Um rio sem margens? O negativo e o nada na linguagem

July 3, 2017 | Autor: Carolina P. Fedatto | Categoria: Languages and Linguistics
Share Embed


Descrição do Produto

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito

UM RIO SEM MARGENS? O NEGATIVO E O NADA NA LINGUAGEM Carolina P. Fedatto Pós-doutorado /UFF/UFMG-Capes Supervisão: Profª. Drª. Bethania Mariani

Em trabalhos anteriores venho pensando sobre o papel da negação e sobre a diferença entre vácuo, vazio e nada (Fedatto, 2013, 2014). Avançar nessa distinção seria uma forma de elaborar um dos estatutos da negação, a saber: seu caráter de nada, ao lado de seus sentidos de oposição, de inversão e de ausência – falta ou vazio. Neste texto, proponho uma reflexão sobre a questão do negativo na linguagem – que toca a instância do significante e os contornos do signo – e sobre o horizonte do nada em relação ao sentido – que resvala no materialismo e no real do acaso. Para isso, alguns recortes do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, serão trabalhados como metáfora para pensarmos as bordas e o abismo do sentido. Lançaremos mão também de jogos significantes sugeridos por textos poéticos de Caetano Veloso, João de Barros, Haroldo de Campos e Wisława Szymborska. Buscaremos assim explorar os limites conceituais entre vácuo, vazio e nada visando à discussão do nada em relação ao real, ao não-sentido e ao silêncio, tal como propostos por Eni Orlandi (1992 e 1998). O objetivo dessas considerações teóricas é colocar em questão os sentidos do não na linguagem, no sujeito e na história, suas possibilidades de resistência, sua potência divisora e sua carga de diferença. Comecemos, pois, pelo vazio. O dicionário de símbolos aproxima vácuo e vazio, definindo-os como a possibilidade de se “libertar do turbilhão de imagens, desejos e emoções”, de “escapar da roda das existências efêmeras” (Chevalier e Gheerbrant, 1993, p. 932, grifos nossos). Em termos físicos, no vácuo há ausência de matéria, mas ainda assim há alguma coisa: energia. O vácuo e o vazio são fenômenos do mundo físico (no espaço sideral e no interior do átomo há mais vácuo do que matéria, por exemplo), mas podem ser produzidos artificialmente, como um efeito, um resultado ou um processo. Isso a Física atesta, já que há sempre vácuo de alguma coisa. E esse esvaziamento é maior do que a própria matéria. 1 Já o nada, podemos pensá-lo não como processo, mas como condição. O nada não se produz, não se simula, não se explica. O nada é. Real. 1

Deixo meu agradecimento a Pedro Schio, doutor em Física pela UFSCar e pela Universidade Pierre e Marie Curie – Paris VI, pelas conversas sobre o tema. Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________

O Barco! Meu coração não aguenta Tanta tormenta, alegria Meu coração não contenta O dia, o marco, meu coração O porto, não!... Navegar é preciso Viver não é preciso... O Barco! Noite no teu, tão bonito Sorriso solto perdido Horizonte, madrugada O riso, o arco da madrugada O porto, nada!... Navegar é preciso Viver não é preciso... O Barco! O automóvel brilhante O trilho solto, o barulho Do meu dente em tua veia O sangue, o charco, barulho lento O porto, silêncio!... Navegar é preciso Viver não é preciso... (Caetano Veloso Os argonautas, 1969) Aqueles que se aventuram pelas vias da reflexão sobre a linguagem nem imaginam os perigos que correm. Tal como argonautas enviados a uma expedição ousada e sem fim, ficamos muitas vezes à deriva, sem comando, sem barco e sem norte, levados apenas pela desconfiança de que navegar é preciso. Junto com tantos outros, estou – estamos – nessa nau de Arcos em busca do mítico velocino de ouro, talismã perdido, roubado, inencontrável. Mas fazer pesquisa é isso mesmo: não há descanso, nunca se encontra o que se busca. Topamos é com o acaso que muitas vezes se impõe. Nos meus estudos sobre a negação dei de cara com um imprevisto exigente, desses que desviam a atenção da gente para palavras desacostumadas. Nada foi essa palavra. Pelo não, veio o nada. Não, nada, silêncio, como na

