Um Sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro: 1945-1964 PARTE I

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Um Sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro ( 1945-1964)

PARTE I

Leonardo Soares dos Santos

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Niterói 2005 1

SUMÁRIO Resumo ........................................................................................................................................ 4 Resumen .......................................................................................................................................5 Abstract ........................................................................................................................................6 Introdução ....................................................................................................................................8 Capitulo 1 A construção do objeto ................................................................................................................17 1 - O tema e seu contexto social ..................................................................................................18 2 - O tema e o contexto acadêmico ............................................................................................22 O tema na Literatura internacional ..............................................................................................24 O tema na literatura nacional .......................................................................................................31 Capítulo 2 O espaço e suas experiências .......................................................................................................35 1 – A zona rural carioca através dos tempos e das palavras ........................................................36 Uma região decadente: a prosperidade de um discurso ...............................................................38 Abandono e doença num “logar salubérrimo” e “productivo” ....................................................46 Os efeitos da laranja, das obras do DSBF e da “bomba atômica” ..............................................58 Um sertão em xeque? .................................................................................................................75 Capítulo 3 Como viviam e trabalhavam os pequenos lavradores do Sertão Carioca ....................................94 Capítulo 4 As Crises (econômica e moral) que assolavam o Sertão: a construção de identidades 1 - O ser “Grileiro” ......................................................................................................................127 As “questões de terra” do Sertão Carioca ....................................................................................130 Pedra de Guaratiba: “Uma história de muitos anos” ...............................................................134 Fazenda Piaí: uma terra fértil acima de tudo ................................................................................137 Curicica: lavradores e “lavradazes” na “fortaleza inexpugnável” ...............................................141 A.B.C: as atitudes de B.N.V ........................................................................................................147 Mendanha: a origem das escrituras nada sagradas ......................................................................150 Fazenda Coqueiros: seus donos e “donos” ..................................................................................154 O Ser “Intermediário” ..................................................................................................................156 O tempo das panelas vazias e seu “culpado” ...............................................................................160 Capítulo 5 O Sertão Carioca através do movimento de luta dos lavradores: transformando a região em direito .............................................................................................. 176 1- os encontros camponeses e as ações na cidade: os lavradores construindo e exigindo direitos ..............................................................................180 2 – As organizações dos lavradores .............................................................................................190 3- os militantes da “cidade” .........................................................................................................214 As lutas e lides de “Cícero” .........................................................................................................223 As lutas e causas de um homem que “chegava junto” .................................................................231 Lyndolpho e o início da costura do movimento sindical .............................................................239

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Capítulo 6 A luta pela Luta dos lavradores ...................................................................................................249 1 - A luta pela terra nas trincheiras e fortificações de papel ........................................................250 Jornais comunistas ......................................................................................................................256 Tribuna Popular ...........................................................................................................................259 Imprensa Popular .........................................................................................................................261 Novos Rumos ...............................................................................................................................273 Terra Livre ..................................................................................................................................278 Luta Democrática .........................................................................................................................283 Diário Trabalhista .........................................................................................................................286 O Globo .......................................................................................................................................296 2 - A produção de atores e problemas no chão da tribuna: a competição em torno da fala e do direito de falar pelos lavradores cariocas na Câmara Municipal do DF ......................................305 Considerações Finais ..................................................................................................................358

Anexos ANEXO 1 - Célula Comunista em Jacarepaguá ........................................................................367 ANEXO 2 - Projeto de Lei sobre organização da Pequena Propriedade no Sertão Carioca (1952) ....................................................................................................................................................368 ANEXO 3 - I Congresso dos Lavradores do Distrito Federal ...................................................370 ANEXO 4 - I Conferência dos Lavradores do Distrito Federal (Rio de Janeiro) .....................373 ANEXO 5 - Constituição do Estado da Guanabara (1961) .......................................................379 ANEXO 6 - Informe da Polícia Política do Rio de Janeiro sobre a Associação Rural de Jacarepaguá .............................................................................................................................380 ANEXO 7 - União Nacional Para a Democracia e o Progresso, Luiz Carlos Prestes, 23 de Maio de 1945 ....................................................................................................................................383 ANEXO 8 - A Reforma Agrária, Luiz Carlos Prestes, (17 de Junho de 1946) .........................393 ANEXO 9 - Nossa Política: As Tarefas Atuais dos Comunistas para a Organização, a Unidade e as Lutas da Classe Operária Comitê Nacional do PCB (Agosto de 1950) .............................403 ANEXO 10 - Declaração Sobre a Política do PCB, Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Março de 1958 .............................................................................................................407 ANEXO 11 - Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas Sobre o Caráter da Reforma Agrária (1961) ...........................................................................429 Acervos Consultados ..................................................................................................................435 Fontes ..........................................................................................................................................436

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RESUMO

Este texto trata de um importante momento da história da cidade do Rio de Janeiro. Este foi palco de vários momentos da história da luta operária e das classes populares de uma maneira geral, também foi palco de um movimento de pequenos lavradores por terra. Estas lutas se deram na zona rural carioca, a qual abarcava mais de 50% da área total da cidade até o último quartel do século vinte. A análise se detém sobre o período que vai de 1945 a 1964. A estrutura formal do texto foi estabelecida em função do seguinte roteiro de questões: as mudanças de representações sobre a região ao longo dos anos, a expansão do mercado imobiliário no Sertão Carioca, a resistência e a ação políticas dos pequenos lavradores, a construção de identidades (a de posseiro, por exemplo), suas organizações políticas, o papel dos “encontros camponeses” e os efeitos da competição entre grupos políticos da capital pelo controle do movimento dos pequenos lavradores.

Palavras-chave: Sertão Carioca; Luta pela Terra; Movimento Social; Partidos Políticos.

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RESUMEN Ese texto trata de un importante momento de la historia de la ciudad del Río de Janeiro. La misma ciudad que ha sido escenario de varios momentos del movimiento obrero y de las clases populares de manera general, también ha sido escenario de movimientos de pequeños labradores por la tierra. Estas luchas ocurrieron en la zona rural carioca, la cual abarcaba más de 50% de la área total de la ciudad hasta el último cuarto del siglo veinte. El análisis estudia el periodo de 1945 hasta 1964. La estructura formal del texto fue establecida en función de la siguiente guía de cuestiones: los cambios de representaciones sobre la región al largo de los años, la expansión del mercado inmobiliario en el Sertão Carioca, la resistencia y la acción política de los pequeños labradores, la construcción de identidades (la de ocupante por ejemplo), sus organizaciones políticas, el papel de los “encuentros campesinos” y los efectos de la competición entre grupos políticos de la capital por el control del movimiento de los pequeños labradores. Palabras clave: Sertão Carioca; Lucha por la tierra; Movimiento Social; Partidos Políticos; Urbanización.

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ABSTRACT This study examines an important of Rio de Janeiro city history moment. The same city that has been scene of various moments of labor movement and of popular classes in general way, has been scene too of a peasant movement for land. These struggles has happen in the carioca rural zone, the latter comprised more than 50% of city area until last quarter twenty century. The analyses get bogged down in 1945-1964. The formal structure of this text has been established with reference to following list of questions: the changes of region representation along ages, the expansion of the property trade in Sertão Carioca, the resistance and the political actions of the peasants, the construction of identities (the quatters for example), yours political organizations, the role of the “peasants meetings” and the effects of the competition between capital political groups’ for the control about the peasants movement. Key words: Sertão Carioca; Struggle for Land; Social Movement; Political Parties; Urbanization.

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CORRÊA, Magalhães. O Sertão Carioca. Rio de Janeiro: Edição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1936. Frontispício.

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Introdução

“A

história (...) aspira a contar aquilo que existiu um tempo, e noutro tempo deixou de existir, por ter dado lugar a qualquer outra coisa. De fato, verificamos ser eterna a verdade: não cai no âmbito do que passa, e por isso não tem história. Mas, se, por outro lado, tem história, uma vez que esta história não é mais do que a representação duma série sucessiva de formas passadas do conhecimento, a verdade não pode encontrar-se nesta sucessão histórica, porque a verdade não é coisa que passa”. G. Hegel

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O tema deste trabalho é o movimento de luta pela terra dos pequenos lavradores do Sertão Carioca durante os anos de 1945 a 1964. Pretendemos ver, entre outras coisas, como esses agentes fizeram com que suas reivindicações e denúncias chegassem à imprensa e ao legislativo carioca da época. Entretanto, vejamos antes como o autor conseguiu chegar até eles. Em julho de 2000 eu dava início ao trabalho de pesquisa como bolsista de iniciação científica no projeto “História e Memória dos conflitos de terra na Fazenda São Bento (Maricá): século XIX”. Esse projeto era coordenado pela professora Márcia Maria Menendes Motta e tinha como principal objetivo reconstituir a cadeia sucessória da referida área. O tema, todos sabiam de antemão, era bastante complexo, mas o acesso às fontes que nos permitiria a consecução de tal objetivo parecia estar resolvido a nossa favor. Graças ao professor Marco Mello, dispúnhamos de um processo envolvendo pescadores e uma loteadora, que pretendia despejar os primeiros, os quais alegavam lá viver e trabalhar há mais de 50 anos. No meio do volumoso processo contendo mais de duas mil páginas, havia documentos apresentados pela pretensa proprietária que basicamente reconstituía toda a cadeia sucessória daquela área, o que, obviamente, respaldava suas pretensões sobre o direito de domínio daquelas terras. A simples tarefa de copiar essa parte do processo – e tão somente isso - é o que cabia a mim e ao Paulo Roberto, meu companheiro de pesquisa. Outros fatores, porém, seriam incorporados ao trabalho de modo a desfazer por completo aquela primeira e ilusória sensação de facilidade. O primeiro foi a leitura, por indicação da professora Márcia do artigo “Legalizando o ilegal: propriedade e usurpação no Brasil” de James Holston; leitura esta feita simultaneamente ao trabalho de coleta inicial de dados do processo judicial. A idéia central do autor era a de que os conflitos de terra são também disputas sobre o sentido da história, pelo fato de oporem interpretações divergentes a respeito da origem dos direitos de propriedade.1 Foi inevitável que passássemos a nos questionar se o argumento, aparentemente tão bem documentado, da loteadora não seria apenas uma interpretação possível sobre o direito àquelas terras. A própria reconstituição da cadeia sucessória realizada pela loteadora, não seria ela também uma tentativa de impor um sentido à história da ocupação daquele lugar? O segundo foi à séria suspeita de que se naquele momento a definição da titularidade da área da antiga 1

HOLSTON, James. “Legalizando o ilegal: propriedade e usurpação no Brasil”, In Revista Brasileira de ciências Sociais, nº 21, ano 8, fevereiro de 1993, p. 69.

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fazenda dos beneditinos tinha sido posta em cheque, era bem provável que ela o tenha sido em outras ocasiões, ao tempo mesmo dos beneditinos. Foi com aqueles primeiros questionamentos e suspeitas – e uma certa dose de entusiasmo - que parti à procura de outros processos judiciais envolvendo aquela fazenda na época dos beneditinos. O primeiro lugar visitado foi o Arquivo Judiciário do Fórum. A grande morosidade e burocracia exigidas pelo órgão para a consulta de seus documentos nos fizeram escolher um outro lugar. Tudo parecia levar a crer que teríamos que ir até o Fórum de Maricá para encontrar algum processo daquela época. Mas ainda restava uma alternativa no Rio: o Arquivo Nacional. Foi nele que surpreendentemente encontrei um conjunto de 16 processos cíveis, dando conta de uma disputa por boa parte da área da Fazenda de São Bento entre o Mosteiro de mesmo nome e um alferes de nome José Vieira. Tal disputa abarcava a década de 20 até a década de 80 do século XIX. De março até julho de 2001 me concentrei no trabalho de transcrição dos primeiros processos, enquanto o Paulo Roberto e, posteriormente, a Aline cuidava da transcrição dos últimos. O trabalho ia caminhando, mas por outro lado tinha sido orientado pela professora Márcia a pensar em outra área do estado do Rio de Janeiro para fazer o mesmo tipo de pesquisa. Ela seu propósito fazer em grande levantamento de conflitos de terra em todo o estado desde o século XIX, daí ela sempre incentivar seus bolsistas a direcionarem suas atenções para áreas pouco ou completamente não estudadas. A minha escolha recaiu sobre a área em que resido desde que nasci – Jacarepaguá. Coincidentemente, os beneditinos também tiveram grandes propriedades naquele lugar até o final do século XIX. E era em terrenos antes abarcados por essas propriedades que se dava o então rumoroso “Caso da Barra da Tijuca”. A perspectiva que se desenhava era de um trabalho talvez até mais complexo do que o caso de Maricá. Sabendo disso, fui na medida do possível levantando as primeiras fontes sobre as terras dos beneditinos em Jacarepaguá. Nesse mesmo tempo meu trabalho no Arquivo Nacional tinha sido finalizado, então me encaminhei para o Arquivo do Mosteiro de São Bento, onde consultei inúmeros recibos de arrendamento da fazenda dos beneditinos em Maricá. Durante essa consulta levantei um bom número de documentos das fazendas dos beneditinos em Jacarepaguá, dentre

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eles haviam até mesmo alguns referentes ao “Caso da Barra da Tijuca”.2 Além disso, também pude levantar importante documentação no Instituto de Terras do estado do Rio de Janeiro (ITERJ). Nada mal, para quem ainda estava longe de começar a produzir seu trabalho de final de curso. Portanto, tudo ia se encaminhando para que eu continuasse no século XIX, só que no outro lado da Baía de Guanabara. Logo a seguir dei uma interrompida nesses levantamentos iniciais e voltei a me concentrar na pesquisa sobre as terras beneditinas em Maricá. Com os nomes obtidos nos processos cíveis do Arquivo Nacional e nos recibos de arrendamento do Arquivo do Mosteiro de São Bento, fui para o Arquivo do Museu da Justiça do Rio de Janeiro em busca de processos cíveis do século XIX e das primeiras décadas do século XX em que aquelas pessoas estivessem envolvidas.3 Esse trabalho durou de julho até outubro de 2001. Foi nessa época também que fui ao município de Marica realizar uma rápida pesquisa na Câmara Municipal de lá. Porém, no início mesmo de julho, no dia 7 de julho de 2001, antes de se sair para trabalhar no Arquivo do Museu, estava dando uma lida no jornal, como faço quase todo dia. Esse jornal era O Globo, e na seção “Há 50 anos atrás” do seu “Segundo Caderno”, ele republicava a primeira página da edição do mesmo dia só que em 1951. Nela a principal manchete dava conta de um provável levante armado de “posseiros” em Pedra de Guaratiba: “Ali pode surgir outro Porecatú”, este era o título. Confesso que naquele momento eu nem sabia onde ficava e o que significava Porecatú, mas era óbvio que ali tinha ocorrido fatos extremamente importantes a ponto de atemorizar a grande imprensa da época. Confesso também que dois dias depois, encerrado o meu expediente no Arquivo do Museu, fui à Biblioteca Nacional para copiar toda a reportagem. Ela ficou guardada comigo por algum tempo sem que eu pudesse me aprofundar nas inúmeras questões suscitadas por aquela única reportagem. Nada encontrei também sobre o levante de Porecatu, sabia apenas que era uma cidade que ficava no norte do Paraná. Aliás, foi difícil cumprir a promessa de me concentrar apenas no trabalho sobre Maricá, muito 2

O “Caso da Barra da Tijuca” começa a ganhar grande destaque na imprensa a partir do início da década de 1990. Já havia quase 100 anos que os beneditinos tinham vendido aquelas terras, mas uma das partes envolvidas no caso alegava que os documentos usados pela outra parte para comprovar a sua titularidade tinham sido na verdade fraudados pelos beneditinos há alguns séculos atrás. O que provocou forte reação por parte dos monges. A partir daí, D. Matheus, que era na época o diretor do Arquivo do Mosteiro, promoveria uma completa identificação e reordenação dos documentos referentes àquelas terras de modo a que todos pudessem ter acesso a eles. 3 Cabe aqui mencionar a grande contribuição dos funcionários do Arquivo do Museu da Justiça do Rio de Janeiro, especialmente o sr. Argemiro, chefe dessa seção, para que os processos cíveis tenham sido transferidos do Fórum de Maricá - onde o cuidado dessa documentação estava à cargo das traças, da poeira e de muita dose de descaso – para o referido Arquivo.

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embora eu sempre me dirigisse à Biblioteca Nacional depois que o Arquivo do Museu fechasse (em torno das 18 horas). Por que a resistência dos “posseiros” foi comparada com Porecatu? Teria sido essa “resistência” um caso isolado? Quais eram os argumentos usados pelos “posseiros” para legitimar seus direitos sobre aquelas terras? Quais eram os argumentos dos pretensos proprietários? Estas e muitas outras perguntas iriam ocupar minha cabeça por muito tempo, sem que eu pudesse . A minha curiosidade por aquele evento aumentou mais ainda quando fui informado por Sara Celeste, uma amiga da graduação na UFF – que já sabia a minha pretensão de trabalhar com conflitos em Jacarepaguá – que ela teria encontrado durante sua pesquisa sobre pequenas organizações comunistas nos bairros do Rio de Janeiro, documentos que davam conta da existência de Ligas Camponesas em Jacarepaguá na década de 1940. Tal documentação estaria no fundo da Polícia Política (DPS), localizado no Arquivo Público do estado do Rio de Janeiro (APERJ). Naquele momento já não tinha certeza se a monografia trataria dos conflitos de terra no século XIX. Havia razões muito fortes e sedutoras para que eu dirigisse minhas atenções para o século XX. Convenhamos, que estudante de história interessado no tema sobre movimentos sociais não ficaria fascinado com a possibilidade de estudar tal tema na região em que morou por toda sua vida? Quem não ficaria balançado frente à chance de poder estudar coisas como luta armada e Ligas Camponesas (um nome que para mim estava associado até àquele momento às famosas e “revolucionárias” Ligas de Julião), mesmo tendo em conta que o século XIX tinha sido palco de importantes conflitos? Mas o pouco de prudência que ainda sobrara em meio a tanta empolgação me dizia que uma visita ao APERJ se fazia necessária antes que eu tomasse uma decisão definitiva. Era início de novembro e tinha sido liberado pela professora Márcia para me dedicar à pesquisa de minha monografia, sendo que depois de dois ou três meses eu teria que retomar o trabalho sobre Maricá. Resolvi então dar uma parada na pesquisa sobre o século 19 e fazer uma rápida sondagem nos documentos do fundo do DPS. Tinha estabelecido que essa sondagem duraria exatos cinco dias de uma semana. Seria o tempo necessário, pensava eu, para que os vários pacotes de clippers com recortes de jornais feitos pelos agentes do DPS4 me indicassem a decisão a ser tomada. Os dois meses e

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Criado em 1944, o DPS era a Divisão de Polícia Política e Social, órgão de informação do DFSP – Departamento Federal de Segurança Pública. PEREIRA, Juliana Lombardo Costa. Os papéis azuis da

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meio de duração dessa “rápida” sondagem foram poucos para o número e complexidade de histórias, personagens e enigmas que se apresentaram por meio daqueles recortes de jornais. O quebra-cabeça estava apenas no seu início. Havia um longo jogo pela frente (e essa é minha impressão até hoje). O que se verá a seguir constitui-se numa espécie de aprofundamento daquela monografia. Os recortes temporal (1945-1964) e espacial (Sertão Carioca5) foram rigorosamente mantidos, muito embora a pesquisa tenha transcorrido com base em uma perspectiva bastante distinta, o que explicaremos com mais detalhes no primeiro capítulo. Outra diferença bastante importante é que se a documentação na qual se baseou a monografia era constituída quase toda ela de jornais comunistas, a da dissertação é bem mais diversificada. Pesquisamos outros jornais comunistas como Classe Operária e Terra Livre, e também incluímos jornais ligados a outros grupos políticos, como o Radical, vinculado ao PTB; O Popular, que era dirigido por Domingos Vellasco e Francisco Mangabeira, expoentes do PSB carioca; o Diário Trabalhista, cujos diretores tinham ligações com o PTN e o PTB; a Liga, órgão oficial das Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião; e o Luta Democrática,

de propriedade de Tenório

Cavalcanti, político da Baixada Fluminense. Também incluímos jornais da “grande” imprensa como O Globo e Diário Carioca e jornais locais como Jornal de Campo Grande, Folha de Campo Grande, Folha Democrática e Voz Banguense, os quais geralmente tinham vínculos com antigos chefes políticos e pessoas pertencentes a famílias tradicionais da região. Para que estes e os outros jornais fossem levantados tivemos que percorrer os acervos da AMORJ, APERJ, Biblioteca Nacional e NOPH.6 Também aprofundamos a análise da documentação do fundo DPS e passamos a explorar o fundo DOPS, igualmente localizado no APERJ. Tais fundos assim como o Arquivo Lyndolpho Silva, foram os que mais nos forneceram informações sobre a repressão: o DOPS e os sindicatos cariocas (1945-1964). Niterói, UFF, monografia de final de curso de História, 2000. p. 24. 5 Sertão Carioca designa aqui a área que compreendia a antiga zona rural da cidade do Rio de Janeiro. Não obstante, ela não tinha limites tão rígidos para várias testemunhas da época. Alguns órgãos de imprensa incluíam áreas da Baixada Fluminense (especialmente distritos de Nova Iguaçu e Duque de Caxias) como parte integrante do Sertão Carioca. Porém, a tendência maior por parte da própria imprensa, como do legislativo carioca e dos grupos de lavradores da região foi estabelecer uma distinção clara entre Sertão Carioca e Baixada Fluminense. Tal distinção estava portanto estreitamente ligada a maneira como se desenvolveu a leitura dos conflitos naquele lugar. É o que veremos a partir do segundo capítulo. 6 Cabe informar que os números do Tribuna Popular entre os anos de 1945 e 1947 e os do Imprensa Popular entre os anos de 1950 e 1954 a 1958 foram consultados por meio de clippers organizados pelos agentes do antigo DPS, órgão de informação da Polícia Política da época.

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atuação de militantes no Sertão Carioca. As fontes relativas às publicações oficiais, legislação e documentação parlamentar foram obtidas principalmente na Biblioteca Nacional, no Ministério da Fazenda e na biblioteca da ALERJ. Foi também no Departamento de Arquivo desta instituição que consultei dossiês sobre alguns parlamentares que tiveram destaca atuação no Sertão Carioca. Já na parte final da pesquisa tive a oportunidade de colher depoimentos de antigos militantes e lavradores do Sertão Carioca. Apesar de Bráulio Rodrigues nunca ter atuado nessa região – militava na Baixada Fluminense – ele me forneceu valiosíssimas informações sobre militantes comunistas que atuaram na zona rural do antigo Distrito Federal. Quanto a divisão formal dessa dissertação, ela é composta de cinco capítulos. No primeiro, farei um rápido balanço da literatura dedicada ao tema dos movimentos sociais no campo, com o precípuo objetivo extrair dela as questões e propostas de análise que norteariam o estudo sobre o movimento dos pequenos lavradores do Sertão Carioca. Na verdade, foi a partir da discussão efetuada nesse capítulo que pude traçar com maior propriedade o perfil dos capítulos seguintes. No segundo capítulo me deterei em realizar um histórico sobre a produção das representações espaciais sobre a área estudada. Procurei mostrar como a mudança de representações ao longo do tempo estava intimamente ligada com o desenvolvimento e cruzamento de vários processos sociais. Na medida do possível mostrei também como essas representações não só foram influenciadas pelos conflitos de terra como também se constituíram, para algumas das partes envolvidas nos conflitos, em importante peça no trabalho de construção da legitimação de suas pretensões. Além de caracterizar o espaço em questão, busquei entender melhor quem eram os pequenos lavradores cariocas, verificando o que e como produziam, como e onde vendiam os produtos de sua lavoura, os acessos de comunicação com outras localidades e com o centro da cidade, e os principais espaços de sociabilidade. No terceiro capítulo procuraremos compreender melhor os dois eventos que eram destacados pela imprensa, pelas autoridades políticas e por pequenos lavradores e suas lideranças como as principais causas do “declínio” da agricultura do Sertão Carioca: a “devastadora” expansão imobiliária, que se alimentava por sua vez da prática de grilagens de terras e a atuação “nefasta” dos intermediários do comércio de gêneros. Em 14

primeiro lugar descreveremos como foi possível que se estabelecesse uma associação direta entre o processo de loteamento e a prática de grilagem. Em segundo, explicaremos como e porquê os “intermediários” passaram a ser vistos como o outro grande responsável pela não permanência dos pequenos lavradores em suas terras. Em terceiro, observaremos como a configuração das categorias “grileiro” e “intermediário”/ “atravessador” contribuiu para a afirmação da categoria “posseiro”, e como essa construção dessas identidades agia no sentido de legitimar os atos e pretensões deste último e, ao mesmo tempo, invalidar a de seus opositores. No quarto capítulo abordaremos o processo de organização e ação política dos “posseiros”. Para tanto serão destacadas as formas de protesto; as ações políticas junto à imprensa e aos centros de poder do Distrito Federal como a Câmara Municipal e o Senado; as ligações com outros movimentos sociais; as organizações dos lavradores; o papel dos encontros, congressos e conferências no esforço de mobilização dos pequenos lavradores, na socialização de experiências e na consolidação dos “posseiros” como ator político; e a atuação dos militantes. A análise desse ponto tem como preocupação principal evidenciar ao longo do período as mudanças ocorridas em relação aos seguintes pontos: as soluções e direitos reivindicados pelos pequenos lavradores, as formas de encaminhamento, o processo de escolha dos interlocutores e mediadores da sociedade política da cidade e as formas e funções das organizações dos lavradores. No último capítulo, tratarei da competição travada por grupos e personalidades políticas pelo controle da fala e do direito de falar em nome dos pequenos lavradores do Sertão Carioca. Tal competição será acompanhada nos espaços em que ela mais se manifestou: na imprensa e no legislativo carioca. No primeiro caso, analisaremos alguns dos jornais que mais se destacaram na cobertura sobre acontecimentos ocorridos naquela região, levando em conta as suas ligações com grupos e personalidades políticas, o público ao qual se dirigia e a interpretação e o sentido que eles conferiam aos conflitos de terra e ao movimento dos pequenos lavradores. No segundo caso, depois de traçada a contextualização e caracterização do campo político carioca, iremos acompanhar os debates e disputas no interior da Câmara Municipal em torno das questões do Sertão Carioca. O primeiro objetivo aqui consiste em identificar os principais nomes envolvidos nessa disputa. Em relação a cada um deles buscaremos esclarecer os seguintes aspectos: partido ou corrente política da qual fazia parte, a sua posição no interior do partido, a

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posição do partido na estrutura de poder do campo político carioca, o perfil de sua atuação (os temas mais abordados, por exemplo), sua base eleitoral, os “problemas” mais mencionados do Sertão Carioca, as propostas formuladas e as iniciativas adotadas, e sua posição e atitude face às iniciativas políticas dos pequenos lavradores.

Imagem de satélite do município do Rio de Janeiro de 2005, mais à esquerda o antigo Sertão Carioca. fonte: Google Earth.

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Capitulo 1 A construção do objeto

“(...) o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela”. K. Marx

“a

lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento” Sérgio Buarque de Holanda

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1 - O tema e seu contexto social

Se tivéssemos que buscar na memória sobre a antiga zona rural carioca uma justificativa para a realização deste trabalho, chegaríamos ao final da busca com a incômoda sensação de que talvez o nosso objeto de análise – o movimento de luta pela terra dos pequenos lavradores do Sertão Carioca – não tenha tido tanta importância assim para o passado da região. Quando analisamos alguns dos relatos sobre o passado da região são dois os tipos de imagem mais recorrentes: uma ressalta os “filhos ilustres” que “marcaram a história da região”, desde a época da concessão das primeiras sesmarias até o “apogeu” das grandes fazendas de café. E quanto a este ponto os personagens dignos de menção são sempre os senhores de engenho e os grandes fazendeiros de café, alguns dos quais chegariam a ocupar cargos de relevo na política como Antônio Geremário Teles Dantas e Carlos José de Azevedo Magalhães, o Intendente do Conselho Municipal a receber mais votos nas eleições para o Conselho Municipal de 1899. Alguns teriam ventura até maior, ao serem agraciados com títulos nobiliárquicos pelo Império, como foi o caso de Francisco Pinto Teles, que por ter “graciosamente” cedido ao governo Imperial parte do terreno do Engenho da Taquara para as obras de represamento de um rio próximo, recebeu o título de Barão da Taquara em 21 de outubro de 1882, além de assumir o comando de um batalhão da Guarda nacional no posto honorífico de tenente Coronel.1

Após a decadência da grande lavoura, a cena seria ocupada pelos “chefes

locais”, de Cesário de Melo, Caldeira Alvarenga, Edgar Romero e Ernani Cardoso, passando por Miécimo da Silva e chegando até Moacir Bastos, Romualdo Boaventura e que tais.2 Personagens estes tão importantes, que não seriam lembrados apenas nos

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ARAÚJO, Carlos. Jacarepaguá de antigamente. Belo Horizonte: Carol Borges Editora, 1995. p. 85. Na edição comemorativa dos 410 anos de Jacarepaguá, o jornal O Globo-Barra dá grande destaque a sede da antigo engenho da Taquara (hoje chamada de Fazenda da Baronesa), segundo o jornal um “marco do ciclo da economia cafeeira na região”, pp. 24-7, Vide ARAÚJO, Carlos. Op. cit.; BASTOS, Moacyr Sreder. Campo Grande. Rio de Janeiro: Ed. Campo Grande Ltda/ Guanabara, s/d; PINTO, Rivadávia. “Guaratiba, um orgulho de 407 anos (I)”, in Jornal do NOPH, Rio de Janeiro, N° 5, 1984; SIQUEIRA, Francisco Alves. Barra de Guaratiba: vida, contos, lendas, folclore. Rio de Janeiro: s/ed., s/ d; idem. História de Guaratiba para crianças. Rio de Janeiro: RioArte, 1991; SOUZA, Sinvaldo do Nascimento. Engenhos e engenhocas da Zona Oeste. Rio de Janeiro, s/d.(mimeo); idem. As famosas peixadas cívicas em Sepetiba. Rio de Janeiro, s/d.(mimeo); idem. Sepetiba no tempo do sabonete Lamiol. Rio de Janeiro, s/d.(mimeo); idem. Um gigante `a Zona Oeste do Rio de Janeiro: rumo à modernidade. Ver também os textos sobre a história da região nos sites: www.acija.com.br; www.barraonline.com.br/historia.htm e www.baraodataquara.com.br/historia. asp.

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relatos sobre a história local como também dariam seus nomes a algumas das principais ruas e avenidas da região, fazendo com que o próprio espaço expressasse a memória do lugar, de modo a que -

com o perdão do trocadilho – essa memória nunca seja

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esquecida.

As freguesias urbanas e rurais do Rio de Janeiro. SANTOS, Noronha. As freguesias do Rio Antigo. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1965.

A outra imagem parece está especificamente associada com a área que hoje abarca os bairros da Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e boa parte de Jacarepaguá (Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim, Curicica e parte da Taquara). Ela consiste em caracteriza-las como uma região que permaneceu abandonada por boa parte do século XX. Após o declínio da economia cafeeira no final do século XIX e do retalhamento das terras por parte dos beneditinos a região se tornaria numa área “deserta”; só ocupada por alguns poucos “humildes pescadores e lavradores”. Essa situação só seria alterada com a formulação do Plano-piloto pelo urbanista Lúcio Costa e com a construção da AutoEstrada Lagoa-Barra no final da década de 60, o que teria atraído vários investidores do

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Sobre a relação entre memória e história ver MENEZES, Ulpiano Bezerra de. “A História, cativa da Memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais”, In Revista Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, nº 34, 1992; MOTTA, Márcia Maria Menendes. “História e memórias”, In MATTOS, Marcelo Badaró(org.) História: pensar e fazer. Rio de Janeiro: Laboratório Dimensões da História, 1998; NORA, Pierre. “Entre Memória e História. A problemática dos lugares”, In Projeto História. São Paulo, nº 10, dezembro/1993;

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ramo imobiliário para a Barra e o Recreio.4 Para Ayrton Gonçalves, a ausência de ocupação naquela área tinha raízes muito mais remotas: (...) o interesse pela Barra da Tijuca remonta há alguns séculos e é de causar admiração que ela tenha ficado quase intocada durante trezentos e cinquenta anos, ainda que isso seja justificado por alguns, como uma consequência direta da topografia que lhe dificultava os acessos, até hoje bastantes difíceis. Durante longos anos, portanto, poucos se importaram em saber a quem pertencia este ou aquele local, mas com a gradativa ocupação, com marcante característica predatória, os interesses comerciais se tornaram maiores acentuadamente, quando começaram a ser construídas as vias de penetração ligando Jacarepaguá a Barra da Tijuca e internamente com a implantação de vias dentro da própria região, tornando-se avassaladora com a inauguração das vias elevadas e dos túneis que ligam com a Zona Sul.5

Já a área “deserta” de Jacarepaguá passaria a ser “ocupada” por conta do Plano-piloto e, principalmente, pela influenciada da implantação do pólo farmacêutico de Jacarepaguá por conta da delimitação da Zona Industrial daquela área.6

Linhas de abastecimento do Rio de Janeiro pelos meios carroçáveis (1850-1890) entre o Sertão Carioca e o meio urbano. MOURA, Anna Maria S.. Carroças e carroceiros: formação da infraestrutura urbana no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado em História, IFCS/UFRJ, 1984.

