejo possíveis

psicológicas

com

Freud: edição standard brasileira. Rio

o

objeto

graças

à

plasticidade

pulsional. Está aí a bissexualidade originária

completas

de

Sigmund

de Janeiro: Imago, 1996. 6.

do sujeito, que marca seu aparelho psíquico

6. Freud S. Fragmento da análise de um

como algo estruturado, fraturado, partido. O

caso de histeria (1905 [1901]). In: Freud

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 17

RESCAC REVISTA SAÚDE, CORPO, AMBIENTE & CUIDADO S. Obras psicológicas completas de Sigmund

Freud:

edição

standard

brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 7:13-116. 7. Freud S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Freud S. Obras psicológicas

completas

de

Sigmund

Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 7:117-231. 8. Freud S. Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908). In: Freud S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 9:145-154. 9. Freud S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: Freud S. Obras psicológicas

completas

de

Sigmund

Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 14:75-108. 10. Freud

S.

Novas

conferências

introdutórias sobre Psicanálise (1933 [1932]). In: Freud S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 22:11-177.

Recebido em: 01/08/2012 Aprovado em: 24/09/2012

R. saúd. corp. ambi. e cuid. 2012. out./dez. 1(1):1-18

Página 18

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.