Um projeto em construção: uma deriva pelo espaço-tempo de New Babylon

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Utopia, Comunismo, Marxismo, Arquitetura e Urbanismo, New Babylon
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[-] Sumário # 5 EDITORIAL

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ENTREVISTA A CRISE DO PT E DO TRABALHO DE BASE NO BRASIL com MARCO FERNANDES

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ARTIGOS DOSSIÊ “CONSTANT” – Nota editorial

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CONSTANT E A VIA DO URBANISMO UNITÁRIO

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Guy Debord

NEW BABYLON - Um esboço para uma cultura

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Constant Nieuwenhuys

DESCRIÇÃO DA ZONA AMARELA

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Constant Nieuwenhuys

UM PROJETO EM CONSTRUÇÃO

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Uma deriva pelo espaço-tempo de “New Babylon” Daniel Cunha e Raphael F. Alvarenga

ESPAÇO SOCIAL E SOBREVIVÊNCIA DO CAPITALISMO

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A teoria da reprodução social de Henri Lefebvre Cláudio R. Duarte

FUTEBOL, CAPITAL, SADOMASOQUISMO

100

O espetáculo como pseudo-jogo e montagem perversa Cláudio R. Duarte

PACTO COM AS TREVAS

112

Uma leitura materialista de “Heart of Darkness” Raphael F. Alvarenga e Cláudio R. Duarte

A LOUCURA COM MÉTODO

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O Delírio e o Humanitismo nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba” Cláudio R. Duarte

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TRADUÇÕES LITERÁRIAS NO TEMPO PETRIFICADO – Introduzindo Brecht

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Rodrigo Campos Castro

O SOLDADO DE LA CIOTAT

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Bertold Brecht

LEITURAS E COMENTÁRIOS A IGUALDADE JURÍDICA SOB SUSPEITA

191

Joelton Nascimento

EXPEDIENTE

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Um projeto em construção Uma deriva pelo espaço-tempo de New Babylon Daniel Cunha Raphael F. Alvarenga

Lendo um artigo de Constant na biblioteca pública de Haia, mesa junto à janela, com vista para a Nieuwe Kerk, em dia parcialmente nublado, uma nuvem que fazia obstáculo à luz do sol se move, e a leitura torna-se desconfortável com a reflexão dos raios do sol no papel. Sem que se faça necessário nenhum esforço físico, nem mesmo o de apertar um botão, uma espécie de tela é baixada em frente à janela, de forma a suavizar a luminosidade e tornar a leitura novamente confortável. Este é apenas um exemplo banal de como a automatização já se realizou técnica e socialmente. De fato, o leitor que hoje se depara com os textos do pintor e arquiteto holandês Constant Nieuwenhuys sobre seu projeto “New Babylon”, elaborado durante anos a fio, talvez tenha a ligeira impressão de que, embora de forma negativa, ele já tenha se realizado. Pois a automatização já está aí, com as consequências que se sabe; o nomadismo com o qual sonhava ocorre na forma de migrações de trabalhadores precarizados e executivos que vivem no avião; as grandes arenas esportivas, até certo ponto, não deixam de ser espaços intensificados; em shopping-centers e condomínios de luxo fortificados já é possível mudar de ambiente conforme a vontade; a internet e o telefone celular concretizaram a telecomunicação intensiva; os supermercados que continuamente trocam as mercadorias de lugar e o ambiente fechado dos shopping centers cujo projeto dificulta o encontro das saídas e forçam o consumidor a percorrer a maior distância possível não deixam de ser uma espécie de labirinto; e assim por diante, até as superestruturas de Dubai. Tratar-se-ia de uma “babilônia da mercadoria”, por certo, mas que não deixa de ser uma demonstração ab absurdo da viabilidade de New Babylon. O que ainda impossibilita a sua realização efetiva não é a impossibilidade técnica, mas a não concretização dos pressupostos enumerados por Constant: os meios de produção e a terra ainda são propriedade privada e servem à produção de capital, muitos setores da produção só 62