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

28

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________ canção expedicionária de Caetano.2 Canção que pode ser um indício de que essas três instâncias se relacionam. Também os versos “As três palavras mais estranhas”, da poeta polonesa Wisława Szymborska, apontam certo paralelo significante entre o nada e o silêncio: [...]Quando pronuncio a palavra Silêncio, suprimo-o. Quando pronuncio a palavra Nada, crio algo que não cabe em nenhum não ser. [...] A prática linguageira dessas palavras as coloca em suspenso. Dizer “silêncio” revoga o que ele poderia ser. Dizer “nada” evoca algo que ultrapassa o não ser, evoca um abismo, buraco sem fundo constitutivo de qualquer (não) ser. Eni Orlandi propõe o silêncio como fundante: o real do discurso é o silêncio (1992, p. 31). A autora o toma também como condição, como movência que é recortada, estancada pela palavra. Com isso, produz uma distinção entre: 1) o silêncio fundador – que existe nas palavras significando o não-dito, abrindo espaço na cadeia significante – e 2) a política do silêncio; esta se subdivide em silêncio constitutivo – ao dizer de determinada forma necessariamente deixamos de dizer de outra – e silêncio local – a censura, o que é proibido dizer em determinada conjuntura. Ao compreender que o silêncio é fundador, Orlandi nos mostra que, enquanto sujeitos de linguagem, estamos sujeitos a um funcionamento ausente, e por isso, passível de sempre significar diferentemente, com ou sem palavras. Quero argumentar que o nada teria algo em comum com esse caráter fundador do silêncio. Eis algumas pistas para um primeiro desvio pelo conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, cujos caminhos de não retomo a seguir.

As margens O pai era cumpridor, ordeiro, positivo, mais quieto e desajuizado, mas não mais triste que os outros. A mãe era firme, pragmática e mandava no cotidiano da casa. Belo dia, o pai encomenda uma canoa. A mãe ficou desgostosa, mas o homem “nada não dizia”; disse mesmo adeus, sem falar. O menino, ainda que temeroso da desaprovação da mãe, acompanhou o pai até a beira do rio; só não foi junto, desamarrado como a canoa, porque o homem fez gesto pra ele voltar. Esse pai, que não foi a parte alguma, nunca volta, mas está sempre à vista lá no meio do rio, ilhado em seu abandono, sua doideira, promessa ou quarentena. Os parentes apostavam na falta de mantimento para que o desajuizado apeasse do bote e voltasse pra casa. Mas o filho era seu cúmplice e punha no vazio de um barranco a 2

Agradeço a Ana Cláudia Fernandes Ferreira que generosamente me despertou para esta canção no debate que se seguiu à conferência “Formas de dizer não e outros conflitos” que proferi na Univás, em outubro de 2014. Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

29

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________ rapadura, a broa e a banana que a mãe displicente deixava de sobra pelas gamelas. Vieram tio, mestre, padre, soldado, jornalista para ocupar as funções paternas na família ou convencer o homem a desistir da tristonha teima. “Tudo o que não valeu de nada”. Tiveram que se acostumar, chuva e sol, meses, anos e o pai lá sozinho no brejo, sem falar nem ser falado. Salvo por trapaça do menino que, elogiado por um feito, se regozijava em repetir que foi o pai quem lhe ensinara. No devagar depressa dos tempos, muita coisa mudou, só pai e filho ficaram de resto, com as mesmas bagagens da vida. O pai cada dia mais velho, o filho culpado do que nem sabe, querendo que as coisas fossem outras... A saída que encontrou? Trocar de lugar com o velho, que concordou. Pela primeira vez, o chamado do filho ressoa no pai, mas chega a um destino inesperado, insuportável. “Eu não podia”, diz o garoto. Apavorado, ele fugiu, adoeceu, falhou, faliu. O pai se foi mundo afora, ninguém mais soube. Depois de desertar do compromisso com o pai, o filho se pergunta sobre sua condição humana. “Sou o que não foi, o que vai ficar calado.”, sentencia de si. Espera agora que a vida se abrevie e que o depositem numa “canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras (...)” (Rosa, 1962/1988). Ao topar com o imperativo da negação, o filho se vê numa terceira margem, num espaço indefinido. A terceira margem é aquela que não encaminha o rio, aquela que o leva a uma abertura que beira o infinito, o indistinto. Aquela que o confunde com a terra, que forma lama, um nada de mundo, pura indistinção, como na bela tradução que faz Haroldo de Campos do Gênesis, essa cena mítica de origem do mundo cristão. Antes de Deus, antes que Deus fizesse a distinção entre as coisas, as nomeasse: “E a terra era lodo torvo/ E a treva sobre o rosto do abismo”.3 A assonância lodo torvo e a imagem de um abismo com rosto – que pode olhar e ser olhado, mas ainda não se olha por estar encoberto – são recursos poéticos que remetem ao nada, ao indistinto que pode dar origem a um mundo. O abismo, segundo o dicionário de símbolos, designa aquilo que é sem fundo, seja nas profundezas ou nas alturas indefinidas. Todos os estados ainda sem forma da existência: do caos das origens às trevas dos últimos dias. Da indeterminação da infância à indiferenciação da morte, da decomposição à integração suprema. O inconsciente (Chevalier e Gheerbrant, 1993, p. 5). O não-sentido (Pêcheux, 1982; Orlandi, 1998). Abismo, indistinção, morte: outros nomes do nada.

