Um olhar além: o sertão brasileiro e o outback australiano comparados / Gazing beyond: the Brazilian sertão and the Australian outback compared

July 23, 2017 | Autor: Deborah Scheidt | Categoria: Cultural Studies, Outback of Australia, Sertão
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Um olhar além: o sertão brasileiro e o outback australiano comparados Déborah Scheidt1 A imensa distância física e os evidentes contrastes histórico-geográfico-culturais entre Brasil e Austrália podem, à primeira vista, diluir as possíveis afinidades e tornar irrelevantes quaisquer tentativas de aproximação ou comparação entre os dois países. O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Ian Alexander, no entanto, assinala várias semelhanças entre os dois países, apontando para possibilidades de estudo comparado.2 Ele menciona, por exemplo, a magnitude quase continental dos territórios (5º e 6º no mundo em extensão) e semelhanças climáticas, de altitude e de colonização entre regiões dos dois países, especialmente as localizadas ao sul. Quanto a aspectos culturais, ele chama a atenção, mais especificamente, para os mitos relacionados à vida no campo, à criação de gado, às vastas planícies e ao gosto pelas cavalgadas, que aproximariam partes do Rio Grande do Sul e do sudeste da Austrália. Quanto às influências externas, ele observa que Brasil e Austrália compartilham a experiência de serem culturas ocidentais afastadas tanto da Europa quanto dos EUA, são sociedades que sempre viveram sob a sombra do modelo europeu e que precisaram (e de certa maneira ainda precisam) “encontrar a própria medida, a medida certa para os erros e acertos de culturas novas, de 1 Doutoranda em Estudos Literários (UFPR), professora do Curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG-PR. 2 ALEXANDER, Ian. “A Austrália lê o Brasil”. In: Zero Hora. Caderno Cultura. Porto Alegre: 23/05/2009. p. 3.

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culturas que são herdeiras de toda a riqueza do Ocidente, mas que se encontram tão longe da velha Europa.”3 Podemos somar a essa lista de similaridades um outro fato crucial: ambos os países possuem, no coração de seus territórios, vastas extensões de terras com paisagens climáticas, topográficas e vegetais menos propícias à habitação humana do que outras regiões e que, bem por isso, tendem a apresentar densidades demográficas bem menores do que as áreas litorâneas, por exemplo. Apesar da grande diversidade de paisagens dessas regiões, a tônica dominante, era, e de certa forma ainda é, a de que, em oposição às áreas costeiras mais povoadas, esses seriam lugares de vazio, aridez, dureza, isolamento, mistério e atraso. É representativa dessa visão a seguinte afirmação de Sir George Gipps, governador da colônia (hoje estado) de New South Wales (Nova Gales do Sul), em 1844: We see here a British Population spread over an immense territory beyond the influence of civilization, and almost beyond the restraints of Law. Within this wide extent, a Minister of Religion is very rarely to be found. There is not a place of Worship, not even a School. So utter indeed is the destitution of all means of instruction, that it may perhaps be considered fortunate that the population has hitherto been one almost exclusively male. But Women are beginning to follow into the Bush; and a race of Englishmen must speedily be springing up in a state approaching to that of untutored barbarism.4

Talvez com ressalvas ao trecho que menciona a escassez de mulheres, tal afirmação poderia aplicar-se ao interior do Brasil, onde tais áreas são denominadas de “sertão”. 3

Id. O Prof. Alexander é também autor de uma dissertação de mestrado comparando a obra de Érico Veríssimo com a do autor australiano Patrick White. ALEXANDER, Ian. Novos continentes: relações coloniais em O Continente e Voss. Dissertação (Mestrado em Letras). Porto Alegre, PUCRS, 2006. 4 “Vemos aqui uma enorme população britânica espalhada em um imenso território não alcançado pela influência da civilização, e quase além do controle da lei. Nessa grande região, são raros os representantes da religião. Não há locais de devoção e nem mesmo escolas. É tão completa a carência de instrução, que talvez seja positivo o fato de a população ser, até o momento, quase que exclusivamente masculina. Mas as mulheres estão chegando à região (the Bush) e um raça de ingleses rapidamente surgirá, num estado bem próximo à barbárie descontrolada.” GIPPS, George. Apud FROST, Alan. “Perceptions before 1855”. In: The Penguin New Literary History of Australia. Ringwood, Australia, Penguin, 1988. p. 110. Revista de História Regional 15(2): 76-94, Inverno, 2010

