Um olhar brasileiro sobre José Saramago

August 20, 2017 | Autor: Susana Ventura | Categoria: Portuguese Literature, José Saramago
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“Um olhar brasileiro sobre José Saramago” – para a Revista Vértice Susana Ramos Ventura Dizem os neurocientistas que nosso cérebro registra de maneira particular os fatos de grande impacto social ou pessoal. Afirmam os especialistas que, mesmo anos após recebermos uma notícia impactante, somos capazes de nos lembrar de pequenos detalhes sobre os momentos imediatamente anteriores ao recebimento: o que vestíamos, onde estávamos, o que fazíamos, fragmentos do cenário à nossa volta... A minha história com a obra de José Saramago começou na casa de uma grande amiga, que era então minha professora de francês, Maria Cecília de Oliveira Marques, em Santos, São Paulo, uma cidade litorânea próxima a São Paulo. Num dia de 1992, ao final de uma visita que fazia a ela, e já em pé junto à porta para as despedidas, Cecília retirou da estante de sua sala ensolarada um livro de capa castanha e disse: ‘Olhe, este livro me foi dado por meu filho e é maravilhoso. O autor é um português, José Saramago. Leve-o, leia e depois me conte. Uma recomendação: lute um pouco com ele: o modo de escrita parece estranho a princípio, mas lute e você verá que vale a pena’. Olhei a capa uma vez mais: Memorial do convento, José Saramago. O comentário me deixou muito intrigada, como assim eu precisaria lutar com o livro, ou com o escritor? Mas segui a recomendação e tenho me envolvido com a obra de José Saramago desde então como leitora apaixonada, como investigadora – sobre sua obra fiz meu mestrado e meu doutoramento - como professora de literatura que sou e, de alguns anos para cá, também como orientadora de trabalhos universitários sobre a obra de Saramago. Mas como será que foi possível aquele encontro amoroso: a amiga recebe um livro do filho, lê, gosta, empresta para a aluna e amiga, que lê e lê e lê e está lendo até hoje? Comecemos a responder pelo histórico das publicações de José Saramago no Brasil, que tem o primeiro título, Levantado do chão, publicado em 1982 e o segundo, Memorial do convento, publicado no ano seguinte, 1983. Estava lá, nas primeiras publicações, dado o primeiro passo para que aquele meu momento pessoal de encontro com a obra fosse possível uma década mais tarde. No entanto, também vários outros fatores colaboraram para ele. A começar pelo que, de maneira abstrata, chamarei de ‘a figura do leitor’.

Primeiro direi de alguns específicos leitores: os professores de Literatura Portuguesa são muitos no Brasil - que tiveram com as referidas publicações brasileiras uma chance maior de ler mais obras de José Saramago (lembremos que a internet ainda não havia entrado em nossas vidas e que o preço dos livros importados de Portugal eram, à época, proibitivos para grande parte dos professores). Bom é lembrar que o trabalho de professor se assemelha ao trabalho das formigas: é constante, demanda muito esforço e dá resultados surpreendentes. Mas, na maior parte das vezes, os resultados desse trabalho intenso demoram um bom tempo a aparecer de maneira evidente. Assim sendo, havia um grupo de leitores entre os professores de Literatura Portuguesa que já acompanhava José Saramago como jornalista, cronista, poeta, tradutor, romancista e que, pelo surgimento de edições brasileiras dos dois romances puderam inclui-los em seu repertório de aulas. Agora falarei sobre um leitor específico, com voz num periódico de grande circulação, o Jornal do Brasil, editado no Rio de Janeiro. Esse leitor era o humorista, escritor e tradutor Millôr Fernandes (1923 - 2012). Millôr se notabilizou por seu ardente senso de humor e pela capacidade de síntese. Durante muitos anos, e em diversos meios da imprensa periódica, Millôr teve uma coluna, uma página ou mesmo um pequeno quadrado editorial, em que opinava sobre assuntos variados. Pois bem, em

5 de agosto de 1986, Millôr escreveu o seguinte no Jornal do Brasil:

“Amor nos tempos do cólera é excelente, mas definitivo é Memorial do convento, do português José Saramago”. A afirmativa gerou um grande movimento no Brasil, país já conquistado há muito pela literatura de Gabriel García Marquez e que experimentava pelo autor uma onda de curiosidade ainda maior naqueles anos que sucederam à sua escolha para receber o Prêmio Nobel de Literatura. García Marquez era referência para o leitor médio brasileiro e a publicação de Amor nos tempos do cólera havia tido um aparato de marketing fora do comum para os padrões locais. Nesse contexto, a declaração de Millôr agiu como um verdadeiro fermento: em poucos meses Memorial do convento ganhava uma segunda edição e antes do final daquele mesmo ano de 1986 viria ainda uma terceira. Naquela altura, José Saramago estava em vias de ir ao Brasil para participar num Seminário de Letras organizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e manifestou o desejo de conhecer Millôr Fernandes. A íntegra do encontro, havido em setembro de 1986 foi gravada por dois jornalistas e depois transcrita e publicada no mesmo Jornal do Brasil em 11 de outubro de 1986.

Hoje, com o auxílio da internet pode-se ler essa página do jornal, que está digitalizada e que recebeu o título editorial: “Millôr Fernandes entrevista Saramago”. José Saramago sempre valorizou muito a ação de Millôr para a divulgação de seu trabalho nesses primeiros anos de publicações no Brasil e, cerca de dois anos depois, em 23 de outubro de 1988, ao conceder uma entrevista ao Caderno de Cultura do Jornal de Brasília declarou: “Em relação ao Brasil eu não tenho dúvida que o êxito se deve muito a meia dúzia de palavras de Millôr Fernandes no Jornal do Brasil.” Mas atentemos para o grande conjunto de pessoas, de leitores, que esteve, anos antes, envolvido com leitura, ensino, produção de livros e divulgação da obra de José Saramago até que ele fosse, em 1986, ao encontro de Millôr Fernandes (que, por sua vez, também ‘arrastara’ parte de seus próprios leitores e admiradores em direção ao conhecimento do autor de um livro ‘definitivo’). A visibilidade oferecida pela coluna de Millôr e aumentada quando do encontro entre ele e Saramago, alavancou o interesse em torno de Memorial do convento. Em outubro de 1986, quando da publicação da matéria “Millôr Fernandes entrevista Saramago”, os periodistas que a assinavam afirmaram que as duas edições de Memorial do convento totalizavam então dez mil exemplares e que a terceira edição se encontrava em preparação. Dez mil exemplares de um romance constitui uma quantia muito expressiva para o Brasil, tanto em 1986 quanto no momento presente. A aposta editorial e a publicação da maior parte dos livros no Brasil busca atender a escolarização e formação de leitores que estão espalhados por um território gigantesco. A maior parte dos livros produzidos no país se destina a leitores com até décimo segundo ano. A porcentagem de leitores de literatura é pequena, e as tiragens de romances ainda costumam andar à volta de dois ou três mil exemplares. Dessa maneira, podemos avaliar o tamanho do interesse gerado sobre o público leitor a partir da intervenção de Millôr Fernandes. Creio ser boa hora para falar um pouco sobre a gentileza e extrema disponibilidade que José Saramago teve, ao longo de muitos anos, desde sua primeira ida ao Brasil, para visitar escolas, faculdades, seminários, colóquios e encontros literários. Contavam-me quando eu era aluna da Universidade de São Paulo (o que ocorreu a partir de 1997), da imensa boa vontade de José Saramago em comparecer, desde o início da década de 1980, diante de pequenos grupos de

estudantes e conversar perdidas horas, entre um compromisso e outro. A atitude generosa ajudou a construir, ano a ano, livro a livro, leitor a leitor, o enorme contingente de leitores que teve em anos subsequentes. Bom testemunho disso foi uma conversa em estilo “café acadêmico” - um formato que unia professores universitários e intelectuais em conversa livre que atraía o público que por ali estivesse passando - ocorrida na Universidade de São Paulo em meados da década de oitenta.

A conversa em questão entre os escritores José Saramago e Luandino Vieira foi

coordenada pelos professores Maria Apparecida Santilli e Benjamin Abdala Júnior e teve a participação de Carlos Guilherme Mota, diretor do Instituto que sediava o evento. Anos depois e sem precisar a data de realização, ela foi reproduzida por um periódico acadêmico, a revista Via Atlântica e se encontra disponível na internet. Sua leitura, hoje, nos mostra as preocupações dos escritores, sua postura diante das questões literárias e políticas e o despojamento com que se colocavam diante daquele específico público para com ele conversar (recomendo a leitura em http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via01/via01_02.pdf). A partir de 1988 e pela editora que acolheria todo o restante de sua obra, a Companhia das Letras, assistimos à publicação de A jangada de pedra e O ano da morte de Ricardo Reis (1988), História do cerco de Lisboa (1989), O evangelho segundo Jesus Cristo (1991). A partir de 1991, a publicação das obras de José Saramago no Brasil passou a se dar de maneira simultânea com a edição portuguesa, o que dinamizou sobremaneira a recepção da obra do autor, que passou, a parir de então, a ser fruído, no Brasil, no momento mesmo de sua publicação portuguesa e possibilitou ao leitor brasileiro a apreciação da obra na ordem de seu aparecimento. Para compor uma identidade visual para os livros de José Saramago foram delegadas capas ao artista plástico Hélio de Almeida, que, através delas, conferiu uma marca para as obras do autor que fez com que, ao longo dos anos seguintes, os livros do autor fossem imediatamente reconhecidos por seus leitores (o belo trabalho pode ser conferido no sítio da editora: www.companhiadasletras.com.br). Há ainda uma particularidade editorial a ser comentada: devemos a José Saramago e a uma imposição feita por ele uma importante mudança no que diz respeito à publicação de obras de literaturas de língua portuguesa no Brasil. Ele foi o primeiro autor a exigir que seus livros no Brasil não sofressem qualquer alteração ortográfica ou vocabular. Essa decisão de Saramago, acatada por sua editora brasileira, criou precedente e beneficiou inúmeras edições posteriores, em outras editoras também, de livros de autores dos países de língua portuguesa. Antes disso, a adaptação vocabular, por exemplo, era empregada com frequência e certa despreocupação, o que, em termos de literatura, causava deformações incríveis nas obras dos autores. Hoje os brasileiros podem desfrutar das obras literárias de muitos autores que usam o português em suas diversas

variantes conforme são publicadas em seus países de origem, sem intermediações desnecessárias e prejudiciais. A participação de José Saramago por duas vezes no programa Roda Viva, da TV Cultura (TV estatal de orientação educativa) nos anos de 1992 e 1997 ajudou a aumentar sua popularidade junto ao público em geral, ainda que esse público não fosse necessariamente leitor de suas obras.

A íntegra desses dois programas está disponível na internet (

http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/10/entrevistados/jose_saramago_1992.htm

)

e

http://midiaseducacao.blogspot.com/2012/02/jose-saramago-no-roda-viva-1997.html). Assistilos hoje possibilita perceber a dimensão social que, à época José Saramago e sua obra tinham no Brasil. Chegamos a 1998, ano da atribuição do Prêmio Nobel de Literatura a José Saramago.   Mais que uma voz dissonante, a partir da premiação, José Saramago destacou-se para o público brasileiro como arauto de causas polêmicas e sustentáculo de opiniões políticas corajosas. A notoriedade obtida garantiu repercussão mundial às suas opiniões e o Brasil, já contando com um expressivo público leitor da obra do autor, se inseriu nesse quadro. Seus discursos de intervenção social passaram a ser mais notados pelos brasileiros, ajudando a consolidar a posição de José Saramago como escritor corajoso e combativo, que soube fazer uso dos holofotes que teve voltados para si a partir da atribuição do prêmio para lutar em favor de causas relevantes. Entre os anos de 1998 e 2008, José Saramago tornou-se para o Brasil uma celebridade incontestável. A popularidade de José Saramago na primeira década do século XXI pode ser auferida por um episódio ocorrido em outubro de 2005, quando do lançamento de As intermitências da morte em São Paulo. Marcado o lançamento, que contaria com a presença do autor, foram fixados dia e hora para a distribuição de bilhetes de ingresso para o público que desejasse assistir à apresentação do livro, que contaria com um breve discurso do autor, intervenção musical e leitura dramática de trechos do livro por atores. O local escolhido foi um grande teatro, com capacidade para mil e quarenta pessoas. Abertas as bilheteiras eletrônicas para distribuição de dois ingressos por pessoa em vinte pontos distintos da cidade e alguns lugares do interior do Estado de São Paulo, em localidades distantes por vezes quinhentos quilômetros do referido teatro, todos os bilhetes se esgotaram em exatos vinte minutos.

O interesse em torno da obra e da personalidade de José Saramago ainda cresceriam vertiginosamente nos anos seguintes, nas mais diversas áreas, da acadêmica à cultural. O apogeu foi alcançado com o aparecimento do filme Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles em 2008, ano em que o mesmo teatro mencionado recebeu novamente José Saramago para a apresentação de A viagem do elefante (o teatro e seu foyer, em se formou imensa fila para autógrafos aparece em cenas do documentário José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, 2011). José Saramago tornarase, indiscutivelmente, para o bem e para o mal, uma celebridade no Brasil. Como professora acompanhei o crescimento do interesse pela vida e obra de José Saramago, de 1997 até o presente momento. Cabe-me dizer que muitos se interessam pela figura pública de José Saramago, pelo entrevistado brilhante que ele sempre se mostrou no Brasil, por suas opiniões políticas e por suas posturas enquanto cidadão, sem fazerem, no entanto, ideia sobre o escritor José Saramago. Tenho oferecido vários cursos sobre a obra de José Saramago, atuando tanto em universidades, como docente de graduação e pós-graduação quanto em cursos livres ministrados em equipamentos culturais no Brasil. Todos têm sempre imensa procura, as vagas oferecidas são rapidamente preenchidas e quase sempre me deparo com grandes listas de espera, às que procuro atender dentro das limitações que possuem os espaços. Quando começamos a ler as obras nos cursos, a surpresa do público tem sido uma constante. Praticamente não se veem desistências ou deserções em meio de cursos e tenho podido experimentar a mais deliciosa sensação que pode ter uma professora de literatura: a progressão geométrica de aparecimento de olhos brilhantes que acompanham cada uma das aulas. Considero que o principal desafio daqueles que conhecem bem a obra de José Saramago seja o de colaborar para a multiplicação de reais leitores para a produção literária do autor. Gostaria de partilhar uma última memória pessoal: minha lembrança da notícia da morte de José Saramago. Eu estava envolvida num projeto que enlaçava os universos acadêmico e cultural: “Para ver o invisível: Fernando Pessoa e José Saramago”, parceria da Universidade de São Caetano do Sul e do Serviço Social do Comércio de São Paulo e realizava naquele dia um trajeto longo em táxi para ministrar uma palestra para educadores e monitores da exposição homônima ao projeto que teria lugar meses mais tarde. Eu estudava no caminho quando o telefone móvel soou com a notícia. Chegando ao destino, já vários veículos de comunicação social telefonavam em busca de entrevistas sobre a morte daquele que foi ‘meu autor’ de cabeceira durante tantos anos.

Os temas abordados naquela tarde de trabalho em que muitos de nós ficaram profundamente emocionados pode ser lido nas páginas do blog que eu mantinha à época para registro de atividades como docente (http://blogliterariosesc.blogspot.com/2010/06/encontrona-ucsc-em-18-de-junho-e-texto.html). Sua leitura nos dá a dimensão emocional do que vivemos em conjunto naquele dia. Sim, creio que os neurocientistas têm razão, tenho nítidas as lembranças daquele dia, com detalhes como a roupa que eu vestia, a luminosidade do dia, a percepção dos livros em meu colo enquanto revia apontamentos para a palestra, como tenho bem clara ainda a recordação da sala ensolarada em que pela primeira vez tive um livro de José Saramago em minhas mãos, com a recomendação de leitura que tantas vezes me deleita recordar: ‘lute um pouco com ele’. Creio que, a essa altura, esteja respondida a questão inicial desta reflexão: como foi possível em 1992, numa cidade litorânea do Brasil, provinciana e distante da efervescência cultural e artística dos grandes centros, o primeiro encontro desta específica leitora com a obra de José Saramago? Pretendi com essa intervenção no Projeto “Oficina Saramago” oferecer um olhar brasileiro sobre a obra do autor essencial que é José Saramago. Agradeço imensamente pela oportunidade de fazer parte de tão belo projeto.

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