Um pequeno ensaio sobre a memória e desterritorialização na Era do Acesso

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MBA em Bens Culturais – FGV - T8 Cultura Digital Gerson Levi Lazzaris, PhD cand. –Julho de 2015

Um pequeno ensaio sobre a memória e desterritorialização na Era do Acesso Por Gérson Levi Lazzaris1 Introdução Este pequeno ensaio apresenta uma síntese conceitual e de aplicação de como o conceito de inteligência coletiva, tal como idealizado por Pierre Lévy (1999) pode ser aplicado na compreensão de uma nova memória cultural, tornado-a difusa e estabelecendo uma memória cultural em sociedades fundamentadas no conhecimento ou, como define Rifkin (2001), na Era do Acesso. Esta nova memória a concebemos através do que definiu Deleuze e Guatarri em Anti-Édipo (1972) como desterritorialização. Divido este paper em três momentos: i) Contexto histórico da emergência da memória na Era do Acesso; ii) Identidade e Desterritorialização; iii) Memória Cultural e Inteligência Coletiva. Como historiador, arqueólogo, indigenista e antropólogo quero compreender os supermemes que estruturam esta nova sociedade cibernética (COSTA 2012) em que a formação da identidade cultural não está mais exclusivamente calcada na formação étnica ou religiosa da identidade, mas, também, na distribuição difusa da alteridade e na composição do ser sem um território geográfico e processo histórico determinados. Trata-se de obter uma certa validade conceitual em aferir à Era do Acesso e à inteligência coletiva um novo lugar para a memória, superando os limites deste processo por Ricouer (2004). I. Contexto histórico da emergência da memória na Era do Acesso De acordo com Al Gore (2013), mudanças demográficas, globalização econômica, globalização da internet, integração tecnológica transdisciplinar, ambientalismo e uso eficiente dos recursos naturais compõem alguns dos desafios do século XXI. Todos estes aspectos mantêm um diálogo intrínseco de como a memória cultural será forjada nas próximas gerações, pois é cultural a solução dada a todos os desafios de como a futura força de trabalho global será organizada, deslocando-se identidades locais para a emergência de identidades globais. Tal como prenunciado pelos autonomistas italianos, o trabalho imaterial ganha maior valor em uma sociedade que se fundamenta no acesso ao conhecimento como vetor de integração (LAZZARATO & NEGRI 2003), remodelando não apenas a forma como criamos epistemes, mas como o trabalho articula-se com as formas de produção. O espaço que ganha o trabalho imaterial na sociedade pós-industrial permite a socialização do trabalho e a intelectualidade de massa, como Marx havia previsto no Grundrisse. A oposição entre massificação/nivelamento e aumento da autonomia e valorização da subjetividade crítica e lançou a base para uma sociedade pós-industrial em que a gestão e produção constroem socialmente o mercado (LAZZARATO & NEGRI 2003). Em diferentes escalas, todos estes desafios globais fundamentam políticas públicas que conciliem modernidade e identidade na construção da memória (BAUMAN 1999). Em face de mudanças demográficas drásticas, eventos de remodelação do espaço urbano e rural criam um diálogo de ruptura com o passado (MINSKY 1986). Adoto a perspectiva literária de Lyotard de que a memória cultural engendrada neste processo preserva mosaicos do passado acessível a todos e combina-se com os elementos comuns de continuidade narrativa empreendida pelo próprio cidadão-cientista, de tal forma que estes se re-signifiquem e/ou mantenham-se materialmente presentes na formação processual das identidades individual, local e regional. Face à globalização econômica, torna-se cada vez mais comum a seleção da memória contextual, isto é, de obter vantagens especificas ao apresentar como parte do passado pessoal ações globais que articulam-se com a projeção do indivíduo no presente e no futuro. O avanço da globalização da internet impõe um nível a mais de diálogo cultural, isto é, de uma plataforma de integração e inclusão social através de cultura digital que reflita o diálogo entre memória e sociedade, entre os modelos passados e aqueles por vir (HEYLIGHEN 2013). A arqueologia digital, por exemplo, entendida como um dos novos fundamentos da Arqueologia Pública, permite não apenas reproduzir monumentos do passado, como iniciado em 2012 pela CyArk2, mas reproduzi-los física e digitalmente, trazendo à tona todos os modus proocedendi das culturas que o produziram, materializando-se no presente e projetando-se em uma visão 1

Bacharel em Historia (USP 2003), Arqueologo (USP 2007), Master of Arts em Antropologia (Vanderbilt, 2012), PhD candidate, Department of Anthropology, Vanderbilt University; Culture Chief Officer do Grupo DOCUMENTO e aluno de MBA em Bens Culturais na Fundação Getúlio Vargas. 2 Ver conceitos e produtos da CyArk em http://cyark.org/projects/ .