Essa suposta ausência de ocupação humana se refletiria na própria história da região, produzindo um lapso entre o fim dos grandes engenhos e fazendas de café no final do 4

“410 anos de Jacarepaguá”, O Globo-Barra, 05/09/2004, p. 24. texto de GONÇALVES, Ayrton Luiz disponível no site: Barraonline.com.br/história.htm. (grifo meu). 6 “410 anos de Jacarepaguá”, op. cit., p. 16. 5

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século XIX e o início da urbanização de finais da década de 1960: nesse período pouca história haveria para contar ou o que havia de ocupação humana não mereceria qualquer tipo de menção ou registro. Tanto numa imagem como na outra a figura do pequeno lavrador assim como a própria questão dos conflitos de terra eram praticamente desconsiderados.7 Que razão teríamos portanto para estudar uma figura tão pouco lembrada? Se a memória consolidada sobre o passado não nos serve de grande estímulo, sensação exatamente oposta nos é provocada por questões do presente naquela mesma região. Segundo informações que obtive de uma das funcionárias da secretaria do Instituto de Terras do Rio de Janeiro (ITERJ), a Zona Oeste se constitui neste momento no maior palco de litígios de terra de todo o estado do Rio de Janeiro: inúmeros casos de grilagem, assim como a indefinição da titularidade de terrenos (vide o famoso “Caso da Barra da Tijuca”) ainda parecem longe de serem elucidados. Além disso a região é palco também de várias ocorrências de ocupações de terra patrocinadas por entidades políticas como o Movimento dos Sem Teto e por políticos locais e “líderes comunitários”. Mas se todos esses eventos são marcantes para o presente da região eles também o foram no passado. O próprio ITERJ se encarregaria de reconhecer em seu Atlas Fundiário que a ocupação da cidade se deu por meio de inúmeros conflitos rurais: Para fundir as duas pontas do povoamento da cidade – Centro e Recôncavo [Zona Oeste] – muitos anos transcorreriam, deixando conhecer rica história fundiária que se desdobra 8 em conflitos, corrupção, apropriação indevida, privatização de áreas públicas etc.

E muitos dos conflitos de hoje se apresentam como uma espécie de atualização dos conflitos do passado. O “Caso da Barra da Tijuca” é emblemático nesse sentido. Nele uma das partes argumenta que os documentos e títulos de propriedade apresentados pela outra parte são fruto de grilagens praticadas desde o século XVIII. E tal denúncia de grilagens

vem acompanhada de referências a antigos litígios envolvendo pretensos

proprietários, tais como o Mosteiro de São Bento e diferentes gerações da família do

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As exceções são ROSA, Sinvaldo do Nascimento. Engenhos e engenhocas da Zona Oeste. Rio de Janeiro, s/d.(mimeo) e as memórias de SIQUEIRA, Francisco Alves - Barra de Guaratiba: vida, contos, lendas, folclore. Rio de Janeiro: s/ed., s/ d; e História de Guaratiba para crianças. Rio de Janeiro: RioArte, 1991 este inclusive declara ser, além de pescador e filho de pescador, um “posseiro” daquele lugar. Uma rápida menção sobre litígios de terra na área da Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes é feita por VIANNA, Hélio. Op. cit., p. 98. 8 Atlas Fundiário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Assuntos Fundiários e Assentamentos Humanos, 1990. p. 39.

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Visconde de Asseca. Fato que demonstra que a área da Barra e Recreio desde há muito se constitui num palco de conflitos de terra, ao contrário do que supõe a imagem de uma área “quase intocada”.9 Portanto, o presente estudo, ao tratar de alguns dos conflitos de terra do passado e ver como os pequenos lavradores reagiram frente a ele, deve a sua justificativa a questões da atualidade (por sinal, ainda muito longe de serem resolvidas). E é exatamente por isso que cabe ressaltar alguns pressupostos deste trabalho: ele não trata desses conflitos de ontem como um acontecimento do passado, mas como a expressão de um determinado processo histórico ainda atuante – a ocupação das terras da antiga zona rural do Rio de Janeiro – e que se desenvolveu sob uma forma específica num determinado tempo; tratase de ver também a maneira pela qual tal processo desafiou e foi desafiado pelas pessoas daquele tempo; e finalmente, ver como essa luta pela terra no Sertão Carioca engendrou outras possibilidades frente ao possível que se concretizou.

2 - O tema e o contexto acadêmico Desde que comecei a trabalhar com o tema dos conflitos de terra, sempre tive a preocupação de inseri-lo no contexto social do qual o tema o autor fazem parte. Mas o curioso é que não tinha essa preocupação em relação ao contexto da produção acadêmica. Essa foi uma falha que identificada a partir do momento que comecei a fazer uma auto-crítica da monografia que realizei sobre os conflitos de terra do Sertão Carioca.10 Por isso seria interessante que antes de iniciar o balanço bibliográfico propriamente dito eu expusesse os principais pontos dessa autocrítica. Como já foi dito a minha monografia de final de curso também versava sobre o movimento de luta dos lavradores do Sertão Carioca pela posse da terra entre os anos de 1945 e 1964. A preocupação central de minha pesquisa era contestar a versão indiretamente respaldada pelas muitas pesquisas acadêmicas de que o processo de urbanização da região teria se dado sob a forma de uma “avalanche imobiliária” contra qual pouco puderam fazer seus lavradores, que além de praticarem uma agricultura

9 10

“Justiça decide em favor do libanês da Barra”, in O Dia, pp. 6-7. SANTOS, Leonardo Soares dos. Lavradores versus grileiros na luta pela terra no Sertão Carioca (194564). Niterói, UFF, Trabalho de conclusão do curso de História, 2002.

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“precária” e “itinerante”, não tinham “nenhum direito sobre a terra”.11 Ao longo da pesquisa procurei demonstrar, em primeiro lugar, que não foi o nível da técnica agrícola empregado o grande responsável pelo despejo dos lavradores, mas uma série de procedimentos usados pelos pretensos proprietários - alguns recorrendo ao uso da violência - e a uma conjuntura econômica não só local como nacional que tendia a consagrar a terra como ativo financeiro em detrimento de seu uso como meio de produção.12 Fiz ver também que a luta promovida por esses pequenos lavradores objetivava exatamente consolidar outras perspectivas sobre o que se entendia como legítimo direito pela terra. A partir daí, pude remontar todo um processo de luta e mostrar que aqueles anos não se resumiram à expansão de loteamentos, ruas e avenidas. Antes de estabelecerem seus interesses, muitas companhias imobiliárias tiveram de se haver com as reivindicações, protestos e pressões de lavradores que acreditavam ter direito sobre a terra. Penso que esses objetivos foram alcançados com razoável sucesso. Ao mesmo tempo, fui convencido pelos professores Mário Grynszpan e Márcia Motta que muitas outras questões poderiam ter sido exploradas.

Percebi também que a própria

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ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO/Zahar, 1988; BRITTO, Ana Lúcia Nogueira de Paiva. Novas formas de produção imobiliária na periferia: o caso da Zona Oeste. Dissertação de Mestrado apresentada ao IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 1990; FRIDMAN, Fânia. “Os donos da terra carioca: alguns estudos de caso”. In: Anais V encontro Nacional da ANPUR. Belo Horizonte, agosto de 1993, vol.2; GARCIA, Cid Sant’Ana. Associação de moradores e movimentos reivindicativos no município do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado apresentado a COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro,agosto de 1981; LAGO, Luciana Corrêa do.Movimento de loteamentos do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado apresentado ao IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 1990; MIRANDA, Mariana Helena Souza Palhares.Crescimento Periférico da cidade do Rio de Janeiro: padrões espaciais de ocupação residencial.Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Geografia da UFRJ, Rio de Janeiro,dezembro de 1976; PECHMAN,Robert Moses. Formação histórica da estrutura fundiária na Zona Oeste do Rio de Janeiro e na Barra da Tijuca. Relatório de Pesquisa, IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987; RIBEIRO, Cláudia Tavares. Da questão urbana ao poder local: o caso da Barra da Tijuca. Dissertação de mestrado apresentada ao IPPUR/UFRJ,Rio de Janeiro, 1990; SOUZA, Maria Alice Martins de. Barra da Tijuca e Jacarepaguá: uma forma particular de loteamento irregular. Dissertação de mestrado apresentada ao IPPUR/UFRJ,Rio de Janeiro, dezembro de 1995. Para SOUZA, M. A. M, a Zona Oeste ao se transformar em um vetor de expansão urbana acabou “desalojando assim os produtores agrícolas que não tinham direito sobre a terra, na medida em que eram, na sua maior parte, parceiros, assalariados ou arrendatários” ( op. cit.,p.20). Ainda segundo Ana Britto os lavradores que mais sofreram com a expansão dos loteamentos sobre a zona rural foram os arrendatários e posseiros, pois que praticavam uma “forma precária ou itinerante” de agricultura devido ao fato de “não terem direito sobre a terra”(op. cit., p. 52.) 12 Ver RANGEL, Ignácio. A inflação brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981; GUIMARÃES, Alberto Passos. Inflação e monopólio no Brasil(Por que sobem os preços?). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1963.

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monografia, como não poderia deixar de ser, guardava várias limitações. Vejamos algumas delas (ao menos as que eu consegui identificar). A monografia tinha quase todo o seu corpo documental apoiado em jornais comunistas. O pouco aprofundamento e discussão teóricas somado a falta de outros tipos de fonte que me permitissem confrontar as informações (um misto de notícias e opiniões) daqueles jornais, levaram-me a explicar o movimento de luta pela terra do Sertão Carioca em função do modo como o PCB interviu ou pretendeu intervir naquele movimento. Na ótica desse trabalho os ritmos do movimento acabavam se transformando quase que num mero reflexo do ritmo da atuação do PCB no Sertão Carioca.13 Além disso, termos como resistência, luta e organização políticas, exploração e extorsão, extinção e abandono, e o próprio nome Sertão Carioca foram naturalizados pelo autor como dados inequívocos da realidade, que só os jornais comunistas deixavam transparecer. A falta de maior acuro teórico não afetaria apenas o plano metodológico. O diálogo com o objeto foi desenvolvido sem os devidos referenciais teóricos que me proporcionassem lançar a ele uma série de perguntas e provocações pertinentes. O trabalho de mestrado se afigurava então como a oportunidade de finalmente fazê-lo. Que questionamentos são esses é o que passaremos tratar no balanço bibliográfico que se segue.

O tema na Literatura internacional

O tema da atuação do campesinato em movimentos políticos aparece com grande destaque nos chamados “trabalhos históricos” dos fundadores do materialismo histórico – Karl Marx e Friedrich Engels. Curiosamente, tais trabalhos foram concebidos na mesma época em que a classe operária urbana emergia, segundo eles, como o grande personagem do contexto de transformações sócio-políticas no continente europeu. Nesses textos, escritos em meados do século XIX, os autores procurariam por meio da análise sócio-histórica incorporar a problemática camponesa à discussão do projeto societário revolucionário (eminentemente urbano). Em certo sentido, talvez a participação do elemento camponês fosse uma das condições para que tal revolução se efetivasse. Max por exemplo, procuraria explicar o “fracasso” da revolução alemã de 13

idem, especialmente pp. 38-53.

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1848 a partir de uma comparação com a “bem-sucedida” revolução francesa de 1789. O autor alemão via na maneira como em cada caso se procedeu à articulação do movimento revolucionário da cidade com os anseios do elemento camponês uma das principais razões para que as duas tivessem um fim diferente. Em 1789 “a burguesia francesa (...) não abandonou um só instante a seus aliados, os campesinos. Sabia que a base de sua dominação era a liquidação do feudalismo no campo e a criação de uma classe camponesa terratenente (...) livre”. Já em 1848, “a burguesia alemã (...), sem escrúpulos de nenhum tipo, traía esses camponeses, seus aliados mais naturais, que são carne de sua carne e sem os quais ficou impotente frente à nobreza.”14 Engels por sua vez advertia também em 1848 que os grandes países agrários situados entre o mar Báltico e o mar Negro podem se liberar da barbárie patriarcal-feudal somente mediante a revolução agrária que transforma aos camponeses servos ou obrigados por tributos (...) em agricultores livres, isto é, uma revolução totalmente similar a revolução francesa de 1789 no campo. 15

A problemática camponesa parecia ser tão importante para Engels, que ele seria obrigado a recuar alguns séculos na história para entender melhor tal problemática. O resultado desse esforço apareceria em As guerras camponesas na Alemanha. Nele o autor tinha como principal objetivo demonstrar “que por trás de sua fachada religiosa”, as revoltas dos camponeses alemães durante o século XVI tinham um caráter de luta de classes. Para isso o autor se deteve em explicar de forma minuciosa os fatores, particularmente os de ordem sócio-econômica, que teriam levado os camponeses a se revoltarem; a maneira como se constituíram os movimentos(suas reivindicações, a criação de uma consciência de classe, com seus interesses e moral próprios, etc.); e, as conseqüências desse movimento no cenário sócio-político alemão. A conclusão mais importante a que o autor teria chegado foi a de que essas revoltas foram a expressão mais emblemática da tradição revolucionária do “povo alemão”.16 Mas seria a análise feita por Marx em O 18 Brumário que alcançaria maior visibilidade na literatura sociológica. Neste trabalho Marx dedicaria quase todo o capítulo VII dessa obra para a exposição das razões que levaram os camponeses franceses a apoiarem o golpe de Estado de caráter reacionário efetivado por Luís

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MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Sobre la revolución de 1848-1849. Artículos de “Neue Rheinishe Zeitung”. Moscou: Editorial Progreso, 1981. p. 79. 15 idem, pp. 105-106. 16 ENGELS, Friedrich. The peasant war in Germany. Moscou: Progress Publishers, 1974. p. 27.

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Napoleão em 2 de dezembro de 1851.17 Entre as principais razões apontadas, Marx destacava o próprio modo de vida e produção dos camponeses, como se segue nessa célebre passagem: Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo.(...)Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade. Uma pequena propriedade, um camponês e sua família; ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponês e outra família. Alguma dezenas de aldeias constituem um Departamento. A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas em um saco 18 constituem um saco de batatas.

Mas ao contrário do que possa sugerir o simplismo contido na metáfora do “saco de batatas”, a visão que Marx tinha sobre o campesinato francês era bem mais complexa, como o bem prova a sua própria análise. Se para o pensador alemão havia um campesinato que premido por fatores de ordem econômica se constituiria apenas numa “classe em si”, incapaz de se fazer representar politicamente e que, por conseguinte, era sempre levado a tomar posições conservadoras19; havia também na França a figura do “camponês revolucionário”, responsável por levantes que abarcavam “metade da França”, e que atraíam violenta repressão por parte do exército.20 Embora ainda ratificasse a noção do camponês sempre preso ao atraso e a toda sorte de preconceitos e superstições, Marx não deixaria de destacar que ao apoiar Bonaparte, parte dos camponeses franceses exerciam uma escolha política em defesa de interesses próprios, diretamente relacionados com as “condições de sua existência social”(como a consolidação da pequena propriedade por exemplo).21 Portanto, o que ele chamava de caráter conservador não era fruto de uma essência camponesa, mas produto de um tipo de engajamento numa determinada conjuntura política. Por outro lado, Marx não estava preocupado apenas com os camponeses que apoiaram o golpe, mas também com aqueles que o combateram. Demonstrava, assim, a percepção de que o campesinato francês não 17

Recomendamos também a leitura, do mesmo autor, de “As lutas de classes na França de 1848 a 1850” In: Textos, vol. 3. São Paulo: Edições Sociais, 1977. 18 MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 127. 19 idem. p. 127-8. 20 idem. p. 128. 21 idem. 128-9.

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era homogêneo e muito menos estático, ao contrário, era uma classe marcada por tensões e conflitos entre os diferentes grupos que a compunham. Pois conforme ele mesmo comenta: Sob a república parlamentar a consciência moderna e a consciência tradicional do 22 camponês francês disputaram a supremacia.

Ao analisar a atuação do campesinato francês nos acontecimentos políticos nacionais de meados do século XIX, Marx já apontava para a necessidade de se interrogar sobre que campesinato ou que parcela dele se estava falando. E embora de forma bem mais sucinta do que Engels, Marx também se dedicou a esclarecer as seguintes questões: quais condições que favoreceram ou motivaram o movimento das diferentes parcelas daquele grupo? Como se deu seu processo de constituição(objetivos, interesses, linguagem, etc.)? Quais foram as conseqüências de tais movimentos para o sistema de relações de força que vigorava na França? Penso que os maiores textos de referência do tema sobre movimentos sociais do campo, escritos já no século XX, continuaram a compartilhar das preocupações daqueles velhos autores alemães. Em que pese as diferenças e desacordos quanto aos métodos, objetivos e perspectivas, e as variações quanto aos contextos temporal e geográfico analisados, estes estudos teriam como pano de fundo questões fundamentais para a compreensão do fenômeno da atuação dos camponeses na vida política de diferentes sociedades. Todos, de alguma forma, se confrontariam com as seguintes questões: que tipos de camponeses levaram adiante os movimentos de luta no campo? Que condições o tornaram possível? De que forma ele se desenvolveu? Quais foram os efeitos do movimento no plano do sistema social mais abrangente?23 Vejamos, então, de modo um pouco mais detido, algumas dessas obras.

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idem. p. 129. ALAVI, Hamza. “Peasant classes and primordial loyalties”, in Journal of Peasants Studies, 1973; BIANCO, Lucien. “Peasants and revolution. The case of China”, in The Journal of Peasants Studies, nº 2(3), apr.1975; BOIS, Paul. Paysans de l’Ouest. Paris: Flamarion, 1971; CHESNAUX, Jean. Movimientos campesinos en China (1840-1949). Madrid: siglo veintuino de España eds., 1978. HOBSBAWN, Eric. Rebeldes primitivos: estudos sobre formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. HOBSBAWN, Eric & RUDÉ,George. Capitão Swing. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982; MOORE Jr, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983; RUDÉ, George. A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e Inglaterra, 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991; SHANIN, Teodor. Peasants and peasant societies. Middlesex: Penguin, 1978. WOLF, Eric. Las Luchas campesinas Del siglo XX. Ciudad del Mexico: siglo veintuno editores s.a., 1972. 23

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Comecemos pelo clássico do sociólogo Barrington Moore Jr, As origens sociais da ditadura e da democracia, onde o autor procura avaliar exatamente a importância que os camponeses de diversos países tiveram na construção do “mundo moderno”. Segundo ele, esta teria se dado por três caminhos ou vias: uma delas é a “revolucionáriademocrática”, adotada por Inglaterra, França e Estados Unidos e que teria aliado capitalismo e democracia através de uma série de revoluções, cuja participação do campesinato teria sido ínfima, até porque, reitera o autor, o grande desenvolvimento da agricultura comercial nesses países teria eliminado a figura do camponês.24 Uma outra via teria sido a da revolução “vinda de cima”, baseada em formas políticas reacionárias e que teriam desembocado nos “regimes fascistas” da Itália, Alemanha e Japão. Em todos eles, houve um acirramento dos mecanismos de exploração dos camponeses.25 A última via seria a Comunista, cuja eclosão e consolidação estaria diretamente relacionada com as revoluções camponesas. Para o estudo aprofundado dessa via, Moore Jr se volta para o caso da China. Ali, diferentemente do acontecido nos outros “caminhos”, os camponeses teriam sido protagonistas das transformações sociais e não meros espectadores ou vítimas. E é exatamente por isso que as questões e hipóteses levantadas por Moore Jr nesta parte nos despertam maior interesse. Para o autor, a compreensão do movimento que instaura a República Comunista na China em 1949 só é possível com a análise dos tipos de estrutura social e situações históricas que produzem as revoluções camponesas. Faz-se necessário, portanto, o estudo dos seguintes pontos: as classes e categorias de trabalhadores do campo, sua relação com a classe dominante rural, a forma do progresso comercial no campo, a relação campo/cidade, a relação entre as classes rurais e o poder central, o sistema de direitos de locação e propriedade da terra, o ritmo das modificações provocadas pelo avanço do capitalismo, o sistema de normas, regras e costumes, etc.26 Para Moore, a emergência súbita de uma exigência imposta, e que resultasse numa quebra de regras e costumes aceitos, seria a maior motivação das revoltas camponesas. É interessante observar que ao também estudar a revolução chinesa, Jean Chesnaux se colocou as mesmas perguntas: quais são as raízes dos movimentos camponeses? Que 24

O autor comenta ainda que a eliminação da questão dos camponeses se constitui num “bom augúrio para a democracia” - As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 416. 25 idem. p.428 e ss. 26 idem. p. 450 e ss.

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lugar real ocupam na história da China?27 O autor, com isso, tencionava lançar pistas para dois problemas mais gerais presentes em outros estudos: o da capacidade política dos camponeses numa sociedade pré-industrial(ainda não completamente capitalista) e o da contribuição do campesinato às revoluções contemporâneas.28 Problemas esses, que como vimos, já aparecem nos trabalhos de Marx e Engels citados anteriormente. E uma importante conclusão de Chesnaux é de que a revolução comunista de 1949 só foi possível por ter havido a convergência entre as lutas das massas camponesas e a estratégia das forças revolucionárias modernas lideradas por Mao Tse-tung.29 Com Capitão Swing, trabalho escrito por E. J. Hobsbawm e George Rude, algumas dessas questões acima seriam reexaminadas à luz dos fatos ocorridos no meio rural inglês durante a expansão capitalista na virada do século XVIII para o XIX. Os próprios autores deixam claro que a análise que traçam sobre os acontecimentos referentes às revoltas rurais inglesas é movida pela possibilidade de levantar novas questões “sobre suas causas e motivos, sobre o modo de comportamento social e político, e a composição social daqueles que deles tomavam parte, o seu significado e as suas conseqüências”.30 Na parte intitulada “Antes do Swing”, os autores se deteriam a explicar sobre as causas e motivações históricas que favoreceram as revoltas rurais na Inglaterra. Aqui o enfoque está concentrado na questão da transformação das relações de trabalho e de mercado no campo e nos efeitos da lógica de mercado sobre uma sociedade rural tradicional, hierárquica e paternalista, como a perda de direitos costumeiros que garantiam o sustento dos trabalhadores rurais. Uma grande contribuição dos autores é a tentativa de buscar entender a lógica desses movimentos de revolta por meio de aspectos pertencentes a tradição cultural dos trabalhadores, não reduzindo tais lutas, portanto, a um mero reflexo de condições econômicas supostamente massacrantes, frente às quais não restaria outro caminho senão resistir radicalmente. Hobsbawm e Rudé demonstram que o problema é bem mais complexo: a indignação dos trabalhadores rurais se devia, sem dúvida, a uma súbita queda nos seus padrões de consumo e à perda de direitos, mas o processo que levou com que essa indignação desse forma a ações de protesto e revolta se deve a elementos presentes no “universo social e mental” desses trabalhadores e que 27

CHESNAUX, Jean. Movimientos campesinos en China (1840-1949). Madrid: siglo veintuino de España eds., 1978. p. 1. 28 idem. p. 2. 29 idem. p. 79. Igual posição tem BIANCO, Lucien. Op.cit. 30 HOBSBAWN, Eric e RUDÉ,George. Capitão Swing. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 16.

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estão diretamente ligados a formas e espaços de organização coletiva e sociabilidade. É com esse interesse que os autores destacam o papel das missas aos domingos, as assembléias e reuniões realizadas no pátio da igreja, no espaço em frente às sacristias, no gramado da praça da aldeia e, principalmente, nas cervejarias, “para horror dos sitiantes, párocos e proprietários rurais”.31 Mais adiante, os autores se dedicam a nos mostrar como esses movimentos de revolta se deram. Podemos observar então quais foram os métodos empregados por aqueles trabalhadores: as sublevações, quebra de máquinas, incêndios, envio de cartas ameaçadoras, etc; as diferenças quanto ao ritmo e intensidade de uma localidade para outra; as reivindicações em torno da defesa dos direitos costumeiros do pobre rural enquanto inglês nascido livre e da restauração da ordem social estável; a composição social do movimento, ou seja, os grupos mais receptivos aos atos de protesto; e podemos ver também como práticas coletivas tradicionais da aldeia, “que antes serviam para organizar as procissões, jograis de rua e os rituais agrícolas (...), se viram modificadas para propósitos de agitação social”.32 Por último, destacamos o trabalho clássico do antropólogo Eric Wolf, Las luchas campesinas del siglo XX. Nele, o autor empreende um estudo sobre seis casos de “rebelião e revolução” ocorridos no México, Rússia, China, Vietnã, Argélia e Cuba. Em todos eles os camponeses foram, segundo Wolf, os principais personagens.33 Para a análise sobre a participação política do campesinato nesses países, o autor incorpora a sua problemática um conjunto de questões muito semelhante ao que identificamos nos trabalhos citados acima. O primeiro problema a que o antropólogo tenta responder diz respeito à identificação dos tipos de camponeses que estão envolvidos num levante político. No seu entender há importantes diferenças de comportamento e ponto-de-vista entre arrendatários e proprietários, entre camponeses ricos e pobres, entre agricultores que são também artesãos e aqueles que só aram, entre aqueles que são responsáveis por toda a operação agrícola e os trabalhadores assalariados, entre os que vivem perto da cidade e participam em seus mercados e assuntos urbanos daqueles que vivem em aldeias mais remotas. Em suma, é preciso atentar no próprio interior do campesinato para as diferenças de relação com a propriedade da terra, com os mercados e com os sistemas de 31

idem. pp. 60-1. idem. p. 63 e ss. 33 WOLF, Eric. Las Luchas campesinas Del siglo XX. Ciudad del Mexico: siglo veintuno editores s.a., 1972. 32

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comunicação, já que “tais diferenças têm uma grande importância na gênese e curso de um movimento revolucionário”.34 Um segundo problema consiste nas diferenças regionais entre os camponeses, as quais têm grande peso na concatenação de circunstâncias singulares em regiões particulares para a formação da “satisfação” ou “descontentamento” camponeses.35 Esse tipo de preocupação, também muito presente em Capitão Swing, coaduna-se perfeitamente com uma das características do movimento dos lavradores cariocas, cuja forma de organização e método de luta variava de freguesia para freguesia e até em diferentes áreas de uma mesma freguesia. Um terceiro problema trata da importância dos grupos que fazem a mediação entre o campesinato e o resto da sociedade da qual faz parte, como são os casos de fazendeiros, comerciantes, dirigentes políticos e sacerdotes.36 Acrescentaria a categoria dos advogados, que no exemplo do sertão Carioca, desempenharam um papel fundamental na configuração dos litígios entre pequenos lavradores e pretensos proprietários. Um quarto problema refere-se à análise do campo característico onde se inserem as lutas políticas camponesas; este campo o autor entende como sendo a sociedade mais abrangente e os agrupamentos de classe que o constituem. Wolf entende que para a resolução desse problema, o estudioso tem de responder às seguintes questões: quem se dirige ao campesinato? O que é dito a ele de forma a levá-los a uma ação política? Que circunstâncias e que tipos de pessoas demonstraram ser propícias para realizar tal comunicação?37 Um último problema que o autor se propõem a esclarecer em que medida a rebelião e a revolução é também provocada por idéias e valores tradicionais? Wolf busca com isso explicar as razões da persistência das formas antigas assim como sua mudança.

O tema na literatura nacional

Por algum tempo aqui no Brasil, até mais ou menos o início da década de 1980, alguns estudiosos do tema buscaram compreender a lógica da atuação política do campesinato por meio da simples verificação de sua inserção na estrutura sócio-

34

idem. pp.5-6. idem. p. 6. 36 idem. p. 7. 37 idem. 35

31

econômica. E principalmente, tais estudos dedicaram-se a explicar como os movimentos deveriam ter sido e não como realmente foram.38 Isso acabou prejudicando a compreensão das questões relativas às condições e às formas de constituição do processo de luta dos camponeses. Ao invés disso, o que se tinha eram análises de caráter normativo, onde modelos concebidos a priori se sobrepunham aos aspectos realmente inscritos em cada um dos movimentos. Questões como as formas de luta e organização, a elaboração de identidades, a produção de discursos que legitimavam as reivindicações e o próprio movimento, o papel da mediação institucional e partidária, os efeitos do movimento, eram todas avaliadas sob os parâmetros fornecidos por alternativas do tipo revolucionário/reformista

ou

conservador,

erros/acertos,

eficácia/ineficácia,

legítimo/ilegítimo, etc. Alternativas que diziam respeito mais aos problemas específicos de intelectuais envolvidos com o tema do que com as reais contradições e problemas confrontados pelos personagens envolvidos nas lutas.39 Alguns estudos recentes, voltados para a temática dos movimentos sociais no campo, procuraram romper com essa perspectiva, tentando adequar a análise dos movimentos não a esquemas pré-determinados e sim ao reconhecimento das questões concretamente enfrentadas por cada um deles.40 Foi isso que procurou fazer Mário Grynszpan ao analisar o movimento de luta pela terra realizado por posseiros da Baixada Fluminense durante os anos de 1950 e 1964. Para conseguir compreender o porquê dos lavradores da Baixada terem optado pela luta e não pela imigração para a cidade ou para outras regiões em busca de terra, o autor reconstituiu um complexo processo que envolveu a formação da identidade de “posseiros”, a transformação do despejo em uma “questão social”, a competição entre grupos políticos pelo seu controle e a mediação empreendida por

38

Podemos destacar como trabalho emblemático desse tipo de perspectiva o estudo de VINHAS. Moisés. Operários e Camponeses na Revolução. Brasileira. São Paulo: Fulgor, 1963. Parte dessa perspectiva ainda pode ser notada em MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983; e FALEIROS, Maria Isabel Leme. Percurso e percalços do P.C.B. no campo: 1922-1964. São Paulo. USP, tese de doutorado, 1989. 39 O trabalho de CAMARGO, Aspásia. Brésil, Nordest: mouvements paysans et crise politique. Thése de 3 cycle, École Pratique dês Hautes Études. Paris, 1973. Muito embora reafirmasse algumas dessas noções, reconhecia também que a posição ocupada na estrutura econômica não era suficiente para determinar a lógica da atuação política dos trabalhadores do campo. 40 para um balanço sistemático da produção brasileira sobre mundo rural, nas ciências sociais, ver Garcia Jr., Afrânio e Grynszpan, Mario. “Veredas da questão agrária e enigmas do grande sertão”. In: Miceli, Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira 1970-2002. São Paulo, ANPOCS/Sumaré; Brasília, CAPES, 2002. pp. 311-348.