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não são totalmente automatizados porque ainda é mais lucrativo explorar mão-de-obra barata (como o demonstra o exemplo bárbaro do corte de cana no Brasil, onde se trabalha literalmente até o esgotamento total e a morte), o tempo liberado pelas máquinas não gera liberdade, gera “desemprego”. Fundamental na concepção de New Babylon foi o encontro de Constant com Debord. Como lembra Mark Wigley, este último “apresentou a Constant uma crítica acabada da vida urbana, e Constant apresentou-lhe uma crítica acabada da arquitetura”1. Tanto Constant quanto sobretudo Debord já tinham consciência da tendência de que a automatização – e com ela o “fim” da sociedade do trabalho, quer dizer, do trabalho assalariado regulamentado – não implicaria necessariamente a emancipação da sociedade. Cabe então salientar que, embora intensificado, o espaço de um estádio de esporte é de igual maneira um espaço alienado, seguindo por assim dizer a mesma lógica da política burguesa: passivos e impotentes diante de um punhado de atores protagonistas, encontram-se milhares de espectadores, que só o são por terem abdicado sua potência social de transformação. Apesar de o shopping e os condomínios apresentarem ambientes cada vez mais “diversificados”, estes não são concebidos e produzidos pelos reais utilizadores, e isso justamente porque em termos de forma e de conteúdo restam prisioneiros da ética e da estética da mercadoria, que contornam os desejos e determinam as condutas, os modos de pensar e sentir. E assim por diante. Vale lembrar ainda que também a realização em negativo do nomadismo neobabilônico imaginado por Constant já fora criticada na época, por Debord principalmente, por exemplo, no capítulo VII da Sociedade do espetáculo, no qual revela, entre outras coisas, a lógica operando no turismo de massas: “É para se tornar cada vez mais idêntico a si-mesmo, para se aproximar o melhor possível da monotonia imóvel, que o espaço livre da mercadoria é doravante a todo momento modificado e reconstruído.” Ou ainda: “Subproduto da circulação de mercadorias, a circulação humana considerada como um consumo, o turismo, se resume fundamentalmente no lazer de ir ver o que se tornou banal. O ordenamento econômico da frequentação de lugares diferentes já é por si só a garantia de sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, também lhe retirou a realidade do espaço.”2

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Mark Wigley, The hyper-architecture of desire, Rotterdam, Witte de With, 1998. Guy Debord, La société du spectacle (1967), in: Œuvres, Paris, Gallimard, 2006, §§ 166 e 168, pp. 837 e 838.

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Já a Nova Babilônia de Constant pressuporia necessariamente a superação prática da pseudo-diversidade do mundo da mercadoria, a criação (individual e coletiva) incessante e sempre renovada de ambientes, habitações e situações. Porque o turista, o trabalhador precarizado e o empresário, por assim dizer “nômades”, dos dias de hoje não constroem seu mundo livremente, mas seguem cegamente circuitos pré-determinados pela formamercadoria: são mal alojados (vivem em apartamentos lúgubres ou em apertados quartos de hotel), mal transportados (diariamente presos em engarrafamentos, entediados nas intermináveis esperas em terminais rodoviários e aeroportos, entulhados como sardinhas em lata nos trens e metrôs, ou comprimidos em desconfortáveis poltronas dos moderníssimos ônibus e aviões), mal alimentados (engolindo às pressas uma comida estandardizada, plastificada, sem gosto), mal formados (entretidos contínua e incessantemente no analfabetismo modernizado e nas superstições espetaculares), hiperativos e apressados (dispondo no dia a dia de muito pouco ou nenhum tempo qualitativo, para sesta, leitura, atividade lúdica)... Como dizia ainda Debord, no seu último filme: “Eles são estreitamente compelidos a residir num espaço único: o mesmo circuito de domicílios, escritórios, rodovias, férias e aeroportos sempre idênticos.”3 É o espaço (hoje mundialmente) unificado pela mercadoria, edificado através de uma série de alienações, que reúne e mantém juntos os indivíduos mas na condição de isolados uns dos outros, separados de seu próprio movimento social etc. Nesse sentido, a sociedade tal qual está organizada hoje em dia nada tem a ver com a New Babylon, que é, ou deveria ser, seu avesso crítico por assim dizer. Isto não significa que New Babylon não deva ser problematizada, pelo contrário. Devemos aceitar o convite do próprio Constant e jogar com New Babylon, modificá-la, corrigila, atualizá-la segundo as necessidades, os desejos e as possibilidades de nosso próprio tempo. Hoje se vê que Constant não parecia naquele contexto (anos 50 e 60) estar tão consciente quanto Debord da possibilidade de desvirtuação de suas ideias neobabilônicas. Por exemplo, em um texto sobre as viagens, ele chega a dizer que os aeroportos seriam uma espécie de embrião do nomadismo neobabilônico4. Ora, quem já esteve num aeroporto abarrotado de “homens de negócios” e turistas indo para a Disney sabe que não é bem assim. É fato que Constant se baseia principalmente no automóvel para o nomadismo babilônico. No artigo 3 4

Guy Debord, In girum imus nocte et consumimur igni (1978), in: Œuvres, op. cit., pp. 1339-40. Cf. Constant Nieuwenhuys, “Over het reizen” (1966), in: Opstand van de Homo ludens. Een bundel voordrachten en artikelen, Bussum, Brand, 1969.

