Um Expressionismo em Capitu: a apropriação imagética contemporânea

June 5, 2017 | Autor: Yasmin Pires | Categoria: German Expressionism, Avant-Garde, Post-modernism, Cultural Industry, Capitu
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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

YASMIN PIRES FERREIRA

UM EXPRESSIONISMO EM CAPITU: A APROPRIAÇÃO IMAGÉTICA CONTEMPORÂNEA

ANANINDEUA 2013



UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

YASMIN PIRES FERREIRA

UM EXPRESSIONISMO EM CAPITU: A APROPRIAÇÃO IMAGÉTICA CONTEMPORÂNEA

Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao Centro de Estudos Sociais Aplicados da UNAMA como requisito para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social com ênfase em Publicidade e Propaganda. Orientador: Prof. Dr. Relivaldo Pinho

ANANINDEUA 2013



UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA YASMIN PIRES FERREIRA UM EXPRESSIONISMO EM CAPITU: A APROPRIAÇÃO IMAGÉTICA CONTEMPORÂNEA Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao Centro de Estudos Sociais Aplicados da UNAMA como requisito para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social com ênfase em Publicidade e Propaganda. Orientador: Prof. Dr. Relivaldo Pinho Banca Examinadora _________________________________________ Dr. Relivaldo Pinho Orientador - UNAMA _________________________________________ Dr. Heraldo de Cristo Miranda

Apresentado em: 12 de dezembro de 2013. Conceito: Excelente. ANANINDEUA 2013



Aos meus pais, Antonio e Elizabete, alicerces de toda a minha educação.



AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, presente em minha vida a cada oportunidade por Ele então concedida, estando inclusa a chance de poder obter uma formação acadêmica. À instituição UNAMA por ensejar os caminhos que possibilitam essa formação. Ao meu orientador Relivaldo Pinho pela ajuda na dinâmica de construção do meu trabalho, e também no incentivo e condução do meu processo de amadurecimento como pesquisadora. Aos meus amados pais, Antonio e Elizabete, que tornaram cada passo da minha caminhada possível e nunca mediram esforços para me proporcionar uma educação de qualidade, sempre guiados pelo amor maior com que me criaram, e ao qual eu vou passar o resto da minha vida em busca de formas de retribui-lo. Aos meus irmãos, Adriana, Daniel, Thiago, Danilo e demais familiares por todo o apoio que me deram, dentre os quais destaco o meu irmão Danilo pelo encorajamento que me deu ao sugerir que eu fizesse o curso que agora finalizo. Aos meus amigos Camila, Kawanne, Felix, Michel e Victor que sobretudo entenderam a minha ausência nos momentos em que eu precisava me dedicar à realização desse trabalho, e que me consolaram diante das dificuldades enfrentadas. Principalmente a Camila que me presenteou anos atrás com o livro “Dom Casmurro”, o que sem dúvida suscitou toda a paixão que me levou ao interesse pelo tema escolhido. Aos meus amigos de sala Victória, Amanda, Lucas e Keicyanne pelo suporte que nós construímos ao nos apoiarmos de forma mútua nessa fase de conclusão do curso. Ao Luiz Fernando Carvalho e Michel Melamed pela solicitude e gentileza com a qual me atenderam e cederam informações que contribuíram grandemente para a realização da presente pesquisa.





“As artes não teriam história se os limites do mundo conhecido não tivessem recuado e os meios de o conhecer alargado à medida das transformações da vida, tanto na arte como no resto” György Lukács



RESUMO A pesquisa almeja a explicitação do fenômeno da apropriação imagética contemporânea através do estudo do diálogo entre a realização audiovisual “Capitu”, produzida e veiculada pela Rede Globo em 2008 sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, e um dos movimentos que compôs o quadro das vanguardas artísticas da década de 1920, o expressionismo alemão. Em meio a uma abordagem crítico-teórica que envolve a compreensão do modernismo, da conjuntura pós-moderna e os desdobramentos da indústria cultural, destaca-se a discussão do que permeia as relações estabelecidas entre o objeto artístico e o seu referente no sentido das abordagens conceituais e sistemas de valoração da linguagem estética frente a sua existência em um tempo de submissão das dinâmicas de produção cultural à hegemonia capitalista. Palavras-chave:

Capitu,

modernismo,

modernidade, indústria cultural.



vanguardas,

expressionismo

alemão,

pós-



ABSTRACT This research aims to make explicit the phenomenon of the contemporany imagetic apropriation through the study of the dialog between the audio-visual work “Capitu”, produced and broadcasted by Globo Networs in 2008 under the direction of Luiz Fernando Carvalho, and one of the movements that composes the cenary of artistic vanguards from the ‘20s, the Germain expressionism. Among a critic-theoretic approach that envolves the comprehension of the modernism, the postmodern conjucture and the developments of the cultural industry, the discussion of what permeates the relationship established between the artistic object and its referent stands out in the sense of the conceptual approaches and valuation sistems of aesthetics language in face of its existence into a time when the dynamics of cultural production are submitted to the capitalist hegemony. Key-words: Capitu, modernism, vanguards, Germain expressionism, postmodernity, cultural industry.





LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - “O Grito”, de Edvard Munch

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Figura 2 - A técnica de iluminação low-key

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Figura 3 - Comparativo de semelhanças físicas e conceituais

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Figura 4 - Dom Casmurro e a materialização da abordagem fragmentária

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Figura 5 - Colagem de tempos e espaços dentro da narrativa

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Figura 6 - A trama clássica se desenvolve em um ambiente vulgar

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Figura 7 - Elementos tecnológicos inseridos em um discurso de época

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Figura 8 - Da mixagem de linguagens artísticas em Capitu, a ópera

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Figura 9 - O fluxo de imagens e a simulação sensorial do olhar de Capitu

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Figura 10 - A desconstrução metalinguística confrontando uma esfera ficcional

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Figura 11 - A visualidade obscura suscita sensações no público

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Figura 12 - A projeção das emoções latentes no cenário

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Figura 13 - Uso da sombra

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Figura 14 - Diferentes técnicas marcam diferentes momentos da vida de Bento

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Figura 15 - O uso de gelatinas na cena

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Figura 16 - A subexposição da fotografia

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Figura 17 - A relação da narrativa visual com a trama

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Figura 18 - Caracterização do personagem alusiva ao expressionismo alemão

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Figura 19 - A linguagem corporal e encenação exacerbada

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Figura 20 - A dimensão imaginativa de “Capitu”

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO

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2 MODERNIDADE E PÓS MODERNIDADE: DISCUSSÕES SOCIOCULTURAIS, ESTÉTICA E EXPERIÊNCIA

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3 ECOS DO GRITO EXPRESSIONISTA

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4 RESSONÂNCIAS CONTEMPORÂNEAS

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4.1 CRÍTICA DA CULTURA: ESTÉTICA ENTRE A ARTE E A TÉCNICA

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4.2 A ATUAL DOMINANTE CULTURAL

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4.3 NA LUZ DA CONTEMPORANEIDADE, AS SOMBRAS DA MODERNIDADE

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5 À SOMBRA DE CAPITU: A ESTÉTICA CONTEMPORÂNEA

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5.1 RASGOS DE PAPEL E FRAGMENTOS DE MEMÓRIA

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5.2 A PROPAGAÇÃO DAS SOMBRAS: DIÁLOGOS ESTÉTICOS

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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7 REFERÊNCIAS

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8 APÊNDICES

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9 ANEXOS

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1 INTRODUÇÃO O valor é a lembrança. (ASSIS, 2007) Do aparelho televisor ressoa uma voz rouca, que proclama frases conhecidas. Entre um jogo imagético que intercala paisagens atuais e antigas, olhos melancólicos, borrados, parecem fitar a nós, espectadores, transpassando sentimentos tão límpidos que fogem às sombras do seu entorno, enquanto se desenlaça na tela uma história no mínimo reconhecível. Até que pronunciado pelo protagonista, chega aos nossos ouvidos o nome “Capitu”. Trata-se de uma consagrada obra da literatura brasileira adaptada para a televisão em formato de minissérie, afinal. Porém, com uma abordagem visual e narrativa diferente da que o leitor provavelmente figurou em sua mente enquanto lia “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, está inserida em uma proposta criativa que foge a qualquer realismo ou padrão clássico televisivo. A composição do objeto audiovisual em questão encontra-se permeada por uma estética contemporânea, proveniente de um enredo social e econômico específicos, os quais têm ascendência direta sobre sua construção imagética. Os meandros da imagem sempre foram alvo de uma particular investigação humana, tendo em vista o seu potencial de representação e simulação. Originária da ampla capacidade comunicativa da qual o homem é dotado, foi desenvolvida sob a forma de expressão e projeção da relação do indivíduo com o mundo por meio de plataformas físicas, que através do tempo, tornaram-se digitais. Ao traçarmos um breve percurso de seu aprimoramento, desde as pinturas rupestres às técnicas de xilogravura, perpassando pela criação da fotografia que desenvolve o cinema e finda na mídia televisiva, constatamos que a linguagem imagética nunca esteve incólume às influências socioeconômicas que regem os parâmetros culturais. É abordando a complexidade do processo contemporâneo de construção dessas representações que a presente pesquisa é conduzida. O estudo da minissérie televisiva “Capitu”, adaptação da obra machadiana “Dom Casmurro”, produzida e veiculada pela Rede Globo em 2008 sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, e de sua construção referencial com base na vanguarda expressionista almeja ser um esteio para a sistematização de um panorama de apropriação imagética na contemporaneidade. A análise abarca a compreensão dos ditames contemporâneos (pósmodernos) e suas consequências, sob a perspectiva da apropriação estética promovida pelas atuais dinâmicas de produção cultural e dos processos criativos que envolvem os produtos comunicacionais televisivos no que diz respeito às estruturas as quais o fazer dessas obras está



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submisso. “Capitu” expressa-se como efeito dos condicionamentos de ressignificação estética que acompanham os parâmetros estabelecidos pela cultura do consumo, revelando-se uma obra indispensável de ser estudada ao integrar um objeto que propicia a promoção de um debate atual para o âmbito acadêmico, com destaque para a compreensão da produção e abordagem cultural contemporânea. Tal contexto a ser explicitado torna-se vigente com o ruir dos valores modernos: a reestruturação ideológica advinda do racionalismo consolidado pelo sucesso do iluminismo francês culminou em uma era de constantes instabilidades, assim como o avanço industrial trouxe um horizonte de possibilidades políticas e econômicas que colocou a humanidade em posição de não suportar as suas próprias pretensões na eclosão dos conflitos mundiais. A gama de acontecimentos que compôs esse processo foi responsável por transformações culturais e artísticas, a exemplo das vanguardas, mas de maneira geral, tudo o que parecia promissor contribuiu para instaurar incertezas. O homem deparou-se com o fenômeno da técnica e fragmentou-se. A inserção dos meios de comunicação no cotidiano deu conta da abrangente realidade, entretanto fez com que nos perdêssemos em meio ao universo informacional no qual nos encontramos, e o confronto provocado pelo contato com outras culturas findou no descentramento do indivíduo mediante a crescente globalização. A forma como as concepções modernas foram estabelecidas logo sucumbiu a uma nova realidade. Descrentes das falhas esperanças ideológico-utópicas, os indivíduos realocam seus conflitos de um âmbito político ao simbólico, ou seja, para um universo sobretudo consumista na busca de suprir suas frustrações em uma sociedade na qual a produção e consumo de massa são normatizados. Os meios de comunicação tornaram-se mantenedores da perspectiva comercial que envolve nossa existência. A crescente evolução midiática e o consequente fluxo informacional que acompanham esse instrumento, dão manutenção ao seu exercício. Instigadas então pelas tendências tecnológicas, as imagens tornam-se potencialmente incoerentes e hipnóticas na conquista dos sentidos, através da fluência imagética descontínua. Nossa recepção ótica é estimulada e detida ao nos submergir em sensações simuladas pela técnica, coniventes com a hegemonia cultural de uma arte digerida que traz consigo um passado igualmente simulado, de maneira a não requerer do receptor um processo crítico de absorção da mensagem. Inseridos na conjuntura adversa de uma contemporaneidade que problematiza a relação da produção cultural com a memória mediante os padrões discursivos atestados, presenciamos um deslocamento de estéticas consagradas do seu entorno histórico. Tal fenômeno é evidente em “Capitu” ao valer-se do passado imagético consolidado pelo



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expressionismo alemão: a utilização de um ostensivo trabalho direcionado a projeção da atmosfera psíquica do protagonista nos seus arredores por meio da direção de arte, maquiagem caricata, distorções, luzes quentes e interpretação exacerbada, por exemplo, promovem um diálogo de concepções técnicas e estilísticas que denunciam o viés de sua aplicação descontextualizada ao considerarmos os acontecimentos políticos e sociais que permearam os anos expressionistas. Os movimentos vanguardistas eclodiram em oposição aos embates ideológicos e violência que permeavam o início do século XX europeu como forma de manter o desenvolvimento cultural por meio de uma arte ambiciosa que valorizava sobretudo o expressar. Em meio à ascensão de estéticas transgressoras há um encadeamento de circunstâncias históricas que culminaram no desenvolvimento de uma frente artística engajada, a qual na Alemanha personificou o espírito alemão do pós guerra no expressionismo. A república de Weimar então instaurada em 1918, ao perdurar sobre um período de instabilidades econômicas, políticas e sociais, trouxe a negação da realidade e a liberação do horror à I Guerra Mundial expressas em teatro, literatura, artes plásticas e cinema, do qual destaca-se a obra “O Gabinete do Doutor Caligari” (1920), de Robert Wiene. Como primeiro filme proveniente de uma estética expressionista, tornou-se cânone e foi responsável por ditar novas temáticas e padrões imagéticos audiovisuais do que estava porvir. Para análise, também são escolhidos outros filmes icônicos do movimento abordado, sendo eles “Nosferatu” (1922) e “Metropolis” (1927), importantes para uma apreensão do todo estilístico composto por serem originários de várias fases do movimento. Os traços destacados nas obras fílmicas serão utilizados como parâmetro no estudo comparativo entre o objeto “Capitu” e a estética cunhada pela vanguarda expressionista alemã, uma vez que o objeto, da mesma maneira como suas referências, é embebido de uma atmosfera psíquica relacionada ao transtorno traduzida em sombras e deformações que compõem o seu cenário. Hoje, a linguagem consolidada pelo movimento encontra-se amplamente disseminada pelos produtos comunicacionais veiculados na mídia, detentora de um novo propósito existencial, diferente dos que permeavam sua origem. Partindo disso, composição referencial do objeto possibilita a abordagem crítica de si como cerne para a articulação dos diversos conceitos intrínsecos à condição cultural atuante. Atesta-se então que o presente contexto compactua com uma indústria voltada para a mercantilização do próprio entretenimento, inerente à sustentação dos atuais padrões políticos e socioeconômicos: a indústria cultural. A proliferação massiva da cultura tem em si uma proposta estética de vulgarização de uma arte genuína com o intuito de comercializá-la para as massas.



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A simulação dos efeitos de vanguarda procurou firmar sobretudo uma relação de reconhecimento com seu público, associada à venda de uma fruição simples que transmuta o referente, almejada pela sociedade cujo cotidiano pede a adesão à experiências facilmente interpretadas. A ressignificação referencial nos mune portanto de uma lembrança indicial e significante que não procura estabelecer um discurso mental coerente acerca de suas influências, atestando a atrofia de seu passado em função de um viés geralmente mercadológico o qual dissolve a arte em algo compreensível que não cultiva seu desvelamento crítico, intrínseco a sua primeira existência. O posicionamento do produto cultural, a forma artística como ele se vende, dentre outros aspectos afeitos a experiência da apropriação imagética são argumentações a serem aprofundadas no trabalho proposto. Assim, diante do exposto, se faz necessário pensarmos que tipo de expressionismo “Capitu” nos traz, e com qual finalidade. A pesquisa constitui-se pois do enfoque na abordagem da vanguarda expressionista, diálogo ainda não explorado, estudando também os processos históricos do panorama de surgimento das vanguardas modernas além de destacar a especificidade alemã nesse contexto. A forte porém restrita relação de referencialidade com o expressionismo alemão permite à análise projeção e crítica da atestada mecânica de apropriação da imagem cultivada pelos atuais modos capitalistas na busca de um quadro de compreensão da arte contemporânea. Serão reafirmados os estudos já realizados acerca dos caminhos das produções artísticas contemporâneas ditados pelo modelo econômico vigente por meio da observação da apropriação estética e seus processos correlatos. Na constatação de uma lógica da mercadoria que interfere nos múltiplos âmbitos da vida humana, propõe-se uma reflexão fundamental sobre os fins, consequências e funções da linguagem consolidada pelos meios de comunicação em massa, que fazem transparecer a predominância da imagem pela estética no cotidiano da sociedade, fato que só será compreendido em meio a um relato de seu contexto social, econômico e cultural, bem como é alusivo aos processos criativos e conceituais contidos na obra em questão. Atrelados a ditames estéticos pela perda do significado no abandono dos referentes, e mediante as condições estabelecidas sobre o atual cenário, vivemos em uma alucinação estética da realidade (BAUDRILLARD, 1981) que nos torna vulneráveis à retórica da imagem contemporânea. Com base nos argumentos expostos e na caracterização específica do objeto a ser abordado, a pesquisa por fim traduz-se num imprescindível estudo acerca dos aspectos da apropriação imagética contemporânea, seu alcance, causas, padrões, consequências e demais nuances, objetivando identificar a presença de estilemas vinculados



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ao movimento expressionista alemão em “Capitu”, de forma que possam explicitar o contexto contemporâneo (pós-moderno) no qual o processo criativo da obra está inserido, para então discutir o que permeia as relações estéticas estabelecidas entre o objeto artístico e o seu referente no sentido das abordagens conceituais e sistemas de valoração da linguagem estética frente ao panorama capitalista hegemônico. A composição de um estudo relativo ao estudo do audiovisual requer a análise das informações pictóricas que constituem o objeto sob um viés técnico, mas ao mesmo tempo contextual e crítico, tendo em vista a consciência de que a imagem representa um recorte de realidades, a materialização do modo de relação entre o homem e o mundo. Ao objetivar o alcance de um desvelamento da apropriação imagética contemporânea por meio da investigação de “Capitu”, a leitura e análise da imagem é um caminho a ser seguido, juntamente com a análise de discurso, em termos metodológicos. Segundo essa perspectiva de análise seria fundamental realizar reflexões sobre a imagem ainda que tendo em conta o esvaziamento de sentido sofrido com a submissão desta à lógica da mercadoria. (...) Atualmente banalizados, os registros visuais se proliferam, gerando imagens em que não haveria nada a olhar, perceber. Com a tecnologia e o ritmo acelerado de exposição de imagens, especialmente nas mídias audiovisuais, haveria mudanças não apenas nos registros visuais, mas sobretudo na forma de olhar (...). (COUTINHO, 2005).

Portanto, ao processo comunicativo da imagem midiática, é inerente a apreensão de suas mensagens visuais pela exploração do seu conteúdo e forma, mas também de suas enervações como ferramenta de expressão consumível. Coutinho (2005) ainda enfatiza a importância de “levar em conta uma espécie de ‘infra-saber’, isto é, o conhecimento e compreensão das características discursivas da grande narrativa em que aquele registro visual se insere”. Figura-se igualmente a necessidade de uma análise do discurso, partindo do pressuposto de que a imagem é texto, a qual encontra-se submissa às relações de poder existentes na esfera social. Sob a gama de cores, composições e profundidade compostas pela luz, há a tradução de aspectos socioeconômicos e tendências culturais que integram o abordado fenômeno da apropriação estética contemporânea (pós-moderna) no destaque dos contextos produtivos vinculados aos meios de comunicação em massa. Diante dessa percepção, justifica-se a aliança entre os dois métodos de análise. A abordagem imagética e discursiva, respectivamente, serão responsáveis pela explicitação técnica e contextual do objeto. O trabalho conduz, dessa forma, a culminância de uma análise estética do objeto que visa explorar os vários âmbitos de seu desenvolvimento.



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2 MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: DISCUSSÕES SOCIOCULTURAIS, ESTÉTICA E EXPERIÊNCIA O fenômeno da apropriação imagética contemporânea é permeado por reflexões que buscam sobretudo abarcar o contexto de produção dos objetos comunicacionais. É central a compreensão da forma como a presente conjuntura social influi na concretude dos produtos culturais, assim como os desdobramentos desse fazer, ao visarmos uma análise aprofundada de “Capitu”. Para tanto, o desenvolvimento de uma discussão com bases fundadas na conjuntura histórica que permeou o surgimento das vanguardas, o entendimento de alguns conceitos como kitsch, indústria cultural, midcult, pastiche, bem como a origem denominada vigência pós-moderna são imprescindíveis. A exploração do objeto demanda que a cadeia de acontecimentos sociais que levaram a atual estética cultural à pós-modernidade seja compreendida, assim como o contexto em que se deu o surgimento das vanguardas artísticas. Dentre as principais fontes que alimentam a experiência moderna, destaca-se como sua origem a evolução das ciências físicas refletida na mecanização da produção industrial, e a consequente mudança nos ritmos e modos de vida que condensam-se na urbe (BERMAN, 2009). Submersa nas mazelas sociais provenientes de um plano desenvolvimentista pautado centralmente na técnica, a cidade cresce de forma rápida e caótica, dando lugar à plena expansão dos meios comunicacionais agora responsáveis por integrar o indivíduo, dadas as novas condições de sua realidade. As circunstâncias instauradas pelo modelo vigente incitaram movimentos sociais de massa contra frentes políticas e econômicas que buscavam poder incessantemente em nome de um mercado capitalista mundial flutuante e crescente. Essa atmosfera – de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, autoexpansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma – é a atmosfera que dá origem à sensibilidade moderna. (BERMAN, 2009, p. 27).

Mediante tais condições de instabilidade, Berman contrapõe os sentimentos do ser moderno, que ao mesmo tempo que eram permeados de entusiasmo referente às constantes mudanças e crescimento, eram tomados de insegurança derivada da fugacidade de suas experiências pelos mesmos motivos. O que era ideologicamente promissor foi subvertido pela realidade, gerando um quadro turbulento que estimulou manifestações de várias naturezas. Entretanto, a reação suscitada dentro de uma esfera de expressão da sociedade destacou-se pela criação de uma linguagem então única e inovadora, capaz de traduzir o reflexo íntimo de



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tantos acontecimentos através da quebra de paradigmas estéticos: o modernismo artístico, que conforme o autor, aparece “como uma tentativa de libertar os artistas modernos das impurezas e vulgaridades da vida moderna” (BERMAN, 2009, p. 42). Dilatando o viés da compreensão acerca da conjuntura moderna, soma-se ao panorama construído o estudo de David Harvey, que nos remetendo ao século XVIII, começa a concatenar diversos fatores que contribuíram para que o atual cenário fosse instaurado: desde a ação transformadora da Revolução Industrial que reconfigurou a vida urbana e promoveu a crescente tecnização aos discursos liberais dos anos 60 que desestabilizaram as aparências, detendo-se nas ideologias totalizantes que fundamentavam o projeto iluminista, mostrando-o falho no âmbito das ações. As torrenciais mudanças que cada um desses importantes episódios causou foram responsáveis por dar à modernidade um caráter efêmero, instável, pela constante variação na qual a esfera social foi inserida, da mesma maneira que estabeleceu a conjuntura que formou o indivíduo moderno, e consequentemente, pós-moderno. Harvey descreve o modernismo como essencialmente “positivista, tecnocêntrico e racionalista”, destacando dessa forma a influência determinante do iluminismo nesse panorama. Tinha como essência o antropocentrismo, portanto, alocava o homem no centro do universo tendo em si a pretensão de dominar o mundo ao seu redor através do conhecimento. Esses valores que em um primeiro momento representavam segurança findaram na falibilidade da ideologia, que resume-se em uma razão controladora a qual não obteve sucesso porque carregava consigo uma série de dilemas práticos. Não à toa, em frente às demandas criadas pela Revolução Industrial, suscitou posturas imperialistas e políticas dominadoras que culminaram nas grandes guerras, na crença de que para criar, era preciso destruir. Entretanto, as consequências desse processo foram avassaladoras para a humanidade, segundo o autor. É diante dessa articulação de fatos históricos que o autor explicita o papel do artista e o surgimento das vanguardas, percepção primária para o curso da pesquisa. Fazendo frente em uma realidade a qual o culto ao conhecimento não era mais suficiente ou seguro, a estética clama para si o papel de compreender o espírito da sua época, eternizá-lo e também iniciar um processo de mudança. Nesse tempo, Saint Simon enfatizava a função social da arte e o seu poder de transformação, estando na dianteira das faculdades intelectuais (HARVEY, 1992, p. 29), perspectiva que dotava o artista de uma função “heroica”. A politização da arte, bem como a postura de agente transformador social assumida pelo artista tem suas origens no Romantismo (GULLAR, 2002). A ascensão da burguesia trouxe consigo mentores que clamavam para si liberdade de pensamento e expressão, entretanto, uma vez que esta classe consolidou-se no poder, aqueles intelectuais que a



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sustentavam ideologicamente com forças sociais renovadoras tornaram-se servos do sistema implantado com sua própria ajuda. O autor, servindo aos interesses burgueses perde sua função primordial e adere à marginalidade, e é nesse contexto, conforme Gullar, que “o Romantismo nasce como uma reação à mediocridade da vida burguesa” (2002, p. 178). É nele que a arte ganha seu caráter evasivo e passa a divergir da realidade social, assim como é a partir dele que os artistas passam a se unir organizadamente em movimentos cônscios, para protestar socialmente sob uma mesma bandeira e guiado pelos mesmos ideais. “A experiência política deixou neles a sua marca, e a politização penetra no campo da arte (...). O caráter coletivo e partidário dos movimentos estéticos modernos nasce aí” (GULLAR, 2002, p. 179) As vanguardas modernistas davam corpo à estética que respondia ao cenário caótico daquele tempo, inserida na busca de uma nova linguagem, uma vez que o realismo e o naturalismo mostraram-se inadequados em termos de representação: o mundo havia se tornado complexo, não mais abarcava representações simples (HARVEY, 1992). Os novos parâmetros estéticos estabelecidos não espelhavam a realidade de forma explícita, mas sim revelavam a sua construção. Para o artista, era necessário expressar, portanto, por meio de uma tática de choque que violasse as continuidades esperadas com o fim de alcançar a plenitude da recepção na transmissão de sua mensagem. Essa dinâmica de renovação artística proporcionada pela necessidade de expressar uma nova conjuntura através de uma proposta igualmente inovadora foi assim um mecanismo de resposta à internalização das condições sociais vigentes. É importante ter em mente, portanto, que o modernismo surgido antes da Primeira Guerra Mundial era mais uma reação às novas condições de produção (a máquina, a fábrica, a urbanização), de circulação (os novos sistemas de transporte e comunicações) e de consumo (a ascensão dos mercados de massa, da publicidade, da moda de massas) do que um pioneiro na produção dessas mudanças. Mas não apenas forneceu meios de absorver, codificar e refletir sobre essas rápidas mudanças, como sugeriu linhas de ação capazes de modifica-las ou sustenta-las. (HARVEY, 1992, p. 32).

