Um realismo entre elites? O sertão como objeto literário.

August 31, 2017 | Autor: Felipe Bier | Categoria: Literature, Literary Criticism, Literary Theory, Brazil, João Guimarães Rosa, Antonio Candido
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Em 1979 vinha a público a comunicação escrita por Antonio Candido "O papel do Brasil na nova narrativa" na ocasião do encontro que delineava as características marcantes da ficção latino-americana. De maneira significativa, este texto chegou até nós em sua versão definitiva, no livro A educação pela noite, com a supressão da primeira parte do título. Chamado apenas de "A nova narrativa", o papel do Brasil pode ter sido elidido apenas por questão editorial. Mas não é difícil pensar em outras razões para o ocorrido. Candido aponta para as semelhanças com o contexto hispano-hablante apenas como limite de sua exposição: o aporte histórico, menos do que evidenciar a história comum, caminha pelo trilho da diferença, almejando com isto tornar claro o ponto de vista brasileiro enquanto suporte para a comparação.
Pode-se afirmar, assim, que a verve comparatista é subsumida a outra tendência, que se sabe muito forte na crítica de Candido: a de se pensar a literatura de modo a esvaziar as noções de vogas literárias, e de se fortalecer aquelas de formação e forma. Deste modo, a intervenção de Candido, a ênfase na relação entre história, acúmulo literário e resultados formais puxa o centro de gravidade da análise para os motivos tanto da ênfase no "papel do Brasil" do título do texto, bem como de sua posterior supressão.
A história das nossas letras, descrita por Candido, obedece ao conhecido ritmo de seu empenho na apreensão de um objeto brasileiro. Ressoando trabalhos mais importantes do crítico, "A nova narrativa" abreviadamente posiciona o objeto de análise de sorte a ressaltar o árduo processo de sedimentação de uma forma periférica. Vê-se, assim, que os ganhos técnicos de nossa narrativa só têm algum sentido comparativo quando postos sob o ponto de vista das intenções da forma, peculiarmente brasileira, em relação à história do país.
Entretanto as inserções críticas do ensaio em questão têm de enfrentar uma instabilidade: a saber, um efeito de dispersão ressaltado por Candido como traço principal da nova literatura e que torna 'o papel do Brasil' um significante vacilante. Isto é, muito embora o crítico demonstre conhecer a fundo a produção contemporânea à escrita da comunicação, o texto culmina num sentimento de impossibilidade de agrupar tais tendências em torno de uma linha de sentido que torne palpável uma tradição brasileira.
A perda do fio da tradição encontra um lastro histórico específico, tornado evidente pelo próprio autor:

O decênio de 1960 foi primeiro turbulento e depois terrível. A princípio, a radicalização generosa mas desorganizada do populismo, no governo João Goulart. Em seguida, graças ao pavor da burguesia e à atuação do imperialismo, o golpe militar de 1964, que se transformou em 1968 de brutalmente opressivo em ferozmente repressivo./ Na fase inicial, período Goulart, houve um aumento de interesse pela cultura popular e um grande esforço para exprimir as aspirações e reivindicações do povo (...). O golpe não cortou tudo desde logo, mas aos poucos. E então surgiram algumas manifestações de revolta, meio caóticas, berrantes e demolidoras, como o Tropicalismo. Na verdade, tratava-se de um processo transformador que teve como eixo os movimentos estudantis de 1968 e desfechou num anticonvencionalismo que ainda hoje orienta a produção cultural, (...) a busca entre patética e desvairada de uma situação de catch-as-catch-can em atmosfera de terra de ninguém (CANDIDO, 2006, p.252, primeiro e terceiro grifos meus).


O papel do Brasil na cultura pós-golpe, percebe-se, se caracteriza pela negação de um padrão tradicional. Torna-se claro que, para Candido, a guinada à direita e novos padrões de produção e disseminação culturais, se não interrompem, pelo menos minam um fio de coerência que, desde o século XVIII, dava sentido à ideia de literatura nacional. Neste sentido pode-se dizer que, se antes caminhavam juntas, crítica e literatura se dissociam no contexto pós-golpe.