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integrada com a engenharia de softwares do futuro (PUTNAM 2007) e, consequentemente, modelando novas formas de emergência da memória no campo digital. Ao produzir esta interface com o mundo real em ambientes virtuais, tem início uma nova tradição de estudos da memória, centrada nos registros e nas tecnologias desenvolvidas entre os séculos XX e XXI que ganharão mais significância neste século. II. Identidade e Desterritorialização Em um cenário global em que a integração tecnológica transdisciplinar fundamenta a transição de uma cultura ancorada no registro material escrito para um registro digital, a memória das culturas transfere-se, em grande medida, para um mundo virtual e armazenado em servidores distribuídos no Mundo, um ambiente cibernético (LÉVY 2000). Se a percepção ambiental, calcada na gestão de recursos naturais era levada a cabo por experiências piloto em interface com a própria natureza e sua modelagem direta, hoje passa-se à cibernética ambiental, onde as mesmas experiências podem ser melhor processadas em um ambiente virtual muito antes de ser implementadas na matriz material em que os recursos naturais e culturais existem. Este processo, em minha perspectiva lyotardiana (em referência ao filósofo Jean-François Lyotard), permite à memória a implementação legitima da simulação externalizada e dedutiva em vez do uso comum da memória seletiva e subjetiva, tão comum às biografias e livros de história que as transformam em literatura. Uso como exemplo o livro A Era dos Extremos, de Hobsbawn, que notoriamente utilizou-se de um banco de dados gigantesco de universidades e bibliotecas ao longo do mundo, com trabalho sistemático de estudantes e assistentes, pelo qual o processamento subjetivo lhe outorgou autoria da obra. Outros acadêmicos também utilizam este processo, mas ele torna-se ilegítimo ao passo que a memória difusa das muitas pesquisas de estudantes e assistentes tornam-se agora registráveis dentro do mundo virtual, aferindo participação visível na construção da memória e das narrativas históricas. Creio que seja exatamente aqui onde o conceito de Deleuze e Guattari de desterritorialização ganham forma. Se de um lado está já solidificada a perspectiva dos lugares da memória (NORA 19933), que permite diagnosticar e delimitar espaços da memória com delimitações geográficas e identificar nelas elementos de imaterialidade evocado por aquele local, por outro, esta memória digital cria-se independentemente dos lugares de memória ou deduzidos diretamente dele. Tratase de um não-lugar que concentra todas as possibilidades do devir, em que a memória se simula e fundamenta-se de acordo com sua posição em relação ao outro, numa exercício de alteridade com escala desconhecida ainda. Creio, contudo, que o conceito de desterritorialização de Deleuze e Guattari tornam o lugar da memória um entre muitos lugares em que a memória encontra representação. Significa dizer que na ausência de uma hierarquia na construção da memória, tal como proposta pelos historiadores em uma sequência cronológica e hierárquica, a memória digital constroe-se sobre uma base matricial e horizontal, aumentando o nível de complexidade das categorias e multiplicando seus significados, o que permite à identidade em formação diversos significados e operações antes de ser determinada, ganhando um corpo mais dinâmico e extrapolando os limites do indivíduo. Toda assembléia de dados da memória (sejam individuais, sociais, geológicos, paisagísticos, etc) é simultaneamente um movimento de territorialização (manutenção) e de desterritorializaçao (dissipação). Guattari e Rolnik (1986: 323) afirmam: O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie. humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais (GUATTARI e ROLNIK, 1986:323

Tal processo entendemos que está na própria dinâmica da memória. A memória digital excede este processo e ilustra-o perfeitamente, pois torna-se muito mais fácil simular, deduzir e 3

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-28, dez. 1993. Também se usa como referência o primeiro volume de Les Lieux de mémoire (dir.), Gallimard (Bibliothèque illustrée des histoires), Paris, 3 tomos : t. 1 La République (1 vol.,1984).

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eliminar no ambiente virtual do que nas relações entre pessoas e espaços no mundo real (BAUMAN 1999). Entendo que a memória na Era do Acesso estabelece dois movimentos ainda não inteiramente compreendidos: A. Do acesso múltiplo e simultâneo à construção da memória através de mecanismos de inteligência coletiva. Neste sentido, abre-se a possibilidade de um acesso múltiplo e amplo construído por inteligência coletiva, portanto menos passível de ser modelado de acordo com interesses individuais; B. Da dinâmica na construção da memória. A dinâmica na construção da história e na formação da memória inclui diversas simulações e constantes atualizações, como pode ser ilustrado por mecanismos de construção conjunta, tais como Wikipédia e outros opensources. Se no primeiro movimento a inteligência coletiva constrói a memória digital, há a possibilidade de uma uniformização e nivelamento para o qual o trabalho imaterial e o avanço do Grundrisse como teorizado por Lazzarato e Negri não se aplicam, pois o risco de nivelamento no mundo virtual assemelha-se àquele das relações de trabalho no mundo real, portanto incorrendo em diferença na essência da memória, mas apenas na sua representação e possibilidades entre memória digital simulada e memória subjetiva de indivíduos e instituições. Se isto se confirmar, não há substrato essencial e estrutural para considerar que a Era do Acesso de fato tenha mudado substancialmente a forma como se forma a memória, mas apenas como ela é acessada. O segundo movimento incorpora a inteligência coletiva como substrato essencial na concepção da memória, incluída aquelas não niveladas e exposição da antes obscura historia das minorias. Alinhavando este escopo teórico mais estruturalista e que tem fundamentado a valorização das diversas geografias da memória inscritas nos espaços reais e virtuais, creio que a memória torna-se um processo de arqueologia e genealogia, tal como pensada por Foucault, uma vez que ao debruçar-se sobre o passado material e sua representação nas memórias, observa-se um processo contínuo de inclusão ou exclusão do patrimônio cultural sob a validação de indivíduos, das instituições e das comunidades, contendo um mesmo local, artefato ou referência, múltiplos significados entre indivíduos e grupos sociais e uma representação geográfica que pode ser do lugar ou da memória (FOUCAULT 1980): III Memória Cultural e Inteligência Coletiva Ao ater-me ao segundo movimento que dá à memória um caráter dinâmico e com aspectos de simulações e constantes atualizações, credito uma ruptura na forma como historicamente a memória tem se formado. Ao contrário das tradições lineares e de escolas de pensamentos, em que um determinado tipo de raciocínio emergia em beneficio do mundo acadêmico e suas cátedras, a memória deixa de ser tema exclusiva em da ontologia e processos epistemológicos de alguns descendentes do Aufklärung e mergulha nas vielas mais estreitas de pequenas comunidades nas periferias dos sistemas urbanos ou de selvas instransponíveis da Amazônia: a memória é forjada pelos agentes do processo em vez de sê-la pelos historiadores post-factum. A memória não se digitaliza, ela molda os fatos do presente, tornando-se um vetor de transformação social, não mais enclausurada nos museus e instituições que a prefere resguardada em suas reservas técnicas e cujo especialista arqueólogo ou etnólogo torna-se tradutor de ontologias. Antropólogos tornam-se cada vez mais dispensáveis como porta-vozes e arqueólogos têm que dividir suas versões sobre um passado ignoto com as memórias ameríndias. Concilio o que Pierre Lévy entende como Inteligência Coletiva como horizontalidade, cooperação e partilha na construção da memória, assim como de que para produzir conhecimento não é necessário portar diplomas e artigos, basta possuir experiências ao longo da vida que possam ser compartilhadas por todos independentemente das tradições culturais das quais descende o portador da memória ou de seu veículo. Instrumentos delineados por este mecanismo coletivo, a acessibilidade às informações e a desterritorialização da memória cumpre o que a academia nunca se propôs: em trazer para agência da história das multiplicidades, sem coesão cronológica e em uma escala ainda desconhecida de Marx e seu Grundrisse. Bibliografia

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Toda bibliografia abaixo foi lida e consultada, porém, por ser um artigo de apenas três paginas, coloquei aquelas de citações direta no corpo do texto. AL GORE, Albert Arnold. O Futuro: seis desafios para mudar o Mundo. São Paulo, Editora HSM, 2013. BAUMAN; Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Zahar, 1999. COSTA; Rebecca D. Superando os Supermemes. São Paulo, Cultrix, 2012. DELEUZE; Gilles & GUATTARI; Felix. O Anti-Édipo. São Paulo, Editora 34, 2010. (Original de 1972) FOUCAULT; Michel. Language, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews. Ithaca, Cornell University Press, 1980. HEYLIGHEN; Francis. Self-organization in Communicating Groups: the emergence of coordination, shared references and collective intelligence. In A. Massip-Bonet & A. BastardasBoada (Eds.), Complexity perspectives on language, communication, and society, (pp. 117–150). Springer, 2013. HEYLIGHEN; Francis. Conceptions of a Global Brain: an historical review. Evolution: Cosmic, Biological, and Social, eds. Grinin, L. E., Carneiro, R. L., Korotayev A. V., Spier F. (pp. 274 – 289). Uchitel Publishing, 2011. HEYLIGHEN; Francis. The Global Superorganism: an evolutionary-cybernetic model of the emerging network society. In: Social Evolution & History. Vol 6 No. 1,p. 58-119, 2007. HEYLIGHEN; Francis. Accelerating Socio-Technological Evolution: from ephemeralization and stigmergy to the global brain. In: Globalization as an Evolutionary Process: Modeling Global Change. edited by George Modelski, Tessaleno Devezas, and William Thompson, London: Routledge, p. 286-335, 2007. HEYLIGHEN; Francis. 2001. Cybernetics and second order cybernetics, with C Joslyn. Encyclopedia of physical science & technology 4, 155-170, 2001. HEYLIGHEN; Francis. 1999. Collective Intelligence and its Implementation on the Web: algorithms to develop a collective mental map. Computational & Mathematical Organization Theory 5 (3), 253-280 JENKINS, Henry. Introdução. In: Cultura da convergência: a colisão entre os velhos e novos meios de comunicação. São Paulo: Aleph, 2009. Disponível em http://www.editoraaleph.com.br/site/media/catalog/product/f/i/file_1.pdf (Acesso em novembro de 2014) LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva: Por uma antropologia do ciberespaço. 5ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2007. LEVY, Pierre. Árvores de Saúde. Interface (Botucatu), Botucatu , v. 3, n. 4, fev. 1999 . Disponível em http://www.scielo.br/pdf/icse/v3n4/12.pdf (Acesso em novembro de 2014) LEVY, Pierre. As Árvores do Conhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1998 LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Editora 34, 1993. LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999A. LEVY, Pierre. Filosofia World: o Mercado, o Ciberespaço, a Consciência. Lisboa, Instituto Piaget, 2000.

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MAYER-KRESS, G., & BARCZYS, C. The global brain as an emergent structure from the Worldwide Computing Network, and its implications for modeling. The information society, 11(1), 1–27, 1995. Acessado em http://www.ccsr.uiuc.edu/web/Techreports/1990-94/CCSR-9422.pdf MINSKY, Marvin. The Society of Mind. New York: Simon & Schuster, Touchstone Book UNB, 1986. 339 pp. MINSKY, Marvin. The Emotion Machine. Commonsense Thinking, Artificial Intelligence, and the Future of the Human Mind. Simon & Schuster, 2006. 400 pp. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-28, dez. 1993. NORA, Pierre. Les Lieux de mémoire (dir.), Gallimard (Bibliothèque illustrée des histoires), Paris, 3 tomos : t. 1 La République (1 vol.,1984). PUTNAM; Robert. E Pluribus Unum: Diversity and Community in the Twenty-first Century (The 2006 Johan Skytte Prize). Scandinavian Political Studies 30 (2), junho de 2007. RICOEUR, Paul. Memory, History, Forgetting. Chicago, University of Chicago Press, 2004. RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso. São Paulo: Makron Books, 2001 ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion. A Construção do Meio ambiente Cultural: Reflexões e Práticas no Brasil. In: Direito, Educação, Ética e Sustentabilidade: Diálogos entre os vários ramos do conhecimento no contexto da américa Latina e do Caribe – Vol. 2. Bogotá, no prelo. WOLF; Erik Wolf & SILVERMAN; Sydel. Pathways of Power: Building an Anthropology of the Modern World. University of California Press, 2001

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