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militantes políticos.41 Foi essa também a linha seguida por Leonilde Medeiros para compreender o processo de mobilização de diversas categorias de trabalhadores do campo, sua constituição enquanto grupo social, assim como a mediação política realizada junto a eles pelo PCB, através de seus militantes e imprensa.42 Não podemos deixar de mencionar também a importância dos recentes estudos sobre os conflitos de terra que tem se detido a reavaliar antigas concepções de direito à terra e as formas que os agente sociais lançam mão para efetivar tal direito. Em Nas fronteiras do poder por exemplo, Márcia Motta se dedica a analisar as complexas estratégias de sobrevivência e os jogos de poder presentes na dinâmica da luta pela posse da terra no século XIX.43 A concepção de direito à terra que permeava a ação dos posseiros da região de contestado é consistentemente analisado por Tarcísio M. de Carvalho.44 Sob as perspectivas sinalizadas por tais estudos procuraremos responder alguns problemas que nos são colocados pelo movimento de luta pela terra no Sertão Carioca: quando e de que forma aqueles pequenos lavradores ocuparam as terras da região? Como e para quem produziam e vendiam seus produtos? Que relações

esses pequenos

lavradores desenvolveram entre si? O que tornou possível que parte desses pequenos lavradores tivessem se mobilizado e criado organizações voltadas para a defesa de suas terras? Quais eram as suas concepções sobre direito á terra? Que discurso construíram para legitimar suas pretensões? O que pretendiam ao realizar protestos junto à Câmara

41

GRYNSZPAN, Mobilização camponesa e competição política no estado do Rio de Janeiro (1950-64). Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado - PPGA/MN, 1987. 42 MEDEIROS, Lavradores, trabalhadores agrícolas, camponeses. Comunistas e a constituição de classes no campo. Tese de doutorado - IFCH, UNICAMP. Campinas, 1995. Destacamos também: ALENTEJANO, Paulo Roberto R. (2003). Reforma agrária, território e desenvolvimento no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro; COLETTI, Claudinei. A estrutura sindical no campo. A propósito da organização dos assalariados rurais na região de Ribeirão Preto. Campinas: editora da Unicamp, 1998; COMERFORD, John. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: NuAP/Relume Dumará, 2003; Idem. Fazendo a luta. Sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de Janeiro: NuAP/Relume Dumará, 1999; NEVES, Delma Pessanha. Assentamento rural: reforma agrária em migalhas: estudo do processo de mudança da posição social de assalariados rurais para produtores agrícolas mercantis. Niterói: EDUFF, 1997; ROSA, Marcelo Carvalho. A forma Movimento. Tese de Doutorado, IUPERJ, Rio de Janeiro, 2004; MACEDO, Marcelo Ernandez. Zé Pureza - etnografia de um acampamento no norte fluminense. Tese de doutorado, PPCIS/UERJ, Rio de Janeiro, 2003. Não podemos esquecer de um importante estudo do final da década de 70 no qual a autora, Lygia Sigaud, já adotava essa perspectiva – Os clandestinos e os Direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades, 1979. 43 MOTTA, Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/APERJ, 1998. 44 CARVALHO, Tarcísio Motta. “Nós não tem direito”. Costume e direito à terra no Contestado (19121916). Niterói, UFF, dissertação de mestrado em História, 2002.

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Municipal? Quais os efeitos de sua luta no cenário político carioca e frente a expansão da urbanização da cidade do Rio? Ao responder estas questões, esperamos reconstituir a complexidade e riqueza do movimento dos lavradores cariocas que se deu durante boa parte do século XX.

34

Capítulo 2 O espaço e suas experiências

“Então Isaque (...) fez o seu assento no vale de Gerar, e habitou lá. E tornou Isaque, e cavou os poços de água que cavaram nos dias de Abraão, seu pai, e que os filisteus taparam depois da morte de Abraão, e chamou-os pelos nomes que o chamara seu pai. Cavaram, pois, os servos de Isaque naquele vale e acharam ali um poço de águas vivas. E os pastores de Gerar porfiaram com os pastores de Isaque, dizendo: esta água é nossa. Por isso, chamou o nome daquele poço Eseque, porque contenderam com ele. Então cavaram outro poço e também porfiaram sobre ele. Por isso, chamou o seu nome Sitna. E partiu dali e cavou outro poço: e não porfiaram sobre ele. Por isso, chamou o seu nome Reobote, e disse: porque agora nos alargou o Senhor, e crescemos nesta terra.” Gênesis 26: 17-22

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1 – A zona rural carioca através dos tempos e das palavras Lendo os anúncios de terrenos da zona rural na década de 20 é possível ver a grande preocupação de seus autores em destacar suas condições de salubridade. Além de informarem sobre as dimensões do terreno, suas benfeitorias, lavouras e “creações”, tais anúncios invariavelmente eram finalizados com expressões do tipo “logar muito sadio”, “local saudável”, “boa morada própria para veraneio”, “logar salubérimo”, etc. Passando para os anos 40, a ênfase recai sobre a possibilidade desses terrenos se converterem em lucrativo ativo financeiro: os terrenos oferecidos, argumentavam as loteadoras, teriam “valorização certa”. Nos anos 50, esse aspecto continua sendo considerado, mas ao lado de um outro: os anunciantes agora se preocupam em demonstrar que seus loteamentos eram “devidamente” regulamentados e registrados. Alguns, como que para dissipar qualquer dúvida sobre o domínio dos terrenos anunciados, chegarão a citar “toda a documentação provando a legítima propriedade”, como foi o caso do Dr. Benedito Netto Velasco, mentor do “Loteamento Matto Alto” em Campo Grande, num anúncio de 1953.1

Mapa Escolar do Rio de Janeiro de 1922.

Se ampliarmos o campo de observação e recuarmos no tempo, veremos que a zona rural carioca também suscitava mudanças ao nível das representações sobre ela: no 1

O Popular, 28/11/1953(2º seção). p.1

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século XIX, ela era vista como um lugar decadente; nas três primeiras décadas do século XX, há curiosamente a coexistência de duas visões distintas: uma que a tomava como importante centro de abastecimento da então capital federal, e uma outra que a destacava como uma região abandonada e entregue às “pestilências”. Penso que tais visões, com suas diferentes representações e significados, servem para nos mostrar que antes de partirmos para o estudo do movimento de luta dos lavradores pela terra entre 1945 e 1964, é preciso conhecer melhor a região que estamos tratando. E conhecer melhor significa não apenas apresentar os limites geográficos dessa região (O que por si só não é uma tarefa das mais fáceis, pois muita das vezes os limites estabelecidos pelas autoridades administrativas não correspondem aos marcos geográficos fixados pela memória de seus habitantes). O que se pretende, na verdade, é analisar a maneira pela qual essa região teve sua paisagem, tanto geográfica como humana, conformada por importantes aspectos sociais tais como: negócios envolvendo o direito de uso das terras, expansão do mercado imobiliário, obras de infra-estrutura e saneamento, desenvolvimento da produção agrícola, as mudanças nos modos de exploração da terra e no perfil das propriedades exploradas. A nossa primeira hipótese é de que aquelas descontinuidades observadas ao nível da representação estão intimamente ligadas a acontecimentos decisivos para a conformação de uma determinada estrutura fundiária no Sertão Carioca: como se dá esse processo, quais agentes estiveram neles envolvidos, suas principais conseqüências – é o que procuraremos responder ao longo desse capítulo.

37

Região Agrícola de Vargem Pequena, na Baixada de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

Antes de seguirmos, faz-se necessário observar sobre a concepção que temos sobre o significado da prática de imposição de uma determinada representação. Basicamente ela se pauta naquela discutida por P. Bourdieu, que a entende como a tentativa de estabelecer uma definição legítima das divisões do mundo social e, conseqüentemente, de fazer e desfazer os grupos sociais.2 Tal definição guarda pelo menos duas conseqüências cruciais: a primeira, é que impondo uma representação sobre uma região ou um grupo social se está agindo sobre a realidade dessa região ou grupo.3 A segunda, é que o reconhecimento de

uma determinada representação consiste fundamentalmente na

tentativa de consolidação da autoridade de quem a enuncia.4 Uma região decadente: a prosperidade de um discurso

Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá, Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo, Santo Antônio e Santa Cruz – eram estes os nomes das freguesias que em conjunto formavam a zona rural da cidade do Rio de Janeiro, instituída pelo Ato Adicional de 12 2

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1998. p. 108. ibidem. 4 idem, 111. 3

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de agosto de 1834.5 Ilmar Mattos nos informa que eram chamadas de freguesias “de fora”, em contraste com as freguesias “de dentro”, pois, mais próximas dos centros de decisão da corte, a saber, as “instituições e instalações que tornavam possível a reprodução dos interesses dominantes”: o Paço, o Senado, a Câmara dos Deputados e a Câmara Municipal.6 Um pouco antes, no século XVIII, tinha sido a zona rural carioca grande produtora de açúcar. Os engenhos dos carmelitas e dos beneditinos eram as principais unidades produtoras. Só em Jacarepaguá, eram 11 os engenhos da “Veneranda Ordem de São Bento”. Na opinião de Robert Pechman, o século XIX traz uma aparente “decadência” econômica, ou como ele também prefere designar – um “estado de letargia produtiva”.7 Em vez de grandes unidades – fazendas e engenhos – serão as chácaras e sítios os responsáveis pelo novo tipo de produção. Segundo Pechman, esta nem de longe se aproximava da do século anterior, tanto que será a produção doméstica ou de subsistência a ocupar o papel de maior relevância econômica. A chamada produção comercial estará restrita a poucas fazendas, localizadas principalmente nas freguesias de Irajá e Jacarepaguá. Fora dessas regiões, a cultura do café por exemplo, teria sido efêmera e tão somente de “fundo de quintal”.8 Por outro lado, Noronha Santos afirma que todas as chácaras e sítios de Jacarepaguá “plantavam para o gasto” (mercado interno), mas também se dedicavam a uma produção de larga escala, “com colheitas de centenas de milhares de arrobas”, voltada para o abastecimento de um mercado mais amplo.9 A cultura do café teria se disseminado nas encostas de morros propícias ao cultivo, as “soalheiras” (vertentes ensolaradas e bem drenadas), deixando de lado as “noruegas” (vertentes úmidas e sombrias) e as baixadas de Sepetiba e Jacarépaguá.10 Mas N.Santos e outros memorialistas entendiam que a partir da década de 1890 a região conheceria uma grande crise. Até aquele momento, a Zona Rural tinha-se mantido

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FRIDMAN, F. Donos do Rio em nome do Rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999. p. 125. 6 MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 79. Havia também as freguesias de Governador e Paquetá, mas não eram consideradas como parte da zona rural. 7 PECHMAN, Robert Moses. Gênese do mercado urbano de terras, a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, PUR/ UFRJ, Rio de Janeiro, 1985. p. 89. 8 PECHMAN, R M. Formação histórica da estrutura fundiária na Zona Oeste do Rio de Janeiro e Barra da Tijuca. Relatório de Pesquisa apresentado ao IPPUR/UFRJ,Rio de Janeiro,1987. p. 68 9 Apud ARAÚJO, Carlos. Jacarepaguá de antigamente. Belo Horizonte: Carol Borges Editora, 1995. p. 36. 10 MUSUMECI, Leonarda. Pequena produção e modernização da Agricultura: o caso dos hortigranjeiros no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:IPEA/ INPES, 1987. p. 72.

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como uma área de “grande valor populacional e comercial”.11 Prova disso era Jacarepaguá, a freguesia de maior população escrava da Corte. Segundo o recenseamento de 1838, entre seus 7.302 habitantes, 4.491 eram escravos.12 O fim da escravidão somado ás outras transformações sócio-econômicas, promoveriam importantes mudanças na paisagem social da zona rural. E as representações sobre esse lugar não ficaram imunes a essas mudanças. Os autores dos relatos sobre a região interpretavam as transformações que estavam ocorrendo nessa época como indícios de “decadência” e “abandono”. É como se terras antes em plena produção tivessem sido tomadas pela esterilidade agrícola e por doenças como febre-amarela e malária. O Almanaque Laemmert de 1900 informava que a circunscrição de Guaratiba, a outrora “mais rica e florescente” do Distrito Federal, encontrava-se com seus cafezais destruídos, seus vastos campos de criação em agonia, infestada por doenças. A única coisa que talvez destoasse desse quadro de desalento era o desenvolvimento da pequena lavoura. Dizemos talvez, pois o fato era apresentado de maneira a comprovar a situação de franca decadência de uma área antes dominada por famílias tradicionais, com suas grandes propriedades e imensos cafezais.13 O relato de Noronha Santos, escrito no mesmo ano, é emblemático dessa visão calcada na idéia da decadência. O que o autor procura fazer com isso, é impor um marco divisório entre um antes, pleno e produtivo com grandes propriedades que funcionavam com mão-de-obra escrava, e um depois, quando o fim da escravidão impõe a tomada de novas estratégias por parte dos grandes proprietários em relação às novas formas de trabalho.14 Mas escrevia N.Santos que em Campo Grande havia “algumas” lavouras nas fazendas do Barata, do Monte Alegre, do Juriari e da Paciência, e pequenas plantações de cana em diversos sítios, “próximos dos povoados e lugarejos”. Havia também importantes fazendas de gado, “hoje abandonadas por falta de braços para o trabalho rural”.15 Sobre Guaratiba, em que pese o desenvolvimento da pequena lavoura e outras atividades como a extração de madeira (cedro, peroba, jequibá, canela, jacarandá e pau-ferro), “sua decadência é sensível devido às secas que têm consumido suas

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PINTO, Rivadávia. “Guaratiba, um orgulho de 407 anos (I)”, in Jornal do NOPH, Rio de Janeiro, N° 5, 1984. p. 6. 12 ARAÚJO, Carlos. Op. Cit., p. 55. 13 ALMANAQUE LAEMMERT, 1900, p. 271. 14 Ver ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A ideologia da decadência: leitura antropológica de uma história da agricultura do Maranhão. São Luís: IPES, 1983. 15 SANTOS, Noronha. As freguesias do Rio Antigo. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1965. pp.13-4.

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plantações e importantes cafezais”.16 Em Santa Cruz, junto a um comércio incipiente havia uma pequena lavoura existente em terras “outrora tão bem aproveitadas”.17 Essa representação que tomava a zona rural pelo viés da decadência, carregada pela nostalgia de uma “época de ouro”, não nos permite compreender importantes processos que a partir dessa época passavam a tomar forma na zona rural. Um deles diz respeito à formação e expansão de uma agricultura baseada na pequena produção. Se atentarmos para este processo com mais cuidado, veremos que a disseminação da pequena lavoura se deveu menos à derrocada da ordem dos grandes senhores de terra e mais a uma estratégia posta em prática por eles mesmos para a obtenção de ganhos econômicos e, possivelmente simbólicos.

Região Agrícola da Barra da Tijuca, na Baixada de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

Pechman destaca que a economia de subsistência que passa a dominar a zona rural a partir do último quartel do século XIX foi possibilitada pela divisão das grandes propriedades em chácaras e sítios que foram arrendadas ou aforadas aos lavradores.18 Para Pechman, isto cumpria, aos olhos dos antigos senhores de terra, dois papéis muito importantes. Primeiro, era preciso atrair uma nova mão-de-obra para as terras, a fim de 16 17

Idem, pp. 72 e 74. Idem, p. 116.

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que através de seu trabalho, elas se mantivessem produtivas e rentáveis. Uma das formas mais utilizada para tal fim foi a cessão da posse da terra através da enfiteuse, uma instituição jurídica que remontava à Idade Média portuguesa. Por meio dela o proprietário recebia uma pensão ou foro anual, ficando o adquirente obrigado a conservar a terra produtivamente.19 Mas havia nisso um segundo propósito. Ao ceder apenas o direito de posse, pretendia-se conservar a extensão territorial da grande propriedade e o domínio sobre ela.19 Mas o fundamental nisso tudo era a introdução na área do pequeno lavrador, seja como foreiro, arrendatário ou parceiro.20 Ou seja, com eles, novas relações sociais começavam a se consolidar na região. Pechman destaca que no início, esses agentes eram vistos pelos grandes proprietários como solução para a valorização de suas terras, “enquanto estas aguardam novos tempos, à espera do antigo fausto”.21 É de suma importância que tenhamos isso em mente quando começarmos o estudo desses “novos tempos”. Mas a terra e, principalmente, o que havia nela (benfeitorias, ferramentas, plantações, etc.), proporcionaram ganhos aos seus proprietários através de outras formas. Enquanto muitos proprietários preferiram manter suas terras para fins de cultivo com a simples cessão da posse, outros preferiram inseri-las no circuito comercial de compra, venda e aluguel de terrenos e benfeitorias. Este mercado se desenvolveu nas freguesias de Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo e Santo Antônio. O desenvolvimento dessa forma de valorização daria ensejo, segundo Pechman, ao surgimento de um “mercado de terras” no subúrbio da cidade. Negócio que, segundo ele, mostrou ser proveitoso a partir da década de 1840. A proliferação de anúncios de venda e aluguel de terrenos e benfeitorias nas páginas de classificados dos jornais no início daquela década seria um seguro indício. Mas os próprios anúncios transcritos por Pechman nos mostram o quanto é problemático afirmarmos sobre a existência, ao menos naquela época, de um mercado de terras. Vejamos então alguns deles:

18

PECHMAN, Robert. Gênese do mercado urbano de terras, a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. p. 94. 19 Ibidem, p. 95. 20 Arrendatário: aquele que toma de arrendamento, ou seja, contrato pelo qual uma pessoa cede o uso de alguma coisa a outra. Foreiro: aquele que tem o domínio útil de um prédio, pagando foro ao senhorio direto. Parceiro:aquele que cultiva uma parcela de terra com a obrigação de repartir os frutos de seu cultivo na proporção estipulada no contrato com o cedente da parcela. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986. 21 idem, Formação histórica da estrutura fundiária ... p. 18.

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-

Arrenda-se um sítio na Penha, distante 3 léguas da cidade, com muito boa casa de vivenda, excelente água, grande cafezal, muito capim, podendo tirar diariamente 12 22 talhas, muito arvoredo frutífero e porto de mar muito perto...

-

Vendem-se terras pertencentes à Ilma. Sra. D. Jerônima Duque Estrada Meyer, no Engenho Novo, um sítio com arvoredos frutíferos, um apequena casa de palha e 23 parte das terras ainda em capoeirão...

-

Vendem-se as benfeitorias de um sítio em terras do Engenho Novo do Campinho, distrito de Inhaúma, contendo boa casa de vivenda, plantações de café, enxertos de 24 laranja de todas as qualidades, mandiocas e bananeiras, tudo em quantidade...

Dos três anúncios, só no segundo a terra aparece como o objeto de transação. O primeiro se refere a um arrendamento, ou seja, o que se negocia é o direito de uso sobre a terra e não a terra em si. No terceiro, o que se põe a venda são as benfeitorias.Seja como for, nesse hipotético “mercado de terras” é possível notar que as transações eram ainda dominadas pelo que Pechman chama de “lógica ruralista”, onde o tamanho dos lotes e o tipo de benfeitorias compradas indicavam a permanência do uso agrícola. Isso passará a mudar a partir de 1870 com a extensão das linhas de trem e de bonde em direção aos subúrbios, de um lado, e a abertura de ruas, do outro. Neste momento, parte da zona rural – compreendida pelas freguesias referidas acima – passará a ver a transformação de suas fazendas em lotes urbanos. Numa área que vai até o limite entre a freguesia de Inhaúma e Jacarepaguá, verifica-se uma diminuição do tamanho dos terrenos postos à venda e uma nova lógica na repartição da terra. Pechman ressalta que os lotes vendidos localizavamse em áreas arruadas e faziam parte de um conjunto de outros lotes, “caracterizando, sem sombra de dúvidas, um processo de constituição de uma malha urbana”. 25 Esta só se consolidaria a partir da década de 1890, quando si inicia a urbanização dos bairros do subúrbio como Engenho Novo e Méier. Data dessa época o grande número de pedidos encaminhados à Diretoria de Obras e Viação para abertura, nivelamento e calçamento de ruas, prolongamento e aceitação de logradouros, e licenças para construir.26 A intensidade desse processo fará com que, iniciado o século XIX, as freguesias de Inhaúma, Irajá, Engenho Novo, Tijuca e Santo Antônio passem a constituir uma “franja 22

Apud PECHMAN, R.M Gênese do mercado urbano de terras... p. 101. ibidem. 24 idem, p. 102. 25 idem. p.118. 26 idem, p. 127. 23

43

urbano-rural”, onde é intensa a mistura de usos dos dois tipos. Mesmo as freguesias que ainda eminentemente rurais (onde a maior parte das propriedades se destinavam à atividade agrícola) entrarão no novo século tendo que conviver com o aprofundamento de um processo de urbanização, que se dá seja através do retalhamento das terras, seja pela expansão de obras urbanas com a extensão de linhas de trem, bonde e abertura de ruas e avenidas. Mas por se tratar de um processo marcadamente lento, os usos urbanos terão de conviver forçosamente com os usos rurais, ainda amplamente dominantes.

Região Agrícola de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

O século XIX terminava mas a região tinha bons motivos para não ser considerada decadente. Em primeiro lugar, há um significativo mercado girando em torno do uso sobre a terra (sob a forma principalmente do arrendamento), e o desenvolvimento de um “mercado de terras”, bem mais tímido é verdade. Mas tanto um como outro ajudavam a expandir uma agricultura baseada em pequenas unidades de produção e lançar as 44

primeiras sementes de uma malha urbana no subúrbio do Rio, e que nas freguesias mais próximas do centro da cidade já se encontrava consolidada desde a década de 1890. Em segundo, o fato dos antigos proprietários terem retalhado seus terrenos pode muito bem não ter sido um sintoma de decadência. Em termos econômicos, os dados apresentados por Pechmam não são suficientes para comprovar tal hipótese; na verdade, eles só mostram que o retalhamento das terras era intenso, mas não explica o porquê de terem se dado dessa forma. Por outro lado, poderíamos ver nisso uma possibilidade vislumbrada pelos antigos proprietários em conquistar maior status e prestígio social com a incorporação de arrendatários em suas propriedades. Na verdade, o discurso sobre a “decadência” dizia mais respeito a um olhar saudoso da época das grandes plantações movidas pelo trabalho escravo do que a processos que efetivamente ocorriam na região.

Região Agrícola de Vargem Grande, na Baixada de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

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Há, porém, um detalhe importante: os relatos sobre o século XIX que sublinhavam a “decadência” do lugar foram feitos nas primeiras décadas do século ( entre mais ou menos 1900 a 1930). O esforço que tais relatos demonstram em impor uma determinada representação sobre a região pode também ser visto como a tentativa em consagrar uma determinada memória sobre o passado do lugar. E como bem coloca Pierre Nora, a memória é uma construção sobre o passado com os olhos no presente.27 Nesse sentido é também possível que os autores daqueles relatos ao se debruçarem sobre o século XIX tenham querido encontrar nele as raízes do quadro de “abandono” e “decadência” pelo qual passava a região no momento em que escreviam. Pois curiosamente, eram aquelas mesmas imagens que davam o tom sobre as representações sobre a zona rural carioca.

Região Agrícola da Barra da Tijuca, na Baixada de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

Abandono e doença num “logar salubérrimo” e “productivo”

Nas três primeiras décadas do século XX, Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá e Santa Cruz são as principais freguesias que por essa época fazem parte da zona rural da então capital da República segundo o Censo de 1920. As freguesias de Engenho Novo, Inhaúma, Irajá, Méier também pertenciam, embora nelas se verificasse um avançado

27

NORA, Pierre. Op. cit., p. 9.

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estágio de urbanização. Segundo o Gazeta Suburbana, também faziam parte da zona rural as “localidades” de Cordovil e Vigário Geral.28 Os dados do Censo mostram que a zona rural possuía 2.088 estabelecimentos agrícolas29 que ocupavam uma área total de 51.419 hectares (514.190.000 m²). Apenas um pouco mais de 1% dessa área era abrangida pelos estabelecimentos localizados nos distritos do Méier e Inhaúma, mostrando serem áreas de feição quase totalmente urbana. Muito contribui para isso o retalhamento das fazendas do Portela, da Bica, da Boa Esperança, do Valqueire, do Campinho, da Nazareth e dos Afonsos.30 Em todas elas produziram-se lotes urbanos, se bem que bastante influenciados pelas características das antigas chácaras. As medidas (20-40 de testada e 60-100 de fundura) correspondia a um casarão de centro de terreno com um enorme quintal atrás, “onde facilmente se poderia ter uma horta e criação de galinhas ou porcos”.31 Foram desses loteamento que surgiram os bairros “suburbanos” de Madureira, Bento Ribeiro, Osvaldo Cruz, Visconde de Carvalho, Quintino, Honório Gurgel, Vila Valqueire, Deodoro, Marechal Hermes, Vila Militar, Coronel Magalhães Bastos, Realengo e outros. Mas esse processo não foi repentino, dando-se ao longo de pelo menos 60 anos.

Região Agrícola da Baixada de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

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Gazeta Suburbana, 03/05/1919, p. 3. idem, p. 75. O Censo desconsiderava as hortas e pomares. 30 Atlas Fundiário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Assuntos Fundiários e Assentamentos Humanos, 1990. p. 56. 31 idem, p. 55. 29

47

Em situação oposta, os estabelecimentos dos distritos de Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz abarcavam cerca de 90% da área total.32 Delgado de Carvalho notava que essas freguesias possuíam uma produção agrícola bastante diversificada. Os estabelecimentos ali localizados produziam ao todo 30 mil toneladas de açúcar, 10 mil de mandioca e mais 3 mil de milho, além de feijão, arroz e café. Possuíam ainda significativo rebanho com 23 mil bovinos, 22 mil suínos, 16 mil muares e 7 mil cavalos.33 Também digna de nota, já nessa época, era a fruticultura. Delgado de Carvalho nota que em Guaratiba, “o mais rico de todos os districtos agrícolas”, mais precisamente na “encosta Occidental do massiço da Pedra Branca”, havia grandes pomares, plantações extensas de bananeiras, de laranjeiras e de “outras frutas”.34 Ainda segundo o censo de 1920, os distritos de Campo Grande, Guaratiba e Santa cruz concentravam o maior número de cabeças de gado, tinham a maior produção de arroz, feijão, batata inglesa, cana; eram os únicos que produziam algodão e mamona, e detinham a segunda maior produção de café, milho e mandioca.

O bonde e o cavalo convivendo no Sertão Carioca. A coexistência entre urbano e o rural era muito comum na região até o avanço da urbanização em meados do século XX. Fonte: Blog de história.

32

idem, p. 81. Os estabelecimentos dos distritos de Irajá e Jacarepaguá respondiam por cerca de 6,5% da área total. 33 CARVALHO, Delgado de. Chorografia do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1926. p. 93. 34 ibidem.

48

Nessas freguesias rurais, o mercado de compra, venda e aluguel de terras se mantém ativo. A tendência continua ser a de manter as terras voltadas para a produção agrícola. Contudo, percebe-se também uma crescente tendência em se destacar a possibilidade desses terrenos se constituírem em moradas de veraneio. Vejamos, por ordem, os anúncios de terrenos em Santíssimo, Campo Grande, Barra da Tijuca, Jacarepaguá e Santa Cruz e Bangu em 1927. Todos são anúncios de venda, exceto o segundo, que é de aluguel. Notem que os atrativos dos terrenos, além da sua dimensão, consistiam em benfeitorias e na existência de algumas plantações e “creações” de animais: -

belíssimo sítio, tendo morro e vargem, boa agua de cachoeira, tem bananas de diversas qualidades, pomar de laranjas, boas arvores, abacate, 300 fruteiras de conde, algum mamão, tem café, muito aipim, batatas, uma grande horta de couves, feijão de vagens, um grande aboboral, terreno em matto, 800 cabeças de criação, 35 tendo algumas ferramentas da roça, logar muito sadio(...) .

-

Aluga-se, com contrato de 5 annos e bom fiador, 133x1.700 de fundos, água de cachoeira e encanada, casa de telha regular e mais três colonos, 5.800 pés de laranjas pêra novos e 2.500 pés de mamão, melão, grande plantação de aipim, batata e quiabos, bananal, dois bois e burro, carro charette, arado e criações(...) aluguel 250$000 mensaes.36

-

Vende-se ou aluga-se por contrato o lindo sitio da Estrada da Barra da Tijuca 24, a 4 minutos do ponto dos bondes da Freguezia, em Jacarepaguá, com grandes pomar (sic) e todas as qualidades de frutas nacionais e estrangeiras, mangueiras para porcos, cocheiras para animaes, esplendido para criação de aves e o terreno mede 140 metros de Frente por 150 de fundos, agua encanada, boa casa de campo para morada, luz, etc.37

-

Vendem-se dous sítios, 1 por 15 contos, tendo 70 mil m², com rico bananal, cafezal, frutas e matta; outro com cento e tantos mil m² com nascentes, bananal, cafezal, frutas e mattas, por 25 contos na Estrada do Catonho... 38

-

bom sitio (...) tem uma casa de telha, bois, carroça, 3 cabras, gallinhas, porcos, muita legra, mil e tanto enxertos de laranja, 1 cachoeira, lugar muito saudável.39

-

situação com casa e estábulo, tendo 55 cabeças de gado bovino, inclusive, carroça, cavallo, mulas, porcos, ganços, patos e gallinhas, grande bananal e algumas laranjas. 35 contos.40

Penso que chegou o momento de falarmos mais detalhadamente sobre essa produção agrícola, não em seus resultados ou produtos, mas nos responsáveis por esses resultados. 35

Jornal do Brasil, “classificados”, 13/05/1927, p. 4. Jornal do Brasil, “classificados”, 06/05/1927, p. 23. 37 Jornal do Brasil, “classificados”, 07/05/1927, p. 22. 38 Jornal do Brasil, “classificados”, 08/05/1927, p. 23. 39 Jornal do Brasil, “classificados”, 06/05/1927, p. 3. 40 Jornal do Brasil, “classificados”, 10/05/1927, p. 24. 36

49

Como ponto de partida, seria importante esclarecer as seguintes questões: quem eram os responsáveis por essa produção? Qual a sua relação com a terra? E em quais tipos de unidade produziam? Comecemos pelo ponto referente ao tamanho médio das unidades.41 Segundo Pechman, a proliferação do arrendamento e da venda de sítios e chácaras em Campo Grande e Jacarepaguá, do aforamento em Santa Cruz (entenda-se: Fazenda Nacional de Santa Cruz) e da posse por toda a zona rural fez com que a se disseminasse a agricultura baseada em pequenas unidades de produção.42 E os números do Censo de 1920 lhe dão o devido respaldo. Em Campo Grande, dos 592 estabelecimentos recenseados, nada menos do que 98,5% (583) eram de unidades menores do que 101 há. Desse total, 98%(573) eram de unidades menores que 41 ha. O quadro é parecido em Santa Cruz. Aqui, 96,4% (162) das unidades tinham menos que 101 ha. Desse universo de 162 estabelecimentos, 161 tinham menos que 41 ha. Porém, não obstante a vantagem numérica dessas pequenas unidades, o censo parece indicar uma concentração de terras em torno das grandes unidades. De um total de 25.988 ha cultiváveis, as unidades de menos de 41 ha ocupavam apenas 974 ha (3,7%). As unidades de área entre 41 e 100 ha detinham ínfimos 73 ha (0,2%), e as unidades médias entre 101 e 401 ha ocupavam 407 ha (1,5%). Chegando nas grandes propriedades, vemos o seguinte: as que tinham entre 401 e 1.000 ha detinham 484 ha (1,8%) da área total, as de 1.001 a 5.000 ha possuíam 6.050 ha (23,2%). E uma só unidade, que tinha entre 10.001 e 25.000 detinha simplesmente 18.000 ha (69,2%) do total. Mas trata-se aqui da Fazenda Nacional, que era na verdade dividida em centenas de lotes arrendados ou aforados para pequenos lavradores. Não podemos esquecer também que a área era objetos de inúmeras ocupações por parte de posseiros.43 Portanto a propriedade da terra estava concentrada sim(e a maior parte em mãos da União), mas não o seu uso.

41

Os dados que possuímos só levam em conta os distritos de Campo Grande e Santa Cruz. Há que se destacar este importante critério utilizados pelo Censo: para ele, as pequenas propriedades seriam as que tivessem uma dimensão menor do que 101 ha, as médias teriam entre 101 e 400 ha, e as grandes, com mais de 400 ha. 42 Aquilo que Chayanov designava como “unidades de trabalho familiar”. Ver CHAYANOV, Alexander V. “Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas”, in SILVA, José Graziano da & STOLCKE, Verena (orgs) A Questão Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981. 43 PECHMAN, Robert. Formação histórica da estrutura fundiária ..., pp. 85 e 89.

50

Região Agrícola da Barra da Tijuca, na Baixada de Jacarepaguá. Década de 1930. Fonte: IBGE.