O efeito de contraste gerado pela constatação da falência de uma tendência literária geram as seguintes questões: primeiro, o que afinal define a tradição brasileira formada? Segundo, que processos históricos são estes que, por um lado, tornaram possível a cristalização de uma forma difícil como a brasileira; por outro foram desbaratados pela ditadura? Não é difícil, através das formulações de Antonio Candido e de seu maior sucessor, Roberto Schwarz, encontrar pistas para estas questões. Para Candido o caminho percorrido na Formação da literatura brasileira segue uma convicção clara: a de que a emancipação diante da literatura portuguesa coincide com a necessidade de as elites políticas do país se agruparem em torno de um projeto político comum. Candido consegue seguir as pistas do vai e vem da literatura dos séculos XVIII e XIX com esta preocupação em mente. E o que dá liga a esta relação entre literatura e sociedade é a ideia de empenho, traço que o crítico nota como dado visível em nossas letras. Isto quer dizer que a formação de uma tradição dependeu em grande parte de um senso de necessidade de se falar do Brasil, de dar ao país um tratamento formal mais ou menos adequado às nossas peculiaridades sociais. Traço paradoxal para qualquer um que esteja a par do desenvolvimento da literatura europeia, na qual a arte construiu em torno de si um discurso de independência formal que só seria questionado com o aparecimento das vanguardas. Mas o mérito de Candido é exatamente perceber que estes mesmos parâmetros críticos não podem ser simplesmente aplicados no caso brasileiro sem gerar distorções graves de análise. Neste sentido, todo o esforço da Formação da literatura brasileira é portanto o de ajuste de olhar que possibilite ver o caráter empenhado de nossa literatura – que muitas vezes beirou o ridículo, mas também produziu autores da envergadura de Alencar – menos como um defeito formal e mais como o próprio arreio crítico que dá sustentação à relação entre sociedade e forma.
Se esta relação foi capitaneada pelas elites políticas, o que significa afirmar, com Candido, que a literatura brasileira se forma com Machado de Assis? Esta é a pergunta de fundo dos estudos de Schwarz sobre o autor, a saber, o que faz Machado ser tributário a um processo de acumulação formal (sobretudo o romantismo brasileiro) e ser ao mesmo tempo sua superação? Nas linhas de análise que proponho aqui, a resposta a esta pergunta tem a ver com a maneira como Machado percebeu o empenho na literatura como um traço de classe, conseguindo, sobretudo com os volteios de seus narradores, fazer refluir o cinismo de um projeto elitista de formação do país para dentro da própria forma. Não é à toa, portanto, que Candido feche sua Formação com o elogio ao ensaio machadiano que versa sobre o "instinto de nacionalidade" que, menos como motivo da prosa, deve ser seu motor interno. Neste ponto, enfim, a literatura se forma porque crítica e forma ganham consciência de si, elevando seu alcance a uma voltagem inédita em terras brasileiras.
Para além da genialidade inquestionável de Machado, a pergunta que se deve fazer é: quais as condições históricas que possibilitaram este refluxo do empenho no momento específico de sua produção? Seguindo o raciocínio, devemos supor que algo acontece com o tal projeto de nação, ou melhor, algo acontece com as próprias elites ao final do século XIX. Depois de um período de relativa bonança no reinado de Pedro II, a introdução da cultura cafeeira no sudeste e o constrangimento crescente à escravidão geram rachaduras em um projeto coeso de país. A saber, parte das elites, sobretudo a paulista, se dinamiza e entra definitivamente na dinâmica capitalista do final do século, enquanto sua outra grande porção gravita em torno deste setor dinâmico como fornecedora de mercadorias secundárias e, principalmente, como fornecedora de mão-de-obra, cujos fluxos já denunciam, mesmo antes da abolição, a transferência de força de trabalho que se estabeleceria com a nova república. Trocando em miúdos, o que acontece no subsolo da história brasileira no final do século é um fenômeno de concentração de poder e de capital que muda a organização política brasileira. Desta realocação se pode rastrear o grande engenho de Machado, que conseguiu capitalizar este movimento de decadência e perda de poder de elites tradicionais, cujos métodos de domínio estavam francamente baseados em prerrogativas coloniais. Este é o lugar social do além-túmulo de Brás Cubas, ou do ressentimento acusatório de Bentinho.