Certas vanguardas continham um tom de fascínio pela inovação e técnica ainda no pré-guerra, como o futurismo italiano, por exemplo, o qual fazia transparecer um claro deslumbramento pelo desenvolvimento da máquina na exaltação do movimento e velocidade contida nas formas que compunham suas obras. Não obstante, a vanguarda expressionista já trazia consigo reflexões acerca dos novos rumos pelos quais o mundo enveredava, mas a chegada da I Guerra Mundial fez com que recaísse sobre a humanidade a consciência de suas pretensões. As certezas iluministas se exauriram de vez e a partir daí cabe ao artista o retratar



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das indignações latentes no seio da sociedade. David Harvey aborda a complexidade desse processo citando Bradburry e MacFarlane, ao esclarecer que o modernismo Foi a celebração de uma era tecnológica e a sua condenação; uma excitada aceitação da crença de que os velhos regimes da cultura tinham chegado a um fim e a um profundo desespero diante desse temor; uma mistura de convicções de que as novas formas eram fugas do historicismo e das pressões da época com convicções de que essas formas eram precisamente a expressão viva dessas coisas. (BRADBURRY e MACFARLANE apud HARVEY, 1992, p. 33).

À sombra das amargas consequências sofridas pela guerra, poucas vanguardas foram tão pontuais ao exprimir o enfrentamento psicológico diante do contexto moderno quanto o expressionismo alemão. O movimento artístico expressionista será o parâmetro de análise para a constatação do fenômeno da apropriação imagética em “Capitu”, e como auxílio na compreensão do seu enredo histórico, recorremos às proposições de Peter Gay (1978). O autor discorre acerca dos acontecimentos que permearam a República de Weimar, instaurada em meio às conturbações político econômicas pós 1918, como a adesão ao Tratado de Versalhes. A sujeição da Alemanha às vingativas imposições dos Aliados potencializou as revoltas geradas pela perda da guerra e seus efeitos. Desse ambiente aparentemente inóspito, sobressai-se uma produção cultural que traduz o então obscuro espírito alemão, e faz com que a caracterização estética cunhada antes da guerra por fim ganhe um sentido e se desenvolva através do engajamento dos artistas que se tornaram conscientes de seu papel social ao serem empurrados realidade adentro pelas terríveis experiências recém vividas. Pintura, literatura em prosa e poesia, teatro e afinal o cinema estavam embebidos de frustração. Peter Gay considera que a personificação da atmosfera da república vigorante é perpetuada na obra fílmica imortal “O Gabinete do Doutor Caligari” (1922): “aí estava a Alemanha ‘gótica’, sinistra, demoníaca, cruel” (HAAS apud GAY, 1978). Sendo assim, entende-se que o filme representa mais do que uma história intrigante contada por meio de diferentes técnicas de iluminação. Eram os anos do expressionismo e “Caligari” representava o horror à guerra. Desde as suas bases na arte primitiva, o panorama expressionista desdobrou-se, tendo seu desenvolvimento sistematizado cronologicamente por meio de gerações, as quais abarcam sua aplicação em cada âmbito artístico de forma contextualizada, tanto no cinema, como na dramaturgia, até a sua “morte” pelo seu desgaste e perda do caráter revolucionário ao tornarse tendência estética, findando nos meios de comunicação (GUINSBURG, 2002). Essa noção também contribuirá para a identificação dos indícios expressionistas no objeto.



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Ainda como subsídio para efetuar essa identificação, será dado enfoque em elementos específicos da composição de uma obra cinematográfica, a começar pela direção de arte. Portadora de grande diferencial no quadro das produções expressionistas, é responsável por externalizar simbolicamente a trama e tornar crível o universo no qual o filme se enquadra. O cinema expressionista “buscava retratar o mundo não à sua imagem real, mas recriá-lo segundo interpretações subjetivas, libertas da razão e da lógica convencionais” (LEZO, 2010), transmutando, portando, esse objetivo de uma forma cênica tão marcante que o estilo perpetuou-se na história. As representações elaboradas pelos cenaristas e diretores de arte, que transpuseram o movimento antes plástico, literário e teatral pra o cinema, agora exerciam seu próprio protagonismo na trama. Era função das deformações e demais linhas tortuosas representar a complexidade psíquica dos personagens, em conjunto com a interpretação. A caracterização expressionista advém de uma vanguarda que desenvolveu-se num cenário estritamente germânico, seja devido ao eco das tradições medievais que evocavam manifestações desse gênero, seja pela dificuldade de realização de intercâmbios culturais com a nação alemã nas circunstâncias em que se configuraram o pós guerra. O caótico desenvolvimento da conjuntura moderna provoca reações por parte da esfera de expressão artística da sociedade em forma de composição estilística. O sentido de ruptura com o passado que regia a modernidade é incorporado pela vanguarda expressionista, e assim pelo teatro correspondente. Guerras, revoluções, crescimento tecnológico, explosão urbana, capitalismo e consequente miséria social fizeram com que o teatro expressionista trouxesse ao palco um sujeito sem identidade. “O homem moderno que se retrata neste teatro é um ser da angústia (...). O inconsciente escapa-se do indivíduo” (VASQUES, 2007, p. 8). Tal postura escapista remete-nos à narrativa delirante de Dom Casmurro, que vivia imerso em suas memórias, e que com o fim de transbordar até o espectador seus sofrimentos, recusava ao realismo imitativo em nome de uma exacerbação emotiva que em conformidade com o teatro expressionista, visava extrair a essência mais profunda da obra dramática, externalizando por completo sua vida anterior. O ator não mais se limita a fazer com que seu personagem pareça angustiado. Ele é a angústia. O que conta no ator é que este seja capaz de transpor estados emocionais em ações por meio da simbolização, da estilização, que este seja capaz de sublinhar as características fundamentais das personagens, dos momentos nucleares da ação, simbolizando-os através de um desenho a traço grosso, excessivo e até empolado. (VASQUES, 2007, p. 14).



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Transcendendo a perspectiva visual referente ao movimento expressionista alemão que se faz ver através das eleições visuais presentes em “Capitu”, tem-se como discussão central a mudança do paradigma de fruição da arte a partir do século XX, partindo do pressuposto de que tal vanguarda se aloca como um agente que confronta as usuais relações entre o sujeito e objeto (obra). Antes, o objeto era privilegiado na relação então estabelecida por portar-se como detentor de certa verdade já instaurada, cabendo ao sujeito discerni-la. Detido no seu papel de contemplador passivo, este sofre por encontrar-se em um estado de ignorância do mundo exterior, caracterizando a estética da contemplação e separação. Entretanto, pelo confronto daquele que antes apenas contemplava as formas expressionistas e através da inserção da filosofia contemporânea na discussão, a verdade passa a depender mais do sujeito e de suas “contingências existenciais” (DIAS, 2012), sendo assim múltipla no que concerne a qual sujeito se refere ou a qual momento em que este se encontra, dando origem à ação de uma interpretação subjetiva que caracteriza-se como uma estética existencialista ou da participação. A compreensão da mudança nas formas de mediação entre sujeito e obra irá explicitar a importância da ruptura realizada pelo movimento expressionista alemão, que agrega a si um caráter revolucionário e inovador, apropriado pela minissérie “Capitu” na sujeição dos ditames primários que compunham a vanguarda à mecânica de sua produção. O expressionismo é o movimento de arte do século XX, embora com raízes várias resgatáveis em toda a história da arte, que melhor consagra a subjetividade do sujeito. Tal sujeito assenta numa afirmação de vitalismo, em geral desesperado e angustiado, movido pela vontade (Schopenhauer) ou pelo espírito dionisíaco (Nietzsche). Mais que o inconsciente profundo e psicanalítico, sobretudo na sua fase inicial, o expressionismo explorou a inconsciência rude e bárbara, num encontro com um sujeito animal e sem história. Este sujeito agita-se em um arrebatamento, num excesso vitalista que o leva a desequilibrar a convergência objetiva do objeto. A representação do mundo filtra essa anima vitalista do sujeito. Já não se trata da forma do mundo, mas da deformação deste pela travessia na subjetividade. (DIAS, 2012, p. 2).

Assim, fruto das condições concebidas pelo panorama moderno, o expressionismo se propôs a dar “uma resposta artística às filosofias anti-idealistas” (DIAS, 2012), ao engajamento daqueles que o compunham mediante as condições históricas instauradas no seio da sociedade alemã. Sua proposta, dessa forma, não transcende apenas questões estilísticas, mas também vivencias filosóficas que precisam ser desveladas para que exista um verdadeiro entendimento das alterações de todos os gêneros as quais o objeto de estudo “Capitu” submete o movimento em questão. Com a desarticulação desse mundo interno através do arrebatamento proporcionado pelo confronto do indivíduo com a estética expressionista, ocorre uma intensificação



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emocional e erupção em direção ao exterior pelo alcance pleno da essência do objeto e pela ruptura de tais barreiras que corrompem uma mediação usual. Dessa forma, em um viés filosófico, na busca por transcender as aparências por meio desse real alcance, os signos e simbolizações são superados, não existindo mais, portanto nem belo e nem harmonia. Existem apenas intensidades vividas (DIAS, 2012). O fim das formas, proporções e harmonia das composições é o que dá lugar para a estética proposta pelo movimento expressionista. O expressionismo rompe, portanto, o sistema formal dos sistemas de representação, tomando a deformação como sua representação simbólica característica e tornando a negação das formas como sua marca, como vemos comumente nas obras icônicas do movimento. A desconstrução de tais elementos fazem com que eles tomem para si uma atmosfera de pré-signo em vez de signo acabado. Um índice que carrega consigo a tensão da figura em formação, sua gênese. É essa concepção que remete a estética expressionista a certo primitivismo proveniente da crise moderna criada pela descrença no presente e o desejo de um retrocesso da história. Tal estética deriva “de um sujeito que perdeu o sentido do belo e da boa proporção para privilegiar o momento criativo” (DIAS, 2012), e através dos recursos visuais assim engendrados, legitimou a atmosfera alemã. O primitivo da quase-forma, entretanto, em “Capitu”,

agora é circunscrito e definido,

conforme a presente análise procura considerar, posto que o esgotamento do índice pela sua veiculação em excesso fez com que ele se tornasse, com o tempo, ícone. “O Gabinete do Dr. Caligari” (1920) assume esse patamar, conforme relatado. Sendo ele a primeira abordagem do tema da loucura no cinema, a estética expressionista cunhada foi utilizada sobretudo como a materialização da “realidade psíquica” do personagem principal da trama, Francis (PENEDA, 2013). O movimento em questão, tendo sua origem na pintura, abrangeu-se ao teatro, música, artes gráficas e literatura, tornando-se uma estética verdadeiramente popular, a ponto de que quando Wiene e Meinert, produtores de “Caligari” resolveram produzir um filme conforme tais ditames estéticos vigentes, estavam mais em conformidade com a corrente vigorante na época do que arriscando-se em uma estética de vanguarda revolucionária em si. Peneda (2013) agrega a compreensão de que o filme foi produzido não somente por produtores de cultura de massa, mas teve em sua equipe artistas plásticos para a concepção de seus famosos e inovadores cenários. O objeto abordado pelo autor é, portanto, a obra inaugural do expressionismo alemão na sétima arte, levando em consideração o estabelecido conjunto de características e traços que podem ser associados com a referida vanguarda.



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O filme constitui-se de um prólogo e epílogo que servem de “molduras” à narrativa que se dá de forma central, a qual é a única parte das três citadas em que identifica-se o chamado estilo expressionista, sendo assim o expressionismo em “Dr. Caligari” um marcador plástico para traduzir uma realidade psíquica em oposição à “realidade material” (PENEDA, 2013, p. 2). O expressionismo serve assim para assinalar a perspectiva (delírio) do louco. Os efeitos de luz e sombra, as linhas oblíquas – fruto de uma perspectiva distorcida – visam despertar no espectador sensações de inquietude, insegurança e desconsolo, aspectos que definem a nossa relação com a loucura. (PENEDA, 2013, p. 3).

Seguindo por uma linha de levantamento das condições produtivas da obra, Peneda (2013) detalha a confluência de fatores que fizeram com que o filme sofresse adaptações de forma a tornar-se o produto que hoje é, consagrado e cultuado. Havia uma escassez de recursos que fizeram com que incomumente (para a época) o filme fosse todo produzido em estúdio, e a partir do pequeno espaço do qual dispunham, foi necessária a construção do cenário em camadas da feira que se instalou na cidade, por exemplo, e devido às mesmas circunstâncias, a câmera teve que adquirir mais versatilidade, uma montagem diferenciada, e até mesmo a redução do guião fez com que a história fosse reduzida de forma a aproximar-se de uma representação teatral. Em meio a todas essas eleições de cunho produtivo, para o proposto estudo do objeto, é central a percepção de que O filme de Wiene estabeleceu uma colaboração com a arte de vanguarda, tornando-a popular, acessível ao grande público. Esta obra abriu vias inéditas para uma estética cinematográfica mais arrojada. O cinema posterior não deixará de recorrer às artes gráficas (cenários, grafismo, caracterização) e a uma montagem que subverte a relação da imagem com a narrativa. (PENEDA, 2013, p. 5).

A caracterização expressionista ocorre sumamente no corpo central do filme, no qual tem vazão toda a trama psíquica proveniente do delírio que se diferencia da realidade material marcada pelo prólogo e epílogo que o cercam. Através de uma compreensão da estrutura narrativa, o autor destaca que Caligari é “a alma e a sombra” da mesma, cuja vontade almeja se sobrepor a tudo e a todos por meio da indução do sonâmbulo Cezar a concretizar suas vontades, e é a partir daí que desenvolve toda uma crítica psicanalítica da trama com base nos estudos de Lacan e Freud, envolvendo um delírio psicótico de perseguição pela parte de Francis, que é quem nos conta o que se passa na tela.



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O que é relevante em tal trabalho para o objetivo do estudo de “Capitu” é que os traços estilísticos que marcaram e consagraram a vanguarda expressionista alemã são utilizados, sob a interpretação de Peneda (2013), com a finalidade de dotar o delírio de Francis de certa materialidade na narrativa, concretizando-o e projetando-o na atmosfera que o circundava para dar os devidos ares de loucura, assim como é feito no entorno do Dom Casmurro, imerso em suas lembranças, rancores e demais sentimentos recônditos. O recôndito da personalidade humana começa a ser explorado pelos estudiosos da psicologia, e o domínio do sinistro configura-se como uma temática conveniente para o cinema (NETO, 2001). Transtornos, psicopatologias, o fenômeno do duplo e seus afins tornavam-se interesse da sociedade, e agregado a isso, o baixo orçamento para as produções derivadas da crise financeira pela qual o cinema alemão passava fez com que fosse feita uma opção pela abordagem estética que consagrou-se. A confluência desses fatores somado ao plano ideológico dos vanguardistas originou o expressionismo. Os valores singulares que o cinema alemão trazia consigo exerceram influência mundial, principalmente com a evolução dos meios de comunicação, reformulando conceitos, temas e estilos de representação por emplacar uma nova linguagem originalmente concebida para transmitir os sentimentos de transtorno que assolavam a Alemanha. A construção psicológica do povo alemão através dos filmes expressionistas é ratificada, de maneira que a singularidade dessas obras não limita-se a sua estrutura estética. “Só se pode compreender totalmente a técnica, o conteúdo da história e a evolução dos filmes de uma nação relacionando-os com o padrão psicológico vigente nesta nação” (KRACAUER, 1988, p. 17), na crença de que “os filmes proporcionam a chave de processos mentais ocultos” (KRACAUER, 1988, p. 19). Foram assim engendradas as transfigurações dos cenários, técnicas de iluminação de aparência sombria e maquiagens mórbidas em conjunto com atuações exacerbadas. Porém, Kracauer enfatiza que “admiração e imitação, no entanto, não se baseiam necessariamente em compreensão intrínseca” (KRACAUER, 1988, p. 16). Dentre o entrelaçamento dos fatores que dão corpo à vanguarda estudada, a historicidade do gótico, seus meandros e efeitos narrativos foram de grande importância para o desenvolvimento do expressionismo enquanto herança estética alemã. Sobre o sucesso do referido movimento que tornou-se gênero e referência, Muraca (2010) observa que “mistério, morte e sobrenatural estão entre as narrativas de maior apelo nas últimas décadas, estejam elas em livros, nos cinemas ou em quadrinhos” (2010, p. 121). Considerando que a obra “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, que originou “Capitu” é uma narrativa construída em volta do mistério da traição por meio da visão parcial da qual compartilhamos com o



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narrador não onipresente, nada seria mais oportuno para caracterizar essa atmosfera de suspense do que as referidas estéticas já compartilhadas no repertório da sociedade para o que diz respeito ao gênero. Nota-se que o movimento de vanguarda abordado já foi apropriado pela indústria cultural como referente em diferentes contextos dentro da mesma. Com base nas atribuições do viés comercial dado ao movimento vanguardista, verifica-se que as mesmas não são exclusividade da atual produção cultural. Em uma desconstrução das concepções canônicas criadas acerca do movimento expressionista alemão e dos processos sócio-psicológicos que o constituem conforme a própria abordagem já citada de Kracauer, destacam-se as conveniências de tal panorama criativo e seus respectivos estilemas em face dos propósitos comerciais das obras expressionistas, ressaltando aspectos que não raro foram ignorados pela memória histórica construída sobre a referida vanguarda (Cánepa, 2010). Primeiramente, ao identificar o caráter convidativo das obras para o contato direto dos sentimentos do artista com o espectador, ressalta-se que a mediação nãocontemplativa origina-se no romantismo alemão, porém, foi no expressionismo que encontrou seu eco mais veemente e adquiriu seu cunho revolucionário (Cánepa, 2010). Entretanto, esse caráter subversivo não foi mantido por muito tempo, uma vez que em meados da década de 1920, a vanguarda expressionista já havia sido absorvida e legitimada enquanto movimento artístico, chegando a ser ensinada nas escolas de arte. Assim, quando começaram a surgir filmes de alguma forma comprometidos com o Expressionismo – principalmente o mais famoso deles, O Gabinete do Dr. Caligari, dirigido por Robert Wiene em 1919 e lançado em 1920, tornando-se um dos primeiros produtos culturais de exportação da República de Weimar – já não se podia falar propriamente de um cinema revolucionário, no sentido que se dava ao movimento de vanguarda antecedente, mas sim de um cinema que buscava deliberadamente – e, talvez, contraditoriamente – o status comercial de “arte”. Nesses filmes, a “ostensiva pré-estilização do material colocado em frente à câmera” (XAVIER, 2005, p. 100) acabaria por dar origem a uma série de estratégias marcantes, logo convertidas em estilemas – como a distorção das formas, a iluminação fantasmagórica, a temática irracionalista, a estrutura narrativa instável e o exagero da interpretação dos atores – que se tornariam a marca de uma escola cinematográfica que ficaria conhecida como “expressionista”. (CÁNEPA, 2010, p. 80).

Esse cinema feito na Alemanha em meados da década de 1920 não tinha como única preocupação o levante de ideais políticos ou “trabalhar a expressão livre dos sentimentos envolvidos na concepção das obras” (Cánepa, 2010, p. 81). Tendo em vista os interesses comerciais que pairavam sobre sua realização, procurava explicitar os clichês provenientes do trabalho artístico expressionista alemão.



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A visão de Cánepa (2010) nos mostra que os acontecimentos que permearam a II Guerra Mundial fizeram com que esse movimento fosse ressignificado e reinterpretado mediante o horror vivido, como se a sociedade estivessem em busca de um entendimento que justificasse o surgimento de tais filmes tão sombrios. Assim, é criada uma espécie de imaginário pós-II Guerra Mundial. Kracauer (1988) é citado no referente artigo ao apontar que os personagens loucos e malígnos que foram tão popularizados eram um protótipo dos tipos que tomariam a Alemanha durante a II Guerra Mundial, caracterizando-se, quiçá, como um prenúncio. “Para o autor, as características presentes nos filmes poderiam ser vistas como sintomas sociais e transmitiam referências políticas e ideológicas na forma de subtextos” (Cánepa, 2010, p. 81). Em vista dessas percepções, o cinema expressionista alemão foi tanto popularizado quanto demonizado. Portanto, o modelo estético criado pelos artistas era tido como uma maneira subversiva e politicamente progressiva de se fazer cinema, mas tornou-se logo uma justificativa para a forma brutal com a qual o nazismo se instaurou na Alemanha. Todas essas considerações desvelam algumas possibilidades de abordagem sobre o cinema expressionista alemão, como a perspectiva histórico-social, comercial e psicológica que podem ser agregadas à análise do expressionismo em “Capitu”. Por meio da construção central feita pela autora, é procurada uma concepção autoconsciente do referido movimento, explorando os limites da visão canônica já legitimada pelos estudos citados, por exemplo. Os cineastas eram, assim, plenamente conscientes da força e diferencial que seus filmes sombrios e fantásticos traziam consigo. Para corroborar suas impressões, Laura Cánepa discorre sobre o filme “Sombras” (1923), que após uma sucessão de situações de comportamento primitivo por parte dos personagens, chama o espectador à realidade. . Tal situação não pode deixar de ser explorada e problematizada no estudo do objeto, entretanto, não há explicações definitivas para tal quadro, tendo em vista a multiplicidade de suas percepções. Sob esse aspecto e com o intuito de analisar a forma como tais padrões estéticos originados dentre as vanguardas europeias chegaram ao Brasil, para assim podermos compreender como ocorre o processo da apropriação da imagem em “Capitu”, Gullar (2002) explora justificativas teóricas para a utilização da arte na luta ideológica, assim como reflete acerca da autonomia relativa da expressão estética em relação ao engajamento, apontando, entretanto, o vanguardismo como “coisa morta” e seu esvaziamento. É abordada a construção de uma referencialidade para com a cultura europeia, ao mesmo tempo em que é estabelecida a dependência cultural, em um processo de ressignificação derivado de sua aplicabilidade no contexto brasileiro, mas que por fim parecia tentar construir uma história à parte do seu movimento de origem.



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Isso deve-se às concepções desenvolvidas no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (TELES, 2012), que promovia a ideia de importar da Europa o que fosse útil aos modernistas para ser remodelado pela realidade brasileira. As influências estéticas, não só expressionistas como também referentes às demais vanguardas, vieram ao Brasil por meio de um grupo intelectualizado que ia estudar no exterior, logo, trazia consigo a manifestação artística já como uma tendência consolidada, dotada de valor por uma burguesia que entendia que para o progresso, seria necessário dar continuidade a essas ideias nas condições estabelecidas, de forma a perder a essência de seu caráter revolucionário de origem. A sujeição da supra estrutura cultural à infra estrutura socioeconômica conforme observamos, é um processo dialético constante encontra-se intensificado e pleno nas condições pós-modernas, visto que a mudança de paradigma da sociedade que se reflete na forma como o homem se relaciona com o mundo e o representa foi em decorrência das mudanças sobretudo tecnológicas fomentadas pelo regime capitalista. Estando instaurado o cenário moderno por completo, a crescente tecnização fundou-se como caminho único. Livres de pressupostos religiosos e morais, o culto à máquina e conhecimento deixou o homem livre para estabelecer seus próprios valores, como liberdade e progresso social – típico do urbano, e assim, o consumo torna-se o único caminho a ser oferecido pelo sistema. A sociedade industrial se vale do design como diferencial para vender seus produtos, logo a estética massifica-se. O vigor econômico torna-se cultura e partindo daí, tudo torna-se comercializável. Essa convergência de mudanças sociais, tecnológicas, científicas e artísticas culminaram no cenário contemporâneo (pós-moderno). A necessidade da sociedade pós-industrial de suprir a cultura do consumo atendendo à segmentos específicos com bases em uma rápida produção de bens aliada à codificação de conhecimento envereda pela produção de obras pós-modernas como “Capitu”. Segundo Jameson (2002), as dinâmicas que envolvem a produção cultural são resultado das determinações impostas pelo capitalismo tardio, terceiro estágio do sistema que portanto sustenta o panorama pós-moderno, em que a cultura transforma-se em sua lógica: uma verdadeira segunda natureza. O processo que dá forma a esse contexto provém do atual regime econômico, composto pela dilatação da esfera mercadológica que funde-se à esfera cultural, tornando economia e cultura âmbitos a partir de então indissociáveis. A cultura tornou-se um produto. Com base nessas formulações, faz-se um esboço do pós-modernismo como o processo completo que nomeia a atual dominante cultural.



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O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos cada vez mais pareçam novidades com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma posição e uma função estrutural cada vez maior à inovação estética e ao experimentalismo (JAMESON, 2002, p. 30).