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“Traffic in towns”5, ele diagnostica o problema do automóvel sob dois aspectos: o primeiro pelo fato de o congestionamente ser condicionado por picos de tráfego (entrada e saída do local de trabalho, início e fim do final de semana e férias etc.) que são decorrentes da sociedade do trabalho, tanto no aspecto temporal quanto no espacial. Numa sociedade sem trabalho, porém, argumenta ele, não existiriam picos, pois os deslocamentos se dariam “uniformemente” tanto no tempo quanto no espaço. O segundo aspecto, continua ele, diria respeito ao fato de o tráfego decorrer mais do problema de estacionamento do que de deslocamento. Isso porque os automóveis passam a maior parte do tempo estacionados, e não em movimento. Na visão de Constant isso ocorreria devido à propriedade privada dos veículos, razão que o leva a propor o uso de “automóveis brancos” (mesmo conceito das bicicletas brancas), ou seja, automóveis públicos que ficariam à disposição dos usuários, o que resolveria por assim dizer o problema do estacionamento, visto que os veículos estariam sempre ou quase sempre em movimento. Em suma, os automóveis brancos, a reconfiguração das cidades e a abolição do trabalho resolveriam o problema do deslocamento com autómovel. Debord foi muito mais crítico do automóvel na qualidade de objeto-fetiche do capital, objeto completamente irracional (se comparado a trens, metrôs, bondes elétricos, embarcações a vela, bicicleta... de um ponto de vista ecológico e social, bem mais racionais), assim como o avião (altamente poluente), que não teriam muito sentido numa sociedade pós-capitalista. No entanto, sem dúvida, socializando e apartando o automóvel do espaço social central, Constant apresentou uma alternativa que muda substancialmente o significado social do automóvel, assim como o fez com a produção industrial em geral. Ainda assim, é necessário problematizar a concepção de Constant sob pelo menos um aspecto: a questão energética. Constant parece pressupor, por um lado, que não haja limites para a exploração da natureza. O que também se manifesta na proposta de que New Babylon pressupõe um “abastecimento coletivo [material] ampliado”6, e na confiança cega na energia nuclear (a única menção à energia no texto sobre New Babylon é a centrais nucleares!). Ora, não se pode esquecer que grande parte da produção atual não passa de suporte para o valor de troca, com pouca ou nenhuma utilidade social, quando não francamente destrutiva, e seria abolida em uma sociedade liberada; de outro lado, a energia oriunda de fissão nuclear está sujeita a limites (as reservas de urânio, etc., são

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in: Opstand van de Homo ludens. Een bundel voordrachten en artikelen, op. cit. Constant Nieuwenhuys, “New Babylon”, texto publicado nesta edição de Sinal de Menos.

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finitas); e a fusão nuclear (essa sim seria praticamente infinita, usando o mesmo princípio dos fenômenos físicos que ocorrem no sol) até hoje não pode ser desenvolvida de forma controlada. Além disso, por mais que se possa fazer com que os riscos tendam a zero, sempre há a possibilidade de um acidente nuclear, e basear-se exclusivamente nela para New Babylon é algo mais do que questionável. A partir do contexto do século XXI, a energia solar parece estar mais de acordo com a configuração de New Babylon7; ela é suficientemente abundante para satisfazer as necessidades do homo ludens, apesar de que ainda precisa ser desenvolvida em escala e eficiência. Sob este aspecto – as suposição de explorabilidade sem limites da natureza – talvez New Babylon realmente necessite ser reformada, pois ainda concebida com pressupostos “pré-ecológicos”. Note-se, no entanto, que a intensificação do espaço proposta por Constant possibilita grande economia de energia para o transporte (viagens), já que em um pequeno espaço “tem-se tantas experiências quanto dando a volta ao globo na sociedade do trabalho”. Também a quase completa artificialização do ambiente e separação da natureza e da produção pode não agradar a todos. Pensadores como Ivan Illich e Murray Bookchin, de profundo conhecimento ecológico, tinham visão distinta. O primeiro, ao invés da automatização total, defendia que temos que “aprender a inverter a estrutura profunda das ferramentas atuais [...] As pessoas precisam de novas ferramentas com as quais trabalhar, e não ferramentas que ‘trabalhem’ por elas. Elas precisam de uma tecnologia que aproveite ao máixmo a energia e a imaginação de cada um, e não mais escravos bem programados”8; Bookchin defendia uma “tecnologia liberadora”, qualitativamente transformada, que potencializasse o “estímulo da atividade produtiva” dos homens: “Eles podem submergir o maquinário cibernético em um mundo tecnológico subterrâneo, divorciando-o completamente da vida social, da comunidade e da criatividade [...] [Mas] uma sociedade emancipada pode muito bem querer assimilar o maquinário à artesania [...] A máquina liberará a labuta do processo criativo, deixando a seu acabamento artístico ao homem [...] A máquina, com efeito, participará na criatividade humana [...] Em uma comunidade liberada a combinação de

Para essa questão, veja-se Daniel Cunha, “Queimando o futuro? O pré-sal como ilusão tardia e alavanca emancipatória”, in: Sinal de Menos, n° 4 (fevereiro de 2010), pp. 82-94. 8 Ivan Illich, Tools for conviviality, New York, Harper and Row, 1973. 7

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máquinas industriais com ferramentas artesanais poderia atingir um grau de sofisticação e interdependência criativa sem paralelos em qualquer período da história humana”9. Sobre este assunto, Constant responde a si mesmo em sua auto-entrevista: “O medo da técnica é reacionário. A liberação das massas só se torna possível com o desenvolvimento tecnológico. O desenvolvimento criativo das massas depende da automatização da produção. Para a realização de New Babylon, a técnica é uma condição sine qua non. Além disso, não penso que a natureza possa oferecer um pano de fundo satisfatório para o desenvolvimento cultural do homem do futuro”10. Talvez aqui se reflita o ambiente artificial da Holanda de Constant (lembremos também as infinitas planícies dos setores, ainda que ambas as características tenham justificativa técnica e social no projeto). Mas nem por isso se pode dizer que Constant fosse completamente insensível ao mundo natural: lembre-se que nos interstícios da rede de setores há espaços para bosques e reservas naturais. Na própria “racionalização da produção” está contida a questão ecológica, como exposto em um texto anterior: “a poluição do ar, da água e do solo tornou-se uma ameaça direta à vida humana, tanto aqui [na Holanda] como em outros países industrializados. Esta ameaça só pode ser eliminada eliminando a sua causa, isto é, com uma racionalização internacional da produção, que só é possível se os meios de produção se tornarem propriedade comum”11. E se não deixa espaço para a artesania (“produtiva”), oferece todo um mundo à diposição do homo ludens que potencializa ao máximo o jogo e a criatividade. É interessante notar que, em muitos aspectos, alguns setores da New Babylon foram concebidos como espécies de détournements dos melhores aspectos de cidades realmente existente (Berlim, Amsterdam, Paris, Barcelona...). New Babylon seria pensada como uma Aufhebung em larga escala do mundo urbano capitalista. Assim, não se trata meramente de uma projeção arbitrária e abstrata de uma cidade ideal, mas do exercício crítico-imaginativo indicando as possibilidades e os limites da urbs capitalista. Constant e Debord pensam numa reapropriação do conjunto das condições materiais reunidas na cidade capitalista moderna, na forma urbana criada e regida pela mercadoria, mas no sentido de superá-la qualitativamente, Murray Bookchin, “Towards a liberatory technology”, in: Murray Bookchin, Post-scarcity anarchism, Black Rose Books, 1986. 10 Constant Nieuwenhuys, “Autodialoog over New Babylon”, in: New Babylon, catálogo de exposição no Museu Municipal de Haia (Haags Gemeentemuseum), 1974. 11 Constant Nieuwenhuys, “A few propositions concerning the concepts ‘face of the earth’, ‘urban development’ and ‘art’” (1971), in: Mark Wigley, The hyper-architecture of desire, op. cit. 9