Em resumo, o que distancia Alencar de Machado é que no primeiro o empenho literário podia ser subsidiado por uma visão tradicional do país, na qual as disparidades de um mundo semi-burguês, convivendo com a escravidão, podiam ser sustentadas por uma visão segura do patriarcado. Já no segundo a conta não fecha, o que para Schwarz denota a relativa fraqueza da primeira fase machadiana. Sobram-lhe as carcaças, a funcionar como que num giro em falso, como os volteios da própria forma machadiana. A forma de Machado, neste sentido, encharca-se de consciência crítica e carrega para dentro de si o funcionamento do capitalismo brasileiro de final de século.
Tocando neste problema do rearranjo econômico e hegemônico das elites, o historiador Luiz Felipe de Alencastro descreve, no artigo de 1987 "A pré-revolução de 30", o processo de intensa mudança que caracterizou as primeiras décadas do século XX como uma passagem de uma xenofagia de mão-de-obra, na qual o tráfico negreiro e a vinda maciça de imigrantes se igualavam formalmente, para uma endofagia, que se caracteriza pelos trânsitos intersetoriais internos de força de trabalho. Trata-se, é claro, de uma transição difícil que só se cristalizaria por completo nas reformas experimentadas após 1930. Mas destas tensões é possível entender por que o olhar citadino se volta renovado à vida das populações rurais não-cativas, isto é, para a vida dos dependentes pobres. Deste rearranjo se pode depreender a chave com que a literatura regionalista ganha fôlego nas primeiras décadas do século passado. Se não me engano, com raras exceções a vida do sertanejo pobre passara pelo escrutínio de nosso empenho literário. Mesmo no caso de Alencar com seu Sertanejo, obra tratada neste curso sobre os sertões, o interesse pelas peculiaridades desta formação social ainda é subsumido à chave romântica, que acomoda uma visão tradicional e conciliatória de país, em cujo centro se nota uma visão patriarcal quase inabalável.
A junção de discurso racional e positivista ao objeto sertanejo torna-se portanto uma novidade na literatura brasileira, e neste sentido Os sertões de Euclides da Cunha seja talvez a obra fundamental deste período, pois reflete em sua própria forma algo como uma agonia ideológica das elites que, em vista da impossibilidade manter um diálogo intramuros entre a burocracia estatal e as oligarquias locais, veem-se obrigadas a virar o olhar para este objeto estranho, porém necessário. Proponho como hipótese, portanto, que o sertanejo passa a figurar no radar da literatura empenhada por duas razões que se vinculam entre si: primeiro pelos motivos já citados, uma intensa necessidade de as elites políticas pensarem novos rumos para o trabalho; segundo, porque estas tensões, que ao cabo redundariam na revolução de 1930, geram distúrbios impensáveis em uma ordem assentada em quatro séculos de modelo patriarcal de domínio social, como é o próprio caso de Canudos.