A fórmula encontrada pelos produtores para lidar com as crescentes demandas produtivas aliadas à industrialização da cultura e enfrentar a crise criativa foi voltar-se ao passado, recorrer ao pastiche. É com base nesse conceito que no estudo proposto se desenvolverão uma variedade de compreensões relativas à materialização cultural contemporânea. O pastiche é exploração de maneirismos e estilos individuais distintos sobretudo desenvolvidos pelo modernismo, reduzindo-os aos discursos neutros e reificado das mídias (JAMESON, 2002). Essa prática culmina na síncope da ideologia e do estilo do alto modernismo, que foi institucionalizado em meados de 1950, perdendo dessa maneira o seu potencial subversivo. “Os estilos modernistas transformaram-se assim nos códigos pósmodernistas” (JAMESON, 2002, p.44). A utilização dos estilemas descontextualizados conforme a conveniência produtiva acarreta no uso do passado como referente na construção de uma estereotipagem que aponta a crise da historicidade, uma vez que a linguagem vanguardista encontra-se isolada de sua origem. O pastiche e o processo descrito que o compõe é explícito em “Capitu”, que vale-se da construção estética expressionista para alcançar seus objetivos midiáticos sujeitos ao atual cenário econômico. As expressões de cultura cunhadas pelo que Jameson chama de “canibalização de estilos do passado” (JAMESON, 2002, p.45), responsável pelo abandono da sua constituição original, podem ser consideradas como parte de um jogo de significantes ao, por meio desse mecanismo, perderem o significado inerente à sua construção. A preponderância de valores estéticos em detrimento do sentido contido nas formas de representação denota a predominância da estetização em nosso cotidiano, regida pela lógica da mercadoria. Inserido nessa ideia, atesta-se que “por toda parte vivemos já numa ‘alucinação’ estética da realidade” (BAUDRILLARD, 1981, p. 148). Sendo assim, vivemos rodeados de simulacros que nos atém a uma realidade estetizada pelas atuais convicções do modelo turbo capitalista vigente, o que relaciona-se diretamente com a superficialidade contemporânea notada por Fredric Jameson, que previa uma mutação no mundo dos objetos que os transformava em um conjunto de simulacros. As escolhas estéticas do diretor são repletas de diálogos, como nos mostra o livro “Capitu” (2008), que procura revelar a construção tanto técnica quanto conceitual da obra por meio de depoimentos e de considerações feitas pelo próprio Luiz Fernando Carvalho a



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respeito de seu processo criativo. Em determinada perspectiva no acesso à concepção do diretor, entende-se que a procura pelo desenvolvimento de uma nova linguagem que está subsidiada na utilização de recursos como o pastiche, o kitsch, conceito o qual ainda será devidamente abordado, na apropriação imagética contemporânea atestada, são colocados a serviço do Projeto Quadrante, projeto de produção audiovisual televisiva que tem propósitos educativos na busca de proporcionar conhecimento ao público e quebrar paradigmas, promovendo a “reeducação do espectador através das imagens, dos conteúdos, da forma, da narrativa, da luz, das personagens, da música, enfim, da estética” (CARVALHO, 2008, p. 83). Por mais que à princípio, a finalidade com a qual tal produto midiático foi pensado tenha fins nobres e educacionais, a sua produção e veiculação estão sujeitas à lógica do sistema econômico e suas dinâmicas de construção regidas pela indústria cultural, que tem em si uma tendência de subversão de valores tendo em vista seus propósitos capitalistas. O desenvolvimento do conceito de indústria cultural é feito por Theodor Adorno. Dele, podemos apreender a noção de que a indústria cultural é responsável pela determinação do consumo de produtos culturais voltados às massas devido à sujeição dessas produções a um grupo que exerce dominação econômica, transformando assim a cultura em mercadoria conforme ditado pelo sistema capitalista. As condições que levaram a indústria ao nível de exploração de bens considerados culturais são derivadas, basicamente, do poder que a técnica passa a exercer sobre a sociedade estimuladas pelo que Edgar Morin (2002) chama de “o impulso prodigioso do espírito capitalista”. Ainda referindo-se às proposições de Adorno, é possível estabelecer uma relação direta entre sua abordagem e o objeto quando ao afirmar que A cultura que, de acordo com seu próprio sentido, não somente obedecia aos homens, mas também sempre protestava contra a condição esclerosada na qual eles vivem, e nisso lhes fazia honra; essa cultura, por sua assimilação total aos homens, torna-se integrada a essa condição esclerosada (...). (ADORNO, 1975, p. 288).

Aliada à ideologia capitalista, a indústria cultural também contribui no processo de falseamento de relações entre os homens ao desenvolver formas de representação mediadoras. Na medida em que essas representações são criadas dentro dos atuais ditames da produção cultural, a elas são agregados valores e significados que as dotam de um posicionamento diferenciado diante do mercado. Logo, destacam-se as relações latentes que existem entre a obra de arte, a mercadoria cultural e o fetichismo que lhes adere, o que configura a tensão que envolve a existência de produtos como “Capitu”.



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O termo “fetichismo, relativo às mercadorias em geral, como se sabe foi cunhado por Marx em “O Capital”, referindo-se ao fato de os produtos comercializados esconderem totalmente a relação social que lhes deu origem (...). O “valor de uso” – essencialmente problemático nos bens culturais – é absorvido pelo valor de troca: em vez de prazer estético, o que se busca é “estar por dentro”, o que se deseja é conquistar prestígio, e não propriamente ter uma experiência do objeto. (DUARTE, 2002, p. 45).

O desenrolar dos processos materiais e socioeconômicos que configuram o atual cenário tornou característica inerente ao sistema pós moderno a fetichização da mercadoria como estilo de vida (JAMESON, 2002). A manipulação de valores ligada à identidade forjada para os produtos culturais que pretendem simular uma superioridade artística em relação ao que é direcionados à grande massa conforme determina a indústria origina o kitsch. Greenberg (2005) explana o surgimento dessa manifestação cultural partindo do movimento migratório que ocorreu das áreas rurais da Europa para cidade que encontrava-se em pleno crescimento. Lá, a massa chegada deparou-se com um processo de educação baseado em uma alfabetização que não as dotava de senso crítico para assimilar formas culturais complexas, ao mesmo tempo em que essa população não mais se identificava com a cultura camponesa por estarem então inseridos no contexto da urbe. Tal quadro formado por pessoas desprovidas de pressupostos intelectuais e portanto incapazes de realizar fruições complexas originou uma nova necessidade mercadológica a ser suprida. Greenberg associa, dessa maneira, o kitsch como a retaguarda que se opõe às vanguardas modernas, configurando-se sumariamente como uma arte sintética, comercializável e popular, logo, um simulacro academicizado da arte genuína o qual pode ser facilmente digerido. O desenvolvimento das perspectivas do kitsch feitas pelo autor proporcionará ao estudo uma exploração de suas faces visando a possibilidade de enquadramento do produto comunicacional “Capitu” entre o mesmo e o pastiche. Ainda na busca de agregar variações críticas ao objeto, soma-se a abordagem relativa ao midcult, de Umberto Eco, mediante as constatações de Greenberg, que afirma que To fill the demand of the new market, a new commodity was devised: erstaz culture, kitsch, destined for those who insensible to the values of genuine culture, are hungry nevertheless for the diversion that only culture of some sort can provide. (GREENBERG, 2005, p. 5).

Com base nessa proposição, Umberto Eco (2004) trata da conceituação do que vem a ser um público midcult, o qual frui uma cultura média, e é “representado por obras que



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parecem possuir todos os requisitos de uma cultura procrastinada, e que, pelo contrário, constituem, de fato, uma paródia, uma depauperação da cultura, uma falsificação realizada com fins comerciais” (ECO, 2004, p. 37). A referida paródia consiste na assimilação de estilemas provenientes dos movimentos vanguardistas que assim dotam os objetos culturais de valor ao terem em si referências a estilos consagrados, fazendo com que o público acredite que está consumindo algo que é genuinamente fruto de uma cultura superior. Diante da subversão dos propósitos que motivaram a produção de “Capitu”, entende-se que por fim o objetivo da minissérie enveredou pela conquista desse segmento do mercado. Tanto o desenvolvimento das perspectivas que atrelam o objeto ao kitsch quanto o midcult fazem parte de uma interpretação apocalíptica das dinâmicas de produção cultural contemporâneas. Umberto Eco levanta uma série de questionamentos válidos acerca desse aspecto: Devemos admitir que uma solução estilística seja válida unicamente quando representa uma descoberta que rompe com a tradição e é, por isso, partilhada por poucos eleitos? Admitindo o fato, uma vez que determinado estilema chegue a penetrar num circuito mais amplo e a inserir-se em novos contextos, perderá efetivamente toda a sua força ou conquistará nova função? Já que há uma função, será ela fatalmente negativa, isto é, servirá agora o estilema unicamente para mascarar sob uma pátina de novidade formal uma banalidade de atitudes, um complexo de ideias, gostos e emoções passivas e esclerosadas? (ECO, 2005, p. 38).

Entretanto, outros estudos constataram a submissão de “Capitu” aos parâmetros produtivos da sociedade capitalista, embasando dessa forma parte do que este estudo propõe. O panorama de produção da minissérie sobressai-se inserido nas dinâmicas de produção de um grupo de comunicação hegemônica no Brasil, a Rede Globo de Televisão (BRITTOS e SIMÕES, 2009). A presente pesquisa objetiva em certa medida o aprofundamento da explanação citada, detendo-se na abordagem dos ditames da indústria cultural com especificidade no que diz respeito ao midcult, aspectos do kitsch e enfoque no expressionismo alemão como estética agregada ao produto comunicacional contemporâneo sujeito ao pastiche e processos afins.



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3 ECOS DO GRITO EXPRESSIONISTA D’O Gabinete do Dr. Caligari escapou um grito que ecoará para sempre. (NAZÁRIO, 2002, p. 541).

A Revolução Francesa de 1879 e seu plano iluminista implantaram no íntimo da sociedade a ideia de progresso aliada a um plano cujas bases estavam fundadas na razão (HARVEY, 1992). Desde esse momento, brota um sentimento proveniente da perspectiva de um futuro promissor que aguardava a humanidade a partir dos avanços modernos, técnicos e científicos, entretanto, o que não foi previsto foram os conflitos gerados pelo que a essência desses avanços carrega consigo. A ordem desses conflitos são tratadas não apenas sob impressões sócio-políticas, mas fundamentalmente espirituais. Frustração, desconforto e isolamento são timbre que consoam o ser moderno. Com a indústria e sua revolução, gerou-se a urbe, que trouxe consigo o seu próprio caos, e por mais emocionante que parecesse vivenciar a experiência que a modernidade proporcionava, estando inserido nesse contexto, ao homem agradou construir o mundo moderno, porém, não habitá-lo (BERMAN, 2009, p. 14). Suscitados pela busca do avanço, pode-se dizer que os ideais iluministas que regiam o mundo durante o início do século XX se atabalhoaram em si ao fecundar a I Grande Guerra, seguida de episódios como a proliferação do nazismo e a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. O globo não pôde suportar tantas políticas em busca de um único caminho para o desenvolvimento, permeado de posturas imperialistas. “A modernidade, em busca de uma grande verdade, frustrou-se no turbilhão de mudanças em que se inseriu, acarretadas por intensas transformações sociais” (BERMAN, 2009, p. 21). O constante movimento do panorama moderno é dado pelas revoluções que conforme Karl Marx no Manifesto Comunista (apud BERMAN, 2009, p.30), envolviam os instrumentos de produção, com eles as relações de produção, e portanto as relações sociais, tento a burguesia à frente desse processo. Sendo assim, os âmbitos econômico, sócio-político, cultural e espiritual encontram-se consequentemente afetados ao terem suas esferas igualmente perturbadas por tais mudanças.

A realidade antes restrita a um universo

comumente pastoril e de relações familiares escancara-se frente a frenética cidade, antro de possibilidades abundantes aliada à ausência e vazio de valores (BERMAN, 2009, p. 30). Instaura-se a crise existencial característica da modernidade, logo, para uma atenta observação da vida moderna, não há cisões entre os aspectos material e espiritual. É a



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característica fusão de forças materiais e espirituais que comungam no quadro de construção da modernidade. Em face o quadro estabelecido, o que torna o indivíduo moderno único é o fato dele ser plenamente cônscio, conforme aponta Marshall Berman, ao considerar que as dissonâncias sociais e espirituais da vida moderna colocam o homem diante de si na plenitude das suas angústias e anseios, com suas fraquezas, aspirações e desespero (2009, p. 165). O almejado progresso de outrora torna-se obscuro e deve ser evitado. Baudelaire, moderno em sua essência, entende que “o progresso é o escorpião que se fere com sua própria cauda” (BAUDELAIRE apud BERMAN, 2009, p. 171). É inserido no tal progresso de espírito vazio que o homem transborda subjetividade. O ato de comunicar-se ganha destaque na modernidade por coincidir com o desenvolvimento do íntimo pelos aturdidos espíritos, ao passo que estes se encontram mais solitários e ameaçados. A comunicação torna-se uma necessidade crítica e aliando-se aos abundantes levantes político-sociais, fez com que a arte adentrasse esse quadro. No âmbito técnico, o surgimento e disseminação da fotografia possibilitou para a arte a libertação do compromisso de retratar a realidade de forma fiel, dando vazão ao desenvolvimento de novas técnicas e assim, o surgimento de uma série de vanguardas que dotaram a arte de uma atitude revolucionária estética e ideologicamente (BENJAMIN, 1985, p. 176). Adentrando a perspectiva psicológica, o panorama social da condição moderna pautado em constantes transformações incitou os sentimentos mais subversivos que residiam no interior da sociedade (BERMAN, 2009, p. 25). A arte sempre esteve ao centro das legitimações socioculturais, e estando a sociedade inserida na efervescência moderna, esta não sairia incólume. É neste momento em que o fazer artístico volta-se a si mesmo em busca de uma forma satisfatória para a representação de uma nova era, permeada por novos sentimentos, novas visões e um panorama todo novo. Para tanto, novas linguagens: impressionismo, surrealismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo, futurismo, etc. Eis as vanguardas modernas, exortadas por suas inovações revolucionárias em termos ideológicos e estéticos. Inserido nos movimentos vanguardistas, o artista age como um ente transformador à frente de uma nova força social, corroborando ou reagindo à sua realidade conforme os diferentes contextos de cada corrente artística. Acossados pela realidade, os artistas viram-se no papel de manifestar-se, entretanto, não mais da mesma forma, uma vez que o mundo não mais se comportava do mesmo jeito. A Europa parecia ser palco profícuo para ainda mais transformações.



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Se a I Guerra Mundial teve destaque em meio ao turbilhão moderno, ressalta-se de suas próprias voragens a situação alemã. Além de lidar com a inerente condição moderna, a Alemanha enfrentava penosamente as consequências da guerra, submersa nos danos tanto materiais quanto psicológicos deixados pela derrota: a situação econômica era miserável, o tratado de Versalhes impunha condições humilhantes aos alemães, uma quantidade onerosa de sangue foi derramada, as cidades estavam destruídas e a estima da população também. A arte expressionista trouxe à tona essa gama de sensações que encontrava-se oprimida no seio da sociedade alemã. O expressionismo alemão é um dos movimentos estéticos ascendentes do período referente ao início do século XX, e constitui um dos eixos de estudo do presente trabalho, cujo propósito de origem era promover a externalização de uma expressão plena, evasão completa dos sentimentos por meio da projeção dos mesmos no traço artístico, o que deformava-o, distorcia as feições retratadas, uma vez que o realismo tornou-se ineficaz: não mais comportava em si a mensagem a ser transmitida. Ainda antes dos acontecimentos de 1914, mas já com o sentimento intrínseco de descontinuidade, a camada intelectualizada de alemães une-se em prol da negação à era moderna através da promoção de ideais que procuram resgatar os primórdios da humanidade, o homem selvagem e seu estado de natureza avesso à razão, transmutando assim seus sentimentos de indignação em arte, a qual conforme os mesmos, era detentora de grande potencial transformador. Alimentando-se por esse motivo até de referências na arte africana, mas fundamentalmente na estética gótica, ideais romantistas, e na crença de que a integração entre a vida e o fazer artístico tinha potencial subversivo, o movimento de vanguarda expressionista já encontrava-se configurado no pré-guerra. Das artes plásticas à literatura, a devida formalidade estética já tinha sido amplamente desenvolvida, entretanto, a impactante experiência adquirida entre os anos de 1914 e 1918 foi um golpe fatal nas utopias do movimento (GUINSBURG, 2002, p. 42). As formas transfiguradas tornaram-se suficientemente realistas por transmitirem as cenas perversas presenciadas – soldados feridos agonizantes, cadáveres e corpos mutilados (GAY, 1978). Durante os anos de 1919 até a ascensão de Adolf Hitler em 1933, foi instaurada na Alemanha a República de Weimar, ambiente de grande instabilidade em termos geopolíticos, porém extremamente fértil culturalmente. “A grandeza característica da cultura Weimar desenvolveu-se, até certo ponto, a partir de sua criatividade e experimentação exuberantes, mas muito dela era ansiedade, medo e uma crescente sensação de condenação” (GAY, 1978, p. 12). Foi inserido nesse quadro que o expressionismo veio a libertar-se de forma plena,



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ostentando consigo toda a carga emocional por meio da qual foi gerado. A intensidade dos sentimentos latentes era tamanha que, aliada às condições materiais providas pela época, proporcionou a arte um movimento reflexivo que colocava a linguagem no centro da obra. Com a desconstrução dos moldes academicistas, a estética expressionista alemã perpetuou-se como uma grande quebra em termos de linguagem artística tanto no que diz respeito ao seu âmbito conceitual quanto plástico. A aparente rudeza das pinceladas tinham em si o impulso veemente do desconcerto do homem moderno. A abstração das formas reais objetivavam dar forma aos sentimentos, posto que tamanha era a sua intensidade a ponto de ser imperativo que eles fossem retratados, e por mais inusitado que soe materializar o impalpável, o espírito obscuro que pairava sobre Weimar deixava suas sensações acerca daquela realidade tão à superfície de si que os artistas, por meio de uma convicção irremediável de suas subjetividades, obtiveram sucesso na concepção de suas obras, ao cunharem a linguagem caracteristicamente expressionista. Os planos físico e psíquico unem-se no único plano de interesse: o plano da expressão. (TELES, 2012, p. 141). Transcendendo o aspecto das inovações meramente formais, seu trabalho estava fundamentado na renovação de ideias. Os agentes reunidos em função dessa força transformadora propiciada por essa nova linguagem artística propunham, que de mãos dadas no escuro, da forma como coloca Franz Mark no manifesto expressionista do grupo de artistas Der Blaue Reiter (TELES, 2012, p. 148), lutassem por uma nova arte, politizada e cônscia. A linguagem então adentrou a seu tempo em cada um dos âmbitos do fazer artístico, seja a dramaturgia, literatura ou cinema, levada por esse impulso renovador. No teatro, o expressionismo emerge como uma possível solução à crise do drama, na dianteira de uma insurreição anti-naturalista ao lado do teatro épico em conformidade com suas característica formais que adentravam a perspectiva das representações artísticas daquela época, de uma forma geral, conforme os estudos de Peter Szondi (2003, p. 123). O autor explica que a partir da segunda metade do século XIX, forças externas empurraram o homem para uma atitude de confinamento em seus círculos de convivência mais restritos, colocando-se em contraposição com o convívio social ao acrescentar-se ao mundo como um estranho, portanto, inserindo-se no desenrolar de um processo identitário moderno. Uma vez que o drama é calcado estruturalmente pela inserção do homem na comunidade, esse isolamento implicava em sérios problemas por suas implicações formais, e é com o trabalho de Eugen Berthold Brecht que esses riscos tem seu fim. O dramaturgo impõe aos seus personagens um processo de inversão que aloca o indivíduo em uma experiência de estranhamento da existência em confronto com o seu ser em conjunto social, defrontando-se



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com situações de essência transcendental por provocar profundas introspecções que findam no distanciamento do pensamento em relação a mera existência humana. A morte e a vida tornam-se objeto de reflexão de caráter veementemente expressionista, de maneira que Szondi cita: E no manifesto expressionista de Th. Daubler, O novo ponto de vista [Der neue Standpunkt, 1916], encontra-se a frase: “A voz do povo diz: quando alguém está na forca, revive no último instante a vida inteira. Isso não pode ser senão expressionismo”. (SZONDI, 2003, p. 121).

Conquanto, o desenvolvimento profícuo dessa vertente teatral que perdurou de 1910 até 1925, aproximadamente, aliada às pressões que a conjuntura moderna exercia, afastou completamente o expressionismo do drama (SZONDI, 2003, p. 123). O indivíduo moderno ao centro do palco sofre a mais pura reclusão e enuncia sua subjetividade ao público, materializando através de si o embate entre o ser isolado e o mundo tornado estranho. O enredo expressionista não raro culminava na exposição das fraquezas do ser humano mediante a revelação da grande cidade de uma forma tipicamente moderna. Essa limitação do sujeito engendrada pelo seu isolamento psicossocial o torna incapaz de anunciar sua própria essência dada a abstração da mesma. Szondi considera que é aí que O vazio formal do eu precipita e converte-se no princípio expressionista, na ‘deformação subjetiva’ do objetivo. Eis porque o expressionismo alemão conseguiu nas artes figurativas o que tem de melhor e talvez de imortal, principalmente nas artes gráficas. (SZONDI, 2003, p. 125).

Os esforços para a transmissão da mensagem superam o nível elementar do discurso e projetam-se em direção às referidas deformações como um meio de assegurar uma interação eficaz e até mesmo arrebatadora entre sujeito e obra, tendo em vista os valores que essa estética carrega consigo. A renovação das ideias que adentravam o teatro permitiu um verdadeiro envolvimento do público com a obra, o que acarretou o desenvolvimento de outras vertentes dramatúrgicas, como o teatro épico. Conquistando importância nos patamares mais tradicionais da arte daquela época, o movimento expressionista alemão, não tardou a ser absorvido pela sociedade. Suas obras, após a natural rejeição inicial, tornaram-se um verdadeiro sucesso e logo o formalismo expressionista foi sistematizado pelas faculdades de artes, sendo lecionado aos alunos. A criação da escola de artes plásticas, arquitetura e design Bauhaus, em 1919, foi uma consequência desse processo, fundada por Walter Gropius, arquiteto. As atividades da



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referida instituição de ensino perduraram até o ano de 1933, e obteve a colaboração de importantes nomes do movimento expressionista, como Paul Klee, quem procurava repassar aos alunos sua forma particular de utilização das cores, o que hoje, constitui o grande legado de sua obra (GUINSBURG, 2002). Ao passo que a consagração da arte vanguardista ocorria, o movimento expandia-se em direção a linguagens ainda inexploradas. No início do século XX, o cinema encontrava-se em plena ascensão e era detentor de um enorme potencial em termos de linguagem para se dar vasão ao fazer artístico. Na Alemanha, entretanto, o sentido do cinema demorou a ser apreendido, uma vez que era alvo de preconceito intelectual e social, porém foi através da migração dos profissionais do teatro para o cinema e de seu trabalho na produção de filmes que este articulou devidamente suas potencialidades, mesmo que inicialmente de forma tímida, por ainda se deter em pressupostos trazidos do palco. A I Guerra Mundial subsidiou o que veio a ser o grande poder do cinema expressionista alemão no sentido de propiciar condições socioculturais que contribuíram no seu desenvolvimento. Siegfried Kracauer (1988) constrói um panorama altamente ilustrador acerca da psicologia do cinema alemão ao concebê-lo como um sistema de representações subjetivas que corporifica por meio da sua construção coletiva os sintomas latentes no referido contexto social. A forma como foi atestada a fragilidade das relações modernas através do processo de edificação da modernidade despertou no homem uma ânsia por uma verdade plena a ser descoberta, até que “a guerra começou. Parte da juventude alemã e, também, a elite dos reformadores do cinema acreditavam firmemente que ela iria impregnar sua vida insípida de um novo e maravilhoso significado” (KRACAUER, 1988, p. 34). A paz era insuportável, e a sociedade tomava para si a promessa da aventura moderna já denunciada por Berman (2009, p. 24), mas ao ir até as trincheiras, o homem deparou-se com uma verdade tão crua sobre as consequências das suas aspirações que ele não tinha mais para onde olhar ou que caminho seguir a não ser para dentro de si mesmo. Explorando o viés que fundamenta a compreensão de Siegfried Kracauer (1988), entende-se que o cinema alemão produzido na vigência da República de Weimar foi engendrado sob fortes tendências psicológicas que então eram predominantes. “Ao expor a alma alemã, os filmes do pós-guerra pareciam querer torná-la ainda mais misteriosa. Macabro, sinistro, mórbido: estes eram os adjetivos favoritos usados para descrevê-los” (KRACAUER, 1988, p. 15). Conforme o autor, a integração dos elementos que encontravamse em cena (direção de arte, direção de fotografia e elenco) e a forma como os mesmos se



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articulavam são fruto de um reflexo do padrão psicológico vigorante da nação alemã, dado que o cinema é uma arte de caráter coletivo, produtivamente. Posto isto, as camadas da mentalidade coletiva são projetadas neste fazer fílmico, como uma externalização do subconsciente que pairava sobre os alemães. A transposição da referida estética de vanguarda à grande tela tem em si diversas perspectivas em termos de motivação produtiva. Para Kracauer, os temas do cinema alemão eram cercados por uma “auréola de significados” (1988, p. 44). A recorrência de temas pictóricos e narrativos expressos nos filmes expressionistas delineia uma história psicológica muito própria da época em que foram produzidos, acrescida da carga político-cultural que as vanguardas artísticas carregavam consigo. Assim, por trás da história explícita das mudanças econômicas, exigências sociais e maquinações políticas, existe uma história secreta envolvendo os dispositivos internos do povo alemão. A revelação destes dispositivos através do cinema alemão pode ajudar a compreender a ascensão e a ascendência de Hitler. (KRACAUER, 1988, p. 23).