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negando o que nela há de regressivo, de alienado e de destruidor, em suma de irracional (do ponto de vista do nível já atingido pelas forças produtivas da sociedade), mas também conservando e elevando a um patamar superior o que já apresentam como pressuposto ainda não posto (ou posto somente enquanto pressuposto). Também no aspecto técnico New Babylon é um desvio: ali estão, desviados, Buckminster Fuller, os Smithsons, os playgrounds de Aldo van Eyck. Em seu projeto, Constant aplicou materiais e técnicas inovadores em seu tempo. Hoje, novas técnicas talvez pudessem ser aplicadas. Outro aspecto digno de interesse é que Constant integra noções como “espaço público” (como se sabe, uma noção burguesa), “crítica da vida quotidiana” e “direito à cidade” (Henri Lefebvre), e as articula com a ideia de homo ludens (Johan Huizinga). Tudo isso pressupondo a automatização, que já estava mais ou menos na ordem do dia. O que não deixa de fazer de New Babylon uma “utopia”, decerto, mas uma utopia crítica, quer dizer, não no sentido pejorativo que o termo adquiriu, de projeto imaginário ilusório ou descabido, porque, do ponto de vista técnico, é totalmente realizável, além de concebido desde o princípio como tal, a partir tanto do possível, do ponto de vista das forças produtivas, quanto do necessário para que a humanidade não soçobre indefinidamente em estados cada vez mais bárbaros, brutais e insustentáveis. O próprio Constant definia o projeto da seguinte maneira: “Sonho fantasista realizável do ponto de vista técnico, desejável do ponto de vista humano e indispensável do ponto de vista social.” O que não significa dizer que é realizável imediatamente, aqui e agora, nas coordenadas capitalistas, sem as inúmeras mediações práticas necessárias numa perspectiva superadora, o que significaria recair no idealismo. Vale lembrar que Constant detestava o funcionalismo de Le Corbusier, cujas obras a seu ver reforçavam o estado moderno de submissão do trabalhador assalariado, prisioneiro do círculo vicioso do morar, trabalhar, circular e se divertir. Num colóquio realizado na faculdade de arquitetura de Delft, em 2000, ao ser interpelado sobre o que pensava do fato de numerosos aspectos de New Babylon terem sido reapropriados por arquitetos contemporâneos, diversos de seus fragmentos tendo sido erigidos em monumentos no mundo todo para celebrar o capitalismo supostamente triunfante, Constant respondeu com sobriedade: “Eles se contentaram em pegar as formas sem o conteúdo. Minha forma fora concebida em função do

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conteúdo. Aliás, eu sempre disse que New Babylon jamais seria realizável na sociedade atual. E não seria realizável com minhas formas; são os neobabilônios quem a realizarão.”12 New Babylon pressupõe um “urbanismo unitário”, conceito situacionista cunhado por Debord para desigar a “teoria do emprego do conjunto das artes e técnicas concorrendo à construção integral de um meio em ligação dinâmica com experiências do comportamento”13. Numa sociedade automatizada e emancipada do capital, da qual New Babylon é um modelo imaginativo baseado em possíveis imanentes, a arte de forma geral, e a arquitetura em particular, assim como a política e o trabalho, desapareceriam enquanto esferas de atividade separadas, dissipando-se no social, integrando-se à práxis sensível, numa grande elaboração coletiva unitária do espaço social urbano, concebido como um terreno lúdico destinado ao exercício da criatividade e da participação. A hipótese com a qual trabalhavam Constant e Debord era simples: se se dispõe de uma base técnica e material que já permite libertar a humanidade do fardo do trabalho abstrato heterônomo, rotineiro, monótono e mutilador, esta mesma base permite igualmente libertar as forças culturalmente criativas da sociedade dos limites estreitos que lhes impõe a privatização capitalista do saber, da informação, da riqueza social de modo geral. A divergência que inevitavelmente acabou por separar os dois residia no fato de Debord achar mais importante se concentrar no árduo trabalho preparatório da Revolução, enquanto Constant já se punha a imaginar a vida na “idade de ouro” pós-revolucionária. Não impede que os dois pressupusessem a capacidade política de organização do proletariado e vislumbrassem no horizonte uma ruptura radical e qualitativa, uma transformação social inédita, nada menos que a saída da pré-história da humanidade. Nas palavras de Debord – que de resto resumem extremamente bem os pressupostos teóricos do projeto de Constant: “A história que ameaça este mundo crepuscular é também a força que pode submeter o espaço ao tempo vivido. A revolução proletária é essa crítica da geografia humana através da qual os indivíduos e as comunidades terão de construir os locais e os acontecimenos correspondendo à apropriação, não somente de seu trabalho, mas de sua história total. Nesse espaço movimentado do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia do lugar pode se

Testemunho de Francesco Careri, “New Babylon. Le nomadisme et le dépassement de l’architecture”, in: Philippe Grand (org.), Constant, une rétrospective, Paris, Musée Picasso Antibes, 2001, pp. 42-65, aqui p. 43. 13 Guy Debord, “Définitions” (1958), in: Œuvres, op. cit., p. 358. 12

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reencontrar, sem reintroduzir um apego exclusivo ao solo, e por aí trazer de volta a realidade da viagem, e da vida compreendida como uma viagem tendo em si-mesma todo sentido.”14 Em suma, dotados dos meios de aplicar sua potência social criativa à construção da vida prática emancipada, os neobabilônios, por não terem paradeiro definido, seriam – parafraseando Baltasar Gracián – os verdadeiros donos e usufruidores do tempo. New Babylon é também uma crítica do sujeito. Hilde Heynen afirma que “estranhamente, esta imagem utópica do futuro nos desperta mais temores do que aspirações: viver na pura indeterminação não parece imediatamente ser a realização de nossos desejos e aspirações mais profundos”15. Esta angústia diante da liberdade, ausente das maquetes e textos de Constant, parece aflorar em suas pinturas, que ele considerava parte fundamental do projeto, tanto quanto as maquetes e os textos. Nelas, as pessoas (ausentes nas maquetes) parecem frágeis, e por vezes há vestígios que lembram sangue ou violência. New Babylon parece demonstrar o que diz John Holloway: “A realidade e o poder estão tão mutuamente incrustrados que meramente levantar a questão de dissolver o poder é dar um passo além da realidade. Todas as nossas categorias de pensamento, todas os nossos pressupostos sobre o que é a realidade, ou o que é a política ou a economia ou mesmo onde vivemos, são tão permeadas pelo poder que o simples fato de dizer ‘não!’ ao poder nos faz precipitar em um mundo vertiginoso, no qual não há pontos de referência fixos para apoiar-se a não ser a força do nosso ‘não!’ [...] Tentar teorizar o anti-poder é vagar em um mundo em grande medida inexplorado”16. New Babylon é uma provocação, uma tentativa de tensionar a defasagem entre o existente e o possível, e não um projeto a ser realizado em todos os seus detalhes (até porque não é detalhado, mas “apenas” um “esquema”), e nenhuma das problematizações aqui levantadas retira o seu interesse. Sendo aquela defasagem hoje ainda mais gritante, o projeto talvez seja inda mais instigante do que quando foi concebido. New Babylon é antes de tudo um exercício de imaginação desejante, uma concepção de situações (possíveis) que a um tempo desestabilizam e fertilizam a situação presente. Serve sobretudo para instaurar a distância necessária em relação à (des)ordem presente, a fim de mostrar em negativo a possibilidade de

Guy Debord, La société du spectacle, op. cit., § 178, p. 842. Hilde Heynen, Architectuur en kritiek van de moderniteit, Sun, Nijmegen, 2001. 16 John Holloway, Change the world without taking power, Pluto Press, 2003. 14 15

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uma ordem inteiramente outra. A utopia aqui (como aquelas do Renascimento de certo modo, e ao contrário do socialismo utópico, das colônias isoladas das forças produtivas da civilização) tem um sentido preciso de crítica do urbano realmente existente. Nesse sentido, as cidades emancipadas só poderão surgir e se desenvolver plenamente a partir e por meio do uso nãocapitalista dos recursos materiais das cidades capitalistas. Hoje em dia, principalmente no seio da academia, mas também em meios militantes, as teorias revolucionárias de Debord e os projetos pós-revolucionários de Constant soam como extravagâncias pueris. Numa época como a atual, de tempo social morto, presente hipertrofiado, horizonte político de expectativas nulo e barbárie galopante, quiçá a radicalidade, a tenacidade e a força imaginativa de que davam mostras sejam exatamente o que precisamos resgatar. É nosso desejo que os textos que traduzimos no presente número contribua por pouco que seja nesse sentido.

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