Novamente, talvez o trabalho de Euclides seja aquele que melhor uniu estas duas preocupações, forjando finalmente o sertão como objeto próprio. Um objeto que é ao mesmo tempo espaço, sociabilidade e temporalidades específicos. Mas é algo a mais do que isto tudo. É algo como um outro radical com que a literatura não precisara se haver antes. Em termos literários, portanto, o objeto sertanejo reúne em si dois pontos de interesse que tiveram papel chave na formação da literatura brasileira, que é o discurso das elites articulado em torno de um conhecimento e projeto de país. Só que pela primeira vez este objeto é rebelde no sentido de que escapa a uma representação estável e habita num vácuo social, que é a falência da ordem patriarcal tradicional. Abre-se assim uma perspectiva inédita para as letras brasileiras: por um lado, a literatura empenhada inclinava-se ao conhecimento do Brasil. Por outro, a movimentação do chão social instava uma resolução não-tradicional destas arestas produtivas.
Chegamos enfim à caracterização da tradição a que Candido aludiu no texto de 1979: por um lado uma literatura que conversa entre si e já tem um olhar razoavelmente estável; do outro, um objeto novo, à busca de representação. Dentro deste panorama, qual seria o lugar de Guimarães Rosa nesta tradição? Aqui as palavras do próprio Candido, quando da publicação de Sagarana em 1946, nos ajudam na resposta:

Sagarana significa, entre outras coisas, a volta triunfal do regionalismo do Centro. Volta e coroamento. De Bernardo Guimarães a ele, passando por Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Monteiro Lobato, Amadeu de Queirós, Hugo de Carvalho Ramos, assistimos a um longo movimento de tomada de consciência, através da exploração do meio humano e geográfico. É a fase do pitoresco e do narrativo, do regionalismo 'entre aspas' (...). Fase ultrapassada, cujos produtos envelheceram rapidamente, talvez à força de copiados e dessorados pelos menores. Fase, precisamente, em que os escritores trouxeram a região até o leitor, conservando, eles próprios, atitude de sujeito e objeto. O sr. Guimarães Rosa construiu um regionalismo muito mais autêntico e duradouro, porque criou uma experiência total em que o pitoresco e o exótico são animados pela graça de um movimento interior, em que se desfazem as relações de sujeito e objeto para ficar a obra de arte como integração total de experiência. (CANDIDO, 2002, p.186, grifos no original).


Note-se que, nesta chave de leitura, para Candido parece evidente que os desafios que Rosa enfrenta são, de alguma forma, os mesmos que Machado enfrentou ao final do século XIX. A saber, a necessidade de internalizar ou formalizar a tensão que habitava a literatura regionalista, resumida por Candido como um problema entre sujeito e objeto. Diante de toda esta discussão, torna-se claro que o problema entre sujeito e objeto não é uma questão ontológica resolvida por Rosa, mas sim, em termos adornianos, um questionamento sobre a posição do narrador ou da voz que fala sobre o sertão. Em outras palavras diríamos que em torno da ideia de sujeito é coagulada a inclinação da literatura integrar um conhecimento do país; em torno do objeto, ter-se-ia esta coisa que é o sertão: um objeto revolto e em constante movimento, premido por pressões tradicionais de um lado e modernizantes de outro.
Apenas a título de apontamento pois o tempo é generoso porém curto, toquemos em algumas características da prosa rosiana para que tais assuntos se tornem mais palpáveis. O olhar atento a sua primeira obra publicada, Sagarana, por exemplo, mostra como a diversidade de tons e abordagens à matéria sertaneja compõem uma verdadeira estratégia de aproximação formal da tradição a este objeto. Com exceção de talvez apenas uma novela, Minha gente, há um traço reconhecível que une esta estratégia em torno de um esforço comum, que é a apropriação da forma de narração matuta; isto é, a apropriação do causo. Para aqueles não familiares a este tipo de narrativa, trata-se quase sempre de uma história de um acontecido, de um fato excepcional que ocorreu ao narrador, a uma pessoa conhecida ou então um caso notório e que circula de boca em boca. O causo pode se aproximar da fábula em alguns sentidos, contendo um ensinamento moral como fecho, mas em sua maioria, acredito, caracteriza-se pela atenção à excepcionalidade do ocorrido como forma de suspensão do juízo sobre "as coisas do mundo". Ou seja, em termos formais, trata-se de um tipo de narrativa que se utiliza de processos causais de explicação dos fatos – fulano fez isto, ocorreu aquilo como consequência – para no fim jogar contra a própria causalidade – aconteceu algo que a dedução simples dos fatos não explica. Neste sentido o causo se coloca como que nos antípodas da tradição do romance moderno, que fez do esmiuçamento dos processos objetivos e subjetivos de um certo problema o seu traço principal. Já o causo brinca com a possibilidade de um efeito sem causa, abrindo assim a possibilidade de se explicar o acontecido através do pensamento mágico, por exemplo.