3

Meu agradecimento à psicanalista Janaína Rocha de Paula pelo estalo poético que essa tradução me provocou. Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

30

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________ O nada Estudando a negação dei de encontro com o nada. E também esbarrei no modo como Manoel de Barros faz o nada aparecer: O que não sei fazer desmancho em frases. Eu fiz o nada aparecer. (Represente que o homem é um poço escuro. Aqui de cima não se vê nada. Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver o nada.) Perder o nada é um empobrecimento. (Manoel de Barros, Livro sobre nada, p. 343) A estruturação da língua expõe, de alguma forma, o nada que a sustenta. Desmanchar o que não se sabe em frases é se deixar levar pelas relações in absencia, pelo eixo das associações, pela metáfora, pelo jogo fortuito das assonâncias e dos sentidos, pela analogia, pelo palavra-puxa-palavra que tanto diz sobre o inconsciente e a ideologia. A linguagem em funcionamento mostra um nada que toca o poço escuro do sujeito, esse poço cujo fundo (falso) dá a ver o nada. A ideia do negativo tem também uma longa trajetória na filosofia, trajetória que merece ser estudada, pois é uma ideia fundadora! N’O ser e o nada, Sartre aborda o problema do nada investigando as origens da negação. Na linguística sabemos de seu caráter fundamental: diz Saussure que o signo linguístico é negativo, justamente porque não tem sentido em si, mas na relação com os outros elementos do sistema. E o significante é o puro não-sentido, a pura diferença, o cúmulo do negativo. O significante também tem a ver com o nada. Pensar sobre a negação me levou ao silêncio e ao nada, porque dizer não tem a ver com ausência, com abandono. Em seu fazer poético sobre o nada, Manoel de Barros também tropeça no abandono. No pretexto do Livro sobre nada, o poeta retoma a intenção de Flaubert, expressa numa carta, em escrever um livro sobre nada. O nada de Flaubert procurava negar as exigências românticas de centralidade do eu e da razão em busca de uma literatura apenas literária, em que só o estilo, não o assunto, importasse (Coelho, 1994). Já o nada de Manoel é, como ele diz, “o nada mesmo”: É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo etc. etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora (Barros, 2010, p. 327).

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

31

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________ Mais do que olhar para o encantamento das palavras de Manoel, queremos atentar para a teoria de linguagem que delas exala. Para o autor, o nada tem a ver com desutilidade, é o avesso da pragmática, é contrassenso, antítese entre mundo real e fantasia, contradição entre o que é e o que não pode ser, antirreferencialismo no exercício da palavra. Em sua metagênese linguística, Manoel trabalha arduamente para fazer o que é desnecessário, tenta enxergar as coisas sem feitio, deseja estar em estado de palavra, propõe a desutilidade poética, exalta o desacontecimento. Esse é o nada para o poeta. Uma antipragmática.

O acaso “O materialista, ao contrário, é um homem que pega o trem andando sem saber de onde ele vem nem para onde ele vai.” (L. Althusser, O futuro dura muito tempo)

Esta concepção vai na direção do que Althusser denominou materialismo do encontro, em um artigo escrito em 1982 e inédito até 1994. O materialismo do encontro expõe justamente a importância do desvio na produção de encontros imprevistos: Epicuro nos explica que, antes da formação do mundo, uma infinidade de átomos caíam, paralelamente, no vazio. Eles caem sempre. O que implica que antes do mundo não havia nada e, ao mesmo tempo, que todos os elementos do mundo existiam desde toda a eternidade antes da existência de algum mundo. O que implica também que, antes da formação do mundo, não existia nenhum sentido, nem causa, nem fim, nem razão, nem desrazão. A não-anterioridade do sentido é uma das teses fundamentais de Epicuro [...] (Althusser, 2005, p. 10).