Em Campo Grande, a situação também era de desequilíbrio, mas comprovadamente em favor das pequenas unidades. As que tinham menos de 41 ha detinham 4.128 ha (53,6%). As de 41 a 100 há ocupavam 599 ha (7,78%), as médias unidades de 100 a 400 ha possuíam 1.556 ha (20,2%), e as grandes unidades de 401 a 1.000 alcançavam 1.414 ha (18,3%).44 Quais eram os tipos de trabalhadores que faziam dessa região um importante centro de abastecimento? Em Campo Grande, era a categoria do arrendatário que prevalecia nesta “função”. Do total de 592 estabelecimentos rurais, 206 (34,79%) eram dirigidos por proprietários, 20 (3,37%) por administradores e interessados, e 366 (61,82%) por arrendatários. Da área total de 7.697 ha, os proprietários respondiam por 279 ha (36,62%), 1.084 ha estavam em mãos de administradores e os arrendatários detinham a maior parte - 3.097.45 Em Santa Cruz as categorias de arrendatários e proprietários aparentemente são secundadas pela do administrador. Dos 168 estabelecimento recenseados, os proprietários dirigiam 111 (66,07%), os administradores e interessados detinham 3 (1,78%), e os arrendatários ficavam responsáveis por 54 (32,14%). Da área total de 25.988 ha ocupada pelos estabelecimentos rurais, 7.395 há (28,45%) estava em mãos de proprietários, 18.022 ha (69,34%) nas dos administradores e 571 ha (2,19%) eram 44 45

idem, pp. 85-6. idem, p. 90.

51

tocados por arrendatários.46 Aqui, ao contrário do que fazem supor os números do censo, o domínio do administrador não é tão grande assim. Como o próprio nome diz, o administrador era apenas encarregado da administração, mas eram os foreiros ou arrendatários os responsáveis pela produção nos lotes. Assim, é muito provável que tal como em Campo Grande, fossem os arrendatários de Santa Cruz a categoria de maior evidência econômico-social. O curioso é que uma categoria que estará ausente do censo de 20 será a de posseiros e ocupantes. O que é de se estranhar, dado os inúmeros processos movidos pela União contra “intrusos” que ocupavam “indevidamente” terras da Fazenda Nacional.47 Dada as inúmeras (e às vezes confusas) mudanças de critérios e às próprias imperfeições de seus registros, não se pode descartar a hipótese de que entre aqueles que se declaravam proprietários e arrendatários houvesse, do ponto de vista estritamente jurídico, posseiros.48 No entanto, mesmo os distritos de inegável feição rural começavam a ser alcançados pela ação de um mercado de terras orientado por uma lógica não-agrícola. Por ela, as terras comercializadas passavam a combinar usos agrícolas e urbanos, eram os chamados terrenos de veraneio, onde os usos agrícolas não tinham fins comerciais nem de subsistência e sim, funções de entretenimento e lazer. Eles se encontram bem exemplificados nestes dois anúncios de 1927. O primeiro é de um terreno de Campo Grande: “esplendidos terrenos, com bonde elétrico à porta (...) áreas de todos os tamanhos; 300$ a 5:000$; em prestações a longo prazo; logar salubérrimo e próprio para veraneio ou cultivar e crear(...)”49; e o segundo, de Jacarepaguá: “bonito sítio de recreio, com boa casa, pomar novo e diversas outras benfeitorias. Local saudável e de raro pittoresco.”50 Nessa época, podemos ver que se esboça também um mercado voltado para a construção de loteamentos. Vejamos esses anúncios, também de 1927, de um terreno em Realengo e Campo Grande respectivamente: -

terreno 140 x 275 – Vende-se no Realengo, junto à Estrada Rio-SP, área plana, própria para loteamento.51

46

ibidem. A este respeito, Pechman apresenta um minucioso histórico, idem, pp. 45 – 57. 48 Posseiro: aquele que está na posse legal de prédio ou prédios indivisos. Lendo o significado da palavra possear é possível que possamos considera o posseiro como “aquele que ocupa terra devoluta”. In Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986. 49 Jornal do Brasil, “classificados”, 10/05/1927, p. 25. 50 Jornal do Brasil, “classificados”, 13/05/1927,p. 23. 51 Jornal do Brasil, “classificados”, 08/05/1927, p. 23. 47

52

-

152 reis o m², vendo boa fazenda, dando renda. Ótima para loteamento por estar 52 junto a estação do subúrbio a 1 hora do Rio .

Mas a expansão do processo de mistura de usos rurais e urbanos não parecia ser um problema, ao menos nesse momento, aos olhos de quem vivia aquela época. O problema era outro: o que então causava certa apreensão era o não aproveitamento de consideráveis porções de terra da área da zona rural. Ao mesmo tempo que alguns exaltavam a potencialidade agrícola dessa zona rural, outros demonstravam preocupação com as terras não-aproveitadas. A partir daí, a imagem da zona rural como grande centro de abastecimento sofria retoques nada otimistas. Vizinhas ás noções de fartura e variedade agrícola continuava persistindo as noções de abandono e improdutividade, cujas raízes remontavam ao século XIX. Mas é preciso que se observe que nesse momento, nas primeiras décadas do século XX, tais noções seriam temperadas por outros matizes. Explicando melhor: a decadência da região não era fruto apenas do desaparecimento

das

“vicejantes

lavouras”

dos

grandes

fazendeiros,

mas

fundamentalmente do estado de abandono a que foi relegada pelos poderes públicos. Outra diferença: tal condição de abandono não era mais apontada em discursos de memorialistas saudosos da antiga ordem imperial e escravocrata, mas era sim, a partir de então, algo pautado em “diagnósticos” proferidos por autoridades políticas e científicas (figuras quase sinônimas num período marcado pelo positivismo republicano).53 Vejamos o que o Gazeta Suburbana dizia em seu editorial dedicado às “coisas da política” em 1910. Nele o jornal apresentava aos seus leitores o que seria uma importante bandeira a ser defendida. Após afirmar que a capital federal só era conhecida “da Estação Central[do Brasil] a Botafogo”, ele prometia que daqui dessas columnas bradaremos sempre e sempre até que a nossa voz, unida a de outros batalhadores mais fortes que nós seja ouvida por alguém que não estando prezo aos grilhões da política lembre-se que o Districto Federal comprehende não só o trecho 54 da Central a Botafogo, mas extende-se ate Santa Cruz e Guaratiba.

A outra face desse abandono seriam as doenças que grassariam na região. Afrânio Peixoto, escritor e professor de higiene na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro era uns dos especialistas “alarmados” com tal situação. Numa conferência realizada em 19 52

Jornal do Brasil, “classificados”, 19/05/1927, p.38. A respeito das relações entre política e ciência na Primeira República ver LESSA, Renato. A Invenção Republicana. São Paulo: Vértice/IUPERJ, 1988. 54 Gazeta Suburbana, 29/09/1910. p. 1. 53

53

de maio de 1918, o sanitarista tentava convencer que não era só o interior do país que se encontrava entregue às “terríveis endemias rurais”: Se raros escapam à doença, muitos têm duas ou mais infestações [...] Vêem – se, muitas vezes, confrangido e alarmado, nas nossas escolas públicas crianças a bater os dentes com o calafrio das sezões [...] E isto, não nos ‘confins do Brasil’, aqui no DF, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca [...] Porque, não nos iludamos, o ‘nosso sertão’ 55 começa para os lados da Avenida [Central]...

Para Afrânio Peixoto, o abandono e a infestação de doenças que assolavam a zona rural carioca, ou parte dela, eram suficientes para que se pudesse considera-la uma região igual aos “miseráveis rincões” espalhados pelo interior do país – um sertão entre tantos.56 Mas a que significado o professor Afrânio e outros (professores e não professores) se referiam quando pensavam e diziam a palavra sertão? Em Um Sertão chamado Brasil, Nízia Lima Trindade retraça a trajetória dessa palavra desde o período colonial, quando ela designava “o território vazio, o domínio do desconhecido, o espaço ainda não preenchido pela colonização”, até chegar ao período da República Velha.57 Segundo a autora, nos primeiros anos da República, o Sertão era qualificado a partir de três idéias básicas: doença, abandono e autêntica consciência nacional. Ao mesmo tempo que era o espaço dominado pela pobreza e pela barbárie, era também o portador de valores morais, entendidos como os mais típicos da nacionalidade brasileira. Ainda segundo a autora, neste momento é possível ver um expressivo movimento de valorização do sertão, seja como espaço a ser incorporado pelo esforço civilizatório, seja como referência da autenticidade, movimento este que seria reforçado quando tomava corpo no final da década de 1910 a Campanha pela Reforma da Saúde Pública e pelo Saneamento dos Sertões.58 Contudo, no caso particular da zona rural do Distrito Federal, a ênfase do pronunciamento do sanitarista Afrânio Peixoto parecia recair quase toda ela nos pólos doença e abandono. Essa visão era reforçada por José Maria Bello, também sanitarista. Mas Bello ia além. Para ele, as condições de saúde na zona rural eram tão alarmantes, que se fazia necessário reformular a tradicional divisão do país entre “litoral” e “interior”. Além 55

HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de Saúde Pública no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 70. 56 G. HOCHMAN afirma que a palavra sertão era empregada mais como uma categoria social e política do que geográfica, dado que “sua localização espacial dependeria da existência do binômio abandono e doença”, ibidem. 57 TRINDADE, Nízia Lima. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro. p.58. 58 idem, p. 65.

54

dessas duas regiões, haveria a “periferia do Distrito Federal”. Cada uma dessas regiões era definida não por critérios geopolíticos, mas pela presença das três grandes endemias rurais. Dizia Bello no mesmo ano de 1918: Às portas da capital a ancilostomose dizima a população da baixada, como mais além, por todo o litoral e margens de rios, o impaludismo, e pelos sertões, a tripanossomíase 59 americana colhem as suas vítimas.

O “diagnósticos” dos sanitaristas também encontrava respaldo em parte da imprensa. Segundo o Gazeta Suburbana, Tijuca, Campo Grande, Guaratiba, Santa Cruz, Sepetiba, Irajá e Inhaúma, eram “localidades” que “maior progresso” não tinham devido ás “várias moléstias que definham ou matam as suas populações”.60 Portanto, tinha-se junto a uma visão da zona rural como área de prosperidade e fartura, uma outra extremamente pessimista que a tomava como um sertão, já que entregue ao atraso e a toda sorte de “pestilências”. Se essa visão era exagerada ou não, não podemos saber ao certo. Mas é sem dúvida muito significativo o fato dos anunciantes de terrenos fazerem questão de afirmar que suas terras ofereciam boas condições de saúde e higiene através de termos como “local saudável”, “logar salubérrimo”, “boa casa para morada”, “logar muito sadio”, etc. Hochman lembra que com suas declarações, A.Peixoto e J.M. Bello exerceram, já em sua época, grande impacto sobre “a campanha pelo saneamento rural”. Com eles ficava claro que esse pedaço de Brasil doente não era nem pequeno nem longínquo, para continuar esquecido pelas autoridades públicas e idiotizados pelas endemias. Se as conseqüências do abandono e da doença tinham chegado aos calcanhares da elite brasileira, ao final da 61 Avenida Central, teriam ainda de alcançar suas consciências.

As consciências já pareciam estar devidamente alcançadas. As preocupações por parte de alguns órgãos governamentais não deixam dúvidas quanto a isso. Ao menos era o que indicava a aprovação pelo legislativo da cidade do Projeto n. 7, que no seu artigo 1º fazia saber que: Fica o Prefeito do Districto Federal autorizado a mandar sanear a zona não exgotada deste Districto (parte da zona urbana, a suburbana e a rural), devendo para isto: a) desapropriar terrenos não drenados convencionalmente, desflorestados, polluidos, pantanosos e incultos que tenham vegetação nociva à produção e que permittam o desenvolvimento de insectos e de parasitas vectores, cujos proprietários não realizem, 59

Apud G. HOCHMAN, Op. Cit. p. 71. Gazeta Suburbana, 12/07/1919. p. 3. 61 ibidem. 60

55

dentro do prazo que lhes for marcado, pelo competente departamento municipal, os serviços de drenagem, reflorestação.62

A aprovação por “maioria absoluta” desse projeto parecia indicar a intenção de fazer com que ele fosse implemantado o quanto antes implementado. Mas ao que parece a região ainda teria que esperar um pouco mais para ver a transformação dessas intenções e preocupações em algo mais concreto. Ainda encontraríamos nos anos seguintes testemunhos dando conta da persistência de condições de insalubridade e ocorrência de várias doenças.

Trabalho de crianças na Fazenda Modelo de Guaratiba, década de 1930. Fonte: IBGE.

Anos depois, seria o Ministério da Agricultura a demonstrar estar disposto a agir para “sanear” esta situação. Para ele o “abandono” da zona rural repercutiria principalmente na agricultura e nas condições de salubridade. O próprio Censo de 1920 destacava que mesmo sendo uma das principais fontes de abastecimento da cidade, a região tinha grandes áreas que permaneciam incultas. Em Campo Grande, por exemplo, os estabelecimentos agrícolas ocupavam apenas 31,4% da área cultivável de todo o

62

Annaes do Conselho Municipal, 20/06/1919. p. 302.

56

distrito.63 Quase uma década depois, em 1929 o então ministro da Agricultura Lyra Castro revelava sua intenção de criar em terras da Fazenda Nacional um centro agrícola para “aproveitar magníficas terras, até aqui improductivas”. Tal proposta de Castro também trazia implícita a idéia de uma zona rural triste e débil, já que pouco lembrada pelo poder público. Sendo Castro uma autoridade política que representava a “voz” do Ministério da Agricultura, seu discurso fazia com que o “estado de abandono” fosse reconhecida pelo próprio poder público. Por isso a criação do centro agrícola ajudaria a reparar este histórico descaso, uma vez que a intervenção governamental fazia a região “recuperar” a sua produtividade e felicidade: Cada um procurará adquirir o seu lote aos proprietários das terras próprias para a lavoura, hoje abandonada, e dentro de alguns annos o aspecto desolador que caracteriza essas terras na actualidade se transformará na risonha perspectiva de innumeras pequenas 64 granjas prosperas, habitadas por gente feliz.

No mesmo ano, num relatório apresentado ao Ministério da Agricultura relativo ao “melhoramento das condições da agricultura no Distrito Federal” entre 1927 e 28, o autor se diz “impressionado com o estado de abandono de grandes áreas cultiváveis no Distrito Federal que, uma vez exploradas, teriam grande concurso no abastecimento do Rio”. As terras da zona rural, continua ele, “oferecem ótimas condições para a agricultura mas estão transformadas em pântanos e precisam ser saneadas”.65 Era necessário, escrevia ele, um programa de incentivo à produção com vistas a efetivar a zona rural como a principal solução do “consumo e barateamento da vida na cidade”. É possível que esta autoridade que representava o Ministério da Agricultura não encarasse o problema das terras incultas exclusivamente sob o ponto de vista do aproveitamento agrícola. O estado de abandono das terras era prejudicial não só para a agricultura, como também para a saúde da população carioca. O saneamento da região tinha nesse sentido, dupla importância: era um meio capaz de devolver estas terras à prática da agricultura e era o único capaz de expulsar da região os vários focos de doenças nela instalados.

63

PECHMAN, Robert. Formação histórica..., pp. 73-4. BRASIL. Ministério da Agricultura. Introdução ao relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente da República pelo ministro da Agricultura, indústria e commercio Dr. Lyra Castro. Rio de Janeiro, 1930. 65 Apud PECHMAN, Robert. Op. Cit. p. 74. 64

57

Classificado de terrenos em Jacarepaguá. Final da década de 1920. Fonte: Jornal do Commercio.

Tais preocupações dariam forma a outros projetos e ações governamentais, demonstrando que na prática a zona rural não era de todo uma “região esquecida” e “vazia de significado” para os poderes públicos, embora essa fosse a imagem consolidada sobre a região.66 As conseqüências desencadeadas pela execução de alguns desses projetos, especialmente para a agricultura e saneamento da zona rural, é o que as próximas décadas terão o mérito de nos mostrar.

Fazenda localizada em Guaratiba, década de 1950. Fonte: IBGE.

Os efeitos da laranja, das obras do DSBF e da “bomba atômica”

66

Cf. PEDROZA, Manoela. Terra de resistência: táticas e estratégias camponesas no Sertão Carioca (1950-1968). Porto Alegre, UFRGS, Dissertação de mestrado em História, 2003. p. 69.

58

A década de 1930 chega e traz com ela várias novidades para a zona rural carioca. Uma delas é o próprio nome pelo qual passa a ser designada – Sertão Carioca. Entre 1931 e 1932, Magalhães Corrêa, naturalista autodidata, especializado em taxologia, escreve um estudo pioneiro sobre a zona rural do Distrito Federal para o jornal Correio da Manhã através de vários artigos, que foram posteriormente reunidos numa edição única pelo IHGB em 1936.67 O nome por ele cunhado foi amplamente reconhecido e desde então a zona rural passou a ser chamada de Sertão Carioca pela imprensa, vereadores, autoridades municipais, partidos e pelos próprios habitantes da região. Fato compreensível, se levarmos em conta que o referido matutino era o jornal de maior vendagem em toda a cidade. Com base em “pallidas notas, apanhadas em excursões”, como ele mesmo diz,68 o autor procura montar um painel dos usos e costumes da população da região. Em termos geográficos, o trabalho de M.Corrêa traz uma importante mudança: em sua obra, a zona rural passa a compreender os distritos de Campo Grande, Santa Cruz, Guaratiba e Jacarepaguá e não mais as circunscrições 69 de Inhaúma, Irajá e Méier. M.Corrêa entendia que a forma de vida e, em particular, o modo de interação e integração dos habitantes com a natureza por meio da predominância de uma economia de subsistência, evidenciavam a existência de típicos sertanejos. Curiosamente, Corrêa pouco fala sobre as atividades ligadas à lavoura, a não ser a da banana, concentrando em descrever as atividades daqueles que consideravam ser os “tipos” mais significativos da região, como os carvoeiros, oleiros, cantoneiros, cabeiros, caçadores, cesteiros, machadeiros e tamanqueiros.

67

SARMENTO, Carlos Eduardo. Pelas veredas da capital: Magalhães Corrêa e a invenção formal do Sertão Carioca. Rio de Janeiro: CPDOC, 1998. p. 5. 68 CORRÊA, Magalhães. O Sertão Carioca. Rio de Janeiro: Edição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1936. pp. 23-4. 69 Pelo Decreto 3.816 de março de 1932, o Distrito Federal passava a ser dividido em circunscrições fiscais e não mais em freguesias. Em maio de 1941, o decreto 6.985 estabelecia a divisão da cidade em 16 distritos. BASTOS, Moacyr Sreder. Campo Grande. Rio de Janeiro: Editora Campo Grande, s/ d. pp. 1415.

59

Venda de terreno em Jacarepaguá. Década de 1920. Fonte: Jornal do Commércio.

Para Carlos Sarmento, M.Corrêa via a zona rural como “um universo aparte, com dinâmica própria, muito mais vinculado a um passado mítico de perfeita sintonia entre o homem e o meio natural”.70 Numa crônica de nome “O Sertão Carioca”,71 Ricardo Palma dá forma a esta visão em poucas mas reveladoras linhas: Tudo por ali é um vasto mundo ainda virgem, com um homem ainda meio primitivo, vivendo da caça, da pesca, do fruto silvestre, em rancho à beira do brejo ou na matta, solitario com os seus cães, a sua quasi piroga, o seu pão de fogo irmão do bacamarte, a sua rêde, a sua tarrafa, o seu isqueiro, o seu facão, a sua panella de barro, o seu 72 moquem.

E o próprio M.Corrêa a ratificava ao escrever que: “Nesse ambiente bem brasileiro, e um tanto isolado, impera ainda a alma pura dos nossos caboclos, tudo lembra o que é nosso, os typos e costumes.”73 Havia importantes diferenças entre a noção de sertão empregada por Magalhães daquela empregada pelos sanitaristas do final da década de 1910: em primeiro lugar, o nosso autor retinha da antiga idéia de sertão o conceito de consciência nacional autêntica, desconsiderando por completo o conceito de doença. Havia algumas menções ao conceito de abandono, embora de forma rarefeita. O curioso é que o próprio autor fornece elementos que nos levam a relativizar a idéia de uma região

70

SARMENTO, Carlos Eduardo. Op. Cit. p. 9. Esta crônica serviu como apresentação do livro de Magalhães Corrêa. 72 CORRÊA, Magalhães. Op. Cit. p. 13. 73 idem, p.60. 71

60

esquecida pelos poderes públicos. Vejamos o caso dos tropeiros responsáveis pelo comércio da banana produzida na região: Sahindo, como de costume (...) à noite, de seus ranchos, com sua tropa, ora a cavallo, ora a pé, vão como formigas em correição, pelas estradas do Pica-Páo, das Furnas, dos Três Rios, do Rio Grande, de Guaratiba, até a Tijuca, Andarahy, Boca do Matto, Meyer, Engenho de Dentro, Inhaúma, como verdadeiros abnegados, lutando com todos os 74 elementos e, finalmente, abandonados por nossos dirigentes.

Porém, logo adiante o autor revela um detalhe que demonstra que a ausência do poder público não era tão absoluta como ele próprio nos tenta levar a crer. Assim conta o autor: quando aqueles tropeiros, “por ventura, comettem qualquer delicto, applica-se-lhes logo a lei, mas lei feita para ‘almofadinha da cidade’”.75 Em outra passagem, o autor novamente apresenta uma informação que confirma que a intervenção dos poderes públicos no cotidiano de boa parcela dos moradores da região, sob a forma da repressão a algumas iniciativas destes, não era algo insignificante. Corrêa nota que há na Barra da.Tijuca um restaurante “com aspecto dos da cidade, isto é, burguez em tudo: na construção, no serviço e nos donos”. Preocupado com a possibilidade de construções como essa descaracterizarem a paisagem daquela região, o autor se pergunta: “não será possível construir-se hotel, bar ou albergue, com caracter rural? Construcções de pedra, com aspecto campestre, physionomia raural, bem rústico, com conforto e bem nosso?” Ao que o próprio autor responde e explica: “Sim, mas a Prefeitura prohibe construcções no alinhamento de ruas e estradas que não tenham a eterna platibanda. E querem coisas nossas, novas, bem pittorescas, quando não há liberdade de construcções na zona rural!”76

74

idem, p.142 (grifo meu). ibidem. 76 ibidem, 75

61

Moradia de família de pequenos lavradores de Curicica, década de 1950. Fonte: IBGE.

Uma segunda diferença estava no fato do autor ver como positiva a não “incorporação” da região pelo “esforço civilizatório”. Mesmo porque, a designação dessa região como um “Sertão Carioca” expressava a idéia de um espaço idílico vinculado diretamente à noção de uma áurea outrora perdida. Era o Sertão Carioca um paraíso perdido no processo civilizatório.77 O freqüente recurso que faz M.Corrêa de imagens pictóricas quando da descrição de paisagens demonstra bem esse tipo de visão. Um exemplo é a descrição de uma das grandes cascatas da região, a “Cascata Grande” formada por duas quedas d’água, hoje muito reduzidas, a não ser depois das chuvas que toma aspecto majestoso, feito pela mão da natureza. A cascata é extraordinária pela sua múltipla visão, talvez um dos pontos mais bellos da paizagem carioca; entre as duas quedas, a água quase que parada, é um espelho do céo, das montanhas e da vegetação. 78 Este conjunto de quedas e remanso dá a impressão de estar-se em um paiz de fadas....

A beleza e os “mystérios” das praias da Barra da Tijuca eram tão extraordinários para Corrêa, que a sua descrição é tecida de modo que fique difícil distinguir o que é real e o que é ilusório. Na “paizagem” idealizada, ou melhor, “observada” pelo primeiro cronista desta “vasta zona terra carioca”, seres reais e mitológicos parecem coexistir harmonicamente: 77 78

SARMENTO, Carlos Eduardo. Op. cit. p. 10. CORRÊA, Magalhães. Op. cit. P. 32.

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Nesse ambiente ingênuo e encantador, onde a alvissima e fina areia se transforma aqui e além em dunas, apparecem encantadoras silhuetas de Eva, de maillot ou sunga, deixando-se beijar pelas águas límpidas dessa mysteriosa mistura fluvial marítima. Ellas se transformam de mundanas em verdadeiras nymphas, nesses casebres de pescadores, os quaes cedem os quartos da esposa e filhos para a mutação, como se fora um laboratório 79 de Fausto, em troca de algumas pratas.

Ao difundir uma representação da zona rural como um lugar paradisíaco, textos como o de M.Corrêa tornavam possível que se pensasse a região como uma área de turismo e, por que não, de expansão de um mercado imobiliário voltado para a construção de casas de veraneio. Talvez essa nem fosse a intenção de M.Corrêa ao descrever a “natureza encantadora desse recanto”, mas a linguagem por ele introduzida estava em fina sintonia com acontecimentos que acarretariam importantes transformações na paisagem social do Sertão Carioca: a linguagem que exaltava as “bellezas” da região seria incorporada nos anúncios das companhias imobiliárias de modo a destacar os atrativos dos terrenos postos à venda.80 Um outro aspecto que cabe mencionar, é que a representação formulada por M.Corrêa, destacando as belezas naturais e o potencial turístico da região, chocava-se frontalmente com a visão de uma zona rural tomada por pestilências. O fato de Magalhães ter se concentrado em uma área específica do Sertão Carioca(sul da Baixada de Jacarepaguá), não parecer explicar essa divergência: a Baixada de Jacarepaguá, assim como a de Sepetiba, ainda eram consideradas os maiores “focos” de epidemia do Distrito Federal. Decerto, o autor destacava a questão do abandono da região por parte dos “governantes”, e o alto índice de desmatamento de suas matas seria um exemplo. Mas é inegável que a sua ênfase, ao contrário dos sanitaristas de duas décadas atrás, recaia sobre a face positiva do Sertão Carioca. Finalmente, por mais que o texto de Corrêa carregasse no tom idílico de suas descrições, permitindo por exemplo, que Ricardo Palma considerasse o Sertão Carioca como um “vasto mundo ainda virgem”, é bem verdade também que por diversas vezes ele chamava atenção para uma importante característica da região: os litígios envolvendo a posse e a propriedade da terra. Voltaremos a eles no segundo capítulo, tratando inclusive de um litígio citado pelo próprio Magalhães Corrêa. Por enquanto, fiquemos apenas com a descrição feita pelo autor de um caso ocorrido nas terras do antigo Engenho d’Água. Tais terras teriam sido vendidas por Pitutinha, filho do Barão da Taquara, seu último proprietário, à Companhia 79 80

idem. p. 57. No momento, queremos apenas chamar atenção para esta questão, voltaremos a ela mais adiante.

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Radio Internacional do Brasil, só que nelas havia alguns “pobres sitiantes agricultores e cabeiros”. Estes depois de receberem a “promessa de serem remunerados pelas suas benfeitorias” foram convencidos a deixá-las. Daí foram saindo recebendo em troca um papel com os dizeres: ‘a fulano de tal, vale 500$000 mil réis ou um conto’ e assinado Fonseca Telles *, porém, ao irem receber os vales no escriptorio, lá diziam não serem conhecedores do accordo, e assim ficaram 81 muitos dos nossos agricultores e cabeiros sem sitio e sem dinheiro...

*** Um outro importante acontecimento dessa época a ser destacado é que, a exemplo do que aconteceu na Baixada Fluminense houve grande disseminação da cultura da laranja por quase toda zona rural. A força de sua amplitude e de sua intensidade se encontra bem expresso na designação “febre da laranja” dada a esse período, muito difundida tanto por memorialistas quanto por pesquisadores da região.82 As principais regiões atingidas pelo “mar de laranjas” foram Campo Grande, Realengo, Santa Cruz, Guaratiba e, em menor escala, Jacarepaguá.83 Nestes distritos, a cultura da laranja chega primeiro às “soalheiras”, depois às baixadas beneficiadas pelas obras de drenagem e saneamento realizadas pelo DNOS, deixando de fora apenas as vertentes sombrias e as partes mais altas das serras, as chamadas “noruegas”.84 Seu grande impulso se deverá à existência de créditos postos à disposição por capitais ingleses, que exploravam o ramo cítrico.85 O vigor dessa cultura se fez notar até mesmo no mercado de loteamentos. Conforme a conjuntura, alguns “laranjeiros” preferiam investir na produção de laranjas ou na revenda de lotes, “ou em ambas as modalidades, se fosse oportuno”.86 O terreno que possuísse alguns pés de laranja ou mesmo aquele ainda inculto, mas próximo de uma região de produção citrícola, era certamente um dos mais valorizados, fazendo jus a um slogan da época – “laranja no pé, dinheiro na mão”.87 Laranja era a palavra que todo aquele que quisesse vender ou alugar um terreno, gostaria de inserir em seus anúncios durante toda a

*

Era o sobrenome da família do Barão da Taquara. idem, p.122. 82 Reside aqui o motivo para Campo Grande ter como seu símbolo até hoje a laranja. Aliás, todo aquele que se dispõe a visitar o centro desse grande bairro da Zona Oeste, obrigatoriamente tem de passar diante de um monumento de mais ou menos dois metros de altura em forma de uma robusta laranja. 83 MUSUMECI, Leonarda. Op. cit. p.73. 84 Ibidem. 85 PECHMAN, Robert Moses. Formação histórica da estrutura fundiária... , p. 124. 86 ibidem. 87 ibidem. 81

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década de 30 e boa parte de 40, como puderam fazer esses dois anunciantes de Campo Grande em 1935: Sítio com laranjal – Compra-se um já produzindo e com plantas novas, tendo casa ainda modesta, terreno fértil, valor entre 40 e 80 contos, distancia do centro até 1 hora. 88

-

Terras ótimas para laranjas, situadas à margem da Central, 4 trens por hora. Boas estradas(...)Água, luz, tel., hora e meia do Centro. Estação de Paciência,distrito de Campo Grande, onde existem milhares de laranjeiras em plena produção. Também 89 plantam-se pomares por empreitada.

Além disso, podemos notar que esse mercado de loteamento de terras não era necessariamente urbano; parte das terras negociadas ainda se voltava para a constituição de lotes rurais, cujas atividades agrícolas eram voltadas para fins comerciais, e não só para os de subsistência ou de simples veraneio.

Planta da cidade do Rio de Janeiro de 1936.

Outra importante cultura é a da banana, que se disseminou principalmente pelas vertentes “noruegas” dos distritos de Jacarepaguá (Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena), Campo Grande (Serra do Mendanha) e Guaratiba.90

88

Jornal do Brasil, “classificados”, 05/05/1935. p. 36. Jornal do Brasil, “classificados”, 09/05/ 1935. p.25 90 CORRÊA, Magalhães. Op. cit. p. 141. 89

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O mercado imobiliário já se consolidava na década de 1920, classificado do Jornal do Commércio.

Com o surto dessas duas culturas, a zona rural passa a ser encarada como uma zona de expansão agrícola. Os próprios anúncios de terrenos explorarão essa imagem. Pechman afirma que em razão dessa expansão é que iremos encontrar uma intensa fragmentação das propriedades rurais do Distrito Federal. Em que pese a diminuição de cerca de 6,5% na área agrícola total, que cai de 51.419 para 48.578, o número de estabelecimentos registrados pelo Censo de 1920, que era de 2.088, pula para 7.994 - um aumento de quase 300%.91 Os números mostram ainda que a maioria esmagadora era constituída por pequenas e médias propriedades: 7.962 (99%) tinham menos do que 100 ha, 32 (0.4%) tinham entre 100 e 1.000 ha e eram apenas 3 (0.03%) as que tinham mais de 1.000 ha. Dentre as pequenas e médias propriedades, 7.120 (89%) tinham área menor do 10 ha. Quanto à ocupação da área total, as unidades menores que 10 ha ocupavam 22.261 há (46%); as unidades entre 10 e 100 ha tinham 17.690 ha (36%); e, as unidades entre 91

ESTADO DA GUANABARA. Recenseamento Geral de 1960. p. 83.

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100 e 1.000 ha respondiam por 8.227 ha (17%). Musumeci acrescenta que a maior parte dos sítios que promoviam tanto a cultura da laranja como a da banana não eram de propriedade dos produtores diretos: eram culturas onde predominavam o trabalho assalariado e as relações de parceria e arrendamento.92 Contudo, os números que veremos a seguir nos levam a ter certa reserva com a tese de “fragmentação” das grandes propriedades rurais. É inegável que houve um intenso processo de retalhamento dessas grandes propriedades em pequenos lotes, mas isso não é o bastante para afirmarmos que os grandes proprietários tenham se desfeito de suas terras. Ao contrário, eles parecem ter mantido suas dimensões através da prática de arrendamento ou aluguel. Em comparação com o censo de 1920, há um significativo aumento do número de pequenos proprietários (48%). Porém, bem maior é o crescimento do número de estabelecimentos geridos por arrendatários (538%) e administradores (173%). Segundo Musumeci, a perspectiva de lucro oferecida especialmente pela cultura da laranja e a disponibilidade de terras fizeram com que muitos deles viessem a se tornar arrendatários ou posseiros. 93 E estes, que figuravam no censo de 1940 como “ocupantes”, categoria que nem aparecia nos registros do Censo de 1920, são agora 1.002. Número maior que o de assalariados e que corresponde a 40% do número de pequenos proprietários. O que parece ter havido na verdade foi um crescimento das categorias dos arrendatários e posseiros, com a concomitante conservação da propriedade jurídica sobre as grandes propriedades por parte dos antigos donos.