Dentre os muitos usos que Guimarães Rosa faz desta forma de narração em Sagarana, o principal talvez seja o de pôr, na boca do narrador, a forma-causo. É o que se vê, por exemplo, na novela que recebeu menos tratamento até hoje da crítica: "Sarapalha". Trata-se da história de um vilarejo perdido no sertão, dizimado pela malária. O tom inicial dita as cores do causo: "Tapera do arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato entupiu" (p.151). Note-se que o narrador se coloca numa meia distância, contando um acontecido extraordinariamente alocado no passado, mas fala-se de um lugar que podia ser qualquer outro: aconteceu de ali haver uma cidade inteira, tendo boa gente e terra boa para o arroz, antes de ser varrida pela doença. Este meio passo entre uma distância e uma familiaridade com o acontecido é a marca do causo, que fica entre o testemunho e uma história coletivamente compartilhada.
Este tom, no entanto, é quebrado quando o narrador especifica seu local de narração. Ele diz: "É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantelada (...) e tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborcado, cabisbaixos, quentando-se ao sol" (p.153). A partir deste "aqui" o leitor é jogado na absoluta contemporaneidade dos fatos em uma célula mínima de ação, que é aquela encerrada na conversa entre primos Argemiro e Ribeiro, que passam o dia sofrendo com os sintomas da malária, sobretudo com os delírios que a febre lhes causa periodicamente. O narrador portanto passa de uma posição central de explicação dos fatos para colocar-se ao lado da situação dialógica, servindo a partir de então somente como apoio para que as duas personagens conduzam o resto da narrativa.
Este é um momento de essencial mudança de estratégia: o narrador, portador da voz que fala, resume-se então à função de anotar espaço e tempo em que se dá o diálogo entre as duas únicas vozes humanas em cena. Deste posto lateral, ele serve também como ponto de apoio para sugerir os efeitos da doença no delírio dos primos, explicando ao leitor como funcionam os acessos, a interação com o mosquito etc. Trocando em miúdos, nota-se que a voz citadina, e sobretudo a voz do médico interiorano Guimarães Rosa, arma uma situação em que ela mesma aparece somente como suporte e veículo do objeto, que no caso é a interação entre as duas personagens. Em outras palavras, o narrador arma uma narrativa anti-romanesca, que é o causo, para depois trair sua intenção inicial e mostrar a processualidade por trás da estrutura rígida da narrativa simples. Percebe-se assim como o ardil do narrador é necessário para a impressão desta processualidade a partir do objeto: como disse Antonio Candido, não se trata da voz culta arranjando os fatos de modo a produzir uma história coerente. A voz que narra parte, primeiro, da distância que a forma-causo lhe proporciona e depois da total imobilidade da cena em si para passar a voz ao objeto sem no entanto ausentar-se inteiramente. Vejamos como isto se dá.
A partir do diálogo entre os primos o leitor é levado, pouco a pouco, a descobrir que há entre eles uma tensão amorosa: o desejo de um primo pela mulher do outro. O conflito libidinal torna-se o moto implícito da narração, pois sabe-se que uma hora ou outra a comunhão entre os primos deve se romper diante da revelação do conflito. Ao mesmo tempo em que a memória comum da prima Luísa emerge dos escombros paralisados da cena, o leitor é também introduzido a uma historicidade anterior a ela, em que Sarapalha funcionava como qualquer outra fazenda interiorana. Ou seja, a vida sertaneja encontra vazão narrativa através dos delírios dos primos e, desta forma, o passado começa a se mostrar uma força de pressão sobre o presente ossificado. Neste ponto a armação narrativa se mostra fundamental, pois a colocação do narrador ao lado da malária permite que sua voz deslize da explanação da subjetividade de Primo Argemiro para os seus delírios, que o levam à lembrança desenfreada do amor pela prima Luísa e à eventual confissão. Este é o evento que traz à tona a vida plena da fazenda funcional: ficamos sabendo o que houve, como um boiadeiro encantou Prima Luísa e a levou embora, como Primo Argemiro veio para a fazenda somente por causa de Luísa, mas ficou pelo amor ao Primo Ribeiro, como este enfim era o antigo proprietário, e sendo assim tem como última prerrogativa o direito de falar: "Este caco de fazenda ainda bem que é meu... Anda! Anda!... Não quero ver você mais..." (p.171).
O efeito gerado por essa armação narrativa é digno de nota. Não só a expectativa inicial do causo é quebrada, pois que no fim o que emerge não é uma história fantástica, mas sim a presença viva de conflitos reais e palpáveis da vida sertaneja. Mas a própria fissura criada pela confissão de Primo Argemiro inutiliza por completo a função do narrador como autoridade, de modo que este, ao final da novela, somente justapõe anotações da flora por onde Primo Argemiro passa quando vai embora aos conteúdos presentes na consciência deste último. Na trilha de Antonio Candido, portanto, percebe-se como a armadura específica do legado tradicional da narrativa sobre o sertão – o olhar citadino sobre o objeto sertanejo – acaba sendo subsumido ao objeto narrado, de modo a neutralizar sua autoridade.
Mas, como palavras finais a esta longa exposição, é importante lembrar que, novamente num espírito adorniano, reclama-se que a potência de Rosa está nesta voz do objeto não como expressão de uma pureza ontológica (ou seja, a expressão límpida do que é o ser-sertão). O objeto aqui tem o sentido carregado de uma tradição convulsionada, e assim sua verdadeira expressão formal depende da inclusão desta tensão entre a voz do campo e a voz da cidade. Ou seja, objeto é a própria tensão social entre proprietários e dependentes numa escala local, elites decadentes e elites din micas numa escala ampliada. Por isso Rosa ainda faz parte da tradição: por incluir em sua forma precisamente estas tensões num gesto formal de totalização.
Ainda no artigo de 1987, Luiz Felipe de Alencastro comenta que se a Lei de Terras de 1862 sela um pacto entre as elites tradicionais, a legislação trabalhista que emerge a partir de 1930 tem o mesmo valor de pacto para a burguesia industrial no sentido de criar o aparelhamento burocrático necessário para que esse desenraizamento de populações tradicionais fosse possível. Na esteira desta conclusão, resta-nos dar mais um passo: concluir que o golpe de 1964 quebra este último pacto e redireciona os caminhos do desenvolvimento industrial brasileiro, tirando a direção do processo de suas elites locais ao mesmo tempo em que institucionaliza uma política de repressão sistemática à classe trabalhadora. Traz-se assim à tona o conteúdo de uma tese que se quer dialética: a de que o enfraquecimento paulatino das elites é sentido, nas narrativas brasileiras, não só como o ponto-de-vista da ruína patriarcal, mas como a própria perda do narrador empenhado, que era, no fundo, desde o período de formação, a instância que permitia alguma totalização dos processos sociais no interior da forma.
Mas desta fraqueza, e aqui está o pulo dialético, nasce a última possibilidade de envolver o empenho em uma voz passiva: ao fazê-lo, o que emerge é esta imagem de um outro que é o sertão. A meu ver é este processo que Rosa formaliza.




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