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Na Austrália, bush e outback são considerados por alguns autores como sinônimos5 e em muitos dicionários, assim como na fala popular, frequentemente um termo remete ao outro.6 Muitos, no entanto, qualificam bush como sendo a área interior da Austrália mais próxima da costa, enquanto que outback seria a área mais central ou interiorana.7 Mesmo nesse caso, ninguém parece ser capaz de determinar exata e incontestavelmente onde termina uma e começa a outra.8 A indeterminação referencial dessas expressões é indicativa da problematização de seu uso nos dois países. Em um levantamento sobre os usos literários dessa expressão no século XIX, Eduardo Vieira Martins demonstra que, se hoje as reais fronteiras do sertão ainda possuem um contorno indistinto, na configuração político-territorial do Brasil do século XIX elas eram ainda mais amplas e complexas. Para citar somente alguns dos exemplos arrolados, o sertão podia aparecer em dicionários e livros de história do Brasil alternativamente como “mato longe da costa”, lugar onde a “calma” é mais intensa, “coração das terras”, ou simplesmente “interior do país”. Na literatura ficcional o termo “sertão” servia para referir-se tanto à Província de São Paulo em Martins Pena, quanto aos pampas gaúchos em José de Alencar e ao interior de Goiás e até mesmo ao Paraná em Taunay.9 A literatura – ficcional ou não – tem sido, assim, 5 McCULLOUGH, Dale & McCULLOUGH, Yvette. Kangaroos in outback Australia: comparative ecology and behavior of three coexisting species. New York, Columbia University Press, 2000. p. 18 6 Ver, por exemplo o Dicionário Merrian Webster. Disponível online em http:// www.merriam-webster.com/dictionary/outback, o Free Dictionary. Disponível online em http://www.thefreedictionary.com/outback. ou o Babylon Dictionary (WordNet). Disponível online em http://www.babylon.com/definition/Outback/ English. Acesso em 20 de setembro de 2010. 7 COUPE, Sheena (ed.). Frontier Country, Vol. 1, Willoughby, Australia, Weldon Russell Publishing, 1989. 8 Outras denominações mais curiosas para o sertão australiano incluem “beyond the black stump” (“além do toco preto” cuja origem talvez se refira ao hábito de utilizar troncos como demarcação de terreno), “back o’Bourke” (“os fundos de Bourke”, cidade de pouco mais de 2000 habitantes, localizada a cerca de 800 km a noroeste de Sydney, no estado de New South Wales, representando folcloricamente a fronteira do outback) e “Never Never”. 9 MARTINS, Eduardo Vieira. A imagem do sertão em José de Alencar. Dissertação (Mestrado

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um excelente indicador da flexibilidade do termo “sertão” no decorrer dos séculos. O mesmo problema ocorre com referência a outback. Se hoje uma definição padrão de atlas geralmente nos remete às áreas áridas e semiáridas do interior da Austrália, onde predominam planícies escassamente cobertas por vegetação gramínea e pequenas árvores contorcidas, 10 a famosa descrição de um recém-chegado à Austrália em 1855 sobre the bush é a seguinte: The Bush, when that word is used in the towns, means all the uninclosed and uncultivated country; and nearly the whole colony being in this state, it includes nearly all, − heath, grassy plains, thick forest, and dense scrub and jungle; the latter sometimes forming an impenetrable network of trees and shrubs and interwoven creepers, through which you must cut your way. When in the country, “the Bush” means more especially the Forest.11

Vale lembrar que tanto o Brasil quanto a Austrália, além de colônias de exploração, também podem ser classificados como “colônias de povoadores” (settler colonies), isto é, sociedades em que os colonizadores tomam a terra das populações indígenas, aniquilando-as, deslocando-as e/ou marginalizando-as.12 Nesse tipo de colônia as línguas europeias são transplantadas para novos espaços e seus (velhos) significantes são forçados a adequar-se a (novos) referentes.

em Estudos Literários) UNICAMP, Campinas, 1997. 10 BAMBARADENNYIA, Channa et al. The illustrated atlas of wildlife. Berkley, University of California Press, 2009, p. 210. 11 “The Bush”, quando se está na cidade, refere-se às vastas e não delimitadas áreas do interior; como a maior parte da colônia encontra-se nessa categoria, a expressão inclui quase tudo, – urzes, planícies de gramíneas, florestas densas, arbustos fechados, matagais; esses últimos às vezes formam uma rede impenetrável de árvores, arbustos e trepadeiras emaranhadas por meio dos quais só se trafega com ajuda de um facão. Quando se está no campo, “the bush” significa, mais especificamente, a floresta.” (minha tradução) WATHEN George H. The golden colony, or, Victoria in 1854: with remarks on the geology of the Australian gold fields. London, Brown, Green, and Longman, 1855. p. 117. 12 Compare-se com as “colônias de ocupação”, como a Índia e a Nigéria, em que os povos indígenas continuaram sendo a maioria, porém tiveram suas culturas e línguas tradicionais marginalizadas com a chegada dos europeus. ASHCROFT, Bill et al. Post Colonial Studies: the key concepts. London, Routledge, 2000. p. 211.

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Exemplo disso é a bastante citada descrição das espécies animais e vegetais “ao avesso” dos antípodas, de autoria de um viajante europeu na Austrália na década de 1830: “the swans were black, the eagles white [...] even the blackberries were red”13 – ou seja, não é a língua que parece ser inadequada para descrever o ambiente, mas é a própria natureza australiana que recusa-se a colaborar com o avaliador estrangeiro. O termo “sertão” também pode ser pensado em termos da complexidade das relações entre língua e espaço nas sociedades coloniais. Do ponto de vista etimológico não há concordância em relação à origem do termo, mas as duas teorias mais aceitas são as de que ele adviria da expressão africana “mulcetão, significando terras distantes da costa, ou do substantivo latino “sertum”, particípio passado do verbo entrelaçar, aludindo à impressão de entrelaçado que uma vegetação cerrada pode suscitar.14 De qualquer modo, a palavra chega ao Brasil a bordo da esquadra de Cabral e famosamente já figura na carta de Caminha: Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste ponto temos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, algumas vermelhas, outras brancas; e a terra por cima é toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia redonda, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque a estender d’olhos não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. 15

Nesses primeiros atos simbólicos de posse evidencia-se – anteriormente até à presença física do europeu em terra – o 13 “os cisnes eram negros, as águias brancas[...] até mesmo as amoras negras eram vermelhas.” (minha tradução) MARTIN, J. apud CROSBY, Alfred W. Ecological Imperialism. In: ASHCROFT et al. (eds.). The Post Colonial Studies Reader. London: Routledge, 1995. p. 420. 14 IBGE. Atlas das representações literárias de regiões brasileiras: Sertões brasileiros I. Vol. 2. Rio de Janeiro, IBGE, 2009. p. 11. 15 CAMINHA, Pero Vaz de. In: CASTRO, Silvio (ed.). A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre, L&PM, 2005. p. 115.

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olhar do colonizador, um “estender d’olhos” que a um tempo realiza diferentes funções. A grande recorrência de expressões de grandeza no trecho evidencia um olhar mensurador, enquanto que os adjetivos qualificam os atributos da terra. O olhar português também divide a paisagem em duas categorias, costa e sertão; mesmo que por meio de designações tão genéricas quanto essas, nomear significa impor algum tipo de ordem e controle sobre a vastidão e o caos, validando, assim, o projeto colonialista. Significativo também é o olhar especulativo e desejoso por sobre a costa em direção ao resto da terra (o sertão), cujo real intuito se escancara no início do próximo parágrafo da carta: “Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos.”16 Esse ato de “olhar para além de” manifesta-se de forma muito patente na própria expressão que, no decorrer do século XIX passou a designar o interior australiano. Diferentemente do termo “sertão”, que foi trazido de fora para Portugal e depois para o Brasil, outback é um australianismo, isto, é uma apropriação inovadora da língua europeia adaptando-a a condições locais. Assim como “sertão” para o português, outback tornou-se uma expressão genérica e bem estabelecida no vocabulário do inglês moderno, que hoje se refere a áreas isoladas, remotas e esparsamente povoadas do interior da Austrália (mas que também tem sido usada para designar regiões com essas características em outros países; é frequente, por exemplo, encontrar-se a tradução de “sertão” para o inglês como outback). Da metade para o final do século XIX uma forma ancestral da expressão –grafada separadamente – out back – começou a figurar com certa frequência em artigos de jornal, documentos governamentais e anotações autobiográficas de fazendeiros da região ao oeste de Riverina, New South Wales, no sudeste da Austrália.17 O pesquisador Ian Bessel, 16

Id. New South Wales havia sido o ponto de partida para a colonização inglesa do território e, portanto, o povoamento e a difusão da cultura europeia nessa região estavam mais avançados. A região de Riverina caracterizava-se, no século XIX,

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analisando vários excertos onde a expressão era empregada, chega à conclusão de que, no período em questão, out back referia-se às terra distantes, localizadas aos “fundos” das frentes ribeirinhas. Naturalmente, os fazendeiros preferiam estabelecer suas residências e os pontos mais “sociais” de suas propriedades próximas aos rios, já que a presença de águas fluviais, além de valorizar a propriedade, proporcionava o contato com o mundo externo (por meio da navegação e das estradas, que costumavam estender-se paralelamente aos rios). Quanto à curiosa construção sintática out back, Bessel conclui que se trata de uma elipse que reduz expressões de uso freqüente dos fazendeiros, como por exemplo, out to the back of the run (para lá dos fundos da fazenda) ou out in the back blocks (lá nas terras dos fundos). 18 Com o decorrer do tempo a expressão outback foi se “desespecializando” e assumindo o caráter mais indefinido que tem hoje. Bessel atribui isso à idealização que o estilo de vida no interior australiano sofreu em decorrência da literatura romântica e nacionalista do século XIX. De qualquer modo, a junção dessas duas partículas em especial tem, ainda de acordo com Bessel, um efeito hiperbólico19 quanto à distância que pretende descrever – referindo-se, como diríamos em português coloquial, a um exagero de lonjura – já que, tomadas separadamente, “out” e “back” compartilham de um significado comum nos dicionários: ambas apontam para um lugar distante de um centro ou de uma área principal.20 Assim, à medida em que o processo de olhar “para além de” se perpetuava, concomitantemente com o ocupação de terras e a consequente geração de novas estruturas de como fornecedora de carne e de lã. Após a implementação de sistemas de irrigação, no século XX, tornou-se também uma importante área agrícola. Algumas áreas de floresta próximas aos rios dão lugar a planícies de gramíneas e de ervasal (Atriplex nummularia, que pode servir como alimento ao gado mesmo durante as secas) nas áreas mais áridas. 18 BEISSEL, Ian. “An early meaning of outback: evidence from the Riverina region in New South Wales.” In: Ozwords. Camberra, Oxford University Press, 2008, vol. 17, no. 2. p. 6-7. 19 Ibid., p. 7. 20 Collins Cobuild English Language Dictionary. London, Harper Collins, 1994.

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poder, o sertão/outback se afastava – sempre em relação a um determinado ponto (que podia, então, deixar de ser sertão/outback) – e se alastrava, abarcando uma maior porção de território, até culminar na visão de sertão/outback que consolida a partir de meados do século XX. Como um bom exemplo dessa dinâmica, o Atlas das representações literárias de regiões brasileiras cita o Vale do Paraíba, que foi considerado sertão dos séculos XVI até meados do XVIII, até que a descoberta de ouro na região de Ouro Preto contribui para reposicionar o sertão mais à frente (ou atrás, dependendo da perspectiva). No decorrer dos séculos o Vale do Paraíba, que fora considerado terra “selvagem” e “sem-lei” e parte dos chamados “Sertões do Leste”, consolidar-se-ia como uma próspera (e “domesticada”) região agrícola, com a cultura cafeeira em grande escala. 21 A complexidade da tarefa de “mapear” geográfica e historicamente o sertão (que na verdade são vários) é tamanha, que o referido Atlas destinará dois tomos para os “sertões brasileiros”. No primeiro volume os sertões são divididos em quatro partes: os Sertões do Leste (Vale do Paraíba, Zona da Mata mineira, e Vale do Rio Doce), Sertões do Ouro e Sertões dos Currais (Minas Gerais e Currais da Bahia), Sertões de Cima (Chapada Diamantina) e Sertões Nordestinos (Cariri Cearense, Sertão do Pajeú e Cariri Paraibano). 22 O objetivo da publicação é olhar para o sertão não somente através das lentes das tradicionais divisões político-administrativos ou tentar encaixá-lo no âmbito das regiões geográficas oficiais, como afirma Eduardo Pereira Nunes em sua apresentação do volume, mas procurar entendê-lo “a partir das dinâmicas econômica, populacional, cultural e ambiental que lhes deram origem.”23 Levando em conta esses elementos, o Atlas propõe-se, assim a apresentar diferentes significados que foram sendo atribuídos às áreas que “um dia, por alguma razão, foram 21 IBGE. Atlas das representações literárias de regiões brasileiras: Sertões brasileiros I. Vol. 2. Rio de Janeiro, IBGE, 2009. p. 12. 22 Id. O Volume 3, Sertões brasileiros II, ainda não foi lançado, mas terá como um dos focos centrais o cenário de Canudos. 23 Ibid. p. 8.

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identificadas como sertões” nessas partes do Brasil.24 O primeiro conceito de sertão que vimos acima, o dos navegadores portugueses designando a área promissora para além do litoral dá lugar, no decorrer dos séculos XVI e XVII, à concepção dos padres jesuítas e dos primeiros exploradores, que enxergavam o sertão como o espaço ainda não colonizado e não disciplinado pelas leis da Igreja e do Estado, ou seja, espaço da barbárie, do primitivismo e da perdição. No século XVIII a atividade mineradora toma conta da economia e o controle severo que o Estado exerce sobre essa atividade muda a característica dessas regiões anteriormente consideradas sem lei ou ordem, relegando a classificação de sertão aos espaços dominados pelos coronéis que detêm o poder de vida e morte nas chamadas regiões de “currais”, ou de criação de gado. Essa concepção de sertão perdurará até meados da década de 30 do século XX. Nessa época populariza-se a noção de que o “regional” representa a verdadeira brasilidade, em detrimento dos centros urbanos, que pretendem reproduzir os hábitos europeus (a velha dicotomia local/universal). Mais recentemente o sertão ajusta-se à configuração a que estamos hoje familiarizados: o sertão árido e semi-árido da região nordeste, castigado pelas secas e de certa forma reduzido ao dualismo “arcaico versus moderno”.25 Assim, o sertão brasileiro parece construir-se gradualmente como espaço da aspereza e da sequidão – tanto literal quanto metafórica. Compare-se a visão que temos hoje com a maneira de perceber o sertão expressa na carta de Caminha que, na interpretação do historiador Silvio Castro, havia deixado transparecer apenas o “gozo [dos ] ares e águas” do Brasil26, atitude que seria “essencial para a compreensão do homem brasileiro na sua estrutura cultural e no seu comportamento como identidade psicológica nacional”.27 A formação da identidade nacional australiana, por outro lado, calcou-se na aridez física e psicológica desde o início28. Ao aportar na Austrália pela primeira vez em abril de 24

Ibid. p. 11.

25

Ibid. p. 12-14.

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CAMINHA, p. 123.

27

Ibid. p. 142.

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Essa breve exposição do início da história australiana figura em SCHEIDT, Déborah.

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1770, o explorador britânico e “descobridor” oficial da Austrália Capitão Cook cometeu um engano fatal, ao tomar a estação chuvosa pela seca. A chegada da “Primeira Frota”, comandada pelo Capitão Arthur Phillip, em 1788 e trazendo a primeira leva de degredados/colonizadores, foi totalmente anticlimática, já que, misteriosamente, os prados e campinas29 descritos por Cook pareciam ter “murchado e desaparecido”. 30 Nos primeiros anos de vida europeia na Austrália, os colonos sofreriam agruras colossais, sobrevivendo às custas da exíguas porções de alimentos em conserva provenientes dos navios, complementada por uma dieta de ervas e frutos selvagens aprendida com os aborígines. Epidemias constantes e a má vontade dos degredados para o trabalho fomentavam uma atmosfera de geral desolação.31 As paisagens edênicas de fartura tropical idealizadas pelos primeiros povoadores europeus reduziam-se a uma estreita faixa litorânea castigada por constantes secas (uma pequena amostra do outback). O “olhar para além” era bloqueado por uma barreira de arenito32 que demoraria décadas para ser transposta. Quando isso ocorreu, ao invés dos campos verdejantes, do mar interior ou até mesmo da China (como queriam crer alguns degredados ao engendrar seus planos de fuga), os europeus finalmente depararam-se com a versão extrema do outback33 – uma das regiões mais inóspitas All the difference in the world: aspects of alterity in three novels by Patrick White. Dissertação (Mestrado em Letras). Curitiba, UFPR, 1997. p. 14-15; 81. Disponível online em http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/24565/1/D%20-%20SCHEIDT,%20DEBORAH.pdf. Acesso 20 de setembro de 2010. 29 Temos aqui um novo exemplo das tensões linguísticas características das colônias de povoamento, onde velhas línguas precisam dar conta de novos espaços. A expressão originalmente usada por Cook, de acordo com Blainey, foi meadows (prados, campinas), típica de descrições idílicas de paisagens campestres inglesas. 30 BLAINEY, Geoffrey. A shorter history of Australia. Melbourne, Mandarin, 1995. p. 25. 31 Ibid. pp. 25-28. 32 Uma região montanhosa, hoje conhecida como Blue Mountains, parte do complexo de montanhas e planaltos chamado Great Dividing Range, que se estende por quase toda a extensão da costa leste da Austrália. 33 Num movimento centrípeto, a partir da costa sudeste (Botany Bay, hoje Sydney), a Austrália foi sendo colonizada de vários pontos cardeais (muitos deles bastante distantes uns dos outros), em direção ao núcleo “escaldante”, ou red heart: sul

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do mundo, complementada pela presença de três desertos. Esse “coração vermelho da Austrália” provocaria a morte ou o desaparecimento de vários exploradores, que transformarse-iam, ironicamente, em herois nacionais, como o caso de Leichhardt, desaparecido em 1848 e da dupla Burke e Wills, os mais famosos dos exploradores da Austrália. Em 1861 os dois retornaram com meses de atraso, esfomeados e doentes, a seu acampamento, somente para descobrir que os demais membros de sua expedição haviam partido – naquela mesma manhã! – para outro local, condenando-os à morte.34 Com o passar do tempo, o significado original do termo outback, vinculado inicialmente, como vimos, às fazendas e aos fundos das áreas ribeirinhas, foi-se ampliando, extrapolando limites que pareciam intransponíveis aos olhos dos primeiros colonizadores e passando a alcançar as regiões que haviam representado o quase total fracasso do projeto colonial britânico. Também o potencial do outback se estendeu e se transformou. Desafiando imensas dificuldades tais como solo pobre, clima inóspito e variável, propenso a secas e a incêndios florestais, eventualmente, a enchentes nas regiões ribeirinhas e à invasão de ervas daninhas e outras pragas, o outback australiano foi se tornando a região onde hoje se localizam as maiores fazendas de gado do mundo (conhecidas na Austrália como outback stations)35. No Brasil do século XIX, as terras mais produtivas da área costeira e a proximidade dos portos que facilitava a exportação, atraíram a cultura canavieira para essas áreas, empurrando a criação de gado para os sertões.36 Nos dias de hoje, apesar de contar com (Van Diemen’s Land, hoje Tasmania, e Melbourne), centro-leste (Moreton Bay, hoje Brisbane), sudoeste (Perth) e mais tarde norte (Darwin). 34 INGLIS, Ken. Australian colonists. Melbourne, Melbourne University Press, 1993. 35

Anna Creek Station, na região do outback do estado de South Australia é a maior fazenda de gado do mundo, com cerca de 6 milhões de acres de área. Alexandria Station, no estado de Northern Territory, ocupa o segundo lugar, mesmo sendo três vezes menor. A criação de ovinos, importantíssima na economia australiana, não se adapta tão bem às condições do outback.

36 GALVÃO, Walnice Nogueira. “O imaginário do sertão.” In: ALCÂNTARA, Araquém. Sertão sem fim. São Paulo, Terra Brasil, 2009. p. 145.

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condições semelhantes às relacionadas ao outback citadas acima, a pecuária é uma das atividades econômicas principais do sertão. A grande disponibilidade de terras torna propícia, tanto no sertão como no outback, a pecuária extensiva e de corte, manejada por trabalhadores montados a cavalo. Tais técnicas não parecem ter sofrido grandes mudanças, reforçando o fato de que o sertão e o outback são o espaço do tradicional (ou do arcaico, dependendo do juízo crítico do observador). De qualquer modo é significante que seja difícil, à primeira vista, localizarmos a que século pertencem os vaqueiros das imagens abaixo, ou até mesmo distinguirmos sua nacionalidade:

Figura 1:

Vaqueiro da Fazenda Aroeira, Varzelândia, Minas Gerais, fotografado por Araquém Alcântara.*

Figura 2:

Stockman da região de Wave Hill e Lajamanu, Northern Territory, fotografado por Ludo Kuipers.**

É significante que tanto o sertão quanto o outback tenham sido apropriados pelo imaginário erudito e popular a partir do nacionalismo romântico do século XIX, 37 que *

ALCÂNTARA, Araquém. Sertão sem fim. São Paulo, Terra Brasil, 2009. s/p. KUIPERS, Ludo. Originalmente em cores. Disponível online em http://www. ozoutback.com.au/postcards/postcards_forms/stockwork/Source/7.htm. Acesso em 20 de setembro de 2010. **

37 No Brasil pós-independência, segundo Antonio Candido, houve uma tendência ao que ele chama de “literatura empenhada”, ou seja, uma “tomada de consciência dos autores quanto ao seu papel, e a intenção mais ou menos declarada de escrever para sua terra.” CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro, Ouro Sobre Azul, 2006. p. 28. Na Austrália, do final do século XIX, os escritores que contribuíam para o jornal Bulletin pretendiam ser os porta-vozes de uma literatura “genuinamente” australiana, com escritos que pretendiam rebelar-se contra a tradição européia e valorizar a cor local. O ícone dessa tendência foi Henry Lawson.

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passaria a considerar esses espaços como legitimamente nacionais, lugares de origem de pessoas e sentimentos genuinamente brasileiros e australianos. O sertanejo e o bushman tornaram-se, então, ícones e herois nacionais, compartilhando atributos mais ou menos semelhantes: conhecimento aprimorado de seu meio, sabedoria instintiva, valentia, errância, mateship (princípios de companheirismo em situações adversas, especialmente em face aos elementos naturais), altivez (mesmo quando desafiam a lei e a ordem), severos códigos de honra, entre outros. Podemos relacionar certas atitudes contrárias à autoridade formal, presentes tanto no sertão quanto no outback, a circunstâncias histórico-sociais específicas: às origens australianas como colônia penal38 e, no Brasil, aos sistemas de favorecimentos que se refletiram, tempos depois, nos governos oligárquicos e no latifúndio. Esse foi um terreno propício para o aparecimento de movimentos que se desenvolveram ao final do século XIX e início do século XX e que encontram correspondência nos dois países: cangaço e bushrangin. Lampião e o bushranger Ned Kelly39 são personagens complexos e têm suas características em comum reconhecidas por Eric Hobsbawm no âmbito do “banditismo social”: são considerados criminosos pelas instituições estatais, porém heróis, vingadores ou justiceiros pelo seu próprio povo.40 Para Hobsbawm os mitos construídos em torno das figuras de cangaceiros e bushrangers acabam se tornando mais relevantes do que suas ações propriamente (para as quais há pouco consenso)41 e a construção desses mitos depende tan38

Até meados de 1970, o passado da Austrália como colônia penal era basicamente ignorado nas escolas e universidades e somente as vozes oficiais eram consideradas como fontes históricas. O historiador e crítico de arte Robert Hughes recupera o rico testemunho dos degredados, transformando-os em um épico da fundação do país e uma obra divisora de águas para a historiografia australiana. HUGHES, Robert. The fatal shore: the epic of Australia’s founding. New York: Vintage, 1986. 39 Apesar de apresentarem várias características em comum, Lampião e Kelly não são contemporâneos: Kelly foi enforcado em 1880 enquanto Lampião só iria nascer em 1898. 40 HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Barcelona, Editorial Crítica, 2001. p. 33. 41 Ibid. p. 76.

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to do amor quanto do medo42 que suscitaram e ainda suscitam, daí as representações ambíguas que nos chegam deles até hoje tanto por meio da cultura popular quanto do trabalho histórico-acadêmico. Hobsbawm menciona, por exemplo, cangaceiros que são recordados tanto por suas nobres ações (Antonio Silvino), quanto por sua crueldade (Rio Preto), ou por ambas (Lampião). A literatura de cordel, uma “arte nascida da aridez, crescida na carência e que viceja na adversidade”, de acordo com Pedro Afonso Vasquez,43 encarregou-se de divulgar as façanhas tanto de cangaceiros como de outros sertanejos menos famosos. É relevante que esse gênero literário tenha, com bastante frequência, o desafio como tema. Em muitas dessas narrativas, o protagonista desafia a autoridade (que é representada em diversos níveis, desde a sogra, até a igreja, a polícia ou o próprio demônio). A morte é um antagonista constante e o tom das narrativas pode ser heroico, cômico ou uma combinação de ambos.44 Note-se a semelhança tanto no tema como no tom dessas produções (que também podem ser recitadas com um acompanhamento de viola) com as chamadas bush ballads, que são “narrativas musicadas” ou “canções que contam uma história”, de acordo com Cliff Hanna. 45 Essas baladas se iniciam na Inglaterra, com os condenados prestes a embarcar para o outro lado do mundo comentando seu destino e suas expectativas, e seu tom pode ir do lamentoso ou moralista, ao esperançoso ou de pouco caso, por vezes até mesmo numa única composição.46 Na Austrália essas baladas logo adquirem cor local e o tom irônico e desafiador 42

Ibid. p. 81 PEDROSO, Franklin E. & VASQUEZ, Pedro Afonso. O universo do cordel. Recife, Instituto Cultural Banco Real, 2008. p. 12 44 Ver, por exemplo o poema “O rei dos cangaceiros” de um dos grandes cordelistas brasileiros, Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Disponível online em http://www.revista.agulha.nom.br/barros.html. Acesso em 20 de setembro de 2010. 45 HANNA, Cliff. “The ballads”. In: The Penguin New Literary History of Australia. Ringwood, Australia, Penguin, 1988. p. 110. 46 Vários exemplos são proporcionados por HANNA, ibid, p. 195-198.

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se intensifica, a tal ponto de que cantá-las torna-se ilegal em algumas circunstâncias. Os personagens-tipo mais comuns dessas canções são o rapaz pobre, mas honesto (geralmente de sobrenome irlandês) que se indispõe contra os detentores do poder, como é o caso de Jack Donahoe (ou Doolan), primeiro personagem mítico australiano da década de 1820, cuja exaltação, de acordo com Hanna, evolui para a dos atos dos bushrangers, e logo mais para a da “bush life”, em geral.47 A bush ballad mais famosa de todos os tempos, Waltzing Matilda, foi composta no final do século XIX por Banjo Paterson. A canção é um perfeito exemplo da ironia australiana, como que um mecanismo psicológico de defesa, forjado em seu passado como colônia penal. A melodia alegre, e o vocabulário enigmático para qualquer pessoa não versada em australianismos, não parece coadunar com os acontecimentos dramáticos nela narrados:48 um swagman (trabalhador itinerante), acampado perto de um riacho (billabong), acaba roubando um carneiro (jumbuck). O proprietário o denuncia, mas o swagman prefere cometer suicídio por afogamento a se entregar à polícia (troopers). Seu fantasma, no entanto, permanece para assombrar o local. Em todos os estágios, o convite You’ll come waltzing Matilda with me é reiterado. Matilda nesse refrão não é um nome de mulher, mas a expressão coloquial para o cobertor que esses viajantes carregam enrolados às costas. “Valsar com Matilda” torna-se, assim, uma metáfora tragicômica, que assume diferentes significados cada vez que o refrão é repetido, relacionando-se à solidão do bushman e aos extremos a que chega para manter sua honra, e não ao espírito alegre e relaxado do australiano, como poderia parecer numa apreciação superficial. O fato dessa canção realizar até hoje a função de hino nacional não-oficial da Austrália, é uma das faces do que o 47

Ibid. p. 202. SEMMLER, Clement. Waltzing Matilda. In: Id. The Banjo of the Bush: The Life and Times of A. B. “Banjo” Paterson. Brisbane: University of Queensland Press, 1984. p. 88.

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historiador Frank Clarke chama de “paradoxo” da identidade nacional australiana. No contexto de uma sociedade altamente urbanizada e moderna que se aglomera na região costeira, em pontos bem limitados, o estereótipo cultural nacional relacionado à figura masculina, rústica e ligada ao interior do continente está cada vez mais distante. Não há, porém, de acordo com o autor, sinais de que esteja para ser substituído por outro mito mais urbano ou litorâneo, com os quais os australianos possam identificar-se melhor. Um outro aspecto desse paradoxo relaciona-se ao caráter multicultural de um dos países que mais vigorosamente têm trabalhado em políticas de imigração no mundo. Ainda assim, as mulheres, que perfazem hoje mais da metade da população e os imigrantes não têm lugar nesse mito que celebra valores essencialmente masculinos e de origem anglo-celta. 49 Também a socióloga Catriona Elder faz uma observação semelhante, focando no marketing turístico e nas imagens veiculadas nacional e internacionalmente do centro geográfico da Austrália como sendo “a alma” ou o “pulso cardíaco” do país.50 Apesar de grande parte da população australiana nunca ter ido ao outback, este é imaginado como o local mais autenticamente australiano possível. Segundo Elder isso se baseia nas crenças de que lá existem menos migrantes nãobritânicos e de que as famílias continuam seguindo o padrão tradicional do início do século XX (patriarcal, heterossexual e menos afetada pelo divórcio), ou seja, em grande parte uma fantasia de que o outback é uma espécie de “oásis” nostálgico de uma Austrália de outrora.51 Os habitantes nativos do outback (em contraposição a muitos que hoje habitam os centros urbanos) parecem pertencer a uma categoria à parte: são representantes da “autêntica Austrália aborígine” (os que compreendem o verdadeiro “espírito” da terra) mas não da “autêntica Austrália” dos bushmen e dos dinkum Aussies 49 CLARKE, Frank G. The history of Australia. Westport, CT, Greenwood Press, 2002. p. 3-4. 50 ELDER, Catriona. Being Australian: narratives of national identity. Crows Nest, NSW, Allen & Unwin, 2007. p. 213. 51 Ibid. p. 214-215.

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(australianos verdadeiros) que, como vimos acima, são caucasianos e de origem britânica.52 Em suma, a questão central que parece estar sendo apontada pelos dois autores é a da complexidade e ambivalência dos processos de produção de identidades de grupo. Ao estabelecer-se uma diferença das margens coloniais em relação ao centro imperialista, as condições especiais do ambiente antípoda acabam por engendrar uma identidade australiana que refutava outras minorias historicamente oprimidas (mulheres, aborígines e imigrantes não britânicos) em favor do homem britânico especialmente apto para sobreviver na batalha diária contra uma terra hostil – o outback – e contra instituições que não viam com bons olhos seus antecedentes criminais. Tal mito é tão poderoso que persiste até os dias de hoje, quando essas condições já não vigoram. No Brasil, a identificação do sertão com a Região Nordeste também tem trazido à luz discussões de cunho identitário. O historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., por exemplo, menciona a emergência de um “novo regionalismo” que se opõem a uma visão oitocentista das diferenças do país, atribuindo-as à natureza, ao meio e a raça.53 Nesse regionalismo (que Albuquerque localiza na década de 1920), há uma imagem do Nordeste “para consumo do Sul”54 que serve a fins ideológicos. Nela o sertão ocupa um lugar de destaque. Na verdade, a região Nordeste seria toda ela vista como um grande sertão, despojado de sua diversidade e devastado pelas calamidades, onde elementos como o cangaço, o messianismo e o coronelismo são temas definidores. Assim como os críticos citados acima, Albuquerque chama a atenção para a ambivalência do processo de formação da identidade nacional. Ao mesmo tempo procurava-se a construção de “uma” identidade nacional homogênea e a particularização das características regionais:

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Ibid. p. 218. ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 1999, Cortez, p. 53. 54 Ibid. p. 59.

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Diante da crescente pressão para se conhecer a nação, formá-la, integrá-la os diversos discursos regionais chocam-se, na tentativa de fazer com que os costumes, as crenças, as relações sociais, as práticas sociais de cada região que se instituiu nesse momento, pudessem representar o modelo a ser generalizado para o restante do país, o que significava a generalização de sua hegemonia.55

Como vimos, o sertão e o outback compartilham diversas características físicas em comum: grande distância geográfica dos centros urbanos, baixa taxa de ocupação humana, climas mais áridos do que outras regiões no país, a atividade econômica pastoril. É possível até mesmo correlacionarmos alguns de seus tipos humanos e manifestações culturais. Mas mais relevantes do que as semelhanças físicas talvez sejam os diferentes conteúdos com que o vazio metafórico dessas regiões foi sendo preenchido, de acordo com os interesses dominantes, fazendo com que se transformassem de áreas fora do alcance e além da visão, em ícones nacionais, sobre os quais – fazendo uso da expressão da historiadora Marjorie Barnard – brasileiros e australianos estão sempre “sentimentalmente conscientes”. 56 Um olhar além: o sertão brasileiro e o outback australiano comparados Déborah Scheidt Resumo: O Brasil e a Austrália têm em comum, no coração de seus territórios, vastas áreas de maior aridez e menor concentração demográfica do que suas regiões litorâneas. Apesar da diversidade natural dessas regiões e do processo de modernização, “sertão” e outback, como são conhecidas, foram e ainda são homogeneamente tratadas como locais de vazio, dureza e atraso. Neste artigo comparamos e contrastamos esses espaços, procurando identificar diferentes valores que 55

Ibid. p. 61. BARNARD, Marjorie. A history of Australia. New York, Frederick Praeger, 1962. p. 670, minha tradução. 56

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lhes foram sendo atribuídos à medida que a colonização dos dois países ocorria. Perceberemos também como eles foram apropriados pelo imaginário erudito e popular até que se tornassem ícones nacionais, e seus habitantes (sertanejos/ bushmen, vaqueiros/stockmen, cangaceiros/bushrangers) figurassem como importantes personagens das mitologias nacionais dos dois países. Palavras-chave: Sertão brasileiro; Outback Australiano; Comparação. Abstract: Brazil and Australia have, in the heart of their territories, immense extensions of land that are drier and less populated than their coastal areas. In spite of their natural diversity and of the modernizing process that both countries have gone through, these regions, known as sertão and outback, are still seen, homogeneously, as locations of emptiness, severity and backwardness. In this article we compare and contrast these spaces and try to identify different values that have been attributed to them as the colonizing process took place. We will also look at the phenomenon that allowed them to be appropriated by the academic and popular imagination and to become national icons, while their inhabitants (sertanejos/bushmen, vaqueiros/stockmen, cangaceiros/bushrangers) grew to be important characters in the national mythologies of both countries. Key words: Brazilian sertão, Australian outback, Comparison. Recebido: 10/08/2010 Aprovado: 22/10/2010

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