92 93

MUSUMECI, L. Op. Cit. p. 73. MUSUMECI, Leonarda. Op. cit., p. 74.

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Reportagem do Última Hora de 1951 destacando a destruição do Cinturão Verde carioca.

*** As obras realizadas pela Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense (DSBF) nas Baixadas de Jacarepaguá e Sepetiba foram outro importante acontecimento verificado na zona rural dessa época. Junto com a “febre da laranja”, essas obras ajudaram a consolidar a imagem da zona rural como uma região de “fronteira aberta”. Era do desejo de seus principais mentores fazer da zona rural um “cinturão verde” capaz de promover o abastecimento quase completo do Distrito Federal. Mas a importância daquelas obras reside também no fato de ter feito da zona rural uma área de expansão não apenas para a agricultura. Com os melhoramentos do DSFB, a região estava definitivamente aberta para uma outra expansão, a dos negócios imobiliários. Estes, por sua vez, eram cada vez mais regidos por uma nova modalidade – a produção em massa de lotes urbanos.

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Área agrícola de Campo Grande. Fonte: Última Hora, Arquivo Pùblico do Estado do São Paulo.

O órgão da União originalmente encarregado dessas obras, a Comissão de Saneamento, visava intervir apenas na área da Baixada Fluminense e tinha como plano os seguintes objetivos: a) projetar, executar ou fiscalizar obras de saneamento da Baixada Fluminense; b) produzir estudos sobre sua bacia hidrográfica; c) elaborar um plano de desenvolvimento econômico para a região; d) executar o levantamento de um cadastro imobiliário de toda região da Baixada Fluminense; e) elaborar uma legislação especial para o saneamento e conservação das obras.94 Os trabalhos gerais foram iniciados em julho de 1933. Logo depois a Comissão foi transformada em um Departamento com funções extensivas a todo o território nacional. Com isso, as áreas próximas da Baixada Fluminense foram incorporadas no roteiro de melhoramentos. A primeira delas foi a Baixada de Sepetiba. Essa região, apesar da proximidade com a Baixada Fluminense, tinha problemas que lhe eram bastante específicos: “as obras na Bacia de Sepetiba”, como bem destaca Alberto Lamego, não tinham finalidades agrícolas, pois, havia

94

LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a Guanabara. Rio de Janeiro: IBGE, 1964. p. 277.

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“complexidades urbanísticas visíveis”.95 Aqui o objetivo era prever a defesa do Núcleo Colonial de Santa Cruz contra as enchentes da bacia do Guandu e erradicar os focos permanentes de impaludismo. Segundo Leonardo J. Fernandes, “por trás desses planos de obras” havia o interesse na valorização fundiária de uma área equivalente a 2.167 Km² (2 trilhões e 167 milhões de ha).96 Seja como for, as obras ali chegaram em 1935, com o desmatamento de toda vegetação no interior dos rios e em suas margens.97 Dois fatos chamavam a atenção dos técnicos do DNOS: o primeiro era a existência de focos permanentes de impaludismo e o segundo, a convivência nessa mesma região de uma área “próspera e intensamente cultivada” com “enormes áreas inaproveitadas”.98 Mais uma vez vinha à tona a imagem do Sertão Carioca como região de contrastes. Em termos práticos, as obras teriam provocado uma melhora nas condições de salubridade da região; muitos pântanos e brejos foram saneados, tornando-se terras próprias para a agricultura. Para isso, inúmeros canais e valas foram construídos ou dragados. Outra importante conseqüência foi a valorização fundiária dessas áreas, chegando-se a ponto de vários canais terem seus traçados modificados em função de loteamentos; o próprio DSBF, promoveria a abertura de valas de drenagem em propriedades particulares de modo a torná-las mais valorizadas.99

95

Ibidem, p. 276. FERNANDES, Leonardo Jefferson. O remédio amargo: as obras de saneamento na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, CPDA/UFRRJ, Dissertação de mestrado em Ciências da Agricultura, abril de 1998. p. 196. 97 Idem, p. 197. 98 Idem, p. 200. 99 Informação confirmada pelo próprio Ministério de Viação e Obras Públicas – ao qual o DSBF estava subordinado – em seu relatório de atividades de 1937. Essas valas foram abertas nas seguintes propriedades: “Vitorino Pereira”, “do Canela”, “Quinta dos Palmares”, “do Araújo”, “do Antenor”, “do Silvino” e “do Emílio”. Ibidem, p. 201. 96

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Homem com seu trator em plantação de Santa Cruz. Fonte: Última Hora, Arquivo Pùblico do Estado do São Paulo.

Processo semelhante se verificaria na Baixada de Jacarepaguá, terceira região a sofrer as intervenções do DSBF. As obras ali chegaram em 1937. Um grande surto de malária levou o ministério da Educação e Saúde Pública e sua Inspetoria de Engenharia Sanitária a se ocupar da região. Os estudos desses órgãos constataram que os brejos e manguezais na orla das lagoas de Jacarepaguá eram obstáculos ao curso das águas, constituindo-se num “veículo para o impaludismo”. Uma das soluções propostas – e que foi aprovada foi a regularização dos rios da bacia contribuinte das lagoas da Tijuca, Camorim e Marapendi. Devido á pressão exercida por Companhias Imobiliárias que atuavam na restinga de Sernambetiba, chegou-se a cogitar no aterramento dessas lagoas. Mesmo tendo sido recusada essa proposta, os interesses de agentes imobiliários não foram de todo frustados, já que o próprio DSFB apresentava como principais objetivos de seus trabalhos na Baixada de Jacarepaguá a extinção de “focos de anofelinos” e, segundo palavras de um engenheiro do órgão, a “melhora da estética deste recanto de turismo do Distrito Federal”; iniciativas que num futuro próximo poderiam até mesmo facilitar a implantação de loteamentos na região, embora essa não pereça ter sido a intenção dos agentes do DSFB.100 É como se finalmente, o DSBF estivesse em fins dos anos 30 atendendo aos anseios de sanitaristas da década de 10, embora já demonstrasse não ter certeza sobre o fim mais adequado a ser dado a essas terras, se para a agricultura ou se 100

Idem, pp. 213-214.

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para a ocupação urbana. De qualquer forma, o primeiro tinha sido parcialmente alcançado: em 1939, Hildebrando de Góes, diretor do DSBF, afirmava que inúmeros brejos tinham sido extintos, ocasionando uma sensível diminuição dos focos de malária. Contudo, esta só seria totalmente erradicada em 1957. Todavia, a consecução bemsucedida do segundo objetivo dava o ar da graça com bastante mais antecedência, muito embora não da forma esperada. O almejado “melhoramento estético” ocasionou um aumento da especulação imobiliária em áreas recuperadas pelo DSBF. Já em 37, o mesmo Hildebrando de Góes, apresentava e lamentava os dados sobre essa conseqüência: nas terras que margeavam a Lagoa da Tijuca, o metro quadrado tinha conhecido uma valorização de 200%; em Vargem Grande, ela era de 1.500%.

Campo dos Afonsos. Década de 1950. Fonte: IBGE.

É importante frisar que a extraordinária valorização fundiária na região não se deveu apenas às obras do DSBF. Também contribuíram para isso outras obras de infra-estrutura do governo federal realizadas ao longo das décadas de 30 e 40, como a abertura das estradas do Joá e Menezes Cortes (atual Grajaú-Jacarépaguá), a eletrificação da Central do Brasil, e a construção da avenida Brasil. Sem esquecer que a extensão das linhas de bonde e, principalmente, de ônibus, exerciam papel fundamental no processo de

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incorporação urbana da zona rural.101 A expansão das vias de comunicação e a melhoria das condições de salubridade passam a encorajar os empreendedores imobiliários a retalhar seus terrenos não mais para arrendar ou vender a pequenos lavradores. Assiste-se nesse momento à consolidação de um mercado efetivo de compra e venda de terras que se destinava à construção de loteamentos. O curioso é que ao contrário do que afirma Pechman e outros pesquisadores, esse mercado de terras não ocasionará - ao menos de forma completa – a incorporação urbana do Sertão Carioca. Não parece haver dúvidas de que boa parte desses loteamentos conduziu à implantação de um mercado imobiliário urbano. Os anúncios dos terrenos vão deixando de enfatizar a existência de benfeitorias e de recursos de uso agrícola, dedicando-se a atrair compradores com a menção de “qualidades urbanas” como proximidade em relação a vias de comunicação (estradas, avenidas, linhas de trem, bonde etc) e existência de serviços de luz, água encanada, esgoto e telefone. Mas esses loteamentos não eram exclusivamente urbanos. Alguns loteamentos eram constituídos de lotes rurais, outros buscavam conciliar as duas funções (urbana e rural) através dos lotes para veraneio. Vejamos esses anúncios, de Campo Grande e Senador Câmara respectivamente: -

No DF, 4 milhões de m², em zona servida por trem elétrico, bonde a porta; projeto de loteamento para 600 lotes: não aceito intermediário.102

-

Casas, terrenos e Sítios – uma estação depois de Bangu, água encanada, luz, telefone, bom comercio, trens de meia e meia hora, 10 minutos da Central; 600 casas a serem construídas em 40 dias, por 55 mil; financiado pelo IAPC;(...) mais de 100 lotes em ruas construídas, a 2 minutos da estação a partir de 6 mil... 103

Estamos lidando com um mercado de terras que poderíamos chamar de híbrido, ainda longe de ter uma forma puramente urbana. Contudo, fosse urbano, rural ou de veraneio, os loteamentos pareciam ser um negócio altamente rentável. Os lucros proporcionados por tal tipo de negócio faziam com que muitos se oferecessem para a compra de grandes propriedades na região, como nos mostra esse anúncio de Campo Grande: 101

Cf KLEIMAN, Mauro. De Getúlio a Lacerda: um “Rio de Obras” transforma a cidade do Rio de Janeiro. As Obras Públicas de infra-estrutura urbana do Novo Rio no período 1938-65. São Paulo, FAU/ USP, Tese de mestrado em Arquitetura, 1994. Segundo o Atlas Fundiário, o “trem” (entenda-se, Estrada De ferro Central do Brasil) teria originado os núcleos populacionais no subúrbio e na zona rural, mas foram os bondes que realizaram o “trabalho de costura” desses núcleos, atuando “decididamente como forjadores do tecido urbano e consolidadores(sic) dos bairros”, p. 52. 102 Jornal do Brasil, “classificados”, 08/07/1945. p. 31. 103 Jornal do Brasil, “classificados”, 07/07/1946. p. 16.

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Compra-se sitio, até 300.000 m², que tenha nascente, com queda d’água, não distando do Rio mais de 2 horas e em lugar de recursos e saudável. Com ou sem benfeitorias. Dá-se preferência para Campo Grande.104

Outros preferiam tão somente se oferecer como corretores de imóveis para a simples intermediação desses negócios: “Sítio – Campo Grande – Querendo vender seu sítios, chácara ou área de terra, exclusivamente neste local, encarregando-me sem o menor aborrecimento (...) qualquer dia qualquer hora.”105 Outro fator que passa ganhar ênfase nos anúncios de venda de terras a partir de meados da década de 40 é a possibilidade de serem usados como ativo financeiro. Com a onda inflacionária que passa a tomar conta do país, os rendimentos que se podiam ter com a especulação de terras eram bem maiores do que com a produção agrícola.106 E mesmo quando se tratava de lotes urbanos, os anunciantes não deixavam de destacá-los. Desejosa de vender lotes em Jacarepaguá, “recanto tradicional dos nobres da Corte, tradicional solar dos barões da Taquara, Visconde de Asseca e Camarista Mor Thedim de Sequeira”, a Companhia de Extenção Territorial, dizia oferecer o “melhor week-end para o carioca”, servido com água, luz, telefone, ônibus e bondes; localizado num lugar que “dentro em breve será ligado à cidade pela estrada Três Rios-Grajaú”. E para quem ainda não estivesse convencido das vantagens dessa “oportunidade única” o anunciante argumentava que: “A aquisição de uma propriedade nesse futuroso bairro, a par das delícias de uma vida alegre no campo, proporcionará a aplicação segura de capital, compensada por uma valorização certa..”107 Quatro anos depois, vemos a mesma companhia, “que há 26 anos, vem colaborando para o progresso do RJ”, anunciar a venda de lotes do Parque Campo Lindo em Campo Grande, “em condições tais, de preço e facilidade de pagamento, que só seus amplos recursos e vasta experiência podiam permitir”. A companhia a apresentava como uma “bomba atômica nos negócios de terrenos”. Afirmando ter vendido todos os dois mil lotes do primeiro loteamento, a companhia lançava agora o segundo loteamento, “nas mesmas condições excepcionais que garantiram o sucesso anterior”. Os lotes “de 15x15” e as chácaras “de 2.000 m² a 10.000m²”, segundo ela, eram “planos e prontos para 104

Jornal do Brasil, “classificados”, 15/05/1940. p. 18. Jornal do Brasil, “classificados”, 07/07/1046. p. 17. 106 A esse respeito ver RANGEL, Ignácio. A inflação brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981; GUIMARÃES, Alberto Passos. Inflação e monopólio no Brasil(Por que sobem os preços?). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1963. 107 Diário de Notícias, “classificados” (2º seção), 08/07/1945, p. 15. 105

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edificar e cultivar”, ficavam a 15 minutos de Campo Grande e eram servidos por nada menos do que oitenta trens elétricos diários, o que garantia aos terrenos do Parque Campo Lindo um “desenvolvimento rápido e valorização certa”. Até porque, como arrematava sugestivamente a Companhia: “Só vende terras que valem ouro”.108 Também podemos notar nos anúncios dos anos 40 a introdução de algumas inovações nas formas de propaganda dos empreendedores imobiliários. Estes investirão largamente na utilização de uma linguagem muito semelhante à dos primeiros textos de divulgação do Sertão Carioca como o de Magalhães Correia. É a representação da zona rural como um recanto paradisíaco que dará cor às estratégias de venda dos grandes loteamentos dirigidos para a classe média. Tal objetivo faz com que os classificados de imóveis tenham entre seus termos mais recorrentes, referências do tipo “clima privilegiado”, “clima de sanatório”, “vista deslumbrante”, “recanto aprazível e sossegado”. Mas se com Magalhães Corrêa essas figuras de linguagem, ao realçar as belezas da região, vinham acompanhadas de exortações em favor da preservação do Sertão Carioca, com os loteadores elas funcionavam no sentido da aceleração de sua incorporação ao mercado imobiliário. É nesse momento também - e há nisso uma grande contribuição por parte das obras do DSBF – que as referências sobre a zona rural como o lugar da doença cairia em desuso. O que não aconteceria com a referência que a tomava como um lugar abandonado por parte dos poderes públicos. Estes vinham promovendo o saneamento, mas a agricultura, a infra-estrutura, os serviços públicos e as questões envolvendo conflitos de terra na região pareciam não merecer a mesma atenção. Um sertão em xeque? O mercado imobiliário que consumia as terras do Sertão Carioca era diferente daquele que ajudou a incorporar à zona urbana os distritos de Méier, Irajá e Inhaúma. Nesses lugares a incorporação foi sendo feita a passos lentos, de lote em lote. Já a expansão urbana que começa a se consolidar na década de 40, dá-se através da constituição de loteamentos, alguns deles verdadeiros bairros, e com a estocagem de enormes terras para fins especulativos. Segundo denúncias encampadas por comunistas e udenistas na

108

Jornal do Brasil, “classificados” (2º edição),31/07/1949, p. 12.

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câmara municipal carioca em 1947, 70% das terras agricultáveis estavam imobilizadas nas mãos de loteadoras.1

Horta do Sertão Carioca. Década de 1950. Fonte: IBGE.

O Sertão Carioca parecia viver um impasse: justamente numa época em que os censos indicavam uma suposta expansão agrícola, começava a ganhar espaço um mercado de loteamentos pouco disposto a dividir espaço com as antigas lavouras. Gastão Cruls já notava isso quando escrevia em 1949 a respeito dos agricultores do Sertão Carioca, esse homens que iam “fazendo na sua casa de pau-a-pique ou num rancho de palha, uma vida quase tão primitiva e rústica como a dos caboclos que habitam os pontos remotos do país. E isso, não raro, com automóveis à porta e turistas disputando-lhes os cachos de banana e as pencas de laranja.”110 A “convivência pacífica” entre o urbano e o rural também não era mais encontrada pela geógrafa Hilda Silva quando da sua pesquisa de campo sobre a localidade rural do Mendanha. Ao invés disso, o que se tinha eram pessoas esperando o “melhor momento” para lotear suas terras. Segundo ela, havia além de “chácaras- recreio” com “pomares bem cuidados, criação de galinhas”etc, a existência de “domínios dos pequenos sitiantes passando, ora por terrenos em que o aproveitamento agrícola está se iniciando como o atestam as pequenas lavouras recém-iniciadas, ora por 1

GRILLO, Heitor. Op. Cit., p.302. CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. p. 565.

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terrenos abandonados cujos proprietários se desinteressam da lavoura e aguardam oportunidade para vendê-los ou retalhá-los”.111 Acontecia no Sertão Carioca a mesma situação verificada por Pedro Geiger na Baixada Fluminense. Vejamos o relato que ele fazia dessa região no início da década de Os proprietários das terras próximas do Rio percebem que problemas complexos da cidade,como de moradias,poderiam servir para obtenção de lucro pelo loteamento urbano que ampliaria as áreas da cidade(...)O loteamento,paradoxalmente,contribui para a reconstituição de grandes propriedades,pois,preliminarmente,os capitalistas e bancos imobiliários vão comprando extensões de terras visando a futuros parcelamentos,sendo uma das razões da manutenção de latifúndios nas proximidades de uma grande capital(...).112

Uma importante conseqüência desse processo, tanto na Baixada Fluminense quanto no Sertão Carioca, foi a drástica redução da produção da laranja durante a 2º Guerra Mundial. O principal motivo teria sido a falta de mercados compradores no exterior. Ao final da Guerra, a política de valorização artificial do câmbio adotada pelo presidente Dutra redunda no encarecimento do preço do produto, impossibilitando a recuperação dos antigos mercados. A produção volta-se para o mercado interno, mas sem a mesma força de anos atrás.113 Os produtores que antes se ocupavam com a cultura da laranja logo se voltam para o cultivo de novos produtos. Mas a conversão para outra cultura não parecia ser o problema e sim outro: a falta de terras. Alguns jornais viam nisso o principal responsável pela situação de “franca decadência” da agricultura do Distrito Federal.114 Para o jornal comunista Classe Operária a concentração de terras era fruto do “açambarcamento de terras por meia dúzia de grileiros, banqueiros e capitalistas” acarretando uma grande diminuição da área cultivada e o agravamento do abastecimento do Distrito Federal de legumes, frutas, leite, etc.” E a situação tende a piorar, a medida que o govêrno vai deixando que os grileiros e outros tantos exploradores se apossem das terras. O número de propriedade vai diminuindo, como diminuindo vão os hectares cultivados, e a produção decrescendo, 115 enquanto os preços sobem e o câmbio negro prolifera livremente.

Já o anti-comunista Diário Trabalhista complementava afirmando que o problema tinha suas raízes nas obras feitas pelo DSBF durante os anos 30:

111

SILVA, Hilda. op. cit., p. 438. GEIGER, Pedro Pinchas e MESQUITA, Myriam Gomes Coelho. Estudos Rurais da Baixada Fluminense (1951-1953). Rio de Janeiro: IBGE, 1956. pp. 60-61. 113 Cf PECHMAN, Robert. Op. Cit., p. 76; MUSUMECI, Leonarda. Op. Cit. p. 73. 114 Diário Trabalhista, 11/05/1947, p. 1. 115 Classe Operária, 09/12/1947. p. 8. 112

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A falta de plano econômico, de previsão e sentido prático! Ao envez (sic) de promover a desapropriação das terras a serem beneficiadas pelo erário público, o saneamento enriqueceu algumas dezenas de proprietários e especuladores, e as terras lá ficaram sem a 116 sistemática exploração capaz de justificar os gastos imensos do saneamento .

Contudo, em que pese as diferenças de teor ideológico, havia quase que um consenso entre esses órgãos de imprensa quanto à avaliação dos efeitos da expansão do mercado imobiliário na zona rural: agindo como um vetor de expansão urbana sobre o Sertão Carioca, ele estava provocando a dizimação da agricultura carioca, acarretando prejuízos não só aos lavradores mas ao bem-estar de toda a população da cidade. Esse tipo de visão foi o que norteou a tentativa dos órgãos de imprensa em explicar a “crise” da agricultura e o problema da instabilidade dos seus lavradores quanto à posse da terra.

Terrenos à venda em Marechal Hermes na década de 1940. Fonte: Jornal do Commércio.

*** Se as décadas de 30 e parte da de 40 foram a época da “febre da laranja”, os anos 50 foram para muitos pesquisadores a época da “febre imobiliária”.117 Para se ter uma idéia 116

Diário Trabalhista, 21/05/1947. p. 1. ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iplanrio/ Zahar, 1988. 117

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do que foi isso, basta termos em vista que 40% do total de loteamentos feitos durante todo o século XX nos distritos de Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz – quase todo o Sertão Carioca – datam exatamente da década de 50.118 Mesmo assim, parece-nos que essa delimitação guarda certa imprecisão. Conforme vimos acima, o processo de parcelamento das terras para a construção de loteamentos se dá com grande intensidade desde meados da década de 40. Baseado em dados de outros autores, Pechman revela que no período 1936-49, foram realizados em Santa Cruz e Campo Grande 59 loteamentos com um total de 14.909 lotes, compreendendo uma área de cerca de 1.745 ha.119 Número expressivo se levarmos em conta que quase no mesmo período o Sertão Carioca viu a sua área agricultável perder 7.247 ha.120 Como pudemos ver também, surgem em 1947 as primeiras declarações na imprensa dando conta do papel exercido pela expansão dos loteamentos na retração da agricultura do DF. Mais do que isso: a “febre imobiliária” estaria criando uma grave questão social com a expulsão de centenas de lavradores de suas terras. Opinião diversa tem Maria Souza, para quem o processo de loteamento não acarretou a imediata expulsão dos agricultores, pois “os loteamentos tinham, na maioria das vezes, finalidades meramente especulativas, não correspondendo à real implantação de núcleos urbanos nas áreas atingidas.”121 Mas os dados do censo de 50 nos mostram algo mais. O número de estabelecimentos rurais de 1950 (5.266) mostra uma queda de 34% em comparação com os dados de 1940 (7.994). A área total cultivável diminui em cerca de 15%, de 48.578 ha para 41.331ha. Os mais atingidos com esse recuo agrícola foram os arrendatários e posseiros, que, segundo Ana Britto, praticavam uma “forma precária ou itinerante” de agricultura devido ao fato de “não terem direito sobre a terra”.122 O número de estabelecimentos dos primeiros sofreu uma diminuição de cerda de 61%, enquanto o número dos segundos caíram quase 43%. Houve também uma queda do número de estabelecimentos que estavam em mãos dos pequenos proprietários, mas bem menor: 11%. Em termos de área cultivável, as áreas ocupadas por arrendatários caem 53%, as dos posseiros em 40%. Números muito altos se levarmos em conta que a queda da área agricultável total foi de cerca de 15%, e maior ainda se levarmos em 118

SOUZA, Maria Alice Martins de. op. cit., p. 21. PECHMAN, R.M. Op. cit. p. 126. 120 Estado da Guanabara , Op. cit., p. 83. 121 BRITTO, Ana Lúcia Nogueira de Paiva. Op. cit., p. 52. 122 idem. 119

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consideração que foi de apenas 4% a diminuição da área cultivada por pequenos proprietários. Outra evidência a ser destacada é de que só as pequenas áreas agrícolas diminuíram em termos de área total: enquanto o número de lotes de menos de 10 ha sofreu uma redução de 40%, as médias propriedades entre 10 e 100 ha aumentaram em 5%, e as grandes propriedades de 100 a 1.000 ha em 15%.123 Mas os números por si só não são capazes de nos mostrar o processo de caráter subjetivo gerado por essa expansão imobiliária.124 As pesquisas acadêmicas das décadas de 70 e 80 – citadas ao longo de todo o texto – preferiram reduzir a complexa série de transformações que levaram à incorporação do Sertão Carioca como zona urbana (não “concluída” até hoje) a um processo de expansão urbana avassalador que agia numa zona rural cuja estrutura sócioeconômica (com seus lavradores de agricultura “precária” e “itinerante” e “sem nenhum direito sobre a terra”) teria mostrado ser tão sólida quanto a de um castelo de cartas. A descrição da mudança histórica resumia-se à identificação do período mais ou menos exato (entre o final da década de 60 e início da década de 70) em que ocorreu a “substituição” das lavouras por casas, fábricas e ruas. Pouco se disse entretanto sobre as experiências geradas ao longo desse processo de “substituição”: convinha perguntar por exemplo como os lavradores pensaram e agiram em relação àquela expansão imobiliária? A sensação de segurança ou insegurança por parte dos lavradores é um outro aspecto do processo de loteamento do Sertão Carioca que os números dos censos não podem por si mesmos nos mostrar. A substituição de laranjais e hortas por casas e ruas asfaltadas é apenas um aspecto (entre muitos outros) da transformação da zona rural em zona urbana. O loteamento das terras rurais trouxe junto a ele um sem número de transformações, tanto de ordem material quanto imaterial. Um belo exemplo é o fato de se terem gerado novas expectativas e estratégias de sobrevivência entre lavradores.125

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ESTADO DA GUANABARA. Recenseamento Geral de 1960, p.83 Mário Grynszpan indaga se talvez não tenha havido expansão, mas sim recuperação desses pequenos lotes que estavam nas mãos de arrendatários e posseiros por parte das grandes propriedades (comunicação particular). 125 Esse é um aspecto que trataremos no capítulo seguinte. 124

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Os loteamos urbanos avançam. Este classificado também é da década de 1940. Fonte: Jornal do Commércio.

Os prejuízos causados pela expansão urbana não foram vivenciados por arrendatários e por posseiros apenas no momento do despejo ou expulsão de suas terras. Dizendo de outro modo, não era mais preciso, em muitos casos, que o despejo acontecesse para que o lavrador se sentisse prejudicado – bastava que o despejo se configurasse como uma ameaça. Alguns relatos de jornais da época indicam que a partir de meados dos anos 40,

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a substituição das lavouras em favor de casas para os chamados “bacanas da cidade” passa a fazer parte do horizonte de expectativas de praticamente todos os lavradores.126 A expulsão da terra ficará marcada nas suas consciências como algo possível de acontecer a qualquer um e a qualquer momento. Tal expectativa, vivida sob a forma de ameaça, era capaz de determinar comportamento e atitudes. O ano é de 1946, e um lavrador de Campo Grande informa ao Tribuna Popular que ele e outros lavradores “só produzem a pequena lavoura, a horticultura. Ninguém faz plantio de profundidade; poucos até, se arriscam a cuidar da avicultura. Todo mundo tem medo de ser despejado de uma hora para outra pelos pseudos-donos da terra.”127 “Por fôrça do regime de trabalho”, segundo nos conta Maria Galvão, os arrendatários portugueses estabelecidos em Vargem Grande por sinal, na área mais cobiçada por loteadoras da região - construíam habitações pouco resistentes. Alegavam que a incerteza de sua permanência na terra os desencorajava a ter um gasto elevado com construções mais sólidas. Por isso, o material usado freqüentemente por eles era madeira, tirada de caixas de cebola, e folhas de ferro galvanizado ou sapê. Esse tipo de habitação, comentava Galvão, “é mais precário que a casa de sopapo do brasileiro, mas isso não importa. Para êsses habitantes que (...) tem os pés na terra que cultivam e os olhos na estrada ou em áreas não loteadas, bastam umas paredes de madeira e um telhado de zinco como abrigo contanto que tudo isto lhe custe pouco dinheiro.”128 A especulação imobiliária, ainda segundo Galvão, teria levado esses lavradores a praticar um tipo de agricultura temporária, baseada no cultivo de plantas de curto ciclo vegetativo, que permitiam com uma rotação de cultura a utilização ininterrupta do solo, seja qual fosse a estação.129 A prova do malefício desse processo de especulação estaria no fato da área da “Serra”, onde os loteamentos ainda não tinham chegado, ser “marcada pela estabilidade” e ter uma agricultura baseada em “lavouras permanentes”: Como símbolo de ocupação efetiva e prolongada da terra, encontram-se árvores frutíferas – mangueira, jaqueira, abacateiro – plantadas à roça de casa, fornecendo, por vezes, alguns frutos para o mercado. À sua sombra acolhedora, brincam as crianças, trabalham as mulheres, descansa o mascate (...).130

126

O Radical, 20/07/1951. p. 2. Tribuna Popular, 11/07/1946 (grifo meu). 128 GALVÃO, Maria do Carmo Corrêa. “Lavradores brasileiros e portugueses na Vagem Grande”. In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, n° 3 e 4, 1957. p. 54. (grifo meu). 129 idem, p. 47. 130 idem. pp. 42-3 127

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Outros indícios de estabilidade seriam as construções destinadas à criação de animais como galinheiro, chiqueiro, paiol, “e por vezes”, estábulo e telheiro. Como conseqüência desse quadro, assim entendia Galvão, as moradias eram feitas de material mais sólido. Estas transformações, por sua vez, conduziram a mudanças no modo de representação do espaço do Sertão Carioca. A maneira como ele passou a ser entendido estava intimamente relacionada com o modo pelo qual as transformações sofridas pela região foram interpretadas pela imprensa.

Campos agrícolas em Vargem Pequena, Baixada de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

A partir do início da década de 50 intensifica-se por meio tanto da grande quanto da pequena imprensa, a veiculação da imagem de um Sertão Carioca marcado pela destruição de sua lavoura e pela ação predatória de “grileiros” contra “lavradores esquecidos pelo poder público”. O resultado de tudo isso, nas palavras d’O Globo era a

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existência de “grande abandono e desânimo” entre os lavradores da região.131 Mas se o “abandono” denunciado nas décadas de 20 e 30 dizia respeito a falta de medidas por parte do governo municipal e federal para a incorporação da zona rural à cidade, nesse momento(década de 50), a palavra “abandono” era uma alusão à falta de providência dos poderes públicas contra os empreendedores imobiliários, cujas ações estavam pondo em risco a agricultura da região. Em 11 de julho de 1951, o jornal O Popular, lamentava a situação do Sertão Carioca, que mesmo sendo a região responsável por 40 % do abastecimento do Distrito Federal, via-se “condenada ao desaparecimento, dentro de pouco tempo, uma vez que as terras próprias para o plantio estão sendo adquiridas por cias. Imobiliárias que as venderão depois de loteadas.”132 Dois dias depois, o jornal voltava ao tema do “drama vivido por centenas de famílias que se dedicam a agricultura, no chamado ‘cinturão verde’ da capital da República”. A mesma área que há vinte anos “vinha sendo cultivada tranqüilamente”, era palco naquele momento de uma intensa valorização de suas terras, ocasionando sérios prejuízos ao abastecimento do Distrito Federal e na ameaça de despejo de centenas de lavradores que “não sabem fazer outra coisa”. O mesmo jornal diz ter tido a “oportunidade de assistir à destruição levada a efeito por um trator, que num dia de trabalho devora, tal como um monstro, centenas de pés de laranjas, carregados de frutos”.133 O Radical nos transmite impressão idêntica de surpresa e lamentação com a situação do Sertão Carioca: Há poucos anos, quando fizemos idêntico passeio àquela região, tudo era digno de ser admirado. Vastos e bem cuidados laranjais, pejados de pomos cor de ouro: gado leiteiro por toda parte e cultura variada de verduras, legumes e até cereais. Dissemos, então: está aqui o futuro da terra carioca. Terra abençoada, entregue aos cuidados de lavradores 134 competentes, faltava-lhe tão somente, ajuda moral e material do governo...