Para a tradição filosófica ocidental, o logos – essa razão fundada na objetividade da linguagem – é responsável pela antecedência do sentido sobre a realidade. Segundo o materialismo de Althusser, antes da realidade não há sentido, há um pendor, uma inclinação ou uma declinação. Para definir isso que há antes do mundo, Lucrécio, leitor da filosofia epicurista, introduz o conceito de clinamen4 como sendo justamente esse desvio infinitesimal na trajetória dos átomos que caem

4

“Quando os corpos são levados em linha reta através do vazio e de cima para baixo pelo seu próprio peso, afastam-se um pouco da sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão somente o necessário para que se possa dizer que se mudou o movimento” (Lucrécio apud Althusser, 2005). Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

32

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________ em linha reta, alterando minimamente o paralelismo entre eles e provocando um encontro com o átomo vizinho. Considerar que na origem há o nada, ou um desvio que é nada, seria a grande audácia de Epicuro. O tema das origens, no entanto, é caro à filosofia materialista: Dizer que no início era o nada ou a desordem é se instalar aquém de qualquer montagem e de qualquer ordenação, é renunciar a pensar a origem como Razão ou Fim para pensá-la como nada. À velha pergunta: “Qual é a origem do mundo?”, esta filosofia materialista responde: “o nada” – “coisa alguma” –, “eu começo por nada” – “não há começo, porque não existiu nunca nada, antes de qualquer coisa que seja”; portanto, “não há um começo obrigatório para a filosofia” – “a filosofia não começa por um começo que seja sua origem”; ao contrário, ela “pega o trem andando” (Althusser, 2005, p. 25).

Mas, segundo Althusser, é preciso ultrapassar a contingência do encontro: para que o desvio dê lugar a um encontro do qual nasça um mundo, é necessário que ele dure, que não seja um “breve encontro”, mas um encontro durável, que se torna, então, a base de qualquer realidade, de qualquer necessidade, de qualquer sentido e de qualquer razão. Porém, o encontro pode também não durar e, então, não há mundo (Althusser, 2005, p. 10).

E o sentido pode tanto se dar como falhar, como em todo ritual (Pêcheux, 1978, p. 301). O que quer dizer que, no pensamento materialismo, há uma brecha para considerarmos o nada como fundador. Os elementos já estão aí e além, prontos para chover, mas eles só existem a partir do momento que “a unidade de um mundo os tenha reunido no encontro que constituirá sua existência” (Althusser, 2005, p. 14). E mesmo depois de acontecer, nada garante a duração do encontro, pois o fato consumado não é a certeza de sua perenidade. Althusser diz que a história é a revogação permanente do fato consumado por um outro fato indecifrável a se consumar “sem que se saiba antecipadamente nem onde, nem como o acontecimento de sua revogação se produzirá” (Althusser, 2005, p. 14). O fato é que é sempre possível que essa mexida aconteça. Que o sentido advenha do não-sentido, nas palavras de Pêcheux (1982). Por aí também, podemos dizer que o nada tem algo a ver com o acaso do encontro e com “o duro desejo de durar” (Paul Éluard?), desejo que se impõe mesmo ao que não dura.

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

33

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________ O ser Sobre a relação entre o nada e a subjetividade, Manoel de Barros também oferece pistas interessantes. Em muitos versos, o poeta expõe o flerte do nada com a solidão e o abandono. Não podemos deixar de pensar que há uma relação do sujeito, e do desejo, com o nada. Vejamos a epígrafe que Manoel coloca na segunda parte do Livro sobre nada, intitulada “Desejar ser”: “O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser” (Padre Antônio Vieira, Paixões humanas apud Barros, 2010, p. 337). Conhecemos a maestria de Manoel com as palavras, o modo bonito que ele tem de mobilizar o sujeito que advém delas, a relação intrincada que sua poesia expõe do sujeito com as palavras, seus deslizes. Manoel borra as margens que formam o rio, que distinguem a água da terra. Explorando a metáfora do rio, que vem do conto de Guimarães Rosa evocado acima, podemos dizer que as águas seriam a língua (fluida, como diz Eni Orlandi) e a terra, o sujeito (em sua ilusão de ser firme, solo fértil, chão, alicerce, base): o Ser da tradição filosófica existencialista, idealista e fenomenológica. E o que nos diz Sartre, no auge do existencialismo, sobre o ser e o nada? Não pude deixar de mergulhar nessa leitura nova, desafiadora e bela! A segunda parte d’O ser e o nada se ocupa justamente do “problema do nada”. E o primeiro capítulo trata da “origem da negação”. Para Sartre, o Ser está no centro de tudo, tudo gravita em torno do Ser. O descentramento do sujeito, legado do estruturalismo que influenciou a AD e a psicanálise lacaniana, nos afasta dessa posição. Mas o pensamento de Sartre traz ideias fundamentais para refletirmos sobre a negação e o nada. Não vou explorar o fio condutor de sua argumentação aqui. Queria apenas pontuar que essa leitura tem me permitido compreender o estatuto imaginário e ideológico do Ser e sua relação com o não-ser, o papel da interrogação e da negação na construção do Ser, do existente, do sentido. Tem me permitido tentar diferenciar não-ser e nada, noções que em muitos momentos do texto de Sartre ficam confundidas. Se, como bem entende o filósofo, o não-ser depende do ser, isto é, o ser é anterior ao não-ser; o mesmo não podemos dizer do nada, porque, do ponto de vista materialista, entendemos que o nada seria o outro nome do real. O nada se impõe a qualquer possibilidade de ser. O nada é condição. Tenho pensado no nada como fundo falso que se abre ao acaso, poço sem fundo, rio sem margens, abismo, indizível, aquilo que não tem sentido nem nunca terá. Esse resto, esse som de nada de onde irrompe a língua, como diz Saussure nos

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

34

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE _____________________________________________________ manuscritos de Harvard. “A borda que a língua não borda” (Abrahão e Sousa, 2014), essa aposta no devir. Isso em que não nos cabe tocar.

Referências ABRAHÃO e SOUSA, Lucília. Do significante ao Significante: onde Saussure e Lacan não se encontram. Comunicação apresentada no V GTDis – Discurso: significante ou sentido?. Inédito. UFF, Niterói, 25 e 26 de novembro de 2014. ALTHUSSER, Louis (1982). A corrente subterrânea do materialismo do encontro. Trad. Mónica Zoppi-Fontana. Crítica marxista, n.º 20. Rio de Janeiro: Revan, 2005, pp. 09-48. BARROS, Manoel de (1996). Livro sobre nada. In: Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, pp. 325-353. CAMPOS, Haroldo de. Bere’shith: a cena da origem. São Paulo: Perspectiva, 2000. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 7ª edição. São Paulo: José Olympio, 1993. COELHO, Marcelo. Cartas são a pior parte da obra de Marcel Proust. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 2 de janeiro de 1994. FEDATTO, Carolina P. Inconsciente e ideologia nas formulações linguísticas do conflito. Anais do VI Seminário de Estudos em Análise do Discurso. Porto Alegre, 2013.

FEDATTO, Carolina P. Formas de dizer não e outros conflitos. Conferência de abertura III SIMDT. Inédito. Univás, Pouso Alegre, 22 de outubro de 2014. LUCRÉCIO, Tito. Da natureza. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1973. ORLANDI, Eni (1992). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 2002. ORLANDI, Eni. Do não sentido e do sem sentido. In: JUNQUEIRA FILHO, Luiz Carlos Uchôa. (Org.) Silêncios e luzes: sobre a experiência psíquica do vazio e da forma. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, pp. 57-66. PARRET, Herman. Le son et l’oreille. Six essais sur les manuscrits saussuriens de Harvard. Limoges: Lambert-Lucas, 2014.

PÊCHEUX, Michel (1978). Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1997. PÊCHEUX, Michel (1982). Delimitações, inversões, deslocamentos. Trad. José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, n.º 19. Campinas, jul./dez.1990, pp. 7-24. ROSA, João Guimarães (1962). A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, pp. 32-37. SARTRE, Jean-Paul (1943). L’origine de la négation. In: L’être et le néant. Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 2009, pp. 37-80. SZYMBORSKA, Wisława. Instante. In: Poemas. Trad. Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

35

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.