A primeira vista, o que interessava aos filmes expressionistas alemães era o obscurantismo e excentricidade dos temas fantásticos, excluindo portanto a representação da realidade social nas telas, porém, ao mesmo tempo que esses filmes, em uma leitura prematura, podem ser considerados vazios da realidade que circundava a sociedade, eles são cheios da mesma sob as vistas de uma análise baseada nos preceitos de Kracauer. Em parte, isso se deve, conforme o autor, pelo fato do povo alemão preferir lidar com o enfrentamento do seu estado psicológico do que encarar as polêmicas sociais vigentes (1988, p. 44). No ano de 1920, foi “O Gabinete do Dr. Caligari”. O filme, o primeiro a ser edificado como um “cinema de arte” por meio da construção meticulosa referente a coesão de sua mise en scéne, retratava um mundo imaginário concebido a partir das alucinações de um jovem demente internado em um manicômio com os demais pacientes, entretanto, em sua origem, tratava-se de uma história baseada sumariamente nas trevas e “no ódio por uma autoridade que havia enviado milhões de homens para a morte” (KRACAUER, 1988, p.79). O recuo dos artistas às profundezas da alma alemã fez com que na narrativa de “Caligari” fosse evidenciadas certas circunstâncias a respeito do contexto relativo à Alemanha. Dois jovens movidos pelo anseio da transformação social e crentes no potencial subversivo da arte escreveram a história de Caligari, alterada durante a produção cinematográfica pelo diretor sob circunstâncias nitidamente mercadológicas. Ainda assim, era uma trama que para ser fielmente retratada, precisou se valer de fortes recursos gráficos para uma verdadeira



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transmissão de seu significado. Extravasando subjetividade, as sombras e formas distorcidas que compunham o cena convergiam na missão de ambientar a narrativa. Por isso, sua contribuição nos âmbitos da fotografia cinematográfica, bem como da direção de arte ao transmutar objetos de cena em significantes, é tão singular para a história da arte. Os sentimentos eram tantos que não cabiam mais somente dentro de cada personagem, eles projetavam-se para fora de seus corpos e contaminavam todo o cenário. Intencionalmente ou não, Caligari expõe a alma se movimentando entre a tirania e o caos, e enfrentando uma situação desesperada: qualquer fuga da tirania parece jogálo num estado de confusão absoluta. De modo bastante lógico, o filme espalha uma atmosfera totalizante de horror. Como o mundo nazista, o de Caligari é abundante de sinistros presságios, atos de terror e explosões de pânico. (KRACAUER, 1988, p. 90)

Impregnado pelo contexto no qual se desenvolveu, uma perfeita apreensão das dimensões

socioculturais

do

movimento

transcende

uma

abordagem

meramente

técnica/estética. A compreensão de Kracauer dota os filmes de uma necessidade produtiva que vai além das motivações econômicas comuns, trazendo consigo um verdadeiro grito de liberdade das apreensões e frustrações que envolviam a nação alemã em específico período, e que entretanto se perpetuaram em meio ao quadro geopolítico que se instalou a partir de então, chegando a ser interpretado como um presságio à ascensão de Hitler e o terror gerado pela II Guerra Mundial. Todavia, são diversas as nuances que envolvem a produção fílmica enquadrada como expressionista. Em meados da década de 1920, o referido movimento estético já havia sido legitimado enquanto movimento artístico, portanto em nada mais contava com o seu original potencial subversivo segundo Laura Cánepa (2010): Assim, quando começaram a surgir filmes de alguma forma comprometidos com o Expressionismo – principalmente o mais famoso deles, O Gabinete do Dr. Caligari, dirigido por Robert Wiene em 1919 e lançado em 1920, tornando-se um dos primeiros produtos culturais de exportação da República de Weimar – já não se podia falar propriamente de um cinema revolucionário, no sentido que se dava ao movimento de vanguarda antecedente, mas sim de um cinema que buscava deliberadamente – e, talvez, contraditoriamente – o status comercial de “arte”. Nesses filmes, a “ostensiva pré-estilização do material colocado em frente à câmera” (XAVIER, 2005, p. 100) acabaria por dar origem a uma série de estratégias marcantes, logo convertida sem estilemas – como a distorção das formas, a iluminação fantasmagórica, a temática irracionalista, a estrutura narrativa instável e o exagero da interpretação dos atores – que se tornariam a marca de uma escola cinematográfica que ficaria conhecida como “expressionista”. (CÁNEPA, 2010, p. 80).



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Desconstruindo em parte as acepções mistificadas de Kracauer, Cánepa vê que os incidentes provocados pela II Guerra Mundial incitaram a busca por justificativas ao tremendo terror ao qual a humanidade se expôs, e influenciada por esse contexto é que se constrói a referida abordagem psicológica do cinema alemão. Nota-se que os acontecimentos que permearam a primeira metade da década de 1940 fizeram com que o movimento expressionista fosse, de certa forma, ressignificado e reinterpretado mediante o vivido criando assim uma espécie de imaginário “pós-II Guerra Mundial”. O cinema feito na Alemanha em torno da década de 1920 não tinha como preocupação o levante de ideais políticos ou “trabalhar a expressão livre dos sentimentos envolvidos na concepção das obras” (CÁNEPA, 2010, p. 81). Tendo em vista os interesses comerciais que pairavam sobre sua realização, procurava explicitar os clichês provenientes do trabalho artístico expressionista alemão. Era nítida a vontade de se fazer um cinema diferenciado em prol de angariar um status artístico e ao mesmo tempo vende-lo sob o sucesso do expressionismo. O panorama de condições produtivas estruturais também possibilitou uma frutificação dessa produção, e sob a ideia de convergência é que João Peneda (2013) insere essa consideração aos fatores psicológicos e comerciais que compõem o quadro de motivações do movimento cinematográfico. “O Gabinete do Dr. Caligari” (1920), apesar de ditar tendências cinematográficas, teve a maioria de suas eleições estéticas definidas a partir de uma escassez de recursos enfrentada. Filmar em estúdio, a colocação versátil da câmera no que se refere aos seus movimentos e as alterações do seu roteiro que o consagraram foram mais consequências da situação apresentada do que escolhas em si (PENEDA, 2013, p. 5). Em meio a essa junção de circunstâncias que propiciaram o surgimento de tal obra, Peneda considera que: O filme de Wiene estabeleceu uma colaboração com a arte de vanguarda, tornando-a popular, acessível ao grande público. Esta obra abriu vias inéditas para uma estética cinematográfica mais arrojada. O cinema posterior não deixará de recorrer às artes gráficas (cenários, grafismo, caracterização) e a uma montagem que subverte a relação da imagem com a narrativa. (PENEDA, 2013, p. 5).

Nesse quadro, fazem-se notar outras relevantes produções cinematográficas inseridas no movimento, como “Nosferatu” (1922) e “Metropolis” (1927), por exemplo. De forma gradativa e inevitável, os temas tornaram-se enfadonhos para o mercado consumidor naquela época. É relevante também considerar-se o fato de que obras como “Caligari” têm um papel tão representativo e inovador que facilmente atingem uma instância iconográfica e



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estereotipada (KRACAUER, 1988, p. 87). A apreciação da estética cunhada pela vanguarda expressionista alemã fez com que os estilemas da mesma se perpetuassem através do tempo como uma referência recorrente em obras artísticas que se propõem a dialogar com a temática e abordagem dos filmes alemães do início do século XX. É inserido nesse panorama conforme Theodor Adorno (2006), que a cultura passa a definir-se como indústria, definindo-se, portanto, a si mesma como uma atividade econômica, com uma crescente demanda que legitima a sua existência. Tais produtos são em geral amplamente aceitos pelo público de forma a cumprirem seus objetivos de lucratividade e controle social.



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4 RESSONÂNCIAS CONTEMPORÂNEAS Sendo a liberdade a raiz da criação, parece paradoxal que seu universo seja totalitário: nele, cada elemento está subordinado ao todo, que mantém correspondência com cada elemento que o forma, numa rígida hierarquia de valores e sentidos. (NAZÁRIO, 2008, p. 52).

4.1 CRÍTICA DA CULTURA: ESTÉTICA ENTRE A ARTE E A TÉCNICA A ascensão das massas e dos meios de reprodutibilidade técnica, possibilitados pela expansão da atividade capitalista e o consequente desenvolvimento tecnológico fomentado pela modernidade, trouxe à tona a preocupação do setor intelectualizado da sociedade sobre a dinâmica industrial. De atuação cada vez mais abrangente, a indústria, paradigma central da sociedade de consumo, ultrapassou o processo de produção relativo aos bens de consumo para também conduzir a realização de produtos culturais. Assim sendo, a lógica cultural contemporânea define-se pelo conceito e defluências do termo “indústria cultural”. Inseridos na busca desenfreada pelo crescimento econômico, o homem torna vendável tudo o que pode: tal o imperativo da sociedade de consumo. Do tangível ao intangível, postulando margens de lucro em transações diversas, estimulando consumidores pelas técnicas publicitárias e reforçando o obsoletismo programado por meio do contínuo avanço da tecnologia. Mas, Fredric Jameson (2002, pg. 54) já anuncia que “o desenvolvimento tecnológico é a imediação de algo muito mais profundo”. Partindo dos pressupostos de modernização tecnológica, que perpassam pelo crescimento industrial até a consolidação dos meios de comunicação em massa no nosso cotidiano, pode-se dizer que a acessibilidade à arte e a produção artística foi um dos âmbitos mais afetados pela proliferação dos meios técnicos, dentre os demais campos da vida social (LESSA, 2010). A arte tecnicamente reproduzida deixou de ser resultado de um momento sublime de inspiração divina para tornar-se produto de um sistema de montagem coletivo, acarretando num certo nivelamento entre o processo de produção cultural e o trabalho industrial moderno. Dessa forma, a arte passou a se tornar produto industrial de massa, reprodutivo e serial. (LESSA, 2010).

Esse processo representava a democratização da arte ao mesmo passo que também gerava a massificação da cultura, o que engendrou implicações de cunho tanto ideológico



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quanto político. Atentos a essa questão, Adorno e Horkheimer (2006) se referem às técnicas de reprodução como estrutura ideológica basilar do sistema capitalista, figurando-se qualidade portanto essencial aos pressupostos que regem a indústria cultural. Em contraposição ao termo “cultura de massas”, Adorno conceitua a indústria cultural de forma a não ser confundida como uma manifestação genuinamente popular, já que detentora de um caráter comercial explícito pela eficácia das suas técnicas de reprodução e difusão, reduzem a compreensão da arte tradicional, fruto de um processo criativo, a um negócio rentável (ADORNO e HORKHEIMER, 2006). A técnica assume lugar central na sociedade. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o carácter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. (ADORNO e HORKHEIMER, 2006).

Verifica-se então que os meios de produção e suas dinâmicas relativas são regidos pelos grupos detentores do poder econômico. Logo, regida por tais ditames, cultura torna-se mercadoria. A profusão dessa prática ideológica tem sua legitimação na mídia, grande mantenedora desse sistema pela veiculação incessante de informações de natureza publicitária que faz com que a disseminação de bens padronizados torne-se inevitável diante do impulso de consumo instigado. Em contato direto, mas ao mesmo tempo intermediado com um grande contingente populacional, os meios de comunicação em massa chegam às casas como uma alternativa de informação e entretenimento diante da realidade inapreensível construída pelo processo de modernização, firmando um sentimento de cumplicidade entre os consumidores e a indústria cultural, a qual tem por missão manter o interesse das massas nas suas programações e nos produtos anunciados (GUINSBURG, 2004). A televisão tornou-se ratificadora ideológica do capitalismo, e às mídias foi agregado um grande poder de persuasão ao moldar a consciência dos consumidores. Entretanto, é válido ressaltar que o consumidor, apesar de seu papel central nesse contexto, “não é sujeito dessa indústria, mas seu objeto (...). As massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar” (ADORNO, 1975). Em vista de suprir as necessidades do grande público, são veiculados discursos reificados, dentro de um processo de empobrecimento informacional e estético, o qual adapta qualquer produto para o amplo consumo pela manipulação sensorial do espectador, com



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imagens, cores, sons, texturas, cortes e afins. Essa construção dos produtos culturais, em vista do objetivo de se criar algo que seja de apreensão simples, utiliza-se frequentemente de signos e fórmulas já consagradas com a intenção de tornar o objeto facilmente reconhecível pela audiência. Para Adorno, ocorre a decadência do gosto, pois gostar torna-se o mesmo que reconhecer (ADORNO, 1975). Por isso, finda em um sistema de superação das barreiras entre cultura erudita e popular no momento em que elementos da arte considerada como proveniente de uma cultura superior se incorporam à estandardização e perde seu potencial crítico ao tornar-se assimilável pelas massas, ao mesmo tempo em que a arte popular deixa de ter suas origens enraizadas no povo para igualmente ceder ao modelo da indústria cultural. “Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior” (ADORNO, 1975). A mercadoria cultural atua de forma crescente na sociedade, não deixando transparecer alternativas a esse sistema. A ideologia da indústria cultural substitui a consciência pelo conformismo, dando manutenção à ordem social capitalista (ADORNO e HORKHEIMER, 2006). A manipulação de modismos e valores agregados à produtos é essência da técnica publicitária, a qual permeia todos os tipos de conteúdos gerados pela mídia. É com a criação de conceitos agregados a um objeto cultural pela sua constituição estética que o mesmo é dotado de certa estima por parte do público que se almeja atingir. Aí se enquadra a compreensão de kitsch, bem como a de midcult, à medida que produtos industriais que almejam alcançar o patamar de uma arte genuína, mas não o são pela sua concepção considerada corrompida dentro de um viés apocalíptico, recorrem superficialmente aos estilos advindos de tal arte, servindo a um público que parece fazer questão de consumir produtos que simulam uma constituição artística superior quando na verdade não passam de uma cultura média e falsificada (ECO, 2004). “A indústria cultural abarcou toda a produção cultural,

transformando

as

expressões

artísticas

transcendentes

em

mercadorias”

(GUINSBURG, 2008, p. 49). Umberto Eco problematiza as questões levantadas por Adorno destacando a tal perspectiva apocalíptica das considerações advindas dos acadêmicos da Escola de Frankfurt. Sobretudo conclui que os frankfurtianos eram detentores de um ideal aristocrático da suposta verdadeira cultura, de modo a não ser concebível um amplo acesso à mesma, para eles. Em defesa da proliferação da arte, o autor ressalta o caráter democrático dos novos meios de produção. Outro aspecto relevante da análise de Eco é a observação de que nenhum de nós encontra-se livre sistema então condenado. Contra ou a favor das dinâmicas que regem os



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processos culturais, vivemos no “universo das comunicações de massa (...). Ninguém foge a essas condições” (ECO, 2004, p. 11). A presença da mídia já é preponderante em nossas vidas, a qual configura-se como instrumento ideológico do capitalismo. A formulação desse debate é fundamental para pensarmos as normas que regem as atuais dinâmicas de produção cultural, ao considerarmos que a construção social contemporânea aloca tanto os meios de comunicação em massa quanto a indústria cultural ao centro da sociedade após o processo de modernização que os originou. Certamente, as mudanças de natureza tecnológica que remontam ao início do século XX, como o aceleramento fordista do sistema da linha montagem, deram origem a uma expansão irremediável do capitalismo e ao desenvolvimento consequente do aparato técnico, alterando gradativamente a natureza íntima da forma como o panorama econômico se comportava em aliança com a sociedade e seus diversos domínios, como política, cultura e arte, culminando em uma nova perspectiva do nosso tempo. Tal consideração de um contexto pós-moderno explicita com mais veemência certos sintomas atestados por Adorno, como a preponderância de uma consciência puramente capitalista, o fim dos limites entre cultura erudita e popular, o desmantelamento do significado e a mecânica de referências estéticas que conduz a uma reestruturação dos modelos existentes, por exemplo. Através dessa percepção, “os prognósticos frankfurtianos acerca da produção cultural na sociedade moderna podem ser utilizados também para se analisar a lógica da cultura pós-moderna” (LESSA, 2010), tendo eles alcançado seu ápice no panorama contemporâneo.

4.2 A ATUAL DOMINANTE CULTURAL As formas de compreensão da contemporaneidade enquadram a sociedade em um estágio de transformações estruturais, dentre as quais destacam-se os paradigmas que regem a produção cultural. Em vista do processo de avanço do sistema capitalista, são identificadas mudanças na vigência dos preceitos modernos abordados. A expressão concreta dessas mutações manifesta-se em âmbitos diversos da sensibilidade humana e dos produtos originados pela mesma, fazendo corpo a determinadas características que permitem com que alguns autores classifiquem essa percepção como a figuração de um contexto denominado pós-moderno. A periodização aqui proposta diz respeito a emergência de novas percepções acerca da vida social e dinâmica econômica intrínsecas ao atual panorama.



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O que parece num nível como o último modismo, promoção publicitária e espetáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade para a qual o termo “pósmoderno” é na verdade, ao menos por agora, totalmente adequado. A natureza e a profundidade dessa transformação são discutíveis, mas transformação ela é. (...) Num importante setor da nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições de um período precedente. (HUYSSENS apud HARVEY, 1992, p. 45).

O sintoma fragmentário latente que pautava a modernidade não tardou a intensificar-se e amplificar seus desdobramentos, refletindo-se sociedade afora e declarando com cada vez mais veemência a queda dos pilares que sustentaram o alto modernismo. A arquitetura é um dos parâmetros mais simbólicos para a verificação de uma atitude transitória no que tange à cultura humana. Com as pretensões de grandiosidade exauridas diante de um plano ideológico de culto à razão falho e superado historicamente, restou ao indivíduo um espaço urbano coercitivo e inabitável, composto por esmagadores blocos de concreto e torres de vidro, concebidos para retratar a imponência do homem e sua supremacia na exaltação do desenvolvimento tecnológico, estruturas arquitetônicas as quais entretanto revelavam verdadeira crueza (HARVEY, 1992, p. 45). Reagindo ao mal estar causado por essa composição urbana, arquitetos voltaram-se para a produção de espaços mais humanizados, e até agradáveis, revitalizando assim as cidades e inspirando-se sobretudo no “populismo estético” (JAMESON, 2002, p. 28) em vez de “ideais abstratos, teóricos e doutrinários”, como nota Harvey (1992). A contemporaneidade configura-se então como um quadro de reações às formas canônicas da modernidade. A partir disso, o autor infere que mudanças desse gênero são identificáveis em diferentes domínios da atividade societal à medida em que ocorreu uma verdadeira transformação da forma como a humanidade se relaciona com a herança iluminista. Tais ditames racionalistas, ao mesmo tempo que são responsáveis pelo desligamento do indivíduo da tradição medieva de subserviência cunhada pela Igreja, frustrou-o na expectativa de manter-se ideologicamente auto suficiente pela confiabilidade na sua capacidade de raciocínio ao culminarem na ruína prática de tudo o que havia sido cultuado: a meta humanista do conhecimento foi facilmente descartada ao confrontar-se com as ambições que essa construção cientificista trazia consigo. A superação das concepções de natureza ideológica, bem como o declínio do individualismo, do cristianismo e do capitalismo burguês deram vazão à emergência de uma nova civilização de massas (GUINSBURG, 2008, p. 23). Sem o respaldo divino ou das metanarrativas para apresentar um propósito existencial ou fim a ser alcançado, instaura-se um vazio espiritual/moral na estrutura do sentimento, originando os pressupostos que engendram a crise



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identitária a qual a conceitualização pós-moderna se refere. Esse processo evidencia que “as crises latentes de um período tornam-se explícitas e dominantes em outro” (HARVEY, 1992, p. 49), delineando a contemporaneidade como um processo de sazonamento do que fora originado outrora, no entendimento de Jacob Guinsburg. “No fundo, o pós-modernismo é um fantasma que passeia por castelos modernos” (GUINSBURG, 2008). A corrente contínua de transformações em que o sujeito foi inserido a partir do caos moderno construiu a acepção efêmera, descontínua e fragmentária do indivíduo, a qual alcança seu estágio de consolidação no desenvolvimento dos meios de comunicação, posto que a aceitação desse sintoma é condição inerente a passagem da modernidade para o atual cenário. Tal aperfeiçoamento da tecnologia no que diz respeito à codificação do conhecimento é possibilitado pela evolução da conjuntura capitalista para sua condição mais avançada. É nesse contexto de apuração do capitalismo que Lyotard crê estar inserida a superação do modernismo para o seu estágio seguinte (HARVEY, 1992, p. 53). Fredric Jameson (2002, p. 29) considera que a condição denominada pós-moderna é intrínseca ao patamar de alta maturação do sistema capitalista no qual estamos inseridos. Se a modernidade estava simbolicamente presente na urbe pela fábrica, a pós-modernidade tem seu emblema no shopping, ambos referentes as respectivas fases do capitalismo então vigente. Tendo alcançado a sua terceira fase após sua origem mercantil e seu período imperialista, o capitalismo está em seu estado mais puro, denominado assim pelo autor de “turbo capitalismo” ou “capitalismo tardio”. “Vivemos em uma sociedade que é cada vez mais puramente econômica, e nessa economia nós somos o supérfluo” (FORRESTER apud GUINSBURG, 2008, p. 44). É tamanha a área de abrangência da ação econômica na sociedade, que a doutrina vigente engloba diversas esferas do domínio social, situação dentro da qual a cultura se destaca. Há, portanto, uma Penetração ampla do mercado no domínio da cultura (...). Já não é possível separar o domínio econômico ou produtivo dos domínios da ideologia ou da cultura, porque os artefatos culturais, as imagens, as representações e até os sentimentos e estruturas psíquicas tornaram-se parte do mundo do econômico. (CONNOR, 1993, p.48).

A apreensão do pós-modernismo deve ser então compreendida como uma dominante cultural que transcende para além de uma manifestação meramente estilística, (JAMESON, 2002, p. 29), mas ao mesmo tempo, de maneira a não se conceber como uma expressão plena e homogênea da sociedade, coexistindo dessa forma com expressões de naturezas diversas.



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Tal quadro de intensas mudanças que invade esfera cultural adentro demanda cada vez mais rapidez por parte da produção estética na busca de suprir as necessidades do mercado consumidor. Com centramento dos objetos culturais nos ditames da mercantilização incitada pelo ritmo frenético adquirido pelo desenvolvimento e aceleração da produção industrial, acrescido da globalização e o crescente fluxo informacional, os produtores são levados a olhar senão para as escolas modernistas e seus estilos únicos em busca de alternativas viáveis para a sustentação de um processo criativo que sob as vistas do capitalismo, priva-se da originalidade (JAMESON, 2002). “Não há inovação estilística que ocorra fora de alguma tradição artística” (GUINSBURG, 2008, p. 24). O conceito basilar que define essa prática comum referente às atuais dinâmicas de criação dos objetos culturais é o do pastiche, uso reificado de traços estilísticos existentes. Em meio às proposições pós-modernistas, a submissão da lógica de produção cultural ao domínio de grupos econômicos ratifica os objetivos estéticos comerciais em detrimento de um discurso consistente e esclarecedor, que limita e reduz os movimentos artísticos a simples objetos de consumo, em vista da meta de se cunhar uma arte que dialogue com um amplo público. “Tal modo de produção gera sua própria ideologia. A principal consequência da industrialização da cultura é a intervenção do poder no processo de criação” (GUINSBURG, 2008). São esgotadas, consequentemente, as possibilidades de uma abordagem profunda, dada a média de instrução da sociedade, excluindo-se as imediações de origem afeitas ao seu referente, de cunho conceitual e histórico. Solapando as noções da arte tradicional, o homem pós-moderno vive em uma era em que não é mais possível pensar historicamente o presente, considerando os aspectos afeitos à historicidade dos referentes, de modo que essa praxe caiu no esquecimento mediante a experiência contemporânea (JAMESON, 2002, p. 13). A prática do isolamento do traço estético abordada conflui com a noção de que as transformações no cotidiano, e assim, no íntimo da sociedade, acarretadas pelo progresso do modelo econômico, trouxeram consigo diferentes ações culturais e político-econômicas que proporcionaram ao homem novas maneiras de experimentar o tempo e o espaço. Os desdobramentos dessa consideração implicam na importante compreensão de que o capitalismo é atualmente não só um paradigma econômico, mas também ideológico, impondo portanto necessidades de consumo que superam a aquisição de objetos palpáveis para a apropriação de signos e valores agregados. A mídia, por meio do seu papel central de propagação da cultura do consumo, porta-se como grande mantenedora desse sistema. Acompanhando as demandas produtivas em conjunto com a instantaneidade impressa em nossos hábitos pela herança moderna e o sistema, no que tange à circulação de conteúdo



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midiático, há um grande fluxo de informações gerado que, valendo-se da rapidez e do aparato tecnológico disponível, mobilizam o indivíduo pela manipulação dos seus sentidos através do lúdico. Na televisão, emblema do regime contemporâneo, inúmeras e contínuas imagens perpassam nossos olhos com uma fluidez hipnotizante. Regido pelos pressupostos ideológicos e culturais reforçados pelos meios de comunicação em massa e sua devida dinâmica, o homem reformula seu psiquismo e adentra uma dimensão em que o sintoma de fragmentação torna-se cada vez mais imerso em nossas vidas. Nessas circunstâncias, a evolução da patologia cultural moderna, que expressava-se por meio dos conceitos de ansiedade e alienação, para a contemporânea (pós-moderna), explicitamente fragmentária, implica no que Jameson chama de “morte” do indivíduo, ou o descentramento do mesmo. Sobre esse entendimento, o autor formula duas acepções: primeiramente, considera que na mudança de uma era do capitalismo clássico, na qual a burguesia era classe ascendente, para o atual estágio do capitalismo corporativo, regido sobretudo pelas burocracias empresariais e estatais, o sujeito individual burguês teve seu fim. E em segundo, relata uma posição mais radical, pós-estruturalista, na qual o sujeito jamais existiu, não passando de um mito. Ainda sobre a questão da perda identitária, o contemporâneo, na propagação de estéticas validadas pelo pastiche, atesta através da morte do estilo único o fim do “eu” singular. O referido descentramento acarreta, por conseguinte, na reafirmação do fim do alto modernismo e das aspirações artísticas ou políticas relativas à movimentos vanguardistas. Avançando para outros preceitos frente a essa impossibilidade, findam-se também uma série de outras coisas, como “por exemplo, do estilo, no sentido do único e do pessoal” (JAMESON, 2002, p. 43). Corroborando dessa maneira as dinâmicas relativas ao uso do pastiche como uma legítima ferramenta de produção na contemporaneidade que inviabiliza a originalidade, a esterilidade do processo criativo na atual vigência (pós-moderna) sustenta-se frequentemente sobre férteis parâmetros estéticos consagrados pelas vanguardas modernas conforme será abordado ao se esmiuçar as relações referenciais entre o objeto “Capitu” e o expressionismo alemão. A ânsia pelo consumo da imagem pela imagem é por essa estrutura provocada, dando vasão à existência de uma chamada “cultura do simulacro” (JAMESON, 2002, p. 45), a qual constitui um dos principais eixos da análise de Jean Baudrillard (1981) acerca do contemporâneo. Sendo a produção da cultura e de seus significados subordinada à atuação econômica, a “explosão e aceleração de mercadorias culturais” (CONNOR, 1993, p. 48) prioriza a forma em detrimento do conteúdo, em consonância com o esvaziamento dos discursos propagados pela mídia diante da razão mercadológica. Explicitamente, a estética



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priva-se de sua associação à algum significado existencial ou histórico. A dimensão relativa ao simulacro caracteriza-se pelo universo no qual “o significado e o referente foram abolidos para o único proveito do jogo de significantes, de uma formalização generalizada na qual o código já não se refere a nenhuma ‘realidade’ subjetiva ou objetiva, mas à sua própria lógica” (BAUDRILLARD, 1997). Intencionando simular o original, porém privados de sentido, os objetos culturais voltados ao consumo tornam-se, enquanto modelos neutros e destituídos de complexidade existencial, facilmente digeríveis pelo público, afeito a essa prática e sedento pela manipulação de seus sentidos pelas cores, formas, texturas e simbolismos. “Vivemos em uma época, diz Baudrillard, em que já não se exige que os signos tenham algum contato verificável com o mundo que supostamente representam” (CONNOR, 1993, p. 51). A vida contemporânea não privilegia a originalidade, mas sim a reprodução, o simulacro, baseado em valores estéticos pré-existentes. É comum que a lógica descontínua imanente à natureza do simulacro incite a colagem simultânea de estilemas na qualidade de ecletismo ou hibridismo, a canibalização de estilos na arte comercial, portanto. O signo torna-se, isolado de seu significante, o simulacro em si, alocada em um regime de pânico de sua referencialidade, mas não de maneira a configurar-se como irreal, quando sim, manifestam-se como objetos e experiências que tentam ser mais reais do que a própria realidade, tornando-se hiperreais. (BAUDRILLARD, 1981). Complementarmente aos estudos de Baudrillard, Jameson observa que o simulacro tem efeito sobre o tempo histórico (JAMESON, 2002, p. 45). As manufaturas artísticas e as circunstâncias em que as mesmas se inserem, a respeito de tratar o passado de maneira nostálgica e referente, tornam a historicidade incompatível com nossa condição. Essa nova forma de discurso estético faz com que o homem contemporâneo tenha dificuldade de localizar-se em um tempo social coerente. O deslocamento que a atual história dos estilos estéticos efetua sobre a perspectiva real demonstra alterações na percepção de anterioridade, Como se por alguma razão, fôssemos hoje incapazes de focalizar nosso próprio presente, como se tivéssemos nos tornado inaptos para elaborar representações estéticas de nossa própria experiência corrente. Se for este o caso, trata-se de uma terrível incriminação à própria sociedade capitalista de consumo – ou, quando menos, de um sintoma alarmante e patológico de uma sociedade que se tornou incapaz de se relacionar com o tempo e com a história. (JAMESON, 1984, p. 21).

A crise da historicidade advinda desse contexto perturba o indivíduo em suas dimensões temporais, enveredando suas práticas culturais por um curso fragmentário e heterogêneo que coaduna ao tema abordado uma impressão esquizofrênica da realidade



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(JAMESON, 2002, p. 52). Relativo ao conceito de simulacro, essa exposição de Jameson envereda pelo quadro esquizofrênico, uma vez que Lacan descreve a esquizofrenia como sendo a ruptura na cadeia dos significantes, isto é, as séries sintagmáticas encadeadas de significantes em um enunciado ou um significado (...). Quando se quebram as cadeias de significação, então temos a esquizofrenia sob forma de um amontoado de significantes distintos e não relacionados (...). Se somos incapazes de unificar o passado, presente e futuro da sentença, então somos também incapazes de unificar o passado, o presente e o futuro de nossa própria experiência biográfica, ou de nossa vida psíquica. Com a ruptura da cadeia de significação, o esquizofrênico se reduz à experiência dos puros significantes materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes, não relacionados no tempo. (JAMESON, 2002, p. 53).

Ainda para Jameson (2002, p. 54), a concepção de presente perpétuo corrobora a exclusiva percepção da materialidade do significante, posto que o distúrbio gerado na cadeia provém da desordem de linguagem cujo desdobramento é o isolamento do mesmo. Intensificado, ele gera na sociedade grande número de sensações, como euforia, alucinação e desnorteamento. Se por um lado a evolução do capitalismo tardio representa o desenvolvimento tecnológico e econômico, por outro lado imprime no homem tal ansiedade, assim como priva a cultura de autonomia, amputando as aspirações genuinamente artísticas. “O pós-modernismo assinala senão uma extensão lógica do poder do mercado a toda gama de produção cultural” (HARVEY, 1992, p. 64). É inerente à conceituação do pós-moderno uma gama de atribuições e significados de naturezas diversas. As discussões que envolvem o delineamento da identidade histórico-social contemporânea tem sido debatida não raras vezes pelos acadêmicos, em busca de uma precisão cada vez maior sobre quais as consequências advindas do declínio dos preceitos que embasavam o chamado alto modernismo, e de que forma elas interferem nos vários âmbitos da sociedade, com destaque ao setor econômico e ao cultural frente ao capitalismo atuante. A legitimação desse sistema pela proliferação do conteúdo midiático, cada vez mais conectado ao cotidiano, é condição possibilitada pelo desenvolvimento tecnológico e a consolidação dos meios de comunicação de massa, dando corpo a um quadro de mudanças irrefutáveis que transcende questões nominais e são eixos centrais para a análise então proposta de “Capitu”, visando explorar a forma como o objeto se relaciona com o legado artístico modernista na busca da compreensão de como se manifesta o expressionismo na contemporaneidade, e de que maneira isso pode explicitar uma consonância com as características formais do pósmodernismo.



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4.3 NA LUZ DA CONTEMPORANEIDADE, AS SOMBRAS DA MODERNIDADE Depois que a vanguarda virou stablishment, pois institucionalizada pelos grandes museus e pelas mega-retrospectivas promovidas pelas bienais internacionais, podemos, em função do passado apropriado, ordenar o campo em dispersão da arte contemporânea. (GUINSBURG, 2008, p. 122).

Uma confluência de fatores de ordem histórica, econômica e social determinam a forma como a contemporaneidade se relaciona com a tradição moderna, e se apropria de seu legado cultural. Os estilos oriundos dos movimentos vanguardistas outrora portadores de uma estética e propósitos subversivos, foram consagrados pela academia e consequentemente absorvidos pela sociedade, adentrando o âmbito das referências artísticas compartilhadas pelos indivíduos. A mudança medular da esfera cultural a qual conduz esse processo e segrega a percepção moderna da atual é o fato de que os trabalhos de artistas vanguardistas como Picasso não são mais consideradas feias ou sequer estranhas ao público. Agora, elas chegam a nos parecer até mesmo realistas, senso resultante da canonização do movimento moderno que configura-se como um dos fatores indicativos do aparecimento do pós-modernismo, esclarece Jameson (2002), uma vez que diante dessas circunstâncias, a geração dos anos 60 irá entrar em conflito com o institucionalizado que um dia fora força oposicionista. Figura 1 - “O Grito”, de Edvard Munch.

Fonte: www.noticias.universia.com.br/tempo-livre/noticia/2012/1/29/977841/conheca-grito-edvard-munch.html.



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Exemplificando a constatação de Jameson através de um dos cernes do estudo apresentado, consideremos a obra “O Grito”, de Edvard Munch. Composta por uma série de quatro quadros e concebida dentro de uma estética expressionista, traduz por meio de pinceladas sinuosas a fragmentação inerente ao homem moderno, toda a solidão, ansiedade e sofrimento contidos em um grito mudo. Grito, todavia, materializado e ressonante na exposta deformação da realidade expressa visualmente, desconstruindo a estética que a compõe. É a dor sem palavras provocada pelo desespero existencial (JAMESON, 2002, p. 39). Ouve-se o grito, sinestesicamente, através do arrebatamento provocado pelo impacto visual que o humanoide, em seu entorno, nos causa. Na época de sua criação, alto modernismo, a crítica reagiu de forma ríspida e vacilante em confronto com o seu estilo e conteúdo revolucionários. Hoje, essa apreensão descrita é facilmente aceita perante o percurso histórico das vanguardas já abordado, sendo o conjunto das obras considerado como um clássico das artes plásticas, do qual alguns de seus quadros componentes encontram-se em exposição permanente em importantes museus. “Mortos, constrangedores, consagrados, são monumentos reificados que precisam ser destruídos para que algo novo venha a surgir” (JAMESON, 1984). A posse dos estilemas modernistas traz prenúncios de uma nova norma cultural. O que está em discussão, porém, é de que maneira os artistas ou produtores culturais tomam para si e para suas obras tais referências e quais os possíveis diálogos a serem traçados entre a referência e o objeto de estudo, de que forma eles se dão. Inseridos em um contexto econômico que invade o âmbito da produção cultural, o sistema mercadológico vigente, sob as vistas da figuração de um quadro de sintomas chamados pós-modernos, parece legitimar a prática do pastiche, o qual negaria origens e estabeleceria com os movimentos vanguardistas uma relação considerada superficial, de cunho meramente técnico-visual, enquadrando os traços estilísticos em objetos culturais fora das similitudes de seu primeiro contexto ou intenção existencial para o qual foram criados. Esse dinâmica atestada é apontada como uma relação constantemente estabelecida com todas as vanguardas modernas, e o expressionismo não fugiria a esse padrão. Na era da imagem, respaldada pela profusão de tecnologias desenvolvidas e alto fluxo informacional, não haveria conveniência, espaço, tempo, ou sequer respaldo do público para a promoção de um discurso crítico e profundo pautado no conteúdo das referências estéticas que o constroem. Seu legado histórico é considerado como perdido ao imergir em um universo esquizofrênico, inundado por simulacros construídos por meros produtos de reprodução das aparências. O movimento expressionista assim como as demais vanguardas teriam, na contemporaneidade, a preponderância do seu significante através das técnicas de



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produção que se valem de “mimetismo de estilos, particularmente dos maneirismos e tiques estilísticos” (JAMESON, 1984) indiscriminadamente, perdendo portanto seu valor e propósitos de origem, além de ser frequentemente usado em conjunto com estilemas oriundos dos mais variados movimentos. Nessa perspectiva, os estilos modernistas mostravam-se tão únicos e inconfundíveis que culminam em um processo de superação de sua unicidade. Prevaleceria então uma heterogeneidade, uma mistura de traços vanguardistas em uma composição eclética, com sua essência cada vez mais perdida em uma colagem de estilos. O colapso da ideologia modernista do estilo traz consigo, em consequência, uma cultura e múltiplos estilos, que são combinados, contrapostos, permutados e regenerados numa furiosa polifonia de vozes descontextualizadas. Isso produz um achatamento do sentido de origem histórica, razão por que circulam, nessa arte do pastiche, não somente individualidades estilísticas como histórias deslocadas. (CONNOR, 1993, p. 144)

As referências ao passado imagético relativas ao panorama pós-moderno mostram-se indiciais e significantes. A ideia talvez não seja um retorno ao passado, e sim somente tornálo reconhecível, como referencial através da sua simulação, em busca do acesso a um repertório compartilhado por indivíduos comuns na abordagem de temáticas vagamente afins com a destinação original da estética apropriada. A produção audiovisual contemporânea, questão em foco, já denuncia tais sintomas para além do objeto estudado, “Capitu”. Os pressupostos expressionistas são comumente retomados em obras da mais diversa origem e intenção, ligação esta muitas vezes dada frente às relações temáticas buscadas por seus autores, com o objetivo de traduzir visualmente conceitos que permeiam determinados tipos de enredo que se encaixam com a proposta estética obscura e tensa, a qual se sobressai como característica formal relevante de tal movimento. Porém, do ponto de vista da apropriação imagética pautada nos preceitos pós-modernos, muitas das vezes o movimento finda por ser descaracterizado ao afastar-se da sua ideologia originaria, despolitizando suas intenções estéticas antes fundadas em pilares ideológicos. Em meados de 1940, o film noir já desfrutava das heranças estéticas convencionadas pela consagração do expressionismo. A utilização constante da técnica de iluminação low-key, que implica em uma profusão de sombras no cenário, juntamente com a inserção do ponto de vista subjetivo e psicológico, reforçando a esfera de mistério almejada, ressaltam esse diálogo. Tais características marcaram formalmente esse segmento da produção cinematográfica. À sua origem francesa, seguiu-se a produção americana, a qual fez do gênero um clássico hollywoodiano, com suas características apoiadas em dois cernes: a



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literatura policial e o expressionismo. Em grande parte, todo esse quadro descrito se deve ao fato de que diretores alemães, como Fritz Lang, que tem obras veementemente expressionistas, importaram muito dessa estética aos EUA através de seus repertórios técnicos e artísticos quando buscaram refúgio das pressões nazistas, emigrando da Alemanha. A especificidade narrativa desses filmes comumente dizia respeito a tramas policiais adaptadas, envoltas de suspense, com crimes a serem desvendados, detetives, louras fatais e perseguições em um ar sombrio, por vezes também claustrofóbico e paranoico (MASCARELLO, 2010). Esse panorama retratava algumas das questões sociais relativas às tensões da sociedade americana do segundo pós guerra, logo, um contexto bem diferente do que a estética expressionista propunha nos seus manifestos. Dentre as definições usadas para caracterizar o cinema noir, encontramos termos como “filme policial expressionista da década de 40” (MASCARELLO, 2010), o que enfatiza a profunda influência e referencialidade estabelecidas entre esses cinemas no entrelaçamento relevante de seus temas e estilos. Figura 2 - A técnica de iluminação low-key e a profusão de sombras importada da estética expressionista, (à esquerda, em “Nosferatu”), para a criação de uma atmosfera narrativa densa e misteriosa no gênero noir (à direita, em “Relíquia Macabra”).

Fontes: www.jilltracy.com/jt/tag/max-schreck/; www.fogsmoviereviews.com/2012/06//movies-that-everyoneshould-see-the-maltese-falcon/.

Percorrendo esse caminho de apropriação traçado pelo expressionismo, que vai do seu profícuo desenvolvimento e sucesso no cinema alemão à sua consagração e consequente institucionalização, até a importação do estilo pela indústria hollywoodiana e sua ampla apropriação, voltamos nossos olhos para a atualidade, onde esse curso nos leva a outro exemplo nítido: o trabalho do diretor Tim Burton, que constantemente se vale de elementos expressionistas consagrados nas eleições visuais de sua obra. O estilo peculiar desenvolvido



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por Burton ao longo dos anos é construído por uma miscelânea de referências que vão do gótico, ao romântico, do surreal até o expressionista. A relação referencial com o expressionismo é evidente na fascinação pelo macabro que transparece em suas obras ao valer-se de formas visuais distorcidas, atmosferas tenebrosas e na recorrente temática que permeia o mistério, a morte e o sobrenatural. A fotografia e fundamentalmente a direção de arte de formas angulares, impressões mórbidas e altos contrastes permite com que essa interrelação se destaque, presente de forma unânime em sua cenografia. A partir dessas constatações, identifica-se semelhanças entre Edward, protagonista do filme “Edward Mãos de Tesoura” (1990), e Cezar, sonâmbulo manipulado de “O Gabinete do Dr. Caligari” (1920), filme ícone da vanguarda expressionista. Ambos tem em comum a palidez, cabelos desalinhados, roupas negras, corpo esguio (MURACA, 2010) e em certa medida deformado, sendo algumas dessas características ainda identificáveis no clássico expressionista “Nosferatu” (1922), as quais certamente podem ser estendidas ao Dom Casmurro de Luiz Fernando Carvalho presente em “Capitu”. Figura 3 - Comparativo de semelhanças físicas e conceituais entre Edward, de Burton, Cezar de Wiene, Nosferatu de Murnau e Dom Casmurro de Carvalho.

Fontes: www.englishblogg27.blogspot.com .br/2012/12/edward-scissorhands_18.html; Filme O Gabinete do Dr. Caligari; Filme Nosferatu; DVD Capitu.

Por meio desse tipo de usufruto relativo às prática da indústria contemporânea, em uma perspectiva apocalíptica, ocorre uma profanação do movimento expressionista referente ao esvaziamento do seu significado conforme suas reapropriações gradativas e o distanciamento gradual do seu enredo originário.



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Originariamente, o expressionismo alemão em conjunto com as demais vanguardas representavam “a autodescoberta da arte como forma, objeto e prática” (GREENBERG apud CONNOR, 1993), dentro de um processo envolto em uma densa contextualização de sucessivas transformações sociais, dotando-o de um caráter existencial próprio ao seu entorno histórico, que envolve a condição do pós-guerra alemão, entre outros fatores. Reificados, os movimentos vanguardistas, tornariam-se mais uma ferramenta capitalista, comumente atrelados a compreensão do kitsch. Essa conceituação é clamada pela conquista desses estilos do patamar de arte em tempos idos, e estando consagrados, são ressignificados, agregando ao produto seu traço isolado que integra valores artísticos facilmente manipulados e sobretudo neutralizados pela indústria frente a necessidade da conquista de públicos que almejam consumir objetos culturais diferenciados. O expressionismo reduz-se a um “fetiche conceitual, historicamente motivado” (GUINSBURG, 2008). O percurso de “desaparecimento da vanguarda e a sua passagem para as instituições e para o mercado” (CONNOR, 1993) dá fim a qualquer critério de pensamento histórico em conformidade com o panorama apresentado, fazendo com que a utilização do traço expressionista vá da produção de filmes hollywoodianos até anúncios publicitários, tamanha a banalização de seus propósitos. Cedendo aos tramites econômicos, a ruptura entre a arte contemporânea e moderna encontra-se em sua crise de identitária ao ter seus fundamentos de expressão libertária e provocativa abalados pelo sistema. Guinsburg (2008) afirma que o declínio da arte nada mais é do que fruto da crise das vanguardas. Mas há ainda um profundo vínculo estético, embora raso criticamente, mantido com tal período de profícuas inovações estilísticas, o qual reage à uniformização do passado moderno. A arte aclamada como pósmoderna é sintética, incorporando uma plena gama de condições e conhecimentos além do objeto, longe de uma experiência única e completa (FOX apud CONNOR, 1993). A compreensão de todo essa conjuntura é alusiva à criação de obras como “Capitu”, considerando-se que certamente, uma observação atenta a esse fenômeno de posse exposto, propõe que a mediação tecnológica do fazer artístico na contemporaneidade, juntamente às proposições mercadológicas, implicam na perda do espírito modernista original. As possibilidades de mantê-lo são exauridas pelo contexto social vigorante, da mesma forma como pela superação histórica dos fatos que deram motivação ao surgimento das vanguardas. Hoje, existe apenas o rastro temático do que, em meados do século XX, o expressionismo fora. A unicidade de sua existência e tudo o que era tão próprio a ele se perdeu em meio à reprodutibilidade técnica, deixando para trás suas características formais de valoração estética.



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5 À SOMBRA DE CAPITU: A ESTÉTICA CONTEMPORÂNEA 5.1 RASGOS DE PAPEL E FRAGMENTOS DE MEMÓRIA O panorama da produção cultural contemporânea se subordina a um crescente sistema de mercantilização. A dominação de grupos detentores do poder econômico afeita às políticas do sistema capitalista parecem intencionar sobrepor qualquer interesse artístico em razão de tornar tudo consumível, ideologia que configura um estado de maturação dessa estrutura que caracterizaria a pós-modernidade. Os objetos estéticos audiovisuais engendrados nesse contexto encontram-se assim, majoritariamente, atrelados ao custeamento de sua produção e distribuição por parte da iniciativa privada, vendendo obras como forma de entretenimento, principalmente no que tange à produção televisiva. A isso pode-se dizer que se devem uma série de determinações políticas e estéticas por parte das empresas que estão à frente desse sistema, as quais conduzem o processo criativo em vista de propósitos comerciais, prática que caracteriza a indústria cultural. É permeada por essas questões em discussão que encontra-se a origem da minissérie “Capitu”. Realizada por um grupo de comunicação hegemônico no Brasil, a Rede Globo de Televisão, a minissérie foi exibida em dezembro de 2008, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, e composta por cinco capítulos que iam ao ar por volta das 23h, cujo enredo é baseado em uma adaptação literária da obra “Dom Casmurro”, escrita por Machado de Assis. Em concomitância com essas características de ordem contextual ampla no que se refere à lógica cultural do capitalismo tardio destacadas por Jameson (2002), o produto comunicacional em questão dialoga igualmente com um perfil estético particularmente sobressalente no audiovisual contemporâneo. Como atributo mais notório de seu desenvolvimento conceitual, responsável em grande parte por dar vasão às demais características pós-modernistas a serem ressaltadas, “Capitu” tem na sua construção uma identidade fragmentária sintomática do hodierno, devido esta ser a patologia cultural contemporânea (JAMESON, 2002, p. 42). Partindo desse preceito, a fragmentação na minissérie pode ser considerada presente sob vários aspectos, transpondo a estrutura narrativa exposta, presente na ideia de Machado. Luiz Fernando Carvalho leva esse conceito para além dessa fronteira ao dotar por inteiro sua obra dessa percepção estética descontínua, truncada. A minissérie é então composta por uma gama de indicativos acerca dessa acepção, a começar pela compreensão da obra do próprio diretor: “na minha opinião, Dom Casmurro é montado assim, como um conjunto de colagens,



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de tempos e de avessos” (CARVALHO, 2008). Essa ilação finda por contaminar todas as eleições estéticas de Carvalho ao conduzir seu trabalho, incitando um diálogo constante com a obra original, nesse sentido, uma vez que a estrutura da referida criação literária do próprio Machado de Assis já denuncia essa fragmentação da experiência humana. A narração da história se dá através de 148 capítulos que buscam exatamente explicitar a forma como a nossa memória funciona de maneira descontínua na reconstituição do passado, mediante a ação do tempo. Através daí percebemos que há uma interrelação do estrutural literário de Machado para o conceito audiovisual transposto pelo diretor, quem mantém essa elaboração. A proposta que permeia a mutação das linguagens alinha-se ao caráter contemporâneo do fragmentário. O tempo psicológico, não linear, impresso na narrativa, entoa sua condução descontínua. No início do primeiro episódio da série, por exemplo, interrompe-se um diálogo para se contar quem é o personagem que toma a fala, inserindo-se um capítulo no outro, e depois, retoma-se o mesmo momento, a partir do exato instante que a cena anterior havia sido parada. Dom Casmurro compartilha cada momento que atravessa sua memória e seu espírito, ambos em pedaços pela força das amarguras que permearam sua vida em aliança com o força do tempo. Entranhados nesse processo de reavivamento das lembranças, acompanhamos o movimento truncado a que isso implica, haja vista que a subjetivação da vida, o ato de guardá-la na memória, fragmenta a experiência vivida. Com essa essência se segue o enredo, na interação contínua entre Dom Casmurro e Bento Santiago, no confronto do indivíduo e sua biografia durante a renovação das suas experiências no ato de contar, conforme a trama se desenvolve. “Vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Assim, viverei de novo o que vivi” (ASSIS, 2007), nos diz Casmurro. “Casmurro sente tanta saudade de si mesmo a ponto de materializar essas saudades e entrar na paisagem do seu passado”, interpreta Luiz Fernando Carvalho (2010, p. 81), revivendo dessa forma o que nos narra. Por isso, o diretor optou por deixa-lo invadir as cenas, “presentificando” seu corpo como personagem, sem reduzi-lo a uma voz off no vídeo, que se referiria a fazê-lo ser somente escutado enquanto um narrador. Parecia uma necessidade irremediável torná-lo parte disso para Carvalho, levado pela “ideia borgeana de que o tempo não é linear, de que o tempo é uma espiral, e que você contém dentro de você todos os outros tempos vividos” (Idem). Essa razão dá a entender que o protagonista é feito de tempos, histórias, momentos, pessoas e fragmentos de vida, que atabalhoados entre eles dão forma a incompletude da sua alma, frustrada, despedaçada. Guarda ainda, Capitus diferentes – a de Matacavalos e a da praia da Glória (ASSIS, 2007, p. 250). Na cena final, vemos claramente essa construção conceitual quando Casmurro, dando suas últimas considerações sobre sua



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exposição, aparece sentado, portando partes do figurino de cada um dos personagens, até mesmo imitando seus trejeitos. Figura 4 - Dom Casmurro e a materialização da abordagem fragmentária.

Fonte: DVD Capitu.

Toda essa explanação vem à tona para ressaltar a figuração coeva e fragmentária da obra que se engendra no estado de espírito de Dom Casmurro, e que vigorantes as tendências culturais contemporâneas, se expande para a materialização estética audiovisual. Retomemos agora a fala do diretor acerca da colagem de tempos, que nos remete às primeiras cenas do objeto em estudo: plano aéreo do anoitecer na capital carioca dos dias de hoje, seguido por um corte que mostra de cima um trem correndo, com todo o seu corpo encoberto por grafitagens, comum à arte de rua atual. Muda-se então para um plano subjetivo do trem, o qual em conflito com as imagens anteriores, são imagens de uma outra paisagem do Rio de Janeiro, antigo, em sépia e filmado à película, que nos mostra uma ferrovia à vapor, nos remetendo ao período da modernização do país, século XIX, quando originalmente se passa a trama machadiana. A dinâmica imagética assim prossegue: conflituosa, entrecortando sequências que mostram a cidade contemporânea e o caos que lhe é peculiar em meio à postes, fios elétricos, fogo, prédios, anúncios publicitários e espaços sujos, com linhas de trens soltando fumaça por entre os morros e casas pequenas. É aí que então, no interior do trem elétrico e grafitado, o protagonista aparece junto ao personagem que lhe acompanha nesse primeiro capítulo. Os dois trajados com figurinos de época, chapéus e casaca, cercados de transeuntes que se vestem comumente conforme o padrão atual. “É no registro da fragmentação que o figurino compõe sua identidade visual”, destaca a figurinista Beth Filipecki, sobre o seu trabalho na minissérie (CAPITU, 2009).



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Figura 5 - Cenas iniciais de “Capitu” já denunciam a colagem de tempos e espaços dentro de toda sua narrativa.

Fonte: DVD Capitu. Figura 6 - A trama clássica se desenvolve em um ambiente vulgar.

Fonte: DVD Capitu.

À esse processo que se segue, de recortes e cortes entre de tempos e espaços, entre o ontem e o hoje, agrega-se a percepção de fragmentação atestada nas obras audiovisuais contemporâneas, e que em “Capitu” se afirma, dentre outros pontos, através do confronto constante entre esses dois opostos, permeado por um jogo de imagens e significantes. A afluência de significantes dispersos na obra que corroboram essa característica é regular, salientando-se ainda no primeiro episódio o uso de câmeras digitais para retratar uma situação dentro do trem, ou mais à frente na história quando depois de casados, Bento leva Capitu a um baile no qual todos escutam música em iPods, e depois um diálogo entre Bento e Escobar dentro de um elevador panorâmico, dentre outros casos. E sobre isso, em busca de suscitar a externalização dos sentimentos de Dom Casmurro que ainda será devidamente abordada, usase por vezes à título de representação, uma verdadeira pirotecnia na cenografia, com painéis de luz e diversos outros recursos impensáveis para a época na qual a trama originalmente se passa (século XIX). Destaca-se em meio a essa prática que entrelaça tempos de uma forma



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aparentemente ilógica uma alteração no relato do escritor Machado: quando, vivendo sua crise diante da constatação da traição de Capitu, Bento resolve sair sozinho, em vez de ir ao teatro como no livro, na minissérie ele vai ao cinema. O subcapítulo é chamado “Otelo”, referente à ópera que o protagonista iria assistir, porém, em vez disso, ele assiste o filme “Otelo”, dirigido por Orson Welles, do ano de 1952, incongruente com o tempo narrativo da obra de referencia. As tatuagens no braço de Capitu, ainda, em meio a todos esses tantos significantes acabam não condizendo com o tempo próprio ao relato, na formação de um discurso que diante da essência e periodização da obra, pode ser considerado incoerente e infiel. Jameson considera que essa estética hipnótica pautada nesses significantes surge como a elaboração de um indício de perda do pensamento histórico. Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas protensões e retensões em um complexo temporal e organizar seu passado e seu futuro como uma experiência coerente, fica bastante difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não “um amontoado de fragmentos” e em uma prática da heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatório. (JAMESON, 2002, p. 52).

É fomentada por meio da emergência desse sintoma uma profusão de signos, conforme os supracitados, que são permeados por uma intencionalidade na perspectiva do diretor a ser explanada, mas que suscitam uma cadeia de significantes materiais de difícil apreensão de seus enunciados pelo espectador. Figura 7 - Elementos tecnológicos inseridos em um discurso de época, que não condizem com seu contexto e geram uma profusão de signos.

Fonte: DVD Capitu.

Contrárias às proposições narrativas clássicas delegadas ao estilo literário de Machado de Assis, acrescenta-se o fato de que a descontinuidade é acentuada por tratar-se de uma produção que faz referência a um dos maiores clássicos da literatura brasileira, considerando que esse status produz uma série de noções prévias na mente do espectador. Aliado ao conhecimento precedente de que se trata de algo baseado na obra de Machado de Assis, e



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sabendo-se que “Dom Casmurro” é um conto histórico, o espectador é ainda estimulado pela identidade visual contida na abertura e nas vinhetas que transpassam a impressão de algo antigo, acabando por ser impactado pelo referido movimento lúdico entre os intervalos temporais e elementos contemporâneos inseridos de forma ritmada na narrativa. Dessa maneira, é gerada uma absorção truncada da obra, fragmentada, dado o contraste de paradigmas relativos a diferentes tempos. A mescla do clássico ao cotidiano pode implicar em certa descaracterização da obra sob um viés purista, ao por exemplo retratar uma cena de um conto machadiano em uma locação grafitada. Porém, essa prática constitui um dos aspectos característicos da estética vigente, ao se misturarem as consideradas baixa e alta cultura. Essa quebra de barreiras é antecipada pelas observações de Adorno (1975) já citadas, e hoje, Jameson considera que é Uma característica fundamental de todos os pós modernismos enumerados (...), o apagamento da antiga (característica do alto modernismo) fronteira entre a alta cultura e a assim chamada cultura de massa ou comercial, e o aparecimento de novos tipos de texto impregnados das formas, categorias e conteúdos da mesma indústria cultural. (JAMESON, 2002, p. 28).

Afim a essa questão, a trilha sonora também reafirma essa particularidade estética. Mais uma vez em discrepância com o período histórico referente à trama, a trilha é composta por músicas e estilos musicais contemporâneos em conjunto com composições clássicas, indo do rock de bandas como Pink Floyd e The Sex Pistols, perpassando por Marcelo D2, Toquinho e o som indie da banda Beirut, à Tchaikovsky. Essa colagem de tempos, como diz o diretor, que atravessa toda a minissérie, segundo ele mesmo, tem o objetivo de imprimir uma atualidade nas questões temáticas do enredo que revelam “reflexões da faceta humana” completamente pertinentes nos dias de hoje (CARVALHO, 2010), com o ponto relativo ao dilema, à dúvida assumindo um papel central nessa abordagem. As intenções conceituais de Carvalho, apesar de expressas esteticamente na obra de forma bastante contundente, não necessariamente implicam em compreensão intrínseca por parte de quem frui, quebrando a cadeia de significantes de onde advém o sintoma esquizofrênico. Visto isso, Linda Hutcheon evidencia essa miscelânea peculiar ao audiovisual contemporâneo em vista da “impossibilidade de se definir a época com precisão, em virtude da sobreposição de figurinos, cenários e equipamentos” (HUTCHEON apud MASCARELLO, 2010) na análise de “Brazil, o filme”, o qual seria considerado pósmodernista e cujas características se coadunam nesse aspecto com “Capitu”.



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A intersemiótica entre a obra literária e o audiovisual, que estimula todo esse desenvolvimento estético-conceitual, ao mesmo tempo que finca padrões de adaptação que engendram muitos julgamentos pelo valor de culto agregado ao conto machadiano, dota de liberdade quem concebe o produto pelo processo criativo que envolve a transposição de linguagens. Afim à adaptação, na busca de diálogos que afirmem a natureza contemporânea de “Capitu”, destaca-se que a intertextualidade é uma “característica deliberadamente urdida do efeito estético e como um operador de uma nova conotação de ‘anterioridade’ e de profundidade pseudo-histórica, na qual a história dos estilos estéticos desloca a história ‘real” (JAMESON, 2002, p. 47). Através desse deslocamento e da quebra do histórico por meio da descontinuidade presentes no sujeito afeito à atual dominante cultural, percebe-se que a fragmentação enlaça mais uma vez diversas nuances do objeto comunicacional em questão. Desvinculando-se de compreensões formais e demais moldes tradicionalistas orientado pela “retórica da ruptura” (HUTCHEON, 1991, p. 39) inerente ao panorama atual, a condição contemporânea de “Capitu” a embebe de um caráter plural e híbrido (Idem) que se reflete em um leque de planos no tocante à linguagem e estilo de distintas manifestações culturais. Alusivo às linguagens artísticas, percebe-se como ponto crucial uma hibridação que vai além da literatura: se dá igualmente entre teatro, ópera, dança e cinema. De início, pode-se dizer que em relação ao cinema há um diálogo que deverá ser explorado futuramente de forma mais detida dentro do viés expressionista, todavia registra-se o óbvio vínculo por tratarse de uma obra televisiva que naturalmente dialoga com o cinema, seu antecessor e genitor, uma vez que compartilham da poética audiovisual. E por hibridação concebida dentro da própria linguagem audiovisual, vê-se um cruzamento entre a ficção e o documental acusado pela profusão de imagens que “Capitu” contém. São fragmentos de filmes primevos que cortam a narrativa fazendo alusão à registros que simulam a época da história original, conforme a introdução ao personagem José Dias. Concernente ao teatro existem dois colóquios linguísticos: um diz respeito à ópera e o outro ao teatro épico, este último o qual se dá o mesmo fato de ser explorado no próximo item. Voltando nossos olhos para a perspectiva operística, então, vemos que muito de “Capitu” é impregnado pela concepção machadiana de que “a vida é uma ópera” (ASSIS, 2007, p. 28), declaradamente presente no trabalho do diretor em busca de fundar correlações entre “Dom Casmurro” e a minissérie (CARVALHO, 2010, p. 77). Os claros sinais dados a partir das constantes cortinas vermelhas que se entrepassam por algumas das cenas, a reverência de Dom Casmurro ao espectador e particularmente o momento de apresentação do conflito no primeiro episódio, com pausas dramáticas simultâneas à instrumentação sonora



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nas quais os atores ficam literalmente congelados dão o tom operístico relatado. Casmurro ainda puxa a corda das cortinas como que a presenciar uma ópera de sua própria vida, contida no universo fantástico criado dentro da dimensão ficcional da narrativa. Figura 8 - Da mixagem de linguagens artísticas em Capitu, a ópera.

Fonte: DVD Capitu.

Nesse quesito há por fim, a dança no momento em que Escobar entra em cena, quem entre cortes, diferentes cenários e planos diversos, performa passos de ballet, assimilando-se a partir disso ao gênero audiovisual da videodança, que por si só, já é uma linguagem artística híbrida (SOUZA, 2008). Essa situação constitui algo considerado até incomum para a apresentação de um personagem dentro de uma obra supostamente do gênero ficcional já que essa ação não faz parte no contexto no qual ele se encontra, já que ele e Bento se conhecem dentro do seminário. Os fatores de hibridez expostos remetem à ideia de colagem imersa na compreensão fragmentária do objeto, firmando uma linguagem plural. Não é diferente a construção do estilo, no que se refere aos maneirismos presentes na obra. A direção de arte, e especificamente a cenografia e a arte gráfica que compõe as vinhetas e a abertura nos mostram recortes e camadas de papel, reafirmando assim a identidade fragmentária que enseja a presente abordagem, confluindo com a perspectiva do acesso à memória e o conceito de uma alma em pedaços, projetada no seu entorno. Sobre isso, sumariamente destaca-se o cenário minimalista, de poucos objetos presentes, portas e janelas simplesmente suspensas no espaço, cujas paredes não existiam para que dividissem os ambientes, figurando uma desconstrução do cenário formal e dando substância à natureza imaginativa da esfera ficcional, da mesma forma como à névoa que permeia a reconstrução dos fatos na construção de um jogo lúdico com quem frui ao utilizar-se de projeções de paisagens nas paredes e



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desenhos no chão que fingem ser o que mostram devido a um achatamento da memória. A realidade portanto estetizada particularmente vivida por Dom Casmurro configura diante da perda da noção de uma dimensão concreta, um universo do simulacro (BAUDRILLARD, 1981), condição inerente à produção imagética contemporânea. Sem nos aprofundarmos na direção de arte que será ponto crucial no estudo alusivo ao referente expressionista, detenhamos nosso olhar às vinhetas. Em um fluxo contínuo, vê-se um movimento progressivo de papéis sobrepostos que são consecutivamente rasgados, imagens por cima de imagens, em uma profusão acelerada de signos. Para Jameson (2002), esse fluxo estimulado pelo suporte eletrônico cria uma dimensão do “real” dentro da tela que traga o espectador diante de sua mobilização através dos sentidos, incitada pela apreensão da capacidade ótica, estimulando nossa recepção ao nos submergir sensações simuladas. A manipulação sensorial através da imagem é clara em momentos nos quais o diretor opta por simular sensações através do recurso imagético suscitada por técnicas de edição e cinematografia, como na cena em que Bentinho vai até a varanda e sente o alvoroço das revelações acerca do seu relacionamento com Capitu, materializado esteticamente pelo uso da luz quente em encontro com o vento em cena e o leve movimento da câmera deslizando, que declaravam o “bálsamo” descrito, mas mais distintamente no célebre instante em que fita os olhos de Capitu pela primeira vez. Nessa ocasião ocorre uma profusão de imagens que dão a sensação de embriaguez ou até hipnose dentro de um caleidoscópio que se forma pelo par de olhos “de ressaca”. Figura 9 - O fluxo de imagens e a simulação sensorial do olhar de Capitu.

Fonte: DVD Capitu.

Sendo assim, no que tange à fruição, pode-se dizer que os elementos de fragmentação enumerados delineiam uma percepção fragmentária da obra, que parte de um estranhamento. Imagens de tempos que se entrecruzam, interrupções na narrativa dado o tempo psicológico,



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as pausas dramáticas, mescla de linguagens dentre os outros fatores já citados que constituem esse universo tão único formado ainda tem a inserção de outras desconstruções formais. A inserção física do narrador na cena é uma delas, conforme descrito, diante da convivência e interação dele com si próprio na realidade em que criou, que entretanto não é o real. Além disso, vê-se uma desconstrução que visa a meta linguagem ao identificarmos contra-regras em quadro, o que não favorece a estrutura naturalista a qual a ficção geralmente pretende firmar. Figura 10 - A desconstrução metalinguística confrontando uma esfera ficcional.

Fonte: DVD Capitu.

Foram constatados diversos traços que concebem uma estrutura contemporânea (pósmodernista) na obra, unificada pela ideia de fragmentariedade. Desse todo, há a ausência da análise da minissérie no que se refere à colagem de estilos, que engloba a prática do pastiche, a ser feita no próximo subcapítulo minuciosamente, porém que é válido que seja aqui ressaltada porque também está inserida na concepção da fragmentação ao dizer respeito a apropriação e sobreposição de vários estilemas, traços estilísticos isolados que dialogam entre si como recortes, conforme a compreensão do diretor, que ressalta uma fundação dadaísta em suas eleições, montadas a partir dessa proposta de “assemblages, colagens, repetições” (CARVALHO, 2010). A elaboração dessa pluralidade esta relacionada, segundo Luiz Fernando Carvalho (2010), com um pensamento antropofágico advindo do movimento modernista brasileiro adotado por Machado de Assis, relação esta que também estaria preservada por ele mesmo ao dialogar com a história da arte mundial em conveniência com a aplicabilidade dos referentes no contexto em que se deseja, ação que na abordagem proposta pelo trabalho, é afeita ao pastiche. Diante desse ato de antropofagia, dados os fins da presente pesquisa, ressalta-se que



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ao abraçar precocemente o hibridismo e o sincretismo, Robert Stam (GUINSBURG, 2008) diz que o movimento modernista brasileiro foi pós-moderno avant la lettre. “Capitu” é assim, feita de camadas, sobreposições e restos que integram um todo, antes original e genuíno, da mesma forma como Dom Casmurro é composto pelos restos de quem um dia foi Bento Santiago, feito de partes, níveis, fragmentos, como sua história nos revela.

5.2 A PROPAGAÇÃO DAS SOMBRAS: DIÁLOGOS ESTÉTICOS Aí vindes outra vez, inquietas sombras. (ASSIS, 2007) No que foi ressaltado em busca de salientar a constituição fragmentária de “Capitu”, encontra-se inerente a sua construção a estética do pastiche. Conscientes da representatividade social, política, estética e cultural dos movimentos vanguardistas da década de 1920, têm-se a configuração de um profícuo momento de produções estilísticas ao qual todo o processo criativo atual parece se remeter, na compreensão de Jameson: Num mundo em que a inovação estilística já não é possível, só resta imitar os estilos mortos, falar através de máscaras e com as vozes dos estilos do museu imaginário (...). Assim, o peso de toda a tradição estética modernista – agora morta – também “oprime como um pesadelo no cérebro dos vivos”, como disse Marx num outro contexto. (KAPLAN, 1993).

Dentre o universo de colagens composto que origina uma propositada “sintonia perfeita com diversas correntes” (CARVALHO, 2007), no que concerne às referências estilísticas, percebe-se um diálogo estético sobressalente com a vanguarda expressionista alemã em termos visuais, temáticos e conceituais, a começar pelo fato de que tudo o que permite o extravasamento da estrutura narrativa psicológica que se dá em conformidade com a ação do tempo e da memória para os âmbitos de materialização estética advém dos pressupostos expressionistas que permitiram a expansão do estado de espírito para as características de todo o seu entorno. Propriedade basilar do formalismo expressionista, acarretou implicações na ordem de como o sujeito se relacionava com a obra. A identidade visual que dá forma à vanguarda expressionista alemã foi construída em concomitância com inovadores preceitos firmados na relação estabelecida entre o indivíduo e



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a obra de arte, cujas bases são fundadas em novas proposições no âmbito da fruição. Evoluise em termos de apreciação do objeto ao ser estabelecida a mediação não contemplativa para com o mesmo, a qual agregada ao movimento, adquire um caráter sumariamente revolucionário pela quebra do paradigma antes estabelecido pela arte clássica. A estética da participação que se configura a partir de tal momento realoca o indivíduo para além do seu papel passivo, cabendo a ele, portanto, discernir o conteúdo agregado ao objeto artístico a partir de sua percepção múltipla, gerada existencialmente por cada sujeito, conforme é abordado por Fernando Rosa Dias (2012). A intensidade da obra expressionista inebria aquele que antes detinha-se a contemplá-la. Estabelece-se a vivencia interior do material exterior. A arte, enquanto manifestação emocional do sujeito, protagoniza uma mediação entre a captação e a devolução de real, pelo que o sujeito (interior) projeta-se e atua na realidade através de uma representação que já não é aparência e película do mundo, mas emoção e ação vivida pelo sujeito. (DIAS, 2012, p. 151 ).

O processo de ruptura com as relações tradicionais entre os sistemas de representação é uma articulação realizada pelas novas formas de reproduções simbólicas propostas pelo expressionismo: deformações e negação da forma, no que diz respeito a uma linguagem estilística formal. “Capitu” apropria-se dessa estética do feio, onde não há medida harmônica, tampouco boas proporções, conforme seus próprios desígnios conceituais em nome de uma percepção artística engendrada a partir de concepções visuais antes revolucionárias. Primária na pintura expressionista e hoje consagrada, essa estética, sob uma perspectiva adorniana, parece se realocar no plano da contemplação, subvertendo a essência de sua origem no que diz respeito ao processo de mediação que se instaura na recepção de produtos cunhados pela indústria cultural, que nos quer e nos faz passivos. Nossos olhos aparentam aquiescer mediante a fruição e a estética do feio torna-se um ornamento. Porém, ressalta-se que “o que sustenta o modernismo na arte é antes um programa ou ideologia do que qualquer forma particular identificável de prática: por isso, o que subjaz o debate sobre o pós-modernismo é uma mudança desse programa” (CONNOR, 1993, p. 70). Detenhamos então, em um primeiro momento, nossos olhares para a sucessão elementos vinculados ao expressionismo que “Capitu” incorpora. A afinidade da obra estudada com a estética expressionista alemã no que tange as eleições do diretor, pode se dever à ligação estabelecida com a mediação não contemplativa, dessa forma, para fomentar um processo de empatia com os próprios personagens e seus



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dramas. Sabe-se que as obras audiovisuais contemporâneas firmam seus propósitos em não nos ater no ato de ver a obra, mas sim nos colocar diante da mesma para experenciá-la, sentila. Luiz Fernando Carvalho em entrevista concedida para a presente pesquisa explica que as bases do diálogo estabelecido entre a vanguarda expressionista e a série estão firmadas na objetivação de uma mediação participativa: A minha tentativa foi deixar a “fantasmagoria” da minha Capitu, a “fantasmagoria” do meu Dom Casmurro num ponto tal que sejam capazes de dialogar com a imaginação do espectador, como se estes personagens fossem apenas uma máscara à disposição de todos nós. (CARVALHO, 2013).

Isso implica no uso de toda uma linguagem em favor de um processo comunicacional de abordagem do receptor devido as aproximações temáticas. Nas obras expressionistas, a estética do feio é utilizada de forma recorrente para dotar o ambiente de uma atmosfera carregada de sentimentos e emoções. No filme “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), a estrutura narrativa conta com o recurso denominado de “históriamoldura”, constituída portanto de três partes das quais se destaca a central como o delírio do protagonista Francis, construída visualmente por linhas sinuosas, efeitos de luz e sombra e demais estilemas que consagraram o estilo expressionista, com a finalidade de agrega-lo a uma perspectiva distorcida que busca incitar no espectador a inquietação, suspense e insegurança latentes na trama em conformidade com as propostas de mediação citadas (PENEDA, 2013, p.3). Da mesma forma que os referidos traços estéticos são responsáveis por suscitar uma relação entre o universo de Francis e Caligari com o espectador, pode-se dizer que o mesmo efeito é almejado perante a atmosfera criada em “Capitu” e seu público, de maneira a tornar as emoções e o contexto que circundam o desenlace dos fatos, passiveis de serem identificados pela audiência, uma vez que estão devidamente ambientados e materializados conforme a estética expressionista já consagrada os auxilia. O plano o qual se repete no decorrer da primeira parte da série quando Dom Casmurro se posiciona como narrador da história e compartilha seus sentimentos, geralmente nos revela apenas parte do seu rosto, estando a outra encoberta por sombras, e todo o entorno do quadro distorcido. Os enquadramentos mudam, mas essa estética é sempre presente enquanto o protagonista narra. Obscuridade, mistério, depressão e perturbação tomam a diegese, características aclamadas pela linguagem visual descrita, incumbida de transpassar essas sensações ao público através de uma estética reconhecível.



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Figura 11 - A visualidade obscura suscita sensações no público em conformidade com a linguagem do gênero.

Fonte: DVD Capitu.

O impacto visual do qual o objeto se vale conflui com padrões narrativos constantemente explorados por produtos audiovisuais de enredos similares em busca de uma experiência do público que já tenha afinidade com uma linguagem do mesmo gênero. Do cinema expressionista ao film noir, e por fim nos blockbusters de terror, há a visualidade da utilização de sombras, distorções e elementos afins que são articulados no sentido de simular as mesmas impressões no público, e que ao longo do tempo legitimada como padrão, cria uma identidade cognoscível para o gênero. Logo, o diálogo estabelecido entre as obras por meio das temáticas que dizem respeito à memórias, sentimentos recônditos e alucinações de Francis e Dom Casmurro fazem com que a materialização de suas atmosferas em forma de produto comunicacional se realizem em conformidade com parâmetros estéticos de produção já estabelecidos, seguindo uma abordagem psicológica dos personagens ao adentrarem seus respectivos universos, permeados por transtornos e perseguições, sejam elas reais ou fantasmagóricas. As duas narrativas são conduzidas por uma visão parcial, humana e frágil de seus protagonistas, e as implicações psicológicas dessa forma de consciência ganham a expressividade visual por meio da estética expressionista enfocada. Para tanto, as eleições no âmbito da direção de arte buscam dar forma a um ambiente que reflita os sentimentos que pairam sob a trama. De “O Grito” de Munch para os filmes, a externalização e concretização dos perfis psicológicos dos personagens tem ação direta na forma como o ambiente que os circunda se apresenta. A projeção das emoções, do mundo psíquico no qual os personagens se encontram, e a própria esfera emocional da trama tornam-se característica visual latente, projetada nos cenários. Em “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), a cidade cujo cotidiano submerge em uma onda de suspense e assassinatos, é retratada em perspectiva distorcida e obscura, nitidamente



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perceptível enquanto as ações aterrorizantes de Cezar, sonâmbulo em poder de Caligari, se intensificam ao raptar Jane e sair andando dentre as árvores distorcidas, caminhos sinuosos e angulares, dentre outros momentos, por exemplo. Os transtornos e sensações afins implicam em gráficos oblíquos que compõem o cenário, assim como no caso da desconstrução em “Capitu”, no qual as paredes destruídas do casarão que encontra-se deteriorado, e rodeiam constantemente o protagonista durante sua narrativa, representam a vida de Dom Casmurro: abandonada e em pedaços, os quais constituíam uma memória que fazia com que ele mergulhasse em si mesmo, em sua nostalgia. Figura 12 - A projeção das emoções latentes no cenário em “O Gabinete do Dr. Caligari” e em “Capitu”, respectivamente.

Fonte: Filme O Gabinete do Dr. Caligari; DVD Capitu.

Em busca da construção dessa linguagem estética, foi escolhida uma única locação para dar ensejo à realização da proposta conceitual cunhada: um grande salão em ruínas, que teve suas paredes recobertas de camadas de papel, processo constante na elaboração cenográfica da minissérie. Essa atribuição é evidente na cena do subcapítulo em que Dom Casmurro narra o momento em que considerou se suicidar, no auge da sua crise ao perceber que Capitu o traiu com o melhor amigo Escobar, recostado em uma parede repleta de pedaços de papel que parece traduzir o seu estado emocional: frágil, despedaçado, confuso. Tudo ao seu derredor é feito de camadas, assim como a alma humana. À propósito dessa eleição, o diretor constata que “o velho palácio em ruínas passou a representar um pouco da alma da história de Dom Casmurro” (CARVALHO, 2008, p. 82). Essa opção referente às filmagens associa-se diretamente com a forma conceitual de representação originária do movimento expressionista alemão, cujos ambientes concebidos carregavam-se da atmosfera psíquica dos personagens, frequentemente expressando-se em destroços e



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distorções, o que corrobora a intertextualidade da obra. Clamando para si tais pressupostos estilísticos, a atmosfera psíquica de Dom Casmurro que transcende seu próprio corpo e finda por contaminar o ambiente, se externaliza de forma material constante durante os seus relatos, conforme os exemplos citados. Diferentemente da linguagem naturalista, era um cenário aberto à imaginação dos espectadores. O prédio em ruínas foi apontado pelo diretor como o lugar perfeito para contar a história de um homem em ruínas, que não consegue resgatar o que perdeu. Bentinho se transforma em um prisioneiro patológico de sua própria imaginação e memória, um “doente imaginário”, como frisou Luiz Fernando Carvalho, parafraseando Molière. (CAPITU, 2009).

Aliada ao objetivo da direção de arte no propósito de configurar e transmitir sentimentos para além do personagem está a cinematografia, de forma que a linguagem estabelecida também demanda a frequente utilização de um jogo de luzes em favor das sombras como recurso fotográfico em situações de suspense, para retratar algum tipo de coerção, ameaça ou um estado de espírito relativo à obscuridade, tristeza, solidão ou cólera, técnica esta advinda do que o legado expressionista oferece às produções que lhe sucederam. Em “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), no momento do assassinato de Alan, nos deparamos apenas com a sobra do assassino, e agregando referências à análise, em “Nosferatu” (1922), na situação em que Hutter encontra-se encurralado pelo temível vampiro, a sombra é igualmente utilizada como recurso estilístico para suscitar o temor, da mesma forma que eu “Capitu”, a fantasmagoria do passado de Dom Casmurro é demonstrada pelo uso das sombras, que dançam ao seu redor durante seu confronto com suas reminiscências. As projeções de sombras também ganham relevância na história. Quando Dom Casmurro está em sua casa – uma reprodução da antiga casa da rua Matacavalos de sua infância -, sua família, Capitu e todos os personagens que povoam sua memória aparecem como sombras projetadas em seu refúgio. (CAPITU, 2009). Figura 13 - Uso da sombra na cena do assassinato em “O Gabinete do Dr. Caligari”, do confronto em “Nosferatu” e das memórias que assombram Dom Casmurro em “Capitu”.

Fontes: Filme O Gabinete do Dr. Caligari; Filme Nosferatu; DVD Capitu.



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Sendo a casa de Dom Casmurro uma reprodução de onde morava quando jovem, isso por si só já clama certa fantasmagoria, a presença de algo que é ausente diante dos que pareciam estar lá outrora. A construção por ele encomendada deixa transparecer o quanto ainda vive dos acontecimentos do passado, na busca um retorno até mesmo material a ele. Esse psiquismo próprio do personagem foi traduzido imageticamente por meio da profusão de sombras em cena, evocadas por ele mesmo ao proclamar “aí vindes outra vez, inquietas sombras!”, revirando suas lembranças e trazendo todos aqueles que habitam sua memória em projeções. O reconhecimento desse diálogo é basilar para a averiguação da maneira como o expressionismo se estabelece enquanto referente, posto que esta compõe uma de suas características visuais mais marcantes tanto no cinema como no teatro. Constata-se também que as duas fases do romance, a infância e a vida adulta de Bento, são marcadas por diferentes padrões fotográficos na imagem: “a infância é mais luminosa, de cor branca, sem muita interferência de gelatinas artificiais; a maturidade ganha cores mais intensas, como o vermelho, e as imagens são mais densas e contrastadas, com áreas claras e escuras compondo o quadro” (CAPITU, 2009). Na sequência em que Bentinho reconcilia-se com Capitu ao pé do poço ainda antes de ir ao seminário, é visível a utilização de tons claros no figurino, que confluem com um trabalho de iluminação que prioriza a simulação de uma luz natural por todo o cenário. Comparativamente, o último encontro entre Bento e Escobar traz um ambiente de tonalidades escuras e áreas específicas de contraste, devido uma maior proliferação de sombras em quadro. Também é presente a utilização de várias gelatinas em uma mesma cena, que dão uma contra luz geralmente amarela, verde ou vermelha no rosto dos personagens. Figura 14 - Diferentes técnicas de iluminação e direção de arte marcam diferentes momentos da vida de Bento.

Fonte: DVD Capitu.



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Mas, de uma forma geral, afora a relação das fases da maturidade que permeiam a trajetória do protagonista, as mudanças na temperatura de cor também estão associadas aos seus sentimentos, como no momento do seu segundo ciúmes em que a cena toda se banha de vermelho diante de seu desespero e indignação com Capitu ao imaginar que ela teria interesse em outro. Isso acontece durante a primeira fase da vida de Bentinho, ainda, entretanto, em vista da projeção dos sentimentos na materialidade visual da obra por meio da técnica, são usadas gelatinas em cores quentes para dotar a trama da devida intensidade, transmitir o aspecto denso que a situação representa. Figura 15 – O uso de gelatinas na cena.

Fonte: DVD Capitu.

Com essa intencionalidade, de trabalhar a estética visual para criar uma atmosfera afim com o psiquismo do personagem, há a proliferação de imagens tecnicamente subexpostas, ou seja, escuras. Na mesma sequência recém descrita, contorcendo-se diante do vislumbre de Capitu com um rapaz qualquer da vizinhança, Bentinho imagina tê-la em suas mãos, ou entre os dentes, para torturar-lhe e fazê-la confessar a traição, implorando seu perdão em seguida. Diante da vontade de cometer um ato de violência, vê o sangue de Capitu vivo em suas mãos, quando então de súbito não só sua mente, mas toda a cena é tomada de uma enorme escuridão que reflete o estado sombrio de sua alma. Da mesma forma acontece na sequência em que narra as visões femininas as quais de forma frequente lhe assombravam durante algumas das noites em que estava no seminário, evocando arrebatamento, ilusão e mistério para o corpo da obra.



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Figura 16 – A subexposição da fotografia.

Fonte: DVD Capitu.

A direção de fotografia em “Capitu” frequentemente opta, também, pelo uso de objetivas que distorcem a imagem, dando um caráter alucinatório à perspectiva imagética apresentada por conta do caráter emocional no qual toda a estética da minissérie bebe em vista da sua trama e motivações do protagonista. As imagens são assim dotadas de uma visão subjetiva

dos

acontecimentos,

recurso

cinematográfico

engendrado

pelo

cinema

expressionista no qual a câmera simula o olhar de um personagem. Para tanto, foi criada durante a produção da obra uma lente que transmitisse ao espectador o aspecto visual então desejado por meio de técnicas que, juntando uma retina à água, construíam uma dimensão ótica a partir de um efeito da refração. O diretor chamou sua criação de “lente Dom Casmurro”, e ela dotava as cenas de um ponto de vista que suprisse a manifestação estética do seu olhar para as situações que se desenrolavam, vinculadas as suas memórias. “A lente foi encaixada à frente da câmera para dar à imagem uma textura aquosa, como o mar de ressaca dos olhos de Capitu, e também simbolizar o estado psicológico de Dom Casmurro, personagem que flutua ou é arrastado pelas águas do tempo” (CAPITU, 2009). A distorção provocada pelo uso de lentes que contribuem com a perspectiva de alucinação é utilizada em diversos momentos: em uma das primeiras sequências da série, quando é relatada a origem do apelido “Dom Casmurro” e é mostrado que os amigos de Bento logo acostumaram-se a chamá-lo assim, constitui um exemplo do uso da lente em plano subjetivo, igualmente utilizada na exibição do incidente que deu origem às visões femininas que levaram Bentinho ao delírio, na situação em que se deparou com uma moça caindo na rua, cuja saia subiu. Ratifica-se por meio dessa profusão de técnicas fotográficas em



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consonância com o conceito da obra a expansão do espírito do personagem como um aspecto relevante afeito a uma estética fundada no expressionismo. Figura 17 - A relação da narrativa visual com a trama.

Fonte: DVD Capitu.

À essa análise, em parâmetros de referencialidade, faz conjunto a própria caracterização dos personagens. Da postura ao aspecto, perpassando pelas vestes e olhar, Dom Casmurro transpassa o transtorno psicológico vivido através do seu processo de rememoramento. Sua linguagem corporal remete à ícones do cinema expressionista alemão, como o personagem Nosferatu, mas em muito se assemelha com Cezar, o sonâmbulo de Caligari, com quem compartilha o semblante devido à maquiagem, que faz com que ambos carreguem consigo um aspecto doentio. Figura 18 - Caracterização do personagem alusiva ao expressionismo alemão (à esquerda, frame de Cezar em “O Gabinete do Dr. Caligari”) em “Capitu” (à direita, Dom Casmurro).

Fonte: Filme O Gabinete do Dr. Caligari; DVD Capitu.



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Figura 19 - A linguagem corporal de Cesar e Dom Casmurro, de encenação exacerbada.

Fonte: Filme O Gabinete do Dr. Caligari; DVD Capitu.

O movimento expressionista no teatro, centrado em retratar o “ser da angústia” em sincronia com o panorama moderno, buscava a tradução artística do sujeito possuidor de uma identidade fragmentada, (VASQUES, 2007), na mesma linha psicológica e linguagem através da qual a mente de Dom Casmurro se expressa: Será natural que a forma cênica que corresponde a este ideal seja marcada por uma forte abstracção estética, por um caráter eminentemente sintético (...), que seja fortemente teatralizada, expressiva, exteriorizada em símbolos distorcidos, em actores mecanizados (...), maquilhagem estilizada, em feixes de luz colorida que decompõem o espaço cênico, recorrendo-se à batuta magistral do encenador que ocupava, firmemente, o pódio de intérprete da obra teatral. (VASQUES, 2007).

A explanação da autora nos permite firmar a verificação de um quadro de semelhanças entre “Capitu” e a estética teatral expressionista de acordo com o que já foi descrito da minissérie, em conformidade com os pressupostos cinematográficos da vanguarda abordada. A recusa do realismo imitativo é pois um eixo entre as estéticas em questão. A inserção do ator na cena expressionista faz com que ele seja acima de tudo a promoção de um símbolo, característica que reafirma a intertextualidade proposta pelo estudo. “Em vez de retratar indivíduos, todos os personagens encarnam impulsos e paixões – figuras alegóricas necessárias para a exteriorização de visões interiores” (KRACAUER, 1988), descrição eminentemente alusiva a Dom Casmurro. O personagem apropria-se de um sentimento e torna o seu corpo e espírito todo ele: afora ser alguém, é portador de uma ideia, sentimento ou destino, abstraindo-se os atributos do real (VASQUES, 2007). Sua identidade, impregnada por determinada emoção é tão intensa, que lhe transborda. O “homem da angústia” pode ser visto em Dom Casmurro como o próprio, ou quem sabe tomando para si a representação simbólica de um todo que transmite a dúvida da traição, ou o puro ciúme de Capitu. Na cena



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já descrita na qual o quadro torna-se vermelho diante do furor de uma suposta relação de Capitu com outro, Bentinho nitidamente incorpora os ideais de cólera e ciúmes. Dom Casmurro também, com suas roupas escuras, postura deformada, expressão sombria e olhos borrados configura a materialização da própria agonia, aflição. Esse transtorno sentimental lhe permite oscilar entre a calma, e após um corte, o desespero que lhe acossa, proclamando repetidamente “aí vindes outra vez, inquietas sombras”. O herói expressionista é então descrito por Vasques (2007) como um personagem sem desenho psicológico traçado, sem nome ou com nome que não designa sua identidade pessoal, um herói que não sabe quem é, que se procura, fraco, perseguido, culpabilizado, esmagado por forças ocultas, por sombras ou por fantasmas atormentadores. Nessa constatação, é facilmente identificável o perfil do protagonista da minissérie: sua psique não delineada, fragmentária, faz conjunto com um apelido que lhe foi dado mas não revela quem verdadeiramente é diante de um passado que lhe é fardo. A sequência de introdução do personagem Dom Casmurro logo no primeiro capítulo é alusiva a esse quadro, em que ele dá um primeiro vislumbre das tristezas que lhe assolam ao apresentar a trama, rememorando sua família em meio a uma dança de sombras ao seu redor, que também lhe tragam. O gênero vanguardista do teatro estudado, tendo como cerne a abordagem do isolamento do homem em relação ao seu entorno (SZONDI, 2003), nos remete ao aparente transtorno esquizoide incorporado por Dom Casmurro. O movimento teatral expressionista, dando eco ao teatro épico segundo Szondi (2003) aponta, engendrou muitos desdobramentos formais em termos de narrativa que são reconhecíveis na formulação da trama, como a atitude de incitar a plateia a tomar decisões contrapondo-a à ação que se discorre e estimulando-a a descobrir coisas e interagindo, levando-nos não só a pergunta sobre a traição de Capitu como também com a dimensão imaginativa do público a ser abordada, a qual o diretor da minissérie intenciona explorar. Desde a narrativa de Machado, a interpelação do público está presente nas falas do narrador, que dirige-se diretamente ao leitor. Todavia, ela é elevada a um outro nível na presença do jogo lúdico conduzido por Carvalho. Em “Capitu”, cabe a nós respondermos se Bento foi traído ou não, da mesma maneira como somos convidados a pensar os cenários projetados que comportam as sequências em que as crianças brincam, e também os homens de papelão para quem Capitu dança, ou que estão parados na rua durante o passeio de Bentinho com José Dias. A própria “presentificação” (CARVALHO, 2007) do narrador em cena, quem conta sua história dirigindo-se diretamente para a câmera durante toda a minissérie, representa uma fuga da linguagem naturalista que põe o público em diálogo com o personagem e a diegese, como se este pudesse fazer parte da trama em vez de se



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contentar a observar como seria comum por parte das narrativas clássicas que sempre procuraram estabelecer uma linguagem “invisível”, que não fosse sentida pelo público para parecer o mais real possível. Materialmente, corroborando as relações referenciais alegadas, o diálogo com a dramaturgia expressionista se expressa ainda em torno da construção do espaço cênico em “Capitu”. No teatro expressionista, ele “torna-se frequentemente um vazio (...), visando a criação de um espaço indeterminado que permitisse ao espectador desenvolver o seu poder criativo” (VASQUES, 2007). Conforme já denunciado por meio da descrição da construção fragmentária do mesmo, portador de pouquíssimos objetos de cena, estimulando a participação do espectador pela imaginação. Igualmente, a iluminação suscita uma estetica vinculada à ruptura na figuração de uma luz anti-natural e projeção de sombras no palco, precursora ao que foi apropriado pelos filmes expressionistas e que contemporaneamente, é apropriado por “Capitu”. Levantado o leque de similitudes estéticas, entretanto afora o interesse de esgotar o tema e na busca de revelar as principais diretrizes por meio das quais o diálogo entre “Capitu” e a vanguarda expressionista alemã pode ser conduzido, a apropriação imagética contemporânea tem desdobramentos filosóficos acerca desse processo, que transcendem a constatação de técnicas visuais, conceituais ou estruturais afins. Em “Capitu”, descontextualizado, o expressionismo cede lugar às suas construções e propósitos de origem em nome de uma apropriação estética, que deixa escapar a essência das intenções de sua deformação. Isso se deve tanto ao processo de canonização do que um dia foi revolucionário quanto à tendência da autonomia estética vigente na contemporaneidade. Portanto, “Capitu” encontra-se como objeto de destaque da materialização de um processo criativo pós-moderno. A linguagem concebida por cima da interrelação demonstrada desloca em vários aspectos uma estetica particular a um momento histórico e de construção inerente a um indivíduo puramente moderno. Hoje, longe de sua origem permeada por ideologias, psiquismo próprio e demais motivações políticas, seu entorno parece ser descartado em nome de proposições mercadológicas que agregariam valor aos seus produtos em vista do consumo, reflexo da esfera econômica que encobre o âmbito das produções culturais, principalmente se tratando de um produto televisivo. Essa dinâmica particular de referencialidade com estilemas modernos é vinculada ao pastiche, máscara linguística, a fala em uma linguagem morta. Uma prática neutralizada de tal imitação conforme Jameson (2002). Na percepção desse autor, “o vídeo e a TV representam, na sua própria forma, desafios à hegemonia dos estilos modernistas” (CONNOR, 1993) uma vez que eles eram pautados na originalidade criativa, na



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distinção do traço, cujo nascimento se deve unicamente pelo contexto que os desencadeou. Apropriados esses estilos, as imagens são reificadas: não mais dizem respeito ao que eram vinculadas contextualmente outrora, recaindo na perda do pensamento histórico. Questiona-se o sentido existencial das propriedades visuais expressionistas distanciadas da construção e ruir da modernidade, longe do horror e gritos da I Guerra Mundial. Esse é um problema levantado por muitos acadêmicos, que diz respeito à perda do espírito genuíno da vanguarda em detrimento da conservação das leis de mercado ditadas pela indústria cultural. A lógica do simulacro, que transforma realidades em imagens de televisão, replica, reforça e intensifica a lógica capitalista (JAMESON, 2002). A ruptura pós-moderna projeta a instabilidade do estético no âmbito das manifestações culturais mediante essa quebra do vínculo do referencial com o referente. Os produtos artísticos individuais do modernismo se proclamam independentes de toda referência; como já não tem o papel de repetir ou reproduzir o mundo, eles são signos puros e representam apenas a si mesmos (CONNOR, 1993). Por esse decurso, o “ser da angústia” encontra-se excluído do seu entorno. Um debate aclarado sobre o expressionismo revela pressupostos teórico-políticos que não podem ser ignorados mediante a sua posição (MACHADO, 1998). A reconstrução desse quadro histórico subjugado na contemporaneidade pelas heranças técnicas e visuais do movimento é inerente às crises e transições pelas quais passava a República de Weimar, assim como as tensões relativas à ascensão do fascismo. O surgimento de uma nova arte, de vanguarda, que negava a cultura do passado num embate contra os padrões burgueses imperialistas (MACHADO, 1998), a tomada de uma posição ideológica/política com pinceis e canetas em riste figuram um caráter de profunda historicidade ao movimento que dão a sua razão de ser, da qual derivava a “revolta subjetiva no expressionismo, bem como a mistificação abstrata da ‘essência’ das coisas expostas de maneira expressionista” (MACHADO, 1998, p. 176). Por isso, inovador na ruptura estetica da abstração e da ausência de objeto, tornou-se cânone, referência que hoje se presentifica por meio de obras intertextuais como “Capitu”, contrário ao que propunha o seu verdadeiro significado, uma vez que “destruiu a rotina e o academicismo em que as obras de arte haviam caído. No lugar da eterna ‘análise formal’ do objet d’art, ele voltou-se ao homem e ao seu conteúdo que se esforça por encontrar sua expressão mais autêntica possível (MACHADO, 1998, p. 181). As compreensões adornianas dos meios de comunicação em massa, considerando-se que a minissérie é um produto televisivo, não permitem que seja viabilizada uma linguagem autêntica tampouco o estabelecimento de uma quebra na análise formal do objeto artístico. A



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linguagem dada às massas é julgada sobretudo como facilmente digerível, para que o maior número de pessoas possa compreender, e com facilidade consumir. O referente parece tornar-se cada vez mais distante. A apropriação do traço isolado implica na perda das suas origens não só históricas, como estéticas. Os estilemas reificados não trazem consigo o vislumbre de uma arte inspirada na cultura africana, no primitivo, no gótico. É importante a compreensão de que a concepção do expressionismo não era alusiva a formulações meramente técnicas ou estilísticas, muito menos ao aprazível, e que cada aspecto visual e estrutural se justificava perante seu contexto. Objetivamente, continha sombras arcaicas, luzes revolucionárias em confusão, faces sombrias de um Orco subjetivista e não dominado, faces iluminadas de futuro, uma rica e firme expressão de humano. Uma arte, que não estava de acordo, nem com as formas tradicionais nem, sobretudo, com a realidade que a rodeava, assolou o mundo com uma guerra. Guerra que, naturalmente, não tinha outras armas que não fossem o pincel e os tubos de tinta, o grito direto e o seu campo de batalha era a tela ou o papel de partitura impressa. E a força que fazia a guerra era o puro sujeito, a necessidade e a selvageria emocionais do sujeito, que, com sua lanterna mágica, se projetava num mundo aparentemente sem objeto. Numa mescla possível só na Alemanha (...). (MACHADO, 1998, p. 187).

Edificado em torno do humano, a validação desses vínculos ideológicos, políticos e até existenciais de disposições puramente modernas e alemãs representavam o subconsciente daquela sociedade (KRACAUER, 1988). Distanciada do que lhe é particular, a vanguarda em questão presente em “Capitu” encontra-se ainda inserida em uma linguagem estetica plural, que segundo visto entrelaça uma gama de referências, culminando na superação da univalência modernista (CONNOR, 1993) em oposição ao fato de que cada vanguarda tinha particularidades bem específicas, inconfundíveis, agora anuladas, as quais seriam malmente reconhecíveis entre si em produtos contemporâneos. O viés dos estudos citados que abordam a conduta da indústria cultural e a hegemonia do sistema capitalista nos agregam a noção de que a apropriação do movimento expressionista o coloca a serviço do interesse de simular um objeto artístico genuíno em função do interesse de determinado público que se afinize com o consumo de produtos dessa natureza, diante da necessidade de se afirmar como diferenciado intelectualmente. Assim, a prática do pastiche que engloba a elaboração estética de “Capitu” compartilha a obra com o conceito de kitsch, uma vez que, ordenado pela simulação dos efeitos de vanguarda a partir da subversão dos movimentos históricos em estilos esteticamente reconhecíveis, é passível de proporcionar a fruição fácil demandada pelo cotidiano (GREENBERG, 2005). Essa compreensão é



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característica ao produto televisivo com mais veemência do que qualquer outro tipo de produção audiovisual: a televisão é um dos, senão o maior alicerce da indústria cultural e do capitalismo tardio, a qual em decorrência da modernidade, encontra-se à disposição do homem comum dentro de sua casa como um acesso simples e rápido ao entretenimento. Não deve pois requerer esforço para a compreensão do seu conteúdo, à medida que objetiva atingir o maior número possível de espectadores, achatando muitas diferenças, para que a atividade econômica vinculada à produção se torne rentável dentro de uma programação limitada em termos de significado crítico, mas abrangente em seu alcance. Como noção de uma audiência homogênea já é coisa superada, em vista da segmentação do consumidor, são traçados perfis destes que aglomeram pessoas por grupos de interesses, e quando se fala em kitsch, a proporção direta para este é o público midcult. Inserida em uma economia do signo, a concepção visual de “Capitu” cunhada a partir de influências diretas de uma estética de vanguarda agrega-lhe um diferencial por fazer referência a uma arte moderna que tem certo status proclamado, valores intangíveis direcionados a percepção desse público que faz questão de sentir-se intelectual, de corresponder-se com uma cultura média a qual aspira superioridade, simulacro de arte. Pela sua construção referencial, “Capitu” é dotada de uma linguagem diferenciada, mas apesar da produção ter características que fogem dos padrões televisivos, tem a finalidade de atingir um público mais segmentado, já que o posicionamento da empresa Rede Globo, assim como qualquer outra, é fundamentalmente procurar adaptar-se constantemente às tendências mercadológicas e à opinião pública para garantir sua liderança no segmento da TV aberta brasileira (BRITTOS e SIMÕES, 2009). Sob a vista do midcult, a minissérie não se encontraria nivelada a uma telenovela, todavia também não demandaria uma fruição complexa afeita a uma obra de arte, em sua compreensão mais tradicionalista. Nesses parâmetros, “Capitu”, veiculada no fim do horário nobre, que perdura das 18h até 00h, vê-se atrelada à especificidades comerciais. Inserida em meio a esses propósitos, televisionada, despolitizada, reificada, o senso crítico da vanguarda e sua historicidade são como que descartados. “O vídeo exemplifica de maneira particularmente intensa a dicotomia pósmoderna entre estratégias disruptivas de vanguarda e os processos mediante os quais essas estratégias são absorvidas e neutralizadas” (CONNOR, 1993, p. 129). Os discursos contidos em “Capitu” levam a fundo uma análise que permeia estudos comunicacionais afeitos a negação da autenticidade nos critérios da apropriação imagética contemporânea, por muitos já constatada e durante o percurso da pesquisa, reafirmada. O viés pessimista predominantemente inerente à grande parte das análises frankfurtianas e pós-



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modernistas não restringem o alcance criativo conceitual do objeto, constituindo uma face de sua compreensão, por mais que seja evidente a submissão de sua produção a um sistema econômico irrefutável, que deixa pra trás a tradição do objeto. Mas em que medida o processo criativo deve se limitar ao peso de purismos, tornando as heranças artísticas intocáveis? É possível desfrutar desse legado inegável sem desvirtuar seu sentido original? A inserção inevitável da produção na conjuntura capitalista sacrifica o conceito da obra? As discussões postas não são de simples explanação, mas serão problematizadas no que é próprio a “Capitu”. A minissérie em questão, cujas características mais relevantes no âmbito da análise já foram ressaltadas, tem uma condução estética que pode se dizer pouco comum ao mercado das realizações televisivas brasileiras. “Destoa das linhas convencionais em sua estética, na produção, nas técnicas, nos custos e, além de outras questões, nos seus reflexos junto aos expectadores” (BRITTO e SIMÕES, 2009). Dentro dessa mesma abordagem, Pucci Jr. (2012) aponta o surgimento de uma nova fase da televisão brasileira com base na essência contemporânea de diversas realizações audiovisuais em detrimento dos padrões clássicos de produção televisiva. Enumerando obras que continham em si traços de uma estética pósmoderna, assegura que em “Capitu”, essas manifestações que antes apareciam apenas trechos, são plenas durante todo o desenrolar da narrativa, “sempre com a combinação paradoxal de experimentação de linguagem com absorção de estilos de outras mídias” (PUCCI JR, 2012, p. 16), dotando o produto de um tratamento estético coerente como um todo. Sendo assim, para ele, “Capitu” é responsável por marcar uma nova fase da televisão brasileira ao deixar de articular-se em torno do naturalismo clássico para aderir a outra vertente artística, o pósmodernismo. De um lado, a produção não se diferenciou de modo extremo da prática das Indústrias Culturais de adotar elementos externos a ela e adaptá-los para o uso comercial das mídias. De outro, o processo de formatação desta teledramaturgia ganhou requintes peculiares às práticas convencionais e agregou novos valores, transpondo o próprio trabalho de Machado de Assis, promovendo um novo Dom Casmurro, se é possível assim o chamar. (BRITTOS e SIMÕES, 2009).

Sabe-se que as práticas do sistema contemporâneo de produções culturais não primam pela originalidade, mas dentro da linguagem consolidada pela estética comum aos objetos comunicacionais recentes, principalmente no referente à comunicação televisiva, nada impede que se desenvolvam novos entrelaçamentos de estilos e abordagens singulares que busquem a “desmistificação de paradigmas preexistentes” (GUINSBURG, 2008) no que é proposto pela



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indústria cultural, desconstrução ligada ao pós-modernismo. Tanto há a elaboração de uma proposta diferenciada por Luiz Fernando Carvalho que verifica-se mediante as referências utilizadas e a constituição fragmentária da minissérie que não trata-se exatamente de um conjunto estético facilmente digerível. O conceito trabalhado em “Capitu” de oferecer uma linguagem lúdica e incitar uma postura de interação com o espectador por meio da dimensão imaginativa é, por exemplo, um dos tratamentos estéticos que põem a obra em uma linha diferenciada, fora de uma perspectiva naturalista vinculada às tramas ficcionais televisionadas. A defesa de Carvalho sobre isso é relativa à forma como o universo literário em si, contido na minissérie através da intertextualidade, está diretamente relacionada à imaginação. O cenário bidimensional do quintal desenhado no chão com giz é uma das materializações desse processo, que dá margem para que o público também tome parte na dinâmica de construção da diegese, abrindo espaço para sua intervenção ao agregar o seu pensamento e capacidade de compreensão à recepção objeto, deixando a postura de passividade conferida à indústria cultural: Quanto à ideia de trabalhar em um espaço que não fosse a realidade em si, mas que se constituísse como a representação de uma determinada realidade, assim como se dá quando estamos diante das linhas de um livro, sempre me interessou. Tenho exercitado este caminho desde “Hoje é dia de Maria”, mas, confesso, agora de uma forma mais rigorosa. Eu não trabalho com a mentira. Eu não minto para o público: "este desenho não é um desenho” Eu procuro pela imaginação, como quem faz uma sugestão: “este desenho poderia ser o verdadeiro quintal de Capitu?”. Estou propondo aos espectadores um jogo com a imaginação, um exercício tênue de visibilidades. Cabe, isto sim, a grande capacidade dos intérpretes de pegar na mão do espectador e trazê-lo para dentro do jogo. E os espectadores, em momento algum, estarão sendo iludidos quanto a não estarem participando de um jogo lúdico. A realidade é erguida pela montagem. É ela que constrói este outro rigor: a linguagem. É um jogo. (CARVALHO, 2013).

Figura 20: A dimensão imaginativa de “Capitu”.

Fonte: DVD Capitu.



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Essa concepção trabalha com a negação do conceito de representação, com o escancaramento da farsa. A arte traz consigo o propósito de representar como função primária, e portanto, mimetizar, imitar a partir de algo já estabelecido. O diretor abre mão da perspectiva do simulacro contida na minissérie, colocando em questão o parâmetro de que a realidade da trama não é o real ao simular um quintal através de um desenho feito à giz no chão. E ele quer que nós percebamos essa construção de forma poética, com uma leitura que abranja o desvelamento da estrutura estética da obra em si, utilizando nossa imaginação na compreensão de que os riscos podem ser um quintal, mas não necessariamente o são de fato. Sem se preocupar com a utilização de uma linguagem naturalista, que procure iludir o espectador, ele descontrói as relações formais de mediação comumente firmadas. A ruptura atestada agrupa-se com as eleições do diretor ordenadas na direção de uma composição referencial e fragmentária do objeto sob o conceito e propósito que dirigem o Projeto Quadrante, o qual articula a apropriação imagética em nome de uma intencionalidade de cunho educacional. A ideia desse projeto era adaptar quatro clássicos da literatura brasileira para a televisão, das quais chegaram a serem produzidas duas: “A Pedra do Reino” e “Capitu”. Carvalho (PROJETO QUADRANTE, 2008) reforça a posição do Projeto Quadrante frente aos demais produtos veiculados pelas mídias a partir da finalidade de educar ao aguçar a sensibilidade estética de seus telespectadores, reagindo à sustentação de clichês e estereótipos comumente reforçados pela televisão na busca de uma nova linguagem, responsável também por integrar os homens comuns ao nível de consumo de uma cultura média, e torna-los afeitos à literatura nacional por meio de uma abordagem que renovasse as obras. O diretor explica: Procuro um diálogo entre os que sabem e os que não sabem; um diálogo simples, sóbrio e fraterno, no qual aquilo que para o homem de cultura média é adquirido e seguro torne-se também patrimônio para o homem mais comum, pobre, e que, em relação a tantas questões, encontra-se ainda abandonado (...). Trata-se de uma tentativa de um modelo de comunicação, mas também de educação, onde a ética e a estética andam juntas. Estou propondo, através da transposição de textos literários, uma pequena reflexão sobre o nosso país. Continuo sonhando acordado, continuo acreditando que se faz necessário aos verdadeiros artistas e aos especialistas que trabalham no meio áudio-visual pensarem em uma nova missão para ele. Essa nova missão estaria, no meu modo de sentir, diretamente ligada à educação. Todo o meu esforço será, sempre, em primeira instância, o de propor uma ética artística verdadeira para o meio. Prefiro continuar acreditando nesta espécie de contradição entre o eletrodoméstico e a cultura, o emissor e o avanço de seus conteúdos necessários. Melhor dizendo: educação pelos sentidos. Esta é a televisão que espero ver no futuro. De minha parte, ou sigo por este caminho ou, sinceramente, nada faz sentido. (PROJETO QUADRANTE, 2008).



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A vanguarda expressionista alemã que antes compunha uma frente revolucionária que lutava contra os processos de modernização da sociedade tendo a arte como instrumento, encontra-se agora inserida em uma proposta de apropriação imagética contemporânea que denota a ela um caráter educativo. As intencionalidades de cada época, ao mesmo tempo que divergem, confluem no sentido de procurar novos sentidos para as práticas artísticas, engajando-as. Em seus contextos específicos, cada expressionismo luta contra um sistema firmado, de deliberações sobretudo econômicas. Diante da fala do diretor, se justifica conceitualmente o uso de objetos e cenários que não condizem com a temporalidade histórica na qual se passa a trama de “Dom Casmurro”, assim transposta para “Capitu” na busca de imprimir uma atualidade na trama tanto para conquistar espectadores quanto para denotar o enredo de uma ideia de que o dilema central, a crise pela qual o protagonista passa, juntamente a sua construção identitária dialética, permanece atual (CARVALHO, 2013). Já a justificativa conceitual da apropriação imagética, não infundada, é tangente à questão de dar acesso ao grande público à uma estética a qual eles não teriam como ter contato senão através de “Capitu” conforme os padrões vigentes na produção televisiva dos quais a minissérie não compartilha, como já explicitado. A profusão de diálogos com a estética de vanguarda, o encontro de estilos suscitado abre caminhos para a educação por meio da criação de uma linguagem diversa. É comum à estética da contemporaneidade “uma valorização de tudo aquilo que havia sido suprimido pela sistemática anterior, o impulso anti-sistêmico, uma predileção pelo plural, pelo múltiplo (CONNOR, 1993). O que se sobrepõe a essa proposta diferenciada é que os meios de comunicação em massa evitam inovar a partir da consolidação de “médias de gosto” pré-estabelecidas que favorecem o consumo. A dinâmica de funcionamento da grande mídia envolve uma complexa rede de discursos ideológicos e então, é conferido ao sistema capitalista de produção uma subversão de valores que pode ser aferida ao objeto estudado, de forma que na atual conjuntura, com um olhar viciado do espectador na postura passiva, os objetivos conceituais do diretor sejam de difícil apreensão, por mais que se trate de uma cultura média. Não faz parte da presente pesquisa atestar a eficácia ou falha dessa estética em seus propósitos educacionais, mas sim verificar a atitude de criação do trabalho artístico mediante o presente contexto. Sobre o conflito da intencionalidade do artista frente aos parâmetros de produção, Robert Stam ressalta:



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Como uma matriz em que estão em conflito discursos centrípetos dominantes e centrífugos de oposição, os meios de comunicação de massas nunca podem reduzir completamente o diálogo antagônico de vozes de classe àquilo que Jameson denomina de “confirmação do zumbido da hegemonia burguesa”. Há padrões de propriedade e tendências claramente ideológicas, mas o domínio nunca é completo, pois a televisão não é composta somente por seus proprietários e gerentes industriais, mas também pelos seus participantes criativos, por seus trabalhos e pela audiência, que podem resistir, pressionar e descodificar. (GUINSBURG, 2008).

É no confronto entre a preponderância dos interesses econômicos e a atividade do ser artístico que “Capitu” movimenta-se em direção à indústria cultural, todavia simultaneamente afasta-se ao diferenciar-se de alguns dos moldes firmados pela mesma. A cultura de massa, como já visto, sofre muitos condicionamentos por tratar-se de um empreendimento industrial, e contra uma perspectiva aristocrática e purista da arte, permite a difusão de informações diante de um prejuízo do pensamento histórico para aqueles que não eram dotados de nenhum conhecimento histórico, e tampouco tinham acesso ao conhecimento acerca do próprio presente (ECO, 2004). Portanto, o objetivo conceitual de “Capitu” pode entrar precisamente nas margens de ação abertas por esse pensamento, acrescido do salutar impacto que a técnica provoca nas massas. O grande alcance vinculado à atividade dos meios de comunicação em massa permite com que sejam formuladas medidas de cunho educacional e informativo no intuito de trabalhar a disseminação de valores culturais. Uma vanguarda a qual o nível de instrução média do país não permitem com que haja um amplo acesso, torna-se de domínio público em busca de gerar uma compreensão do estilo, ou um caminho de (re)educação do olhar do homem para que ele retome sua postura ativa e crítica. Naturalmente, o meio encontra suas limitações por não poder prover uma experiência completa conforme verifica-se na dinâmica concernente à “Capitu” e o expressionismo alemão apropriado, mas a intenção criativa do objeto tangencia a pergunta proposta por Umberto Eco ao condenar o maniqueísmo que permeia as considerações acerca da cultura de massa: Do momento em que a presente situação de uma sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa conhecido como conjunto dos meios de massa, qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais? (ECO, 2004, p. 50)

O autor explora a compreensão de que produtos provenientes da iniciativa humana tem em si um fator potencial de modificação da natureza como uma alternativa revolucionária (ECO, 2004, p. 51), e a cultura de massa não poderia ser julgada como coisa a parte desse processo, trazendo consigo grande capacidade de influência nesses termos, apto a promover uma “evolução do gosto coletivo” que passaria de um nível restrito de vias experimentais para



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um panorama amplo (ECO, 2004, p. 56), em consonância com o caminho conceitual-artístico delineado por Luiz Fernando Carvalho em “Capitu”. O fluxo informacional proporcionado pela globalização favorece a profusão e compartilhamento de informações graças à evolução do aparato tecnológico possibilitada pelo sistema capitalista, atuando em favor do que propõem Eco e Carvalho e dando fim à concepção exclusivista da cultura. Nesses termos, então difundida por “Capitu”, a prática do pastiche e apropriação imagética encontram-se inseridos em uma tentativa de dar-lhes funcionalidade no presente contexto, de uma hegemonia econômica que não contribui com esse propósito. Os traços expostos que dotam à minissérie de um caráter contemporâneo (pósmoderno) encontram-se então articulados em vista da criação de uma estética que instigue o olhar. Na busca de outra perspectiva sobre os fatores enumerados, o pastiche ao qual a estética de vanguarda presente em “Capitu” suscita pode ser entendido como um “discurso com afetuosa provocação ao cinema do passado”, funcionando de forma transgressora ao, na desconstrução do referente, relevar seu caráter discursivo (MASCARELLO, 2010). E também oferecendo uma noção diferente acerca da prática do pastiche que conflui com o estudo de “Capitu”, Hutcheon declara que: Embora alguns teóricos, como Jameson (1983, 114-119), considerem essa perda do estilo peculiar e individual do modernismo como algo negativo, como um aprisionamento do texto no passado por meio do pastiche, os artistas pós-modernos a consideraram como um desafio liberador que vai contra uma definição de subjetividade e criatividade que ignorou durante um período demasiadamente longo a função da história na arte e no pensamento. (HUTCHEON, 1991).

A apropriação do expressionismo pode assim ser vista como o estabelecimento de uma relação inventiva em meio ao processo criativo. Os vínculos dessa maneira estabelecidos entre o objeto estudado e o expressionismo transpõem o viés exclusivista de um legado histórico artístico intocável, tirando-o de seu lugar de cânone estético glorificado para uma dimensão que se põe ao alcance e conhecimento das massas, ainda que sob motivações diversas do seu contexto de origem. Na medida em que as representações do movimento expressionista no cinema dialogavam com a sociedade alemã e o seu psiquismo singular associado à obscuridade latente no referido contexto conforme a análise de Kracauer (1988), hoje o indícios dessa mesma escola estilística, apropriados, direcionam-se a um vasto público dentro de uma leitura contemporânea e fragmentária que conversa com a patologia cultural do ser pós-moderno (JAMESON, 2002), ainda cumprindo uma dinâmica atestada de relação



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psicológica com os indivíduos, ao mesmo tempo corrobora o cinema como vitrine da psicologia das massas por tratar-se de uma arte de produção coletiva (KRACAUER, 1988). Em contraposição às posições tomadas por Kracauer (1988), as quais envolvem a construção fundamentalmente psicológica do movimento expressionista, faz conjunto à análise proposta a concepção mercadológica presente em meio ao desenvolvimento da vanguarda abordada, que dadas as pretensões puristas muitas vezes conferidas a tais manifestações culturais do início do século XX, anularia seu caráter artístico por excelência. As pretensões artísticas de um objeto comunicacional engendrado para a grande massa são postas em questão, nesses termos. O cinema expressionista era autoconsciente, feito com o intuito de ser vendido, angariar público, mas não deixava de dialogar esteticamente com os propósitos do movimento do qual é proveniente, estando inserido no seu devido contexto produtivo, porém, ao passo em que essa estética chegou as telas dos cinemas, não mais tinha em si um potencial subversivo, posto que sua estética já era legitimada pela sociedade e canonizada pela academia (CÁNEPA, 2010). Portanto, no contexto pós-moderno, essas diversas perspectivas não devem ser ignoradas ante o apontamento de questões que tangem a banalização estética, relativizando essa acepção. Mediante as ilações firmadas durante a pesquisa, diz-se em conformidade com o entendimento de Jameson (KAPLAN, 1993) que “isso significa que a arte contemporânea ou pós-modernista deverá dizer respeito à própria arte de uma nova maneira”, por mais que o autor aplique as suas considerações que esse fato recai necessariamente no fracasso da própria arte, do estético e do novo, culminando no aprisionamento do passado diante da sujeição do processo criativo ao sistema capitalista. Na problematização dessa relação entre dinâmicas de mercado dominantes e arte, há “um estreitamento de vista” verificado por Ernst Bloch (MACHADO, 1998) em argumentos que tendam à apreensão Lukács, quem considera que “se é certo que em cada momento a última máquina seja sempre a melhor, por outro lado, a última obra de arte será apenas a expressão cada vez mais desesperada da podridão da sociedade capitalista decadente” (MACHADO, 1998, p. 233), sendo que essa questão foi posta já para a classificação referente à produção dos artistas modernos. Hoje, em um cenário agravado pela exacerbação do que outrora era latente, igualmente se agrava a noção de que a arte contemporânea encontra-se cada vez mais corrompida no contexto turbo-capitalista, corrompendo por consequência a herança artística com a qual se relaciona. Porém, “Capitu” nos revela que mesmo a execução criativa de produtos comunicacionais contemporâneos pode ser articulada em torno de propósitos coerentes artisticamente e em seus intuitos mediados pelo mercado.



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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O contínuo processo de remapeamento das esferas política e econômica que delineia a percepção da sociedade permeia a forma como o indivíduo vive e se expressa nesses contextos. As manifestações culturais são ferramentas de legitimação desses cenários, consagrando-se como uma síntese reveladora de períodos específicos por meio da articulação de uma linguagem que os traduza subjetivamente. Sob um enredo contemporâneo, a imagem posiciona-se como recurso central dentre as formas de expressão humana ao considerarmos o cotidiano de evoluções tecnológicas e midiáticas nos quais estamos inseridos. A compreensão da forma como essas imagens são concebidas é elementar para que possamos consequentemente alcançar a essência humana, uma vez que as mesmas compõem um reflexo imagético das circunstâncias que nos envolvem e das relações compostas por meio delas. Consciente da importância da arte nessa construção, a pesquisa proposta estudou as dinâmicas de criação artística nas vigências moderna e contemporânea a partir da apropriação da vanguarda expressionista alemã para poder traçar uma discussão crítica acerca desse fenômeno, de grande profusão na estética hodierna, e que se faz presente em “Capitu”. O expressionismo alemão tem imanente a sua existência atribuições históricas que lhe instituem um significado muito singular consoante ao psiquismo das massas alemãs e aos transtornos vividos meio ao furor da modernização e o pós-guerra. A estética do feio galga um patamar de arte genuína e ao consagrar-se, torna-se legado referendado pelas produções culturais contemporâneas, em uma apropriação que põe em questão seu valor existencial primeiro diante de seu desenlace com o passado. Foi com a profusão dos hábitos relativos à referencialidade que as dinâmicas de produção audiovisuais contemporâneas contribuíram no processo de criação da minissérie “Capitu”. Entretanto, os caminhos pelos quais se dão essa relação expõem que se antes o expressionismo alemão foi constituído por uma frente artística engajada que se expressava contra as consequências do projeto iluminista e da industrialização, hoje aquiesce seus objetivos de origem em função de uma lógica ao terem suas técnicas pinçadas de seu entorno político pelo trabalho estético desenvolvido no objeto abordado. A recorrência da prática das referências estéticas seriam então provenientes da necessidade da sociedade pós-industrial de suprir a cultura do consumo atendendo a segmentos específicos do público com bases em uma rápida produção de bens, a qual no tocante ao entretenimento, diz respeito à indústria cultural. Tal mecânica enveredaria pela produção de obras contemporâneas (pós-modernas) como “Capitu”, intertextual, de concepção plural e fragmentária, que constrói uma relação



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referencial para com o expressionismo alemão por meio do pastiche, que acusaria a falta de originalidade nas atuais proposições artísticas. As discussões que invadem esse diálogo envolvem assim a perda da historicidade do movimento expressionista frente a descontextualização do mesmo em um processo de isolamento do traço artístico em favor da manipulação de um capital cultural. Portanto, o ambiente de produção cultural reflexo do sistema econômico andante é autoria do capitalismo contemporâneo, que denuncia a redução de vanguardas artísticas a estilemas mimetizados, deslocando movimentos surgidos em enredos históricos político-ideológicos para uma esfera apropriação estética. A arte de outrora seria então vulgarmente diluída para a apreciação do público ao referir-se a um passado imagético reconhecível que simula uma cultura genuína, superior, a qual incita o consumo do produto audiovisual, cuja produção está sujeita às deliberações de grupos econômicos dominantes que detém a propriedade sobre o meio de comunicação que a veicula e produz. O estabelecimento de um quadro comparativo de técnicas visuais e conceituais entre a estética expressionista e o objeto culmina em um debate acerca da defesa de um propósito artístico-educacional vinculado à “Capitu”, dentro de um quadro crítico-teórico que não parece favorável a tais tentativas mediante a hegemonia capitalista. Todavia, uma apropriação produtiva da imagem aliada ao poder dos meios comunicacionais em termos de alcance das massas produziria a disseminação de um aprendizado estético construído em cima da linguagem que o objeto toma para si, com a possibilidade de confrontar padrões audiovisuais pré-estabelecidos por uma abordagem clássica. A arte modernista nos deixa um legado inegável. Resta-nos saber se existe uma forma apropriada de lidar com ele. Afora os ideais de uma arte exclusivista, a celebração ou lamentação da democratização da arte é a reflexão proposta, sem a busca de conclusões polarizadoras, entretanto, e sim com o objetivo de compreender as nuances e consequências que cada atitude comporta. O pensamento crítico do presente se faz necessário dentro de uma comunhão de vertentes argumentativas, tais quais a de Jameson, Adorno e Eco, por exemplo, que se complementam em um amplo panorama em nome da compreensão da arte contemporânea. Sem suscitar juízos sobre da natureza dessa arte, o conhecimento estético se firma em perspectivas complementares que permitem uma compreensão alargada das várias discussões plausíveis em relação aos diversos objetos artísticos cunhados na atualidade, da forma como a presente pesquisa pretendeu abordar “Capitu”.



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ANEXOS



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ANEXO 1 ENTREVISTA: LUIZ FERNANDO CARVALHO De que forma você vê na minissérie uma quebra com o padrão clássico de produção televisiva? Luiz Fernando Carvalho: Não vejo outro caminho se não este para o meu trabalho na tevê: o de buscar um processo colaborativo, e não corporativo. Existe muita pesquisa, muito rigor, mas é, principalmente, um caminho cheio de luta e traçado a partir do trabalho e da sensibilidade dos atores em conjunto com os artistas que compõe as equipes de criação – colaboradores no roteiro, na preparação do elenco, no figurino, na direção de arte e na direção de fotografia. A grande diferença, que talvez seja a mais notada, venha do fato de que valorizo determinadas etapas da produção que outros diretores, por suas razões, não valorizam tanto. Para mim, o ensaio com os atores e as oficinas de criação são fundamentais. Porém, repito, a matemática final é a mesma para todos. Troco sempre os caríssimos efeitos especiais pela ilusão. Não há nada que uma lente não possa fazer. Sou simples. O Projeto Quadrante, no qual a obra se insere tem um viés educativo. Como “Capitu” dialoga com o público nesse sentido? Qual o público visado? Luiz Fernando Carvalho: Para minha felicidade, a maioria dos telespectadores de “Capitu foi de jovens. Encontrar a narrativa para dialogar e atualizar a visão que os jovens tinham sobre este romance do século XIX foi, ao mesmo tempo, meu maior prazer e meu maior desafio. A obrigatoriedade de ler Machado de Assis nas escolas torna sua literatura oficial e sisuda, pouco lúdica, distanciando os jovens menos preparados. Com Capitu, tentei dialogar com este distanciamento que acaba por gerar um preconceito de que Machado é chato e antigo. Ele é atual e moderno. Os jovens precisam encontrar em Machado um grande criador: interativo, imagético, emocional, irônico, melancólico e atemporal. O horário em que a minissérie foi transmitida permitiu que esse objetivo fosse alcançado? Luiz Fernando Carvalho: O horário era muito tarde, certos episódios entraram perto da meia-noite. Apesar disso, “Capitu” registrou média de 15 pontos na madrugada. Para o horário, uma bela audiência!



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Você considera que “Capitu” tenha uma concepção audiovisual concebida através de uma estética contemporânea? O que fundamenta essa estética? Luiz Fernando Carvalho: O que mais me interessou foi como é que esse homem, com a origem que ele teve, em pleno século XIX, pôde chegar a essa proposição – proposição estética, de linguagem mesmo – erguendo um texto com uma modernidade formal e sem abrir mão de uma sensível reflexão sobre as facetas da alma humana? Isso não é uma casquinha, não é um jogo literário superficial. A opção pelo caminho da dúvida eleva o romance ao mítico embate entre o que seja a mera aparência das coisas e a verdade do mundo. Onde estará a verdade? Em cada um de nós, em cada governo, em cada ideologia, em cada amor? Mas, veremos pouco a pouco, que o romance não trata apenas deste jogo entre a verossimilhança e a verdade, mas também de um conjunto de retratos repletos de sabedoria melancólica - ligeiramente cansada, ligeiramente amarga, ligeiramente divertida. Na minissérie, estou reafirmando a dúvida presente em Dom Casmurro como parte do processo cultural da modernidade, como processo dialético dos dias de hoje, e acredito que isso não é amoral ou imoral, isso não é um pecado. Conceitualmente, o que a atemporalidade que permeia a série representa? Luiz Fernando Carvalho: Não é uma narrativa que te desloca do tempo histórico, uma narrativa glamourosa, falsa, alienante; mas sim, uma pequena tentativa de trabalhar no espaço misterioso da ficção, assim como está colocado no modo escolhido por Machado de Assis, que se faz distanciado da fabulação em várias passagens, enfim, “Capitu” é um relato que existe entre a realidade e a imaginação de todos nós. O Bento de “Capitu” se mostra extremamente emotivo. A obra como um todo busca compor uma externalização de todos os sentimentos e emoções do Dom Casmurro? Luiz Fernando Carvalho: Procurei expor as contradições humanas, mas de uma forma tragicômica. Isto se dá também da seguinte maneira, por exemplo: o “sim” de Dom Casmurro pode significar um “não” e vice-versa. Essa duplicidade do “eu” narrativo me pareceu algo, ao mesmo tempo, dostoievskiano e quixotesco. Dom Casmurro – por mais que ele negue e despiste – está incorporado ao trágico, está ligado de forma indelével a um tempo e a um espaço que não voltarão jamais. Ele vive a história, se emociona com a história, mas, simultaneamente, na frase seguinte, é capaz de se afastar e traçar um desenho [cáustico até] sobre a realidade amorosa, o tempo e seu estado atual: “vivo bem, como bem, não durmo



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mal...” – e, no canto do olho, talvez uma lágrima esteja escorrendo. O grande paradigma do livro e do personagem não é outro se não ele mesmo, Dom Casmurro. Quais as principais referências ao conceber a estética visual de “Capitu”? Luiz Fernando Carvalho: Minhas referências mais diretas foram os folhetins escritos em jornais do século XIX, as novelas de rádio e Karl Valentin. Quanto à idéia de trabalhar em um espaço que não fosse a realidade em si, mas que se constituísse como a representação de uma determinada realidade, assim como se dá quando estamos diante das linhas de um livro, sempre me interessou. Tenho exercitado este caminho desde “Hoje é dia de Maria”, mas, confesso, agora de uma forma mais rigorosa. Eu não trabalho com a mentira. Eu não minto para o público: "este desenho não é um desenho” Eu procuro pela imaginação, como quem faz uma sugestão: “este desenho poderia ser o verdadeiro quintal de Capitu?” Estou propondo aos espectadores um jogo com a imaginação, um exercício tênue de visibilidades. Cabe, isto sim, a grande capacidade dos intérpretes de pegar na mão do espectador e trazê-lo para dentro do jogo. E os espectadores, em momento algum, estarão sendo iludidos quanto a não estarem participando de um jogo lúdico. A realidade é erguida pela montagem. É ela que constrói este outro rigor: a linguagem. É um jogo. Como você vê o diálogo da série com a vanguarda expressionista alemã? Luiz Fernando Carvalho: A minha tentativa foi deixar a “fantasmagoria” da minha Capitu, a “fantasmagoria” do meu Dom Casmurro num ponto tal que sejam capazes de dialogar com a imaginação do espectador, como se estes personagens fossem apenas uma máscara à disposição de todos nós. Como você encara a dualidade de um produto como “Capitu” ser considerado arte, entretanto estar sujeito a uma dinâmica de produção atrelada à indústria cultural? Luiz Fernando Carvalho: Nos últimos tempos, com a ajuda da homogeneidade da indústria pseudocultural (que parece cada vez mais interessada apenas no consumo), nós, espectadores de imagens, desaprendemos a observar as fabulações de um modo geral, e a dialogar com o que cada fabulação traz de invenção e estímulo para nossa imaginação. Mas o espaço da literatura é um espaço da imaginação e “Capitu” é um relato que existe entre a realidade e a imaginação de todos nós.



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Você afirma que a minissérie “Capitu” é feita de colagens e dialoga bem com vários movimentos. Partindo disso, de que forma você reconhece a importância das vanguardas modernas no desenvolvimento de uma nova linguagem e novos conceitos audiovisuais em sua obra? Luiz Fernando Carvalho: Na direção de arte, no figurino, na caracterização, na fotografia, em todos os departamentos essa linguagem em camadas do tempo e do espaço estarão construindo a atmosfera e ligando a forma de um texto do século XIX ao melhor da produção modernista. A escrita de Machado dialoga antropofagicamente e diretamente com os melhores da história da arte de qualquer tempo, inclusive com essas correntes históricas que trabalham com assemblages, colagens, affiches, cartazes e cartelas. No meu modo de sentir, a linguagem dele está bem à frente e bem viva. Muitas vezes fiquei pensando no prazer que o Bruxo estaria sentindo ao ver seu texto renascendo lá na frente, com outras coordenadas estéticas, mas com a mesma síntese.

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