Mas ao que parece, essa ajuda acabou não chegando como gostariam e o resultado atual era: lavradores “escravizados” por atravessadores e negocistas, e culturas abandonadas como resultado “do desânimo que se apoderou dos lavradores”.135 Ou seja, os lavradores além de enfrentarem o problema da expansão urbana ainda tinham que suportar os prejuízos causados por intermediário do comércio de gêneros. 131

O Globo, 22/10/1952. p. 1. O Popular, 11/07/1951. p. 2. 133 O Popular, 13/07/1951, p. 11. 134 O Radical, 25/11/1951, 2ºedição, p. 2. 135 ibidem. 132

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Passados três anos, o Voz Banguense, tendo por base o que acontecia em Bangu, parecia convicto da completa “extinção” do Sertão Carioca: Dentro de dez anos aproximadamente, se continuar no ritmo em que vem a política nefasta dos loteamentos, para fins lucrativos não existirá na zona rural, um plano de terra cultivada. Poucos são os sítios que restam. E assim mesmo sob o assedio permanente das ofertas tentadoras, quer da parte das companhias imobiliárias, quer da parte dos corretores de imóveis, incansáveis na busca dos bons negócios. E venda de terreno é bom negócio, além de bom – é da China.136

Para os jornais, eram as companhias imobiliárias, nas mãos de “grileiros”137, as principais responsáveis por esse cenário de “drama” e “destruição”. “Gangsters!” – assim eram denominados pelo O Radical em agosto de 1950. “Juntos dos assaltantes brasileiros de terras, asseverava o jornal, Al Capone é pinto!”.138 Em julho de 1951, O Radical publicava uma série de reportagens sobre grilagem de terras na localidade de Pedra de Guaratiba com o sugestivo título “Vai correr sangue!”. Ali, uma zona de produção estava sendo destruída por um “frio assaltante de terras” chamado Pedro Moacir, “interessado em transformar Pedra de Guaratiba em recanto de turismo, onde os ‘bacanas” e parasitas da sociedade possam descansar os seus ócios”. Agindo desse forma, este “aventureiro” – nas palavras d’O Radical - agia contra o abastecimento da cidade e contra a coletividade de trabalhadores da região. Outro detalhe importante, segundo o jornal, era o fato da polícia agir “mancomunada com os grileiros”, prestando-lhe “assistência” e garantindo o “esbulho e perseguição” dos lavradores.139 Quando chegamos à metade da década o quadro se revela praticamente o mesmo segundo as linhas do Imprensa Popular. Como o provaria a situação de cerca de 2 mil lavradores com suas respectivas famílias na Fazenda Piaí (Sepetiba), “vivendo todos eles sobressaltados com o jôgo escabroso dos Lopes, que resolveram introduzir, ali, o regime de terror e da fôrça, levando o pânico até às portas de humildes lavradores.” Ainda segundo o jornal, os funcionários encarregados da administração da propriedade tinham como “ordens recebidas” do pretenso proprietário “depredar, queimar e dizimar as palhoças e as plantações”. E mais: “até a ordem de usar o revólver foi dada.”140

136

Voz Banguense, 26/06/54, p. 4. Grileiro: “indivíduo que procura apossar-se de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade”. In Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1951. 138 O Radical, 24/08/1950. p. 1. 139 O Radical, 20/02/1951. p. 2. 140 Imprensa Popular, 21/11/1956. p. 6. 137

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Outra figura negativamente personificada era a do corretor de imóveis. Como o prova o caso de Mario de Mendonça, que acusado de vender terrenos da municipalidade em Sepetiba, teve de fugir depois de “descoberto em sua trama diabólica”. Pode-se dizer que sua investida não foi de todo um fracasso, já que conseguiu fugir com o dinheiro dos “incautos” por ele fisgados.141 Para O Popular, esses corretores não passavam de “piratas e espertalhões” que tinham inventado uma nova modalidade de “lesar o povo”. Nesse caso, as vítimas não eram somente os lavradores mas também o comprador de lotes, na maior parte das vezes, um “ingênuo e bem intencionado pobre coitado” que acreditava no que os corretores diziam sobre os loteamentos - “futura terra de promissão onde tudo será maravilhoso”. A negociação era efetivada, nos contava o jornal em 1953, durante a visita aos loteamentos por pessoas, que no “afã de garantir o futuro dos rebentos se satisfaz com muitos poucos detalhes. Mas ao regressar, detendo-se a pensar sôbre tudo que lhe foi dito e exibido, enquanto a condução o leva de regresso para casa, o logrado ‘comprador’, livre da verborragia dos sabidos falastrões, começa a imaginar que alguma coisa estava errada em tudo aquilo e principia a ter a sensação de que ‘caiu’ num ‘conto do vigário’”.142 Essa representação sobre a região como um espaço de conflito entre “grileiros” e “posseiros” atravessaria toda a década de 50 e chegaria praticamente intacta aos anos 60: despejos, violência contra lavradores, cumplicidade das autoridades policiais, descaso dos poderes públicos, grilagens, etc.,continuavam a dar o tom da imagem do Sertão Carioca. Um caso ocorrido em Campo Grande envolvendo o “rendoso comércio de loteamentos de terrenos” foi emblemático. Estamos no ano de 1961 e segundo palavras do Novos Rumos: Confiam os tubarões de terras no sucesso de seus negros propósitos, baseados no fato de, há alguns anos, terem conseguido desalojar humildes camponeses fixados em terras adjacentes e que, tal como os que ora labutam às margens do Cabuçu, tinham como única fonte de receita o amaino do solo.143

Este mesmo caso mais uma vez confirmaria a aliança entre “grileiros” e “poder público”, o que de certa forma descaracterizava a idéia de que o segundo se omitia sobre as questões de terra do Sertão Carioca. Pelo contrário, a sua atuação seria contundente, só que a favor dos “negros propósitos” daqueles primeiros, pois 141

Gazeta de Notícias, 20/12/1955, p. 8. O Popular, 27/09/1953. p. 1. 143 Novos Rumos, 11-17/08/1961. p. 6. 142

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Os policiais de Campo Grande, a serviço da grilagem, têm-se desmandado nas mais pusilânimes ações de violência e pilhagem contra os modestos e pacatos posseiros. Em dias da semana passada, o caminhão de chapa 651.61(GB), repleto de policiais chefiados por Nélson Elias, penetrou na área em litígio, numa hora em que os posseiros estavam ocupados na sua lavoura. Num requinte de barbárie, similar apenas ao que se vê em algumas películas cinematográficas, os soldados, usando o próprio veículo, derrubaram inúmeros barracos e arrebentaram cêrcas. Completando a pirataria incendiaram alguns barracos e, num gesto que define bem o caráter do ato que praticaram, roubaram alguns rolos de arame farpado. 144

Talvez em função da repercussão provocada pelas denúncias da imprensa, os “grileiros” interromperam por alguns meses as suas ações. Mas no fim do ano “êstes cavalheiros” que se diziam “donos daquelas terras” tinham retomado as “perseguições aos lavradores”. Para a consecução de tal fim, tinham “contratado” os sargentos Valdir e Cajatier “para expulsarem os agricultores”. Escreve ainda o Luta Democrática que “a frente de um grupo bem armado, percorrem êles diáriamente a região, queimando plantações e casas; destruindo cêrcas de arame farpado e matando o gado”.145 Segundo noticiava o Luta Democrática às vésperas do golpe de 64, uma “reforma agrária” estava prestes a ser “decretada” em Vargem Pequena (Jacarepaguá), mas não pelos seus 1.220 “posseiros” e sim “pelos velhos e conhecidos grileiros da região, antes abandonada e desvalorizada.” Por meio dessa “reforma agrária”(!) os “posseiros” estavam “sendo violentamente ameaçados de serem expulsos de suas terras” e ainda “perdendo suas benfeitorias”. Para sua implementação recorria-se aos serviços de capangas armados, “incumbidos de invadir as terras, abrindo fogo, a todo custo, como se aquilo fosse terra de ninguém”. E segundo jornal, tudo isso contaria com o beneplácito do poder público: Todas as queixas levadas às autoridades policiais, pedindo garantias, são recusadas ou postas na ‘geladeira’, porque o assunto é da alçadas da Justiça ... salvo se houver bala! Já se verificaram casos em que os lavradores que vão pedir garantias ficam presos para averiguações.146

Longe de serem vistos como um fenômeno distante e inexplicável, só apreendido pela matemática dos censos, os loteamentos eram considerados como sendo de autoria de “grileiros”, “ladrões de terras” e “aventureiros”, cujas práticas acarretavam inúmeros “malefícios ao abastecimento da cidade” e à “vida de humildes lavradores” e suas famílias. Ou seja, a expansão dos loteamentos sobre o Sertão Carioca se deu 144

ibidem. Luta Democrática, 01/12/1961. p. 3. 146 Luta Democrática, 24/03/1964. p. 7. 145

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paralelamente à formação de uma importante arena de disputas em torno de valores e significados referentes a noções de direito e justiça. A existência de tal arena acabou sendo desconsiderada quando alguns estudiosos preferiram designar esse processo como “expansão do vetor urbano pela área rural” ou como Fânia Fridman preferia afirmar como “loteamentos promovidos em sua maior parte pelo setor imobiliário”.147 Mas na época em que esse processo se deu, ele era qualificado por alguns órgãos de imprensa como “repelentes assaltos de terras” praticados por “malfeitores encasacados”,148 ou, como contra-argumentavam as loteadoras, como a “chance sem igual de uma vida alegre” com “aplicação de capital seguro”, em terras “devidamente registradas e legalizadas”. E além de produzir novas ruas e casas, tal expansão concorreu para o surgimento de novas idéias, representações e certezas: dentre elas, foi-se consolidando a de que os infortúnios vividos pelos habitantes da região atendiam a interesses de um determinado grupo: enquanto a diminuição da produção agrícola acontecia, levando ao declínio das condições de vida dos lavradores e à falta de gêneros para o abastecimento da cidade, havia homens que faziam fortunas com ela. ***

Essas imagens veiculadas pela imprensa, representando o Sertão Carioca como um “cinturão verde” em vias de desaparecer, certamente espelham boa parte do que acontecia na região. Um dos indícios mais representativos eram sem dívida as leis de zoneamento por parte do governo executivo da cidade. Por meio do decreto n. 15.220 o governo Carlos Lacerda dividia a própria Zona Rural em duas sub-zonas: a Sub-Zona Rural de Expansão e a Sub-Zona Rural de Reserva Agrícola.149 E pelo decreto n. 37 de 1963, em seu artigo 2º, ficava estabelecido que qualquer local do Estado da Guanabara, mesmo fora das zonas industriais, poderiam ser delimitados como “núcleos industriais provisórios”.150 Contudo, a região ainda era, mesmo nos difíceis anos 50 e 60, capaz de abrigar um outro cenário. Quando tudo levava a crer que o fim da agricultura e, conseqüentemente, dos lavradores do Sertão Carioca era um fato quase que consumado, os números do censo de 1960 mostram um acontecimento surpreendente. 147

FRIDMAN, Fânia. “Os donos da terra carioca: alguns estudos de caso”. In Anais V encontro nacional da ANPUR. Belo Horizonte, vol.2 ,agosto de 1993. p. 577. 148 O Radical, 13/05/ 1952. p. 6. 149 LEX: Legislação do Distrito Federal. Ano XXIV, pp. 80-1. 150 idem. Ano XXVII, p. 291.

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A agricultura ainda era capaz, mesmo com todos as dificuldades, de contestar os prognósticos mais catastróficos. No final da década de 50 a área agricultável tinha crescido 13%, muito impulsionado que foi pelo crescimento de cerca de 19% dos estabelecimentos agrícolas. Essa expansão teve como carro-chefe os pequenos sítios e lotes. Dos novos estabelecimentos, um pouco mais de 95% eram constituídos por terrenos de menos de 10 ha. Mas o que há de mais significativo nesse crescimento é o fato dele ter tido como principais responsáveis os arrendatários e, principalmente, os posseiros, exatamente as categorias mais atingidas pela expansão dos loteamentos a partir da década de 40. Enquanto as categorias de proprietários e administradores, mesmo num contexto de crescimento, recuaram em 18% e 11% respectivamente, os arrendatários aumentaram em 15%. Muito maior ainda foi o crescimento do número de posseiros – 200%. É possível que isso tenha influenciado os parlamentares que participaram da elaboração da Constituição do estado, especialmente o seu artigo 71, que versava sobre a delimitação da zona rural. Embora no seu versículo 1º permitisse a “instalação, na zona rural, de indústrias com residências”, nos quatro restantes ele procurava atender reivindicações de grupos que viviam da agricultura na região. Por eles o governo ficava encarregado de: promover desapropriações de áreas improdutivas; proteger “de modo especial os posseiros que, em zona rural, trabalhem pessoalmente área de terra não superior a 5 hectares”; prestar assistência tecnológica e crédito especializado e instalar armazéns, silos e frigoríficos; estimular a formação de cooperativas e promover o cadastro das terras da zona rural.151

151

Constituição da Guanabara (1961), p. 24.

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Hortas na área que abarca atualmente os bairros de Tanque e Freguesia. Fonte: IBGE.

A simples preocupação dos legisladores em incluir na Constituição do Estado algumas

reivindicações de lavradores demonstra que nem tudo estava plenamente

decidido naquele conflituoso Sertão Carioca. É preciso, portanto, pensar de forma mais detida sobre o que tornou possível a expansão de formas de trabalho agrícolas tidas e havidas por “precárias” numa região que se mostrava ano após ano, pouco disposta a acolher em seu seio atividades de cunho rural. O que teria encorajado esses arrendatários a se estabelecerem numa região “esquecida pelos poderes públicos” e entregue a “sanha” de “grileiros” e “intermediários”? Somos levados então a acreditar seriamente na possibilidade de que pelo menos para algumas pessoas, a perspectiva da extinção e tomada completa do Sertão Carioca por parte das loteadoras não era assim tão inexorável. Existiram alguns questionamentos a respeito e, em que pese aquela perspectiva ter triunfado, eles não foram menos importantes – a não ser que queiramos

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adotar o ponto de vista próprio de quem já sabe quem foram os “vencedores” e os “derrotados” depois de tudo já ter se passado. Isso ficará mais claro quando ao passarmos á análise da questão dos despejos. Segundo Fânia Fridman, a distância de mais ou menos uma década entre o tempo de parcelamento das glebas e a construção imobiliária verticalizada, indica a constituição de estoques fundiários relevantes que atuavam na formação dos preços de terra e moradia.152 Essa mesma observação, como pudemos ver acima, Geiger já fazia na época. Esses estoques tinham um sentido preciso: ganhar tempo para especular ainda mais com a terra. Maria Galvão já tinha percebido isso já na década de 50 quando pôde acompanhar de perto a problema da expansão imobiliária em Vargem Grande. Ali, “as áreas já compradas ao Banco[de crédito Móvel] foram adquiridas por cias imobiliárias ou por indivíduos abastados, que as estão loteando e arrendando para a lavoura, aguardando o momento de dar-lhes destino mais interessante do ponto de vista financeiro”. Entretanto, este fenômeno não parece ter sido fruto apenas de uma decisão de foro íntimo dos agentes imobiliários. Nossa hipótese é de que essa distância se deveu também às resistências empreendidas por parcela expressiva dos lavradores do Sertão Carioca frente a esses agentes. No Mendanha por exemplo, os loteamentos se expandiam “muito bem” nas zonas de gado, mas se depararam com “forte obstáculo” em Guandu do Sena e Sete Riachos, justamente nas áreas ocupadas por lavouras de “arrendatários” e “sitiantes”, que se negavam a sair, mesmo depois das terras terem sido vendidas à Companhia Nossa Senhor das Graças, “para fins de loteamento urbano”. Situação que levou Hilda Silva escrever o seguinte em 1958: “A questão está em suspenso não cogitando os lavradores em abandonar os terrenos nos quais estão radicados há tantos anos”.153 Algo parecia mover aqueles lavradores a continuarem persistindo em se manter nas terras.

152 153

FRIDMAN, Fânia. Op. Cit. p. 577. SILVA, Hilda. Op.cit. p. 447.

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Venda de terrenos no Recreio dos Bandeirantes, a “Suissa brasileira”. Década de 1940. Fonte: Jornal do Commércio.

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Tais lutas revelavam uma importante face desse Sertão, a de uma região de inúmeros conflitos entre “lavradores” e “grileiros” envolvendo questões de terra. Para a imprensa da época, esse era o outro lado – cujas conseqüências eram alarmantes para uns, notáveis para outros - da incorporação urbana da zona rural do Rio: a possibilidade dos lavradores se “levantarem” contra aqueles que queriam “tomar” suas terras. O contexto gerado por esses conflitos criou condições para que outros ganhassem expressão pública como o combate dos lavradores contra as “extorsões” praticadas por intermediários e o “descaso” das autoridades públicas com a crise da lavoura carioca. Tais acontecimentos conferiam certa imprevisibilidade às transformações históricas que se processavam nessa área. A essas lutas dedicaremos todo o quarto capítulo. Quando veremos, então, como determinadas pessoas puderam ter a certeza de que a expansão urbana não era algo inevitável e sim uma possibilidade que podia ser evitada.

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Capítulo 3 Como viviam e trabalhavam os pequenos lavradores do Sertão Carioca

Em As lutas camponesas do século XX, Eric Wolf aponta a necessidade de desenvolvimento de algumas questões de um estudo que se proponha analisar os movimentos camponeses. Um primeiro diz respeito a distinguir os tipos de camponeses que estão envolvidos num levante político. No entender de Wolf há importantes diferenças de comportamento e ponto de vista entre arrendatários e proprietários, entre camponeses ricos e pobres, entre agricultores que são também artesãos e aqueles que só aram, entre aqueles que são responsáveis por toda a operação agrícola e os trabalhadores assalariados, entre os que vivem perto da cidade e participam em seus mercados e assuntos urbanos daqueles que vivem em aldeias mais remotas. No fundo, trata-se de saber como as diferenças de propriedade, de relação com os mercados e sistemas de comunicação contribuem para a gênese e o curso de um movimento camponês. 1 Tomando essas indicações de Wolf como norte, procuraremos responder a perguntas que nos levem a um melhor entendimento das práticas e dos costumes dos lavradores cariocas. As perguntas a serem feitas então são as seguintes: qual a origem desses pequenos lavradores? O que e como produziam? Qual a sua relação jurídica com a terra em que produzia? Onde e como comercializavam a sua produção? Não pudemos levantar informações detalhadas de todas as localidades do Sertão Carioca, mas as que temos em mãos parecem nos fornecer alguns indícios do que era o dia-a-dia dos pequenos lavradores cariocas em geral. Lembramos também que a maior parte dessas informações refere-se às décadas de 1950 e 1960.2

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WOLF, Eric. Las Luchas campesinas Del siglo XX. Ciudad del Mexico: siglo veintuno editores s.a., 1972. pp.5-6. A esse respeito, compartilham da mesma posição do autor: MOORE Jr, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983; ALAVI, Hamza. “Peasant classes and primordial loyalties”, In Journal of Peasants Studies, Londres, nº 5, 1973. Neste tocante, as informações obtidas em periódicos apresentam várias lacunas e imprecisões, muitas delas intencionais. No afã de demonstrar a grande necessidade que o pequeno lavrador tinha em se manter na terra, alguns periódicos superdimensionavam sua produção, de um lado, e de outro, omitia outras ocupações que esse pequeno lavrador porventura tivesse, pensando que dessa forma evitaria que a legitimidade da pretensão dos pequenos lavradores fosse posta em xeque.

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As informações que temos a respeito da origem dos pequenos lavradores são além de muito imprecisas, bastante fragmentárias, não só em termos de espaço como também de tempo. Sabemos, por exemplo, da origem de arrendatários e foreiros de algumas grandes propriedades no século XIX, contudo muito pouco sabemos da origem dos ocupantes que se estabelecem no século XX, o que torna difícil identificar a suposta ligação entre “antigos” e “novos” ocupantes. No entanto, se essas informações não nos permitem comprovar ou desdizer afirmações, elas podem ao menos sinalizar para importantes aspectos do campo de possibilidades do Sertão Carioca. Vamos tirar proveito, portanto, daquilo que estimule a construção de novas hipóteses. O Sertão Carioca foi um termo cunhado pelo naturalista Magalhães Corrêa – autor de um livro de título similar3 – para denominar as terras que compreendiam as antigas freguesias rurais do Rio de Janeiro: Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá, Irajá e Santa Cruz. Ele abarcava mais de 60% do território do município até meados do século XX (ver 1º e 2º mapas em anexo).4

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CORRÊA, Magalhães. O Sertão Carioca. Rio de Janeiro: Edição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1936. Alguns autores há alguns anos já têm produzido trabalhos sobre a região. Para uma análise do setor imobiliário em meados do século XX, indicamos os trabalhos de Robert Pechamn: Formação histórica da estrutura fundiária na Zona Oeste do Rio de Janeiro e Barra da Tijuca. Relatório de Pesquisa apresentado ao IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro,1987; e, Gênese do mercado urbano de terras, a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, PUR/ UFRJ, Rio de Janeiro, 1985. Destacamos também os trabalhos de Manoela Pedroza sobre a região, embora apenas centrado sobre a freguesia rural de Campos Grande, mas que também debate a conformação da estrutura fundiária e seu papel na reprodução das hierarquias sociais: Engenhocas da moral: parentela, terra e direitos de propriedade na freguesia de Campo Grande (1750-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011; “Une étude sur la persistance de réciprocités inégales sur les terres pro indiviso (paroise de Campo Grande, Rio de Janeiro, Brésil, 19e siècle). Histoire & Sociétés Rurales. 2010; “Estratégias de reprodução social de famílias senhoriais cariocas e minhotas (1750-1850)”. Análise Social. Lisboa, Portugal: UniLi. XLV: 141-163 p. 2010; “Passa-se uma engenhoca: ou como se faziam transações com terras, engenhos e crédito em mercados locais e imperfeitos (freguesia de Campo Grande, século XVIII-XIX)”. Varia Historia: Revista do Departamento de História da UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil: UFMG. 43, 2010; “Transmissão de terras e direitos de propriedade desiguais nas freguesias de Irajá e Campo Grande (Rio de Janeiro, 1740-1856)”. Revista de História. São Paulo: USP: 323-362. 2009; “O mundo dos fundos, ou quem eram os vizinhos dos engenhos de açúcar no Rio de Janeiro colonial? (freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, 1777-1813)”. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUCRS. 35: 59-83. 2009; “Capitães de bibocas: casamentos e compadrios construindo redes sociais originais nos sertões cariocas (Capela de Sapopemba, freguesia de Irajá, século XVIII)”. Topoi: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Sette Letras. 9: 67-92. 2008. Podemos destacar também alguns trabalhos sobre a atuação política dos “camponeses” do Sertão Carioca: PEDROZA, Manoela. Terra de resistência: táticas e estratégias camponesas no Sertão Carioca (1950-1968). Porto Alegre, UFRGS, Dissertação de mestrado em História, 2003. SANTOS, Leonardo Soares dos. Um Sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro: 1945-1964. Niterói, UFF, Dissertação de mestrado em História, 2005. Uma abordagem do Sertão Carioca enquanto conceito é desenvolvida em FERNANDEZ, Annelise. Do Sertão Carioca ao Parque Estadual da Pedra

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Trabalhadores rurais de uma fazenda de Guaratiba. Década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Nessa região, em boa parte das localidades de pequenos lavradores, as indicações sugerem que a ocupação por parte desse tipo de trabalhador teria se dado quando as propriedades ainda eram grandes engenhos ou fazendas de café no século XIX e XVIII, os quais eram na sua maioria pertencentes às ordens religiosas como a dos Beneditinos e dos Carmelitas. Francisco Siqueira, memorialista e “posseiro” da região de Guaratiba, destaca que a detentora de parte das terras de Pedra de Guaratiba, a Matriz de São Salvador do Mundo, começou em fins do século XVIII a “arrendar as terras já ocupadas a seus posseiros” que, em troca, teriam que manter a iluminação dos templos. Segundo o autor, os “posseiros” que entraram em litígio com pretensos proprietários a partir da década de 1940, eram todos eles descendentes daqueles “posseiros” de fins do XVIII.5 O geógrafo Sylvio Fróes também destaca que a região foi nas primeiras décadas do século XX o ponto de chegada de uma

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Branca: a construção social de uma unidade de conservação à luz das políticas ambientais fluminenses e da evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ, tese de doutorado em Sociologia, 2009. SIQUEIRA, Francisco Alves. Barra de Guaratiba: vida, contos, lendas, folclore. Rio de Janeiro: s/ed., s/ d. p.18.

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numerosa leva de migrantes cearenses, mais precisamente da região de Cariri. Ao se estabelecerem ali passaram a promover amplamente o cultivo de laranjas e coqueiros-anões. Além disso, segundo nos atesta Fróes, também produziam “rapadura de excelente qualidade”.6 Alcebíades Rosa, em suas memórias sobre Sepetiba, menciona que a ocupação daquela região se consolidou por meio do decreto-lei de 26 de julho de 1813, pelo qual a Coroa doou as terras de Sepetiba aos pescadores e lavradores que ali já estavam estabelecidos.7 Em algumas áreas, os lotes rurais tinham se originado de arrendamentos, aforamentos ou livres concessões dos proprietários aos seus escravos ou ex-escravos. Fridman destaca que isso era uma prática comum entre os Beneditinos. Seus escravos possuíam pequenas roças e gado para seu sustento, sendo permitida a comercialização de seu excedente contanto que não exercessem “ofício para lucro”.8 Em 1871, o Mosteiro de São Bento libertou os 918 escravos que trabalhavam naquelas terras. Há indício de que alguns deles tenham permanecido morando e trabalhando naquelas terras.9 Ainda no século XIX, o Engenho da Serra, que se localizava numa área hoje cortada pela estrada Grajaú-Jacarepaguá no bairro da Freguesia, abrigava diversas fazendas, entre as quais a de Cantagalo, onde trabalhavam 70 escravos que plantavam arroz, cana-de-açúcar e café. Todos eles possuíam ali uma “choupana”.10

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FRÓES, Sylvio. O Distrito Federal e seus recursos naturais. Rio de Janeiro: IBGE, 1957. p.238. ROSA, Alcebíades Francisco da. História de Sepetiba. Rio de Janeiro: s/ed, 1995. p.29. FRIDMAN, Fânia. Donos do Rio em nome do Rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., Garamond, 1999. p.133. Fridman, analisando recibos de arrendamento do Mosteiro de São Bento, verificou que entre seus arrendatários nas terras de Jacarepaguá, havia uma “criola forra” (p.132). Essas terras beneditinas compreendiam parte da atual reserva florestal da Pedra Branca, localizada em Jacarepaguá. Ali moram até hoje, no alto da Serra do Quilombo (uma área em que os escravos instalaram diversos quilombos até serem “descobertos” em 1880), no bairro do Camorim, algumas poucas famílias que se dizem descendentes de exescravos, ou seja, consideram-se quilombolas. Atualmente quase todas as fazendas foram desmembradas, mas ainda persistem dezenas de pequenos sítios. Uma pesquisa entre esses moradores poderia verificar se se tratam de descendentes daqueles antigos escravos. Um último detalhe: a estrada Grajaú- Jacarepaguá tem a sua esquerda (no sentido de quem está indo para Jacarepaguá) um morro com o sugestivo nome de Serra dos Pretos Forros.

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Habitação de pequenos lavradores em Curicica. Fonte: IBGE.

Como dissemos anteriormente, são poucas as informações que pudemos colher nos textos de geógrafos e memorialistas sobre ocupações que tenham se processado durante o início do século XX. Poucas, é verdade, mas preciosas, há que se dizer também. Uma delas se refere à ocupação das fazendas Guandu do Sena e Sete Riachos, na Serra do Mendanha. Os lavradores estariam ali estabelecidos desde 1913 como “arrendatários”, uma situação que aliás permaneceria nas décadas de 50 e 60, quando das disputas pela terra contra companhias imobiliárias.11 Mas a maior parte das informações se refere mesmo às ocupações realizadas por imigrantes portugueses. Eles teriam se instalado em Realengo, Bangu, Jacarepaguá, Rio da Prata, Guandu do Sena e Guaratiba. Leonarda Musumeci afirma que eles se notabilizaram pelo cultivo de verduras e legumes e pela introdução de algumas técnicas (horta encanteirada, terraceamento nas encostas, adubação orgânica). No Sertão Carioca, segundo a autora, era às chamadas “hortas de portugueses” que se atribuía a “vanguarda em produtividade e eficiência”.12 Muitos dos que se dirigiram para Realengo tiveram que se deslocar no início da

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SILVA, Hilda. “Uma zona Agrícola do Distrito Federal – O Mendanha”, In: Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, vol. XX, nº 4, 1958. p. 438. p. 447. MUSUMECI, Leonarda. Pequena produção e modernização da agricultura: o caso dos hortigranjeiros no estado do Rio de Janeiro.Pequena produção e modernização da Agricultura: o caso dos hortigranjeiros no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPEA/ INPES, 1987. Em seu Cidade de Deus, Paulo Lins comenta

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década de 50 para outras terras por conta do avanço dos loteamentos.13 A área escolhida foi o Guandu do Sena, na Serra do Mendanha. Hilda Silva nos informa que esses portugueses eram da Ilha da Madeira.14 Também foi naquele período que os portugueses começaram a afluir para Vargem Grande, principalmente para a área do “Brejo”. Maria Galvão afirma que eles eram 90% da população dessa área.15 Galvão pôde identificar uma certa diferenciação entre os próprios portugueses, que se dividiam entre os “portugueses”(Continente) e “ilhéus”(Ilha da Madeira). No dizer dela, os primeiros não gostavam de “se misturar” com os ilhéus por considerá-los pessoas “rudes e belicosas”.16 Fossem da Ilha ou do Continente, os portugueses, quando aqui estabelecidos reuniam-se “em sociedade de 3, 4 e até muitos membros provenientes da mesma província, e até da mesma freguesia” do território português. Entre os “portugueses” predominavam os do Conselho de Penacova, enquanto os “ilhéus” vinham em sua maioria do Conselho de Ponta do Sol.

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que a localidade que daria origem ao bairro era conhecida pelo sugestivo nome de Pequeno Portugal, já que se tratava de uma imensa horta cultivada por dois irmãos portugueses. Outro exemplo emblemático da presença portuguesa na região era o fato do bairro do Pechincha ainda ser chamado por muitos de Pequeno Portugal. Em Camorim, onde também foi bastante forte a presença lusa, há uma pequena localidade chamada Viana do Castelo, cidade da Região Norte de Portugal e que tradicionalmente foi uma das regiões que mais exportou portugueses para o Brasil desde fins do século XIX. Idem. p. 77 SILVA, Hilda. Op.cit. p. 445. GALVÃO, Maria do Carmo Correia. “Lavradores brasileiros e portugueses na Vargem Grande”. In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, n° 3-4, 1957. p. 47. idem. p. 50.

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Habitação de pequenos lavradores na estrada dos Bandeirantes. Década de 1950. Fonte: IBGE.

Quanto à produção, praticamente todo o Sertão Carioca privilegiava a “lavoura branca” (hortaliças e legumes) e a fruticultura: tipos de lavouras, se assim podemos dizer, mais típicas de um Cinturão Verde, como era o caso dessa região. Mas a proximidade com o centro urbano não parece ter sido o único motivo para a implantação dessa modalidade agrícola. Pedro Geiger e Myriam Mesquita afirmam que o processo de grande valorização das terras que passa a se intensificar na década de 50 fez com que a manutenção das propriedades agrícolas se desse “na base de produtos bastante lucrativos como as verduras e frutas”. “Só esta lavoura”, assim consideravam, “podia se manter às portas da cidade ou então os aviários e apiários”.17 Os dados coligidos por outros geógrafos quando da realização dos seus estudos em algumas localidades do Sertão Carioca nas décadas de 50 e 60 reiteram essa afirmação. Amélia Nogueira, em seu estudo sobre a localidade de Vargem Grande, observa que as plantações se dividem por três áreas: nas “encostas”, plantava-se banana-prata.18 Em sua “baixada argilosa”, encontravam-se plantações de laranja, banana, aipim, mamão, milho, cana, tangerina,

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GEIGER, Pedro Pinchas e MESQUITA, Myriam Gomes Coelho. Estudos Rurais da Baixada Fluminense (1951-1953). Rio de Janeiro: IBGE, 1956. p. 62 NOGUEIRA, Amélia Alba. “Vargem Grande (alguns aspectos geográficos)”, In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, nº1-2. p.66.

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hortaliças e, até, café (para consumo interno).19 Em outra área, a “baixada turfosa”, produziase banana d’água, laranja, coqueiros, milho, arroz, aipim, batata-doce e hortaliças.20 Maria do Carmo Galvão, estudando a mesma região, fornece-nos um quadro mais detalhado. Na “Serra”- nome que ela dá às “encostas”- produzia-se também mangueira, jaqueira, jiló, maxixe, abóbora, abacateiro, batata, aipim e chuchu.21 O “Brejo” - nome dado à “baixada turfosa”- conheceu um incremento na sua produção, segundo a autora, a partir da chegada dos portugueses. Com a sua chegada teria se desenvolvido “consideravelmente” ao lado do aipim, do milho e da batata-doce, o cultivo do chuchu, da berinjela, do alface, da couve, do brócolis, da chicória, do jiló e do quiabo. Todos eles, continua Galvão, “produzidos em larga escala para o mercado”.22 Quanto à “Vargem” – nome dado à “baixada argilosa”- a descrição é quase totalmente idêntica à de Nogueira.23 Nas fazendas Guandu do Sapê, Guandu do Sena e Sete Riachos - todas situadas na localidade do Mendanha - havia o predomínio em suas “Várzeas” dos laranjais e da “lavoura mista”, já nas “Serras” encontravam-se bananais e “grandes latadas” de chuchu.24 Em Sepetiba, nas terras da antiga fazenda Piaí, havia plantação de aipim, batata-doce, laranja e “todo tipo” de hortigranjeiros. Mas segundo o memorialista Alcebíades Rosa o “cultivo forte” ainda era o café e a cana-de-açúcar.25

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Idem. p.63. Idem. p.66. GALVÃO, Maria do Carmo Corrêa. “Lavradores brasileiros e portugueses na Vargem Grande”, In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, 1957, nº 3-4, p.44. Idem. p.50. Idem. p.57. SILVA, Hilda. Op. cit. p.438. ROSA, Alcebíades Francisco da. História de Sepetiba. Rio de Janeiro: s/ed, 1995. p.34.

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Habitação de pequenos lavradores em Curicica. Fonte: IBGE.

Em Jacarepaguá, seus lavradores, “horteiros em sua maioria trabalhando mais próximo do centro”, produziam quase que exclusivamente repolho, pimentão, abobrinha, agrião, alface, acelga, couve, tomate, berinjela, cenoura, chicória, beterraba, rábano, rabanete, salsa, cebolinha.26 Fora isso cultivavam alguns poucos tipos de frutas como banana e laranja. Mas além das verduras, legumes, cereais, frutas, outro produto muito valorizado era a lenha. Segundo P. Geiger, a grilagem de imensas áreas de terra da Fazenda Nacional de Santa 26

SOUZA, José Gonçalves de. “Custos de produção e preços de venda dos produtos agrícolas do Distrito Federal” In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, ano IV n°1, 1951., p. 26. Os terrenos onde se situam os hoje populosos bairros de Gardênia Azul, Anil, Rio das Pedras e Jardim Clarice eram grandes pastos de criação de cavalos e gado bovino, até mais ou menos o inicio da década de 1960, (informação prestada por antigos moradores). Até hoje há uma pequena criação de búfalos próxima à Pedra da Panela; outrossim os terrenos que margeiam a futura “Vila Pan-Americana” (Barra da Tijuca) ainda se prestam a uma criação diminuta de cavalos. Criação esta que é bem visível até hoje em diversas localidades da zona oeste da cidade. Um exemplo curioso, e de dimensões às vezes trágicas, é o número de acidentes que ainda acometem alguns veículos como resultante de atropelamento de animais, especialmente cavalos e bois, em várias estradas e avenidas da região, principalmente Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz. Outro detalhe é que ainda hoje muitos moradores são obrigados a se cercarem de cuidados ao colocarem o lixo residencial para coleta da companhia municipal de limpeza: muitos utilizam cestos colocados à grande altura do chão, outros esperam o exato momento de passagem do caminhão de coleta para pôr o seu lixo na calçada, tudo isso para impedir que ele seja “atacado” por bois, cavalos ou porcos famintos, que são invariavelmente deixados pelas ruas por seus donos. O autor deste trabalho, quando de sua infância no bairro de Gardênia Azul, no início da década de 80, testemunhou por diversas vezes, quase que semanalmente, o “desfile” desses animais na rua de sua casa, quase sempre pela manhã.

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Cruz se destinava, “desde há tempos”, à extração de madeiras das partes cobertas de mata.27 Mais tarde, P. Geiger e Myriam Mesquita estabeleceriam um paralelo entre o comércio de lenha e a crescente especulação com a terra, sendo os dois resultados diretos da “conjuntura da expansão de loteamentos”.28 No entanto, ao observarmos as experiências de algumas localidades, podemos ver que o comércio de lenha não era resultado do abandono da produção de gêneros alimentícios, e sim algo que lhe era complementar. Magalhães Correa mencionava desde a década de 30 a importância desse produto na produção agrícola de algumas localidades. Em Cafundá, localizada no “valle do Rio Taquara”, seus lavradores exploravam o “commercio da banana, batata, laranja, carvão e lenha”.29 Nas lavouras de Cabuçu, no Distrito de Campo Grande, os arrendatários se dedicavam ao cultivo de banana e também fabricavam carvão e trançavam lenha.30 Segundo José Cezar de Magalhães, a proximidade de padarias e outros estabelecimentos comerciais junto às áreas de plantio também era um fator que impulsionava alguns lavradores a plantar eucaliptos de modo a fornecer lenhas para os seus fornos.31 Versão que é confirmada por Amélia Nogueira, para o caso de Vargem Grande. Nas suas encostas, os lavradores exploravam lenha e carvão, que eram transportados em “Jacás sobre o dorso de burros e empilhadas onde vão ter os caminhões dos comerciantes”. Depois a lenha era revendida na Taquara e em Cascadura para o abastecimento de fornos de pequenas fábricas e padarias. Podemos complementar afirmando que os fornos das próprias residências dos moradores se alimentavam de lenha. Basta mencionar que em meados do século XX o fornecimento de gás na região ainda era algo bastante distante da realidade. Porém, fosse qual fosse o motivo, Magalhães assegurava que a fiscalização empreendida pela Secretaria de Agricultura no início da década de 60 era “muito rígida”, fazendo com que a atividade extrativa de lenha não fosse tão abundante quanto o era no período 1930-1938.32

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GEIGER, Pedro P. “A respeito de ‘produtos valorizados’”, In Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, nº 3-4, 1953. p. 15. GEIGER, Pedro Pinchas e MESQUITA, Myriam Gomes Coelho. op. cit., p.2-3. CORRÊA, Magalhães. op. Cit., p. 79. Idem, p.201. MAGALHÃES, José Cezar de. “A lenha e o carvão vegetal no abastecimento do Estado da Guanabara”, In Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, nº1-2, 1961. p. 32. Ibidem.

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As típicas hortas da Baixada de Jacarepaguá. Década de 1950. Fonte: IBGE.

A partir dessas informações podemos saber o que era cultivado em geral, mas cabe ainda perguntar as maneiras pelas quais era realizada a exploração dos “lotes” ou “roças”. Sejamos mais precisos: sob qual estatuto ou condição jurídica os pequenos lavradores realizavam seus cultivos? Ou, perguntando de outra maneira: Qual era a sua relação com a terra? Na serra do Mendanha, as duas áreas estudadas por Hilda Silva apresentavam o seguinte perfil: no Guandu Sapê, a produção era tocada por “arrendatários”; no Guandu do Sena, a maior parte das lavouras seria explorada por “sitiantes”. No caso desta fazenda – assim como em outras áreas do Sertão Carioca - a categoria “sitiante” designava não somente pequenos proprietários, que “já são donos das terras”, como também “outros [que] assim se consideram em virtude de estarem aí fixados há muitos anos”. A mão-de-obra desses lavradores provinha

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da própria família; nos “sítios maiores”, empregava-se o trabalho de dois ou três “assalariados”, que eram também chamados por Hilda Silva por “diaristas”.33

Mulheres produzindo farinha de mandioca em Pedra de Guaratiba. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Em Vargem Grande, na área do “Brejo”, os portugueses além de serem ali maioria, eram também “arrendatários” do Banco de Crédito Móvel. O interessante é que era comum haver dois ou três sócios em cada arrendamento.34 Já na “Serra”, a paisagem era dominada pelas propriedades dos “sitiantes” e “pequenos proprietários”. A diferença entre eles era que enquanto os primeiros residiam em seus sítios, os segundos moravam na zona urbana do Distrito Federal. Na “Vargem”, o quadro era bem mais diversificado: havia “grandes” 35 e “pequenos proprietários”, assalariados e arrendatários.36

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SILVA, Hilda. Op.cit. p. 445. NOGUEIRA, Amélia Alba. “Vargem Grande (alguns aspectos geográficos)”, In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, nº1-2. p. 69. Ser “grande proprietário” naquela área significava ter um sítio ou roça que tivesse no mínimo 20 ha. GALVÃO, Maria do Carmo Correia. Op. cit. p. 57.

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Cultivo de cana de açúcar em Pedra de Guaratiba, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

No caso do Sertão Carioca é interessante notar que boa parcela desses pequenos lavradores não se dedicava exclusivamente à agricultura. Em Sepetiba, por exemplo, a produção agrícola também era realizada por pescadores.37 Esse também parecia ser o caso dos pequenos lavradores de Pedra de Guaratiba.38 Em Vargem Grande, os carvoeiros também eram lavradores.39 Em alguns casos, as ocupações alternativas podiam ser eminentemente urbanas. Lyndolpho Silva, conhecida liderança camponesa do PCB e que começou seu trabalho de militância no Sertão Carioca, mais precisamente em Campo Grande, argumenta que pelo fato da “roça” dessa região ser muito próxima do centro comercial e industrial do bairro, os pequenos lavradores faziam trabalhos urbanos e temporários. Segundo ele, era comum o arrendatário e o posseiro trabalhar “uma parte de seu tempo vago no posto de

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ROSA, Alcebíades Francisco da. Op. cit. p.34. O Globo, 07 de julho de 1951. p. 1. NOGUEIRA, Amélia Alba. Op. cit. p. 62.

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gasolina”, por exemplo.40 Havia um caso no qual nem mesmo a produção era realizada por lavradores. Isso teria se dado em Vargem Grande, onde segundo nos informa Maria Galvão, “muito” dos bananais da “Vargem”, principalmente na parte sul da estrada dos Bandeirantes (mais próxima do atual bairro do Recreio), não era explorados por lavradores e sim por “donos de sítios de veraneios”.41

Cultivo de cana de açúcar em Pedra de Guaratiba, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Essa é uma questão importante, embora os dados coligidos não nos permitam assegurar a proporção entre o volume da produção que se destinava para a subsistência e aquele que era comercializado. Mas Amélia Alba informa que nas “Encostas” (ou “Serra”) de Vargem Grande, os “sitiantes” que moravam na “cidade” praticavam apenas agricultura comercial, já os “sitiantes” que além de trabalhar moravam no “sítio” também produziam para sua 40

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SILVA, Lyndolpho.“Entrevista”, In Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, nº 2, junho de 1994. p.83. GALVÃO, M.C.C. Op. cit. p.57.

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subsistência.42 Maria Galvão acrescenta que entre estes, somente feijão, milho, café e cana-deaçúcar não eram comercializados, e “muitas vêzes” eram cultivados pelas próprias “crianças da casa”.43 Porém, com a passar do tempo, essa economia de subsistência ia perdendo espaço para a “economia de exportação”, isto é, destinada aos mercados e feiras-livres.44

Bananal em Campo Grande, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

De qualquer modo é possível assegurar que essa produção para o mercado era significativa, já que em todas as localidades havia atividades nesse sentido. Em poucos casos a venda da mercadoria se dava na própria localidade do lavrador que a produzia. Temos um exemplo, ainda da década de 30, em que Magalhães Corrêa nos fala sobre o que acontecia na estrada de Jacarepaguá, que ligava o bairro de mesmo nome à Barra da Tijuca. Ali segundo ele, o contato entre o produtor e o consumidor de gêneros era direto: Ao longo da estrada, transformada em feira livre, pelos seus habitantes, encontram-se gurys, à margem de suas choupanas, tendo em permanente 42 43 44

NOGUEIRA, Amélia Alba. Op. cit. p. 66. GALVÃO, Maria do Carmo Correa. Op. cit. p. 44. Idem. p. 45.

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exposição gaiolas com passarinhos, meninas vendendo ovos e gallinhas, mulheres e velhos com bananas e laranjas, emfim, tudo que produz essa zona exuberante. Estas mercadorias penduradas em vários giráos e ganchos, esperam a passagem dos turistas.45

Porém, o autor ressalva que esses compradores eram turistas estrangeiros, pois os nossos, quando vão por essas estradas, passam em automóveis voando, já são conhecidos; quando chegam, porém, aos lares ou em roda de amigos, dizem: ‘foi extraordinário, indescriptivel o que vimos!...’ Pobres dos que ficaram no caminho, pois à sua passagem transformam a estrada em verdadeiro vendaval, nuvens de poeira, só poeira!46

O mais comum, entretanto, era que esses produtos fossem comercializados em mercados locais e feiras-livres. Quanto aos primeiros, os maiores destinatários daquela produção eram o Mercado Municipal, localizado no centro do Distrito Federal, que tinha a preferência das bananas de Vargem Grande e das laranjas do Mendanha,47 e os Mercados regionais de Madureira e Campinho, para onde ia a maior parte da produção de Sepetiba e da área de Vargem Grande conhecida como “Serra”.48 Quanto às feiras, as mais freqüentadas por produtos do Sertão Carioca eram as de Campo Grande, Cascadura, Irajá Madureira, Marechal Hermes, Realengo, Penha e Tijuca. Com exceção das duas ultimas, todas ficavam nas zonas rural e suburbana.49

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CORREA, M. Op. cit. p.59. Ibidem. NOGUEIRA, Amélia Alba. Op. cit. pp. 60-1 e SILVA, Hilda. Op. cit. p. 457. ROSA, Alcebíades Francisco. Op. cit. p. 34 e GALVÃO, Maria do Carmo Correa. Op. cit. p. 44. Ibidem e SILVA, Hilda. Op. cit.

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Cultivo em Campo Grande, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

A expansão imobiliária somada a outro processo que lhe era correlato, a inflação,50 concorreram para modificações nos próprios mecanismos de reprodução desses pequenos lavradores. Vimos páginas acima que estudos de época de alguns geógrafos entendiam que a simples iminência da constituição de loteamentos influía na escolha do tipo de lavoura (temporária ou permanente) a ser explorada e, de certa forma, na própria forma de moradia desses lavradores, que poderia ser feita com material de muita ou pouca resistência. Mas não era só a etapa dedicada à produção que parece ter sofrido certas modificações, como também a etapa voltada para a comercialização. Assim como a terra era objeto da “cobiça” crescente do jogo especulativo, o mesmo ocorria com os gêneros alimentícios. E tanto um como outro tinham em termos econômicos um valor bem maior do que os custos da produção de gêneros alimentícios. Nesse tipo de conjuntura passava a ser vital que o produtor detivesse um mínimo de controle sobre os mecanismos de circulação de mercadorias. No caso do Sertão Carioca isso significava possuir meios de transporte ou ao menos participar de sistemas de frete que 50

GEIGER, Pedro Pinchas e MESQUITA, Myriam Gomes Coelho. Op. cit. p. 60. Os reflexos desse fenômeno no plano nacional é muito bem analisado por Ver RANGEL, Ignácio. A inflação brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981; GUIMARÃES, Alberto Passos. Inflação e monopólio no Brasil (Por que sobem os preços?). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1963.

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lhe fossem favoráveis. Alguns estudos mostram que no Mendanha, Jacarepaguá e Vargem Grande uma parcela significativa dos pequenos lavradores procurou exercer domínio sobre duas das etapas da “operação agrícola”: a produção e a comercialização.51

Barra da Tijuca, em 1971. Fonte: IBGE.

Tomemos o exemplo de Vargem Grande. Ali os portugueses, fossem os “ilhéus” ou os “portugueses”, teriam desenvolvido uma peculiar “divisão” de atividades entre a lavoura e o mercado. Diferentemente dos brasileiros, ressalta Maria Galvão, os portugueses distribuíam entre si, “de acordo com as aptidões e preferências pessoais”, as tarefas “do campo e da cidade”. As “sociedades” exerciam importante papel para que esse sistema funcionasse: O que é escalado para a feira não se envolve na roça, os da roça não faz feira. Uma reunião, realizada geralmente aos domingos, entre feirantes e lavradores de uma mesma sociedade, permite o acêrto de contas semanal e a distribuição eqüitativa de despesas e lucros.52

51

52

SOUZA, José Gonçalves de. op. cit., p. 26; SILVA, Hilda. op. cit., p. 457; NOGUEIRA, Amélia Alba. Op. cit., p. 69. GALVÃO, Maria do Carmo Correa. Op. cit. p. 50.

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E os portugueses faziam questão de assinalar que esse “acêrto de contas” assim como as “sociedades” se assentavam no “respeito pela palavra”, não tendo nenhum fundamento jurídico.

Boteco em Pedra de Guaratiba, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

No Mendanha, o transporte dos produtos se dava por intermédio de uma frota de caminhões que percorria diariamente a região, “com exceção das segundas-feiras, fazendo em média 2 a 3 viagens por dia”. É possível que essa frota pertencesse a um pequeno grupo de lavradores da própria região. Mas tendo o lavrador o seu próprio caminhão fazia a “entrega de seus produtos e, também, os de seus vizinhos mais próximos”. Tanto num como noutro caso, cobrava-se uma taxa de frete de Cr$ 5,00 por caixa.53 Em vista dessa “facilidade de circulação”, como entendia Hilda Silva, haveria uma tendência à eliminação dos

53

SILVA, Hilda. Op. cit. p. 457.

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intermediários por parte dos próprios lavradores, que estavam se transformando em “feireiros”, acumulando, assim, duas funções: “agricultura e comércio”.54 Porém, tendo em vista a situação nas demais áreas do Sertão Carioca, o certo é que a possibilidade de tomar parte de mecanismos vantajosos de comercialização parece ter sido algo que poucos puderam desfrutar. José G. Souza aponta que dos 605 lavradores por ele entrevistados entre 1946 e 1947, apenas 38 declararam ter transporte próprio.55 O restante tinha de vender, ou como se dizia na época, “entregar” a sua produção aos “intermediários”, os quais revendiam em outros pontos de comércio, especialmente o Mercado Municipal da Praça XV. E isso não era visto com bons olhos, não só os dos produtores como também dos consumidores e até mesmo de alguns órgãos do poder público. Veremos mais adiante que a luta pela terra por parte dos pequenos lavradores do Sertão Carioca também irá colocar no centro do debate a questão da atuação desses “intermediários”. Junto com os “grileiros”, eles conspirariam contra a estabilidade desses pequenos lavradores, fazendo com que eles desistissem das atividades agrícolas. E mais do que isso, agindo dessa forma contra esses lavradores, “grileiros” e “intermediários” agiriam contra toda a população carioca. Ao menos era essa a visão difundida não só pelos pequenos lavradores, mas também por quase toda a imprensa e pelos membros do legislativo da cidade. Por meio desse discurso o movimento dos pequenos lavradores pôde articular os desacordos presentes em sua relação com os “intermediários” com o problema do abastecimento de alimentos da cidade. Em certo sentido foi se conformando um campo de disputas entre diferentes versões e concepções sobre preço e lucro justos.56 E é somente por meio desse campo que podemos recuperar o significado que a palavra “entregar” tinha naqueles dias e naquele Sertão Carioca e no Distrito Federal como um todo.

54 55 56

Ibidem. SOUZA, José Gonçalves de. op. cit., p. 27. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

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Agricultores japoneses no Núcleo Colonial de Santa Cruz. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

*** Em seu estudo sobre o movimento dos trabalhadores rurais ingleses no contexto da irrupção da Revolução Industrial, Eric Hobsbawm chama atenção para um ponto importante: é preciso que situemos cada ato de protesto ou revolta desses trabalhadores no seu contexto de relações, tradições e experiências, pois é ele que confere o sentido e a própria forma como esse ato se manifesta. Em razão disso, o historiador inglês julgou pertinente analisar o papel dos espaços e redes de sociabilidade para a conformação do “universo mental e social” daqueles trabalhadores. Em Capitão Swing,57 Hobsbawm demonstra que o mercado, a feira, a cervejaria, o pátio da igreja e as comunicações com outras paróquias foram tão importantes quanto as organizações políticas ditas modernas e os mediadores da cidade para a eclosão e o desenvolvimento dos movimentos de protesto nos campos ingleses.

57

HOBSBAWN, Eric & RUDÉ,George. Capitão Swing. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

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Núcleo Colonial de Santa Cruz, década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

As informações apresentadas no tópico anterior nos dão ao menos uma noção bem aproximada do que era o pequeno lavrador de algumas localidades do Sertão Carioca no que diz respeito ao momento da produção e comercialização de gêneros alimentícios. Mas o dia-adia desses pequenos lavradores era mais do que isso, ele era tecido em outros momentos e em outros lugares que não o chão da roça.

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Mulheres do Sertão Carioca. Década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

O pequeno lavrador carioca não era de forma alguma um tipo “isolado”, cujo horizonte estivesse restrito ao seu “pequeno mundo”.58 A localidade59 em que habitava e trabalhava onde se tinha no máximo, além da companhia de outros pequenos lavradores ali estabelecidos, uma “venda” ou botequim - não era a única unidade real de sua vida. Uma razão para isso era que as próprias “vendas” não ficavam na sua localidade. Muitos tinham que andar alguns quilometros para chegar até ela. Mas todo esforço valia a pena, já que eram de grande importância para a vida desses pequenos lavradores. Era ali que eles compravam os gêneros e artigos para a sua família, principalmente aqueles que eles não obtinham em suas roças por meio do cultivo (arroz, óleo, fósforos, tecidos, utensílios etc). Contudo, praticamente todos os relatos que possuímos sobre esse tipo de estabelecimento comercial – e que era de longe o 58

59

Ver HOBSBAWM, Eric. “Os camponeses e a política”, In Pessoas Extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 221. Preferimos adotar o nome localidade para essas unidades de povoamento de pequenos lavradores. Era comum que um mesmo bairro possuísse mais de uma localidade. Em Campo Grande, por exemplo, localizavam-se as localidades de Caxamorra, Mato Alto e Baixo Cabuçú. Em Guaratiba havia as localidades do A.B.C, Ilha de Guaratiba e Pedra de Guaratiba. Um outro detalhe a se destacar é que nessa época não havia uma distinção clara entre Bairro e Distrito. Em termos oficiais Campo Grande, Jacarepaguá e tantos outros eram Distritos, no interior dos quais havia diversas localidades. Futuramente, boa parte dessas localidades seriam instituídas como bairros.

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mais comum na zona rural – apontam para um outro papel que exerciam no contexto de relações sociais daqueles agentes: as “vendas” não eram apenas pontos de encontro voltados exclusivamente para o comércio, mas eram também o lugar da discussão e troca de informações entre lavradores não só da própria localidade como também de outras. Era dessa forma que Hilda Silva entendia a importância do “alcance” que as pequenas vendas localizadas no Mendanha tinham “na vida social do lavrador”: era por meio delas que se adquiria os gêneros que lhe faltavam “para seu sustento”, mas era também “o local de encontro dos lavradores para discussão dos assuntos do momento e de parada antes de subirem as serras”.60

Trabalhadores da fazenda SAGAP. Década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Maria Galvão diz que um importante “elo” entre a “Serra” e a ”Vargem” de Vargem Grande era o armazém. Da primeira desciam os produtos a serem embarcados nos caminhões dos “intermediários”; e da segunda, “ao cair da noite, sobretudo noite de sábado”, os 60

SILVA, Hilda. Op.cit. p. 457.

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lavradores subiam – por meio do armazém - o açúcar, a farinha, o arroz, o macarrão, a carne seca, a cebola, a batata-inglesa e o pão. Mas o consumo não era a única coisa que levava os lavradores a descerem da “Serra”, pois o armazém era um importante “ponto de reunião” desses lavradores.61

Interior do Bar do Luiz, em Pedra de Guaratiba, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Outro ponto importante era o botequim, onde também se fazia o embarque dos produtos agrícolas destinados à “cidade” ao cair da noite, “agitando” esses lugares “tão calmos durante o dia”. E depois de embarcado “os pregados de chuchu, bananas, laranjas”, o dia de trabalho do lavrador era encerrado “com um gole de cachaça bebido entre os amigos”. 62 O botequim 61 62

GALVÃO, Maria do Carmo Correa. Op. cit. pp. 45-6. ibidem. pp. 58-9.

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também era um importante ponto de encontro entre os lavradores/pescadores de Pedra de Guaratiba, tão importante que chegou a merecer a atenção de autoridades policiais da antiga polícia política, preocupadas com o “nível moral da população do logar”, que a seu ver, “declina[va] a olhos vistos”. O indício mais evidente era que nos “bars” daquela localidade qualquer motivo era “bom para grandes bebedeiras”. E quando fechavam, os moradores se dirigiam a uma “tendinha” que, “embora sem licença” fornecia “parati63 e bolinhos de camarão”.64 Se a localidade em que morava não era a única unidade real de vida “lavrador” do Sertão Carioca, nem mesmo o bairro ou a freguesia onde estava situada tal localidade também o era. Com o fito de negociarem seus produtos nas feiras e mercados, era muito comum que boa parte dos “lavradores” constantemente se deslocassem de um bairro a outro. O caso anteriormente citado dos lavradores do Mendanha é um bom exemplo. Por certo, havia outros motivos para que houvesse tal deslocamento. Alguns casos relatados pela imprensa também confirmam de forma indireta e, por que não dizer, curiosa essa característica dos pequenos lavradores do Sertão Carioca. Em abril de 1952, o Diário Trabalhista noticiava o acidente ocorrido com um caminhão na Grota Funda, estrada que liga o Recreio dos Bandeirantes com Guaratiba. Entre os passageiros constava o nome do “lavrador” João Rodrigues Pila, que morava num lugar bem distante dali, na estrada do Capão ( uma pequena estrada que liga os atuais bairros de Gardênia Azul e Cidade de Deus).65 Mais tarde, na véspera do natal desse ano, o referido jornal também informava seus leitores sobre um desagradável fato: tinha sido encontrado morto na Estrada dos Bandeirantes, o “lavrador” Nelson Lima Santos de 33 anos, casado, morador naquele local. O principal suspeito era um outro “lavrador” que tivera um desentendimento momentos antes com Nelson; seu nome era Amarílio Alves Corrêa, morador do Largo da Ilha, em Campo Grande.66

63 64 65 66

Expressão da época usada para designar a cachaça. Fundo DOPS, APERJ, “Pedra de Guaratiba”, fl. 3. Diário Trabalhista, 18 de abril de 1952. p. 3. Diário Trabalhista, 24 de dezembro de 1952, p. 3.

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Jovem moradora de Realengo, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Meses depois, um jovem “lavrador”, de apenas 17 anos, morria num acidente na estrada do Monteiro, na altura de Campo Grande. Ele viajava no bonde que ligava este bairro com a localidade de Ilha de Guaratiba, onde morava.67 A freqüência com que lavradores de Guaratiba iam a Campo Grande também é confirmada por um texto enviado por um “leitor de Guaratiba” à Seção de Cartas do Imprensa Popular em 1955. Nele o missivista reclamava da falta de transporte nas diversas localidades do distrito, “principalmente à noite”, pois os bondes paravam às 9 horas, prejudicando “estudantes e lavradores”.68 Não se pode deixar de destacar o papel exercido pelas festas tradicionais da região como um elemento que impulsionava a ligação entre as diversas localidades. Alcebíades da Rosa nos conta que havia em Sepetiba, sempre no meio do ano, a festa consagrada a

67 68

Diário Trabalhista, 08 de abril de 1953. p. 3. Imprensa Popular, 12 de agosto de 1955. p. 4.

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São Pedro, padroeiro dos pescadores. Tal evento, que ocorria sempre num domingo, tinha sua programação divulgada “por todo o antigo Sertão Carioca”. “Pescadores, lavradores e familiares compareciam à festa impecavelmente vestidos (traje passeio completo), para homenagear o padroeiro”. Muitos iam ao “grande evento” para pagar promessas por graças alcançadas, mas talvez os grandes atrativos fossem mesmo a música, os “fogos espocando a todo instante”, regata, procissão marítima e havia ainda, como não poderia deixar de ser, “intenso movimento nas barraquinhas, com suas ofertas de bebidas e guloseimas”. A festa tinha se tornado uma verdadeira tradição, “a ponto de, praticamente, não necessitar de publicidade para divulgá-la”. Com isso, “não só os moradores do Sertão Carioca, mas também os do Distrito Federal e os dos municípios vizinhos acorriam em massa” ao evento. Eles vinham de Campo Grande, Pedra de Guaratiba, Areia Branca, Santa Cruz, Itaguaí, Itacuruçá, Mangaratiba e Angra.69

Pescadores fazendo a limpeza de um canal no Recreio dos Bandeirantes, na década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Não se pode negligenciar tampouco o papel das próprias igrejas espalhadas nas localidades da região, ponto de reunião e encontro, às vezes de confabulação e 69

ROSA, Alcebíades Francisco da. História de Sepetiba. Rio de Janeiro: s/ed, 1995.. pp. 51-3.

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mobilização sempre importante junto aos grupos camponeses. Que ocasião singular para por o “papo em dia” com os companheiros, amigos, vizinhos e “irmãos” senão antes, depois e, para contrariedade dos sacerdotes, durante os cultos, das missas e dos demais eventos religiosos. Às vezes era na igreja que um “lavrador” tomava conhecimento do que estava se passando com outros lavradores de uma localidade próxima ou mais distante. Podia ser na Igreja que as pessoas fossem alertadas pela primeira vez sobre as tentativas de um “tal grileiro” que queria tomar as terras “da gente”. Era na Igreja, ao menos isso era possível, que talvez muitos lavradores tivessem contato com o advogado que iria defender nos tribunais a sua causa, os seus direitos.70

Realengo, mesmo sendo ainda eminentemente agrícola na década de 1950, já contava com alguns serviços urbanos. Aqui uma jovem falando ao telefone, provavelmete num bar ou numa prédio público. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Havia na região várias igrejas católicas, muitas datando do período colonial, como a de São Salvador do Mundo em Pedra de Guaratiba, a Igreja Matriz de Campo Grande, a Igreja

70

Tal fato não foi incomum no agreste Pernambucano e mesmo na Baixada Fluminense, conform se deduz pelo relato de um antígo líder camponês, José Pureza. Exemplos disso abundam em Capitão Swing, de Eric Hobsbawm e George Rudé.

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Nossa Senhora da Pena em Jacarepaguá e outras igrejas menores. Havia também as “evangélicas”, construídas a partir do início do século, mas cujo crescimento se intensifica a partir de meados do mesmo, na esteira da expansão urbana na zona rural da cidade. Destaque para o fato de que por essa época, as denominações que se destacam com a construção de templos na região são as igrejas Batista e Assembléia de Deus. Havia um outro fator, talvez o mais evidente, que impedia que o pequeno lavrador vivesse isolado: a expansão urbana que se configura a partir da década de 1940 intensificaria o contato dessas localidades com o subúrbio e a zona urbana, em que pese os persistentes problemas do sistema de transporte na região (fato até hoje lamentado nas áreas mais “afastadas”). E a partir dela, não eram somente os pequenos lavradores que iam para a “cidade”, como de certa forma o inverso acontecia. A pronta constituição de alguns loteamentos modificou o perfil da população que habitava essas áreas. Amélia Nogueira notava que havia em Vargem Grande, ao longo da estrada dos Bandeirantes, uma crescente concentração de habitações de “indivíduos que não exercem atividades agrícolas e que trabalham fora da zona, em fábricas, hospitais de Jacarepaguá e mesmo do Rio de Janeiro”.71 Seriam eles, segundo Maria Galvão, funcionários públicos, marceneiros, pedreiros, militares, “morando em terras de propriedade dos pais ou sogros que foram lavradores na região”. 72 Em certos casos talvez fosse mais provável que o pequeno lavrador tivesse como vizinho “o comerciante, o operário, o doutor ou o coronel dono de bela residência de verão” do que um colega seu da lide na “roça”.

71 72

NOGUEIRA, Amélia Alba. Op. cit. p. 69. GALVÃO, Maria do Carmo Correa. Op. cit. p. 57.

123

Aspecto de uma “venda” em Vargem Grande. GONÇALVES, Ayrton Luiz. Barra da Tijuca, o lugar. Rio de Janeiro: Thex Ed., 1999. p. 66.

Mas não poderíamo finalizar esse artigo sem antes nos remeter novamente a Eric Wolf. E o fazemos na forma de uma questão que agora colocamos: até que ponto essas circunstâncias e fatores que mantinham o pequeno lavrador em contato com o que acontecia fora de sua localidade, influenciariam a forma e a direção de seu movimento de luta pela terra? As informações obtidas não são suficientes para que possamos ensaiar aqui respostas definitivas. Conforme assinalado anteriormente temos como estabelecer uma leitura aproximada sobre este processo, não mais do que isso. Mas as semelhanças em relação ao que se verificaria com movimentos de lavradores de outras regiões permitem que se formule algumas hipóteses. A primeira é de que boa parte da luta pela terra no Sertão Carioca deveu-se aos impactos ocasionados por uma expansão imobiliária sem controle e critérios, que se apoiava inclusive no açambarcamento de terras de milhares de pequenos lavradores. Fato esse que acarretou decisivamente na desarticulação do contexto de relações desses agentes. E o plano de existência cotidiana destes – ou sua “ambiência social” - não se reduzia às ligações com outros bairros da região; ele alcançava além de outras localidades, bairros ou freguesias, a própria “cidade”. E isso passa a ser intensificado a partir da década de 1940 com as ligações com militantes políticos e com outros movimentos sociais. Ou seja, temos a introdução aí de claros elementos de politização de um grupo social determinado. A segunda hipótese,

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diretamente relacionada àquela, é que havia não uma oposição e sim uma complementaridade entre formas “tradicionais” de sociabilidade e as “modernas” formas de representação política: a participação em eventos nas igrejas e templos, o comparecimento às festas tradicionais, a conversa “fiada” na porta da venda, a bebericagem com amigos no balcão do botequim, e tantas outras práticas, podiam dar ensejo à constituição de importantes redes de informação, de troca de idéias, de discussão sobre estratégias e de iniciativas – no sentido de “qual deve ser o nosso próximo passo?” -, de articulações necessárias à mobilização de interesses e esforços dos pequenos lavradores – dessa classe que assim se consolidava, que assim formulava uma consciência sobre si – em defesa de seu direito às terras do Sertão Carioca.

Trabalhadores da Fazenda da Restinga, na Barra da Tijuca, 1951. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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Nesse sentido, tal classe não revelava sua existência apenas por meio da luta, do conflito aberto e dramático, das apoteóticas manifestações no “centro da cidade”, nos discursos presentes nos documentos sindicais, nas tentativas de arrebatar o apoio ou a simples comoção da opinião pública. Mas ela também ganhava concretude no sentimento de comunhão que se experimentava ao compartilhar com o outro o espaço da reza (ou da oração...), da festa, da bebida, da comida, do descanso, ou simplesmente o espaço em que se parava para “falar da vida”, para conversar sobre o que esperar do próximo amanhã de uma vida em comum que evidenciava que o outro era, na verdade, um igual.

CORRÊA, Magalhães. O Sertão Carioca. Rio de Janeiro: Edição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1936. p. 88.

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Capítulo 4 As Crises (econômica e moral) que assolavam o Sertão: a construção de identidades

O Ser “Grileiro”

A antiga zona rural do Rio de Janeiro perfazia mais de 60% do território do município. Quando ela foi denominada oficialmente de Zona Oeste, no final da década de 1970, ela começava a experimenta um intenso processo de crescimento demográfico e de expansão de bairros populares, bastante precarizados. Desde essa época, a região se deparava com um tipo de urbanização extremamente desigual e contraditório: quanto mais se expandia, mais precarizado se tornava. Mas tudo isso se torna melhor compreensível quando recuamos no tempo histórico de modo a observar como se desenrolou o processo que “preparou” a região para o avanço da expansão urbana sob uma modalidade tipicamente brasileira, conjugando, supostamente, elementos modernos e arcaicos da vida social. E tal processo diz respeito a desaparição das atividades agrícolas da região, retirandolhes os componentes que faziam dela uma zona rural, que fazia dela o “cinturão verde” do antigo Distrito Federal. O período mais intenso desse processo de desintegração agrícola teria se dado entre as décadas de 40 e 60, tendo nos governos de Carlos Lacerda e Negrão de Lima o seu ápice. Aos quais corresponde a implantação de conjuntos habitacionais, zonas industriais, expansão da malha viária, explosão da indústria automobilística e planos de ocupação, como o previsto no de autoria de Lúcio Costa. Tudo isso foi muito bem estudado por vários pesquisadores desde o início da década de 80. Muitos deles lotados no Instituto de Planejamento Urbano e Regional (UFRJ). Estudos esses que contribuiram com vários elementos e dados sobre esse processo de transição do perfil rural para o urbano.

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Mas tal conjunto de pesquisas guardava um grande problema: a sua tendência em analisar tal processo como expressão de um embate entre o moderno e o atrasado, o complexo e o primário etc.1 E, talvez, pior: tudo teria se passado como se a urbanização fosse um fenônmeno inexorável. Um destino inescapável, em função da demanda por terra por parte do mercado imobiliário urbano, ditado por grupos empresariais. O enfoque me parece equivocado, por vários motivos. Mas diante das limitações da presente exposição, limitar-me-ei a debater duas delas: 1º) tal enfoque ignora as resistências a tal processo de urbanização, seja dos representantes do “atraso”, seja de segmentos das camadas urbanas da cidade; 2º) ele padece de um terrível vício dualista, como se o processo pudesse realmente ser visto como um embate entre tipos sociais puros, sem conseguir vislumbrar nesse mesmo cenario formas de coexistência e retroalimentação entre eles. A meu ver, a falta do uso de conceitos mais consistentes contribue para uma visão bem menos problematizante. Um desses conceitos ausente é o de Acumulação Primitiva (AP). Francisco Oliveira recorre a ele na análise que faz sobre as transformações da economia brasileira operada em meados do século XX, de uma base agrícola para a uma base industrial. No seu entnder junto a fatores como a legislação trabalhista e a inervenção do governo na economia, o mudança de perfil da agricultura seria crucial para

1

São representativos dessa visão os seguintes estudos: BRITTO, Ana Lúcia Nogueira de Paiva. Novas formas de produção imobiliária na periferia: o caso da Zona Oeste. Dissertação de Mestrado apresentada ao IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 1990; FRIDMAN, Fânia. “Os donos da terra carioca: alguns estudos de caso”. In: Anais V encontro Nacional da ANPUR. Belo Horizonte, agosto de 1993, vol.2; GARCIA, Cid Sant’Ana. Associação de moradores e movimentos reivindicativos no município do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado apresentado a COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro,agosto de 1981; LAGO, Luciana Corrêa do.Movimento de loteamentos do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado apresentado ao IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 1990; MIRANDA, Mariana Helena Souza Palhares.Crescimento Periférico da cidade do Rio de Janeiro: padrões espaciais de ocupação residencial.Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Geografia da UFRJ, Rio de Janeiro,dezembro de 1976; PECHMAN,Robert Moses. Formação histórica da estrutura fundiária na Zona Oeste do Rio de Janeiro e na Barra da Tijuca. Relatório de Pesquisa, IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987; RIBEIRO, Cláudia Tavares. Da questão urbana ao poder local: o caso da Barra da Tijuca. Dissertação de mestrado apresentada ao IPPUR/UFRJ,Rio de Janeiro, 1990; SOUZA, Maria Alice Martins de. Barra da Tijuca e Jacarepaguá: uma forma particular de loteamento irregular. Dissertação de mestrado apresentada ao IPPUR/UFRJ,Rio de Janeiro, dezembro de 1995. Para SOUZA, M. A. M, a Zona Oeste ao se transformar em um vetor de expansão urbana acabou “desalojando assim os produtores agrícolas que não tinham direito sobre a terra, na medida em que eram, na sua maior parte, parceiros, assalariados ou arrendatários” ( op. cit.,p.20). Ainda segundo Ana Britto os lavradores que mais sofreram com a expansão dos loteamentos sobre a zona rural foram os arrendatários e posseiros, pois que praticavam uma “forma precária ou itinerante” de agricultura devido ao fato de “não terem direito sobre a terra”(op. cit., p. 52.)

128

a efetivação daquela transformação. E Oliveira busca entender tal aspecto justamente a partir do conceito de AP. Porém, ao contrario do quadro descrito por Marx no caso inglês, no Brasil o que se expropria não é a propriedade (pelo qual se expropria o campesinato) e sim o excedente produzido pela agricultura de subsistência, levado à frente geralmente por arrendatários ou posseiros, e quase raramente por pequenos proprietários e nunca por camponeses.2 E uma segunda diferença reside no fato que a acumulação primitiva não se dá na gênese, mas ela é estrutural no caso brasileiro: não é apenas um ponto de partida, mas um processo que se desenrola em paralelo à consolidação e expansão do capitalismo no país. A exploração de elementos ditos “arcaicos” da agricultura de subsistência são vitais para a reprodução da agricultura moderna, capitalista, dirigida ao abastecimento do mercado interno urbano em expansão e ao próprio mercado externo. Tal agricultura é fundamental para o modelo de economia industrializada que se consolida no Brasil. E foi isso que se observou em casos os setores agrícolas do Norte e Oeste do Paraná, Goiás, Mato Grosso, Maranhão e a área atravessada pela Belém-Brasília. Mas ao passarmos para o “caso carioca”, veremos mais especificidades. A expropriação dos pequenos lavradores da zona rural não se dá sobre o excedente (não prioritariamente, a não ser por parte dos intermediários por meio dos preços) e sim sobre o controle do uso sobre o lote de terra agrícola. Tudo porque a expropriação desses agentes não visa implantar uma economia industrial ou “modernizar” a agricultura, mas tornar a região uma fronteira aberta para a expansão imobiliária baseada na construção de moradias de tipo urbano. Contudo, tal processo não se deu de maneira pacífica, como um mero desdobramento econômico de teor técnico, e nem sem resistência. Muito pelo contrário: a violência empregada para a tal expropriação e a luta de muitos daqueles pequenos lavradores foi uma tônica dos eventos que daremos destaque abaixo.

2

OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista. O ornintorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 43 e passim.

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No início da décdada de 1960, o clima em algumas áreas do Sertão Carioca (e no interior do estado do Rio) era explosivo. Fonte: Última Hora.

As “questões de terra” do Sertão Carioca Vimos que a expansão urbana sobre o Sertão Carioca que passa a se consolidar na região em meados do século, alterando quase que radicalmente a sua paisagem, tanto social quanto geográfica, implicaria em novas representações sobre a região, especialmente por parte da imprensa. Mas a própria maneira com que a região era percebida implicava também na produção de novos agentes sociais e na reconfiguração de antigos. Tal fenômeno se tornava bem visível quando se discutia o que eram, afinal, os

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grandes “males” da lavoura carioca: a expansão dos loteamentos que tinha por base as práticas de grilagem e a prejuízos impostos pelo comércio de gêneros alimentícios. Num processo de discussões e disputas que envolveu a imprensa, autoridades políticas e os próprios grupos de lavradores veríamos a construção das identidades dos grupos mais diretamente envolvidos com a prática e os efeitos de tais “males”: “posseiros”, “grileiros” e “intermediários”. Vejamos como isso se deu.

Última Hora, 10/04/1963, p. 7.

Para aqueles que viviam no Sertão Carioca em meados do século XX, o problema envolvendo disputas pela posse da terra não era – e nem podia ser – encarado como uma novidade. Conforme atesta Fania Fridman era muito comum desde o século XVIII as brigas entre pretensos proprietários (Ordens religiosas como os Beneditinos e Carmelitas, grandes fazendeiros, etc) e entre esses e a Coroa ou a municipalidade. Na região do Engenho da Serra (Bangu) por exemplo, Dona Anna, esposa de um Sargento-Mor do século XIX, “procurou expandir seus domínios através de processos judiciais, ameaças e agressões aos pequenos sitiantes e posseiros das terras próximas e/ou pertencentes à sua fazenda: Izidoro Pereira dos Santos e seu genro, Manuel Proença, tiveram suas casas destelhadas, seus pertences jogados fora e os escravos dispensados”.3 Em 1814, a Irmandade do Santíssimo Sacramento solicitava o tombo de suas terras na Barra de Guaratiba alegando “que no mato, onde ficava a divisa da propriedade, havia muitos intrusos.”4

3 4

FRIDMAN, Fânia. Os donos do Rio... , p. 154. idem. p. 175

131

Imprensa Popular, 22 de maio de 1952, p. 4.

Poderíamos citar vários outros exemplos, todos envolvendo os mesmo aspectos. Mas uma em particular indicava para uma importante característica da estrutura fundiária da zona rural carioca: a tentativa dos pretensos proprietários de sempre expandir o seu domínio valia-se, entre outras coisas, da indefinição jurídica daquelas terras. Havia por isso mesmo muita confusão em torno da discriminação do que era terra pública e terra privada. Tudo isso somado possibilitava que o recurso à grilagem de terras se tornasse um procedimento recorrente por parte dos pretensos proprietários. A extensão de tal prática era tão evidente que seriam reconhecidos pelos próprios poderes púbicos.

5

Tal quadro

ganharia novos contornos no século XX.

Última Hora, 30/11/1961, p. 7. 5

MOTTA, Márcia Maria Menendes. “A grilagem como legado”. In MOTTA, Márcia e PIÑEIRO, Théo Lobarinhas(orgs). Voluntariado e Universo Rural. Niterói: Vício de Leitura: 2001. p. 80.

132

Desde o início era bastante tensa a situação envolvendo colonos e “posseiros” (acusados de invasores) na Fazenda Nacional de Santa Cruz, de propriedade da União. Tal situação atravessaria praticamente todo o século (até da década de 80 para ser mais preciso).

Última Hora, 08/04/1963, p. 11.

Ao acompanharmos passo a passo o desenrolar de alguns desses conflitos ao longo dos anos de toda a década de 50 e início do de 60, é possível observar vários pontos em comum nas estratégias postas em prática por agentes imobiliários de modo a realizar o despejo dos lavradores.

Imprensa Popular, 1954.

133

PEDRA DE GUARATIBA: “Uma história de muitos anos”

Em julho de 1951, a grande e pequena imprensas noticiavam, com grande alarde e preocupação, a situação vivida pelos posseiros de Pedra de Guaratiba, cuja história, segundo O Radical, remontava aos “Tempos Coloniais”. Numa série de reportagens intitulada “Vai correr sangue”, o jornal afirmava que apesar de terem pertencido a vários proprietários, as terras que abarcavam a Fazendas da Pedra e Campo de Criação pertenciam ao domínio da União naquele momento. Porém, isso não impedia que Pedro Moacir, “o maioral dos grileiros”, tentasse “um inominável atentado ao direito de trabalhar, lesando a fazenda pública” e se apossando de terras pertencentes a esta. 6 Contudo, um funcionário da loteadora de Pedro Moacir afirmava no Diário Trabalhista (de propriedade do mesmo) que se tratava na verdade “de um empreendimento arrojado”. Explicava César Gusmão, o “funcionário abordado” pelo jornal, que o loteamento se dividia em duas partes: numa área, a “residencial”, seriam construídos 4.500 lotes, na outra, “300 sítios com dimensões variáveis”. Mas os lavradores contra-argumentavam dizendo que Moacir queria mesmo era transformar “a terra que lhes pertence(...) em lugar de Veraneio, de ‘weekends”. O que lhes soava como um absurdo, até porque, dizia José Sena: “Se terminar a agricultura, termina tudo. Ninguém come casa de verão! Ninguém come banho de mar! E nem dinheiro. A gente come é legumes, feijão, laranjas, carne. Se começar a fazer cidades do campo, vamos acabar comendo máquinas. ”7

Imprensa Popular, 22 de maio de 1954.

6 7

O Radical, 17/07/1951. p. 2. O Globo, 07/07/1951. p. 1.

134

E segundo a imprensa Moacir não agia sozinho, tinha junto a ele “testas-de-ferro”, os senhores Ervin Reinnert, Rodrigo de Queiroz Lima ( “homem perverso, responsável por despejos ilegais e desumanos”), Clemente Ferreira dos Santos, Elias Neves, Cia. Covanca, Cia Garrido, Dr. Marcelo, Georgino Avelino e Godofredo(”seu sócio”). Ainda segundo o jornal, os “assaltos” do “grileiro-mor” tinham requintes de crueldade: tinha sido aberta uma rua por cima dos laranjais e outras lavouras, “com ajuda de tratores pesados”. Todo o “serviço” era “vigiado por uma capanga”.8 Alguns lavradores chegaram a ser despejados. Um deles, Joaquim de Souza, “há 23 anos” naquelas terras, disse que o expulsaram de sua casa à noite, debaixo de chuva, tratando-o como se fosse “um ladrão ou malandro”. Além do uso de tratores, Pedro Moacir teria realizado o represamento da água, alagando os terrenos próximos. E os policiais de Guaratiba nada faziam para detê-lo “e a conseqüência”, escrevia atônito o jornal, “é essa barbaridade que estamos vendo no Sertão Carioca”. No entanto, apesar de toda gravidade envolvida, as violências praticadas contra os lavradores não resultavam em uma expulsão automática. Muito embora, Pedro Moacir fosse retratado como uma pessoa extremamente poderosa, contando com a ajuda de inúmeros “testas-de-ferro”, “capangas” e até com a conivência da polícia, o jornal reiterava que os lavradores continuavam resistindo aos “ímpetos gananciosos do proprietário” e não abandonariam “assim facilmente” aquelas terras.

8

O Radical, 19/07/1951. p. 1.

135

Última Hora, 13 de setembro de 1952.

Talvez tivesse certa razão. Quase um ano depois, os lavradores permaneciam lá, em que pese suas alegações sobre a crescente precarização das condições de vida e trabalho: além de continuar a aterrar o córrego por onde eram escoadas as águas das chuvas, os laranjais eram incendiados a mando de Pedro Moacir; “com a desculpa de plantar eucaliptos”; teria ainda conseguido verbas na Prefeitura para o custeio de terraplanagem e loteamento da área. Da mesma forma que no ano anterior, Pedro Moacir tentava provar o seu domínio sobre as terras com base na exibição de escrituras ilegais, notificações e também no uso de capangas. Fato que contava com a cumplicidade de “elementos do Governo”, “que estariam garantindo a ação dos malfeitores encasacados”.9 Em abril do ano seguinte, Pedro Moacir teria designado três agentes da Policia Especial para “espalhar terror entre posseiros da Pedra de Guaratiba”. Segundo alguns 9

O Radical, 13/05/1952, p. 6.

136

lavradores, eles percorriam a localidade num carro preto; um deles, teria declarado que Pedro Moacir o instituíra como “fiscal” daquelas terras. Alguns lavradores, além de terem sido ameaçados, disseram que suas casas tinham sido “invadidas”. Entre os ameaçados, havia pescadores, que diziam possuir “títulos de posse” concedidos pela Marinha. Apesar disso, sofriam com “o temor de perder suas terras e com a presença da Polícia que dava guarita à violência contra eles”. Em outubro de 1953, era novamente notícia a resistência dos lavradores de Pedra Guaratiba em não deixar aquela área. Uma “comissão” que os representava teve uma audiência com o prefeito no exato momento do despacho com o secretário de agricultura João Luiz de Carvalho. Pediram “providências do governo contra os despejos em massa”, que vinham “recrudescendo na zona rural, pela avalanche imobiliária”. Segundo palavras d’O Popular, o prefeito teria respondido que sentia “profundo respeito pela causa dos lavradores”, tanto assim, que a municipalidade já estudava um meio para “sustar esses despejos”, que afetavam não só aos lavradores como “à produção do DF”. Mas essa comissão - vale destacar - era também constituída pela “representação” de lavradores de outra região, a da Fazenda Piaí. Ali, a “avalanche imobiliária”, tal como em Pedra de Guaratiba, estava criando uma situação merecedora de “constante e atenta preocupação”.

FAZENDA PIAÍ: uma terra fértil acima de tudo

No dia 18 de abril de 1952, o prefeito da capital federal era obrigado, em meio a tantos despachos, a receber em seu gabinete uma “gente modesta, digna de todo apôio da municipalidade”.10 Era uma comissão que representava lavradores e pescadores da Fazenda Piaí, “antiga Fazenda Real”, que trabalhavam “ali há muitos anos”. Sua principal reivindicação era a desapropriação daquelas terras. Na verdade, desde 1947, era de amplo conhecimento a situação dessa área, onde “dezenas de agricultores e pescadores” estavam “sendo expulsos de uma terra onde os seus pais nasceram e onde já possuem netos” - ao menos é o que dizia o udenista Breno da Silveira, numa das sessões da Câmara Municipal em 1947. Em 1953, voltava às páginas dos jornais as tentativas de “tubarões da O.S.A”(uma cia. imobiliária) e do Banco Lopes (de propriedade dos irmãos Lopes) em “roubar as terras de

10

Diário Trabalhista, 19/04/1952. p. 3.

137

lavradores”.11 Esses irmãos Lopes seriam também, segundo aquele mesmo vereador, “antigos banqueiros do bicho”. O argumento que os lavradores usavam para legitimar sua posse era em muito semelhante ao dos lavradores de Jacarepaguá na década de 40. Afirmavam que as 8 léguas quadradas da fazenda eram imprestáveis antes da sua chegada, “verdadeiros brejos”, que foram saneados por eles “há 20 anos” – outros diziam lá estar há 40 anos - e transformados “em lavouras que abastecem em grande parte o mercado do DF”. O mato tinha dado lugar a plantações de laranjas, eucaliptos, fruta-do-conde, coqueiro-anão etc. Além de terem chegado antes dos “tubarões” e tomado posse das terras em condições tão inóspitas, os lavradores alegavam que suas atividades eram realizadas em prol da coletividade de toda a cidade. Dessa forma, os lavradores se apropriavam da imagem de uma zona rural abandonada e decadente para respaldar suas pretensões frente à “cobiça” da Cia. Imobiliária. Um dos lavradores dizia ao repórter do Imprensa Popular: “ - Veja o senhor que ninguém fez nada pela gente e agora que estas terras melhoraram todos ficam de ‘olho grande’ em cima delas”. Do mesmo modo, o jornal reafirmava - dizendo, para isso, basear-se em depoimentos dos lavradores – sua certeza na existência de um padrão de ação (ou de ataque) dos pretensos proprietários para desestabilizar o sistema de vida das famílias de lavradores: “Os métodos de que se serve a empresa [a O.S.A.], em nada diferem dos usados por tantas outras: intimidação, violências, invasão de terras, aos quais os camponeses vêm resistindo heroicamente.”

11

Imprensa Popular, 14/08/1952. p. 8.

138

Imprensa Popular, 14 de agosto de 1952.

Depoimentos como o de Benedito, lavrador na área “há cerca de 10 anos”, só vinha reforçar isso: numa sexta-feira de 1955, teria sido vítima de um “despejo sumário” de uma pequena área “que ocupou” na Fazenda Piaí. Dois oficiais de justiça acompanhados de vários praças da PM o despejaram. Sem ter tido “tempo de apanhar nada, saiu com a roupa do corpo”. “Tentou suicídio” - declarou – mas “foi impedido pelos vizinhos”. Procurou um vereador, o pessedista Osmar Resende, para contar tudo. Poucos meses antes, os “grileiros” teriam “espancado” uma lavradora e, não satisfeitos, obrigara-na a assinar um documento no qual declarava ser “simples intrusa” daquela terra.12 Em fins de 1956, os irmãos Lopes teriam preparado uma “lista negra” com o nome de alguns

12

Imprensa Popular, 02/11/1955. p. 4.

139

lavradores. E para mostrar que não era uma simples intimidação, teriam “tomado” a casa de um ancião.13 “Heróico” ou não, o certo é que a O.S.A. e outros “tubarões” eram obrigados a lidar com vários esforços de alguns lavradores para não deixarem as terras. Às medidas judiciais somavam-se iniciativas de cunho político, como pedidos de audiência com vereadores e autoridades da prefeitura. Foi exatamente isso que fizeram, quando junto com lavradores de Pedra de Guaratiba, foram ter uma audiência com o prefeito. Ou quando foram à Câmara Municipal em novembro de 1955 para pressionarem os líderes das bancadas a assinarem um projeto de desapropriação da área. Um ano depois, eles “estudavam” a possibilidade de fazer uma “visita a diversas autoridades” de modo a agilizar o trâmite do processo que moviam contra os pretensos proprietários através do Instituto Nacional de Imigração e Colonização.

Imprensa Popular, 18 de agosto de 1953.

CURICICA: lavradores e “lavradazes” na “fortaleza inexpugnável”

13

Imprensa Popular, 06/12/1956. p. 3.

140

O nome, digamos, oficial dessa área era Fazenda Santo Antônio de Curicica (Jacarepaguá). Os primeiros embates entre lavradores e pretensos proprietários a chamar a atenção da imprensa datam do início da década de 50. Em 1952, por exemplo, os senhores Júlio César Fonseca e Gustavo de Carvalho (pretensos proprietários) conseguiram uma ordem de despejo contra cerca de 120 famílias que, assim diziam, trabalhavam ali há mais de 30 anos. Outra exigência foi encaminhada ao prefeito no sentido de que esse designasse uma comissão composta de três engenheiros para proceder ao “levantamento da área”. A luta desses lavradores era bem mais antiga: há 17 anos pelo menos, muitos deles vinham depositando as taxas de arrendamento em juízo. Em 1947, a Cooperativa de Agricultores de Jacarepaguá e a Liga Camponesa de Vargem Grande já mobilizavam esforços para tratar da “ameaça de expulsão” de 46 lavradores na Fazenda Curicica. Mas nesse momento, as salas dos tribunais já não eram suficientes para comportar por inteiro os embates entre os lavradores, que se diziam responsáveis pelo abastecimento de 40 toneladas diárias de legumes, frutas e verduras aos mercados do DF, e os “grileiros” Júlio César Fonseca, Luiz Saddy, o Banco de Crédito Móvel, a Cia. Bandeirantes e o Banco de Crédito Territorial, acusados de se valerem “de documentação falsa e de outros meios escusos” para satisfazerem seus intentos - afirmava o’ Radical em 1954. “A luta pela posse da terra está mais acêsa e mais violenta em Jacarepaguá” – noticiava com certo entusiasmo o comunista Imprensa Popular em julho de 1954. Lendo as declarações de alguns lavradores, é possível perceber que as disputas em torno da posse da terra já não tinham o recato e comedimento exigidos por uma disputa jurídica. Ao contrário, os últimos acontecimentos davam força à idéia da história de Curicica como tendo sido feita “de sangue, violências e desumanidades”. O depoimento de Raimundo Nonato, que “ali chegou há 27 anos”, é emblemático: tudo era mato e mosquito. Secamos o charco e saneamos a restinga. Lavramos, plantamos e logo chegaram os ‘donos’ da terra, um tal de ‘seu’ Fonseca e outro de nome Sady, dono de casas de seda, maiorais da Fazenda de Curicica. Meu cunhado, o João Francês, foi expulso do sítio que plantou durante 22 anos e muitos outros tiveram de sair. Já por duas vezes quiseram me expulsar sem pagar as benfeitorias da terra. Mas eu os toquei à bala. Daqui só saio morto, porque a terra é nossa, nós a saneamos, somos nós que plantamos. 14

14

Imprensa Popular, 03/02/1955. p. 8.

141

O aumento da violência era atribuído por lavradores e imprensa à aplicação de uma tática agressiva por parte dos pretensos proprietários. Segundo nos conta o Imprensa Popular, em meados dos anos 50 “o grileiro César Augusto da Fonseca conseguiu trampolinescamente(sic) ampliar uma área de 535 mil para quase 5 milhões de m² a poder de tapeações, crimes e tocaias”. O curioso é que mesmo reconhecendo que pagavam arrendamento, os lavradores se auto-intitulavam “posseiros”. Como tais, eles teriam resistido ao despejo provido por J.C.Fonseca em 1952 e “obrigado” o secretário de Agricultura a comparecer “diante deles” e “prometer a desapropriação da fazenda”.15 Outros, diziam ser posseiros desde o início, afirmando ter ocupado as terras objeto de disputa como autênticos desbravadores. Ana Hardy, “uma das vítimas do Banco de Crédito Móvel”, que junto com seu marido morava “lá há 25 anos”, dizia que aquela área era uma “floresta indevassável” antes da sua chegada, tomada por mosquitos, cobras, jacarés; só depois de “árduo trabalho” conseguiram transformar aquilo em “chácara”. Mas o termo posseiro traduzia não apenas uma condição formal, uma determinada relação jurídica com a terra, mas igualmente um certo modo de vida, ao qual estava inextricavelmente ligada uma série de concepções e valores morais que norteavam o entendimento dos lavradores sobre coisas como terra e trabalho. Contrapostos à suposta personalidade dos pretensos proprietários, que eram donos de Companhias Imobiliárias, verdadeiras “arapucas”, que ante a resistência dos lavradores, lançavam “mão dos mais diferentes ardis”, que tentavam dar “golpes”, vendendo lotes “inexistentes em terras que não” lhes pertenciam, os “posseiros” possuiriam, segundo eles e a imprensa, os requisitos não apenas formais (ocupação efetiva com das áreas, com antecedência em relação aos pretensos proprietários, há vários anos e de forma mansa e pacífica) como também possuíam qualidades morais e éticas capazes de legitimar as suas pretensões: “São [os “posseiros”] chefes de família, são brasileiros que trabalham de sol a sol para amenizar a fome do povo”, e que “por isso”, vaticinava O Radical, “merecem o que pleiteiam: a regulamentação de posseiros, dentro do que preceitua a lei”.

15

Imprensa Popular, 30/08/1952. p. 4.

142

Posseiros de Curicica na redação do jornal Última Hora, 11/10/1954. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Logicamente, essa, não era a opinião de Etienne Brasil, advogado de um dos pretensos proprietários – César Fonseca, que junto com seus filhos Celso Guimarães Fonseca e Cibele Guimarães Fonseca Vaz de Carvalho, eram, na visão do advogado, os “únicos donos” da área. Para E.Brasil, tinha havido sim “um verdadeiro complot de elementos de várias espécies para assaltar com violência a grande propriedade”. Convicção que se devia ao fato deles estarem amparados por “títulos transcritos” e “posse perpetuada” através de “arrendamentos diminutos” a antigos sitiantes. A disputa pela fazenda Curicica não era apenas entre pretensos proprietários e lavradores. Para E.Brasil a fazenda tinha ganho status de “fortaleza inexpugnável” depois de ter resistido “ás tentativas de esbulhos (...) ensaiadas por grileiros e ambicionantes”, especialmente o Banco de Crédito Móvel. Este estaria “por vingança pela sua derrota”, semeando “dúvidas entre os sitiantes ignorantes”, fazendo com que alguns deles acionassem os clientes de E.Brasil na justiça.

143

Última Hora, 05/04/1963, p. 5

No entanto, embora os custos financeiros dos processos movidos contra o referido banco fossem consideráveis, o que causava maior contrariedade naquele momento eram, sem dúvida, as “audaciosas tentativas” de “agitadores, que infestam, de alguns anos para cá, o território nacional”.

144

Os conflitos no Sertão Carioca em meados da década de 1960. Fonte: Luta Democrática.

Um dos caminhos usados pelos “agitadores” teria sido “incitar os ocupantes a deixarem de pagar aluguéis e a não reconhecerem mais os donos. Pelo seu slogan, pois, ‘a terra pertence a quem trabalha’. Os donos legítimos, com justo título e registro embora (sic), seriam ‘grileiros’”. João Hardy teria sido um dos que, “açulado pelos agitadores”, 145

não quis mais pagar as prestações. E mais do que isso: “Durante a protelação, a mulher de Hardy [a já citada Ana Hardy]lavava roupas para pagar mensalidade ao advogado protelante”, revelava E.Brasil. Á linguagem moral ou “slogan” dos “posseiros”, o advogado contrapunha uma linