\"Um minuto para aprender, uma vida para dominar\": as poéticas do jogo de Poker

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

“UM MINUTO PARA APRENDER, UMA VIDA PARA DOMINAR”: AS POÉTICAS DO JOGO DE POKER

Clark Mangabeira

Rio de Janeiro 2014

“UM MINUTO PARA APRENDER, UMA VIDA PARA DOMINAR”: AS POÉTICAS DO JOGO DE POKER

Clark Mangabeira

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte

Rio de Janeiro Agosto de 2014

“UM MINUTO PARA APRENDER, UMA VIDA PARA DOMINAR”: AS POÉTICAS DO JOGO DE POKER Clark Mangabeira Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Aprovada por: _________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte, Presidente da Banca PPGAS/Museu Nacional/UFRJ _________________________________________ Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna PPGAS/Museu Nacional/UFRJ _________________________________________ Prof. Dr. John Comerford PPGAS/Museu Nacional/UFRJ _________________________________________ Profª. Dra. Maria Claudia Coelho Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ) _________________________________________ Profª. Dra. Mariza Peirano Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Universidade de Brasília (PPGAS/UnB) _________________________________________ Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes (Suplente) PPGAS/Museu Nacional/UFRJ _________________________________________ Profª. Dra. Karina Kuschnir (Suplente) Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS/UFRJ)

Rio de Janeiro Agosto de 2014

AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus e a meus mentores espirituais, pelo amor, caminhos, apoio e soluções. À minha mãe, minha avó e meu irmão pelo amor, carinho e força incondicionais. Sem vocês, eu nada seria. Ao meu pai e ao meu avô, in memoriam, pelo amor sentido à distância. Ao meu orientador Luiz, pela amizade, confiança e orientação precisa. À minha amiga e eterna orientadora Maria Claudia, pelas horas de conversa, confidências, ajuda e amizade. Muito obrigado. Às professoras Adriana e Mariza, pelos conhecimentos compartilhados e leitura atenta. Ao professor John, pela enorme assistência na realização da tese. Aos professores José e Karina, pela gentileza de participarem da banca. A Renata, pela amizade e força que me ergueram tantas vezes. Sou melhor com você ao meu lado. Obrigado. A Vitória, pela luz, compreensão, carinho e persistência, que moldaram quem eu me tornei e me levantaram quando estava caído. Pelo futuro. Obrigado por me salvar. A Debora, Vladimir, Pedrinho e Katia, pelos auxílios, amizade verdadeira e luz que me alegra sempre. Obrigado. A Waldenir, pela ajuda e por me lembrar de que há um sentido em tudo. Ao meu amigo Marcello, por ter me ensinado o universo do poker. Às professoras do departamento de Letras da UERJ – Gisele, Ângela e Sandra –, pela revisão atenta e carinhoso amparo. Aos jogadores e à Confederação Brasileira de Texas Hold´em, pela empolgação e tempo cedido para essa pesquisa. Ao Museu Nacional e ao CNPQ, por apostarem algumas fichas nessa tese.

Tudo, creio, já foi pensado e dito por tantos e tontos. Ou quase tudo. Ou quase tontos. De modo que não há novidade debaixo do sol – e isso também já foi dito. “Os temas do mundo são pouco numerosos e os arranjos são infinitos” – falou Barthes. Então, o que se pode fazer de melhor é dizer de outra forma. É des-ter o assunto. Se for para tirar gosto poético, vai bem perverter a linguagem. Não bastam as licenças poéticas, é preciso ir às silenciosidades. Temos que molecar o idioma para que ele não morra de clichês. Subverter a sintaxe até a castidade: isso quer dizer: até obter um texto casto. Um texto virgem que o tempo e o homem não tenham espolegado. O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. Há de se encontrar a primeira vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas isso tudo é tão antigo como menino mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira. (Manoel de Barros)

RESUMO A presente tese objetiva descrever e entender o universo do poker a partir da sua realização na mesa do jogo. Tendo por base entrevistas com jogadores profissionais e semiprofissionais, documentos jurídicos, livros sobre o poker, artigos da internet, grupos de discussões online e visitas a clubes de poker principalmente do Rio de Janeiro, o poker é compreendido em três vetores complementares: o primeiro, sintático, destaca as regras do jogo e os sentidos delas derivados; o segundo, semântico, sobre as opiniões dos jogadores a respeito de por que jogar; e o terceiro, pragmático, debruçado sobre o exercício do poker nas mesas (como jogar). Dá-se atenção especial a categorias como jogo, esporte, sorte, perícia, emoção, risco, reflexividade, profissão, apostas, performance, imaginário e ficção; e a autores das Ciências Sociais, da Teoria da Literatura e da Filosofia, em um movimento interdisciplinar.

Palavras-chaves: Poker; Jogo; Emoção; Risco; Apostas; Performance.

ABSTRACT This thesis aims to describe and understand the world of poker from the point of view of its realization in the game table. Based on interviews with professional and semi-professional players, legal documents, books about poker, internet articles, online discussion groups and visits to poker clubs mainly of Rio de Janeiro, the game of poker is understood as three complementary vectors: the first, syntactic, highlights the rules and the senses derived from them; the second, semantic, focuses on the gamers´ opinions about why they play; and the third, pragmatic, depicts the act of playing on the poker tables (how to play). Particular attention is given to categories such as game, sport, luck, skill, excitement, risk, reflexivity, profession, gambling, performance, imagery and fiction; and to authors from the Social Sciences, from the Theory of Literature and from Philosophy, in an interdisciplinary connection.

Key-words: Poker; Game; Emotion; Risk; Gambling; Performance.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Fig. 1 – ordem das mãos no poker

p. 21

Fig. 2 – mesa de poker

p. 23

Fig. 3 – probabilidade de vitória no pré-flop

p. 36

Fig. 4 – mesa online

p. 203

Fig. 5 – múltiplas mesas online

p. 203

Fig. 6 – mesa ao vivo

p. 204

Fig. 7 – exemplo de tell

p. 254

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

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1. VETOR SINTÁTICO (OU O QUE É O POKER?): NO MUNDO DO JOGO

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2. VETOR SEMÂNTICO (OU POR QUE JOGAR?): OS SENTIDOS DO JOGO

107

3. VETOR PRAGMÁTICO (OU COMO JOGAR?): OS SENTIDOS EM JOGO

190

CONCLUSÃO: MEUS CAMINHOS NO POKER

260

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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INTRODUÇÃO ... e apareceu o ás de espadas que brilhava, imponente, recostado tranquilo sobre o feltro verde. Ele resumia em si uma felicidade do tipo simples, do tipo puro, que se revela apenas para aqueles que, mesmo no caos dos novatos, ousam arriscar alguma coisa, qualquer coisa, em algum momento e lugar, tudo e todos inventados. Soube, sem dúvidas, naquele instante, que era um jogador. *** Há dois pontos de partida relevantes para esse texto. O primeiro, objetivo, sobre a criação da sua forma. O segundo, de base, sobre a definição do plano filosófico que o sustenta. Começo, portanto, pelo começo. No plano da criação, o objeto, obviamente, é o poker. Poker é um gênero que identifica diversas modalidades de jogo: Texas Hold´em Limit, Texas Hold´em no Limit, Omaha, Stud, H.O.R.S.E., Razz, entre outros. Apesar de haver similaridades entre elas, sendo todas vinculadas a apostas, cada qual possui um sistema de regras específico que define de antemão características – como valor e limite das apostas, quantidades de cartas com a qual se joga, quantas são comunitárias e quantas individuais, etc. – às quais os jogadores devem se submeter, entender e estudar para saírem vitoriosos. A partir dessa multiplicidade de espécies, o Texas Hold´em no Limit adquire destaque tanto pela simbiose entre a relativa simplicidade das regras e a absoluta complexidade do jogar, quanto pela fama que adquiriu principalmente a partir dos anos 2000, quando se tornou a modalidade mais famosa. O Texas Hold´em no Limit, alvo desse trabalho, passou a ser sinônimo de poker no mundo inteiro e, consequentemente, também nos limites desse texto. O poker boom dos anos 2000, a imensa popularização do jogo, deu-se devido, principalmente, a três fatores (BJERG, 2011): a disseminação do poker online, aos torneios televisionados e ao efeito “moneymaker”, esse a partir 2003, resultado do fato de que o então jogador amador desconhecido Chris Moneymaker saiu campeão e milionário do campeonato mundial de poker, em Las Vegas, conhecido como World Series of Poker ou WSOP, após ter conseguido a vaga no evento através de um torneio online cuja inscrição fora de apenas trinta e nove dólares. O impacto dos três fatores combinados levou uma enorme quantidade de pessoas a ver, no poker, uma possibilidade de dinheiro fácil ou, no mínimo, uma diversão rentável, sem que fossem necessárias grandes especializações para ganhar (afinal, Moneymaker venceu os melhores jogadores do planeta). 11

Consonante com tal popularização, uma enorme quantidade de livros e publicações independentes sobre o poker surgiu. Editoras, inclusive brasileiras, dedicaram-se exclusivamente ao jogo, bem como houve a criação de revistas e fóruns online específicos sobre o assunto, que disseminaram aspectos técnicos e táticos no campo do ensino sobre como jogar bem. Paralelamente, na seara acadêmica, estudos pipocaram mundo afora focando principalmente nos aspectos matemáticos, históricos e/ou patológicos do jogo, mesclando a análise sobre o poker com a de outros jogos de azar. Tendo em vista, contudo, a especificidade do poker, a proposta desta tese parte do princípio de uma investigação de dentro. Sem cair na perspectiva diacrônica, é no eixo sincrônico que o texto se constrói. O foco é a mesa de poker enquanto o locus da realização do jogar, levando-se em consideração a interação e a articulação dos jogadores no momento em que jogam. Para além da mesa, as categorias e os conceitos que definem, para os jogadores, o que é o poker, estão vinculados e são estruturados pelo sistema de regras que informa o Texas Hold´em no limit, definido, portanto, a priori, em conjunto com tais normas. O desenho da tese obedece ao acontecer do jogo. O ponto de partida da análise é uma combinação de espectros diferentes que contribuem diretamente para a compreensão e interpretação – termos usados a partir do paradigma teórico proposto por Weber e Geertz – do jogo. O objetivo, em um primeiro plano, é transformar o processo dinâmico do jogo enquanto jogo em um texto estático, imóvel, consolidado enquanto tese, e, em segundo plano, atualizá-lo em termos de categorias mais amplas centrais das Ciências Sociais, articulando-o a temas como indivíduo e sociedade, antropologia das emoções, antropologia do esporte, performance, dentre outros. Em termos formais, o uso da palavra vetor, ao invés de capítulo ou seção, não é gratuito, nem deriva de mero capricho acadêmico. Do jargão matemático, vetores possuem a mesma intensidade, a mesma direção e o mesmo sentido, de maneira que os três vetores nos quais desmembrei a análise não possuem prioridade de qualquer espécie um sobre os outros: são absolutamente complementares e de mesma importância para se entender esse universo do poker, decomposto em um mosaico de três partes para melhor verificação de questões que, embora mescladas na realidade, na forma textual ficariam confusas se analisadas concomitantemente. Dessa forma, a cada um dos três vetores corresponde uma pergunta que, longe de se excluírem, complementam-se e, na realidade, são interdependentes na busca por uma interpretação antropológica do poker. 12

Assim, o primeiro vetor lida com as regras e conceitos delas derivados. Busca-se refletir acerca do que é o poker em termos imediatos, estruturais. O segundo vetor, semântico, construído ao redor dos motivos de por que jogar, privilegia as opiniões e reflexões dos jogadores sobre a prática do jogo. Finalmente, o terceiro vetor, pragmático, cristaliza-se no momento do jogar, na mesa, considerando os praticantes sempre em interação e suas ações em sintonia umas com as outras. O universo do poker nos limites deste texto, finalmente, é o profissional e o semiprofissional. O escopo de observação, embora tenha levado em consideração alguns discursos e opiniões dos jogadores amadores, privilegia os significados construídos em mesas experientes, nas quais a diversão não é a única variável de explicação para a prática. Paralelamente, é nessas mesas que o jogar técnico, tal qual por eles classificado, aparece, em sintonia com os estudos e preparos para enfrentar adversários e viver financeiramente do jogo. *** No plano da definição filosófica, o panorama geral que perpassa as considerações desse texto provém de Vilém Flusser (2007), cuja filosofia traduz a relação entre língua e realidade a partir da desconstrução da relação de complementariedade ou de oposição que se pode estabelecer entre esses polos. Para o autor, é a língua quem torna o real uma realidade. Na fluidez dessa realidade, traduzível em palavras e, portanto, variável diante da multiplicidade de línguas existentes, cada realidade mantém-se por que realizada pela língua. Língua cria, propaga, forma e é realidade. Contudo, não se trata de uma proposta niilista, de negação de um real independente da língua, mas da constatação de que o que existe, existe por que linguístico, existe por que falado, existe por que metaforizado em palavras. São esses os dados essenciais e, a partir deles, constata-se a relatividade da realidade e, complementarmente, a relatividade dos textos e das formas de acessar a realidade. Diferente da hipótese Sapir-Whorf, que afirma, em termos amplos, que cada cultura tem um universo mental distinto, o qual é estruturado e estruturante da língua de cada uma delas – haveria uma relação entre as categorias gramaticais de uma língua e a maneira pela qual conceituamos o mundo –, para Flusser, a questão é filosófica. O mundo não existe por si só. Com base em Vaihinger (2011), se tudo que somos e temos são palavras, a realidade é ficcional, diferente de Sapir-Whorf, para os quais a realidade é a realidade, e as línguas conceituam-na, criando um universo mental distinto e variável culturalmente. De acordo com

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Flusser, a língua é a realidade única, o arcabouço sobre o qual navegamos, de modo que o mundo não existe sem linguagem: ele é ficção. Nesse sentido, por exemplo, enquanto Sapir-Whorf diriam que a cor branca para os esquimós possui diversos tons por que há uma relação entre a língua e o mapeamento do mundo na cultura esquimó, para Flusser, a cor branca é uma ficção, seja para os esquimós ou para os brasileiros. Só há cor branca por que há linguagem, sendo a cor, em si, ficcional. Em outras palavras, se, para Sapir-Whorf, a linguagem determina como um falante conceitua, salva e classifica a realidade; para Flusser, a língua cria, propaga e é realidade. No contexto filosófico de Flusser, este texto se define, de antemão, como uma ficção. Consoante o pensamento de Hans Vaihinger (2011), base para Flusser, a ficção adquire um status de instrumento ou operação do pensamento, criadora de valores, ideias e conceitos cujo valor é prático. Longe de serem definidas como falsas, as ficções adquirem concretude, estabelecendo condições para a prática e informando as ações. São construções auxiliares que permitem o vislumbre do real, metáforas que se formam sobre outras metáforas na tentativa de classificar e perceber o mundo. Embora o real, para Vaihinger, ainda seja substancialista, encravado no reino das sensações, Flusser abre o conceito de ficção para abarcar também o que ele chama de real. Este só é realidade por que entendido em referência ao sistema total de ficções que elege determinados conteúdos como reais, sendo, já que apenas acessado pela linguagem, também ficção. Consequentemente, em um primeiro movimento, o texto dessa tese, seguindo Vaihinger, é uma ficção, visto ser um conjunto de construções que procuram auxiliar o panorama da prática do jogo de poker. O poker aqui descrito é construído em meio a oposições (jogo versus esporte, profissão versus lazer etc.) e a referentes teóricos por si mesmos fictícios. A finalidade prática é compreender e interpretar o universo (semi)profissional do poker, sendo evidente, primeiro, a incompletude e parcialidade desse – e de qualquer – texto; e, segundo, a possibilidade de novas interpretações mais fidedignas ao fenômeno em pauta. O texto resulta, mesclado a outras ficções teóricas, no léxico de Vaihinger, em uma ficção abstrata, ou seja, um artifício escolhido e construído como se fosse o total da realidade para melhor se debruçar sobre esta, e em uma classificação artificial, a criação de um sistema de valor para reproduzir o poker e todos as idiossincrasias que o compõem como se fossem a realidade. 14

Em um segundo movimento, contudo, o caráter ficcional deste texto admite um adjetivo: é uma ficção antropológica. Adentrando na perspectiva de Flusser, não basta perceber a parcialidade e a construção desse texto enquanto produto final, mas também do seu caráter fictício apoiado sobre outros textos, os “nativos”, que, por si só, são acessos ficcionais ao que eles chamam de realidade. Considerar o texto antropológico como ficcional – ficção antropológica – sem discutir a profundidade da afirmativa, traduz-se em puro jogo retórico sem consequências práticas para a densidade do proposto. O conceito de ficção não é mais apenas o ponto de chegada, mas também o de partida, pois a mesa do poker é um universo construído em si, um “outro mundo” diferente do “mundo-aqui”. Assim, a ficção torna-se não um conceito narrativo ou um resultado textual, mas o elemento central e definidor do jogo e das narrativas sobre ele, este texto incluído. Se a antropologia, como processo, culminou na ideia de relativização, centro de seu poder analítico, é necessário um movimento de retorno, dobrar-se sobre si e enquadrar a ideia de relativização sobre os seus próprios textos-dados. A atitude deve ir além do mero reconhecimento da percepção do outro. Enquanto, no campo, o antropólogo “respeita” o “objeto” garantindo-lhe adequação simétrica com outras formas de pensamento – o “nativo” vira coautor –, na relação com os textos, seu panorama varia em termos de certo e errado, de aceitação ou rejeição, uma atitude de encerramento de realidade quanto às posições epistemológicas. Volta-se, no limite, à ideia de autoridade não mais etnográfica, mas teórica, esquecendo-se de que o texto antropológico é um sistema de reconstrução simbólica da realidade, tão metafórico quanto o próprio sistema de construção da realidade, primário, sobre o qual o antropólogo se debruçou, os dados etnográficos. Se, por um lado, o estruturalismo de Saussure, influenciando Lévi-Strauss, foi responsável pela renovação filosófico-metodológica da antropologia na medida em que definiu a produção do significado dentro do próprio sistema (fechado) da língua/”cultura”, uma abordagem objetiva com ênfase na sintaxe que desconstruiu a primazia do caráter referencial dos signos; por outro lado, o interpretativismo de Geertz, de base weberiana, priorizou a produção de sentido da ação dos atores a partir do contexto semântico, na “teia de significados” de base interacional (AZZAN, 1993). Entre a ênfase do primeiro sobre o sistema e a do segundo sobre o sentido contextual da ação dado pelo próprio ator, o movimento do Writing Culture incorporou à discussão o polo da realização etnográfica como/em um texto, materializando a presença do etnógrafo e destacando o processo de construção de significados sempre negociados polifonicamente e dialogicamente, de modo que o conhecimento 15

“cultural”, além de parcial, tornou-se incompatível com “verdades absolutas”, sendo o eixo de análise repuxado em direção a um encontro de intersubjetividades. Em um possível escrutínio mais amplo do fiar da trama antropológica, o caminho descoberto, a partir de Saussure, partiu do sistema estrutural da língua/cultura, para o ator e sentido da ação, e daí para o texto e para a presença do etnógrafo como parte fundamental da negociação de significados. Língua/cultura/estrutura, sentido/ator e texto/autor são os três pilares que, longe de completamente se excluírem, articulam o fazer etnográfico em níveis cuja modulagem e foco decorrem do ponto de vista elencado de antemão como base da pesquisa antropológica. Deve-se, contudo, prestar atenção a uma outra ordem ontológica capaz de transmutar o significado dos conceitos de língua, realidade e, consequentemente, das categorias de sentido do texto etnográfico. Sem negar a visão sistêmica da língua e da cultura, nem a capacidade de dotação de sentido da ação pelo ator social, e nem a realidade textual da etnografia como um gênero polifônico, o cerne da questão, contudo, não é atacar quaisquer daqueles pilares e nem exaltar um niilismo etnográfico que esterilize a contribuição da antropologia ao estatuir que qualquer possibilidade de descrição, explicação ou compreensão da realidade é ilusória e/ou falaciosa. O ponto de viragem é na direção, primeiro, de uma redefinição da relação que se estabelece entre língua e realidade para o “nativo”, e, segundo, do caráter de ficção do texto etnográfico, entendendo-se a categoria ficção como a base do pensar. Assim, no arranjo relacional autor-texto-leitor, a produção de dados e textos pelo “nativo” obedece aos parâmetros ficcionais no sentido de que há necessariamente construções fictícias que lhes servem para administração da existência. O dito e o feito em campo não devem ganhar uma aura de realidade apenas por que fora coletado e observado. Antes, todos os dados são construções – ficções – servidoras da existência nativa. Se na relação do “nativo” com seu “mundo” já há um véu metafórico e metadiscursivo para permissão do acesso ao que eles consideram realidade, na relação do campo com o antropólogo, encapuçada também em uma realidade ficcional e linguística – ficcional por que linguística –, a criação e a circulação de significados não se dão nunca de forma geológica, sedimentar, de concepções justapostas uma sobre as outras, umas a partir das outras. Criam-se e propagam-se significados, ao contrário, de maneira circular, na qual um sentido é causa e consequência de outros sentidos intertextual e polifonicamente criados e sempre em movimento, orquestrados na base de uma ficção – o texto final – que funciona como um pêndulo a girar em rotação na forma de um duplo infinito, desenhando e redesenhando significados a partir de redefinições e 16

ponderações de elementos (ficcionais) do próprio sistema ficcional (como, por exemplo, os conceitos de sorte e habilidade como possíveis classificações do poker a partir da consideração sobre sua forma sintática, tal qual observar-se-á), e/ou do contato entre sistemas ficcionais díspares (valendo o citar o embate entre o discurso médico sobre jogo patológico e o discurso desportivo dos jogadores profissionais sobre o poker, outra consideração a ser exposta). Por todos os ângulos, portanto, seja na relação “nativo”-realidade, na antropólogo“nativo”, ou na antropólogo-teoria, a ficção enquanto um instrumento do pensar se impõe. Na primeira, como as escalas que permitem o desenho do que é o real, as classificações e metáforas pelas quais eles vivem; nas duas últimas, como resultado do intercruzamento e troca de significados que se retroalimentam, culminando no texto final construído tendo por base a comparação, complementação e suplementação de dados, teorias, recortes, metáforas, silêncios e significados que efetivam um desenho de um mundo, um dentre vários possíveis. Por fim, fica óbvio que este não será um texto sobre o jogo de poker. Repito, não será. Afinal, escrever é um processo seletivo, intercortado, cambiante, de eleição de temas principais e embotamento de outros considerados, autoral ou dialogicamente, menos importantes. Na dinâmica de estabelecimento de prioridades e assuntos, o que é deixado de lado representa elementos que caracterizariam um universo do poker de outra maneira. Há, inclusive, aquilo que não foi dito sobre o jogo, aquilo que os coautores-personagens não sabem sobre o jogo, e aquilo que eu, outro coautor-personagem, também não sei ou não percebi. Existem os silêncios não transcritos, as falas silenciadas, os enunciados não ouvidos, os não ditos e os ignorados. Há a influência semântica, incalculável, da dinâmica de coletas de dados, inclusive as variáveis processuais não percebidas, no momento da observação, como unidades de significado. Acontecem, nesse limbo, outros universos do poker, tangentes ao aqui descrito, com ele comunicáveis, mas dele também distantes, mais um lado do que o poker é. E, mesmo se possuíssemos acesso a todos esses lados variáveis e variados do jogo, o poker, por ser uma experiência sinergética, não se atualizaria completo no texto. Para além da obviedade já postulada de que o real não existe, por ser fictício também, e não é alcançável diretamente, mas apenas através de ficções que lhe deem forma, o rentável em termos de discussão sobre aquela realidade construída é perceber que todo e qualquer discurso é metafórico por excelência e ficcional por definição. 17

Trata-se, contudo, não de uma antropologia de criações ou invenções a bel prazer do autor ou dos entrevistados, nem da tentativa de estabelecer uma antropologia da ficção, mas sim de partir da ficção antropológica, dotada da capacidade autorreflexiva de se entender, primeiro, como parcial, segundo, como tendenciosa e, terceiro, estruturalmente, como ficção. É por esse caminho que devo começar a apresentar este possível universo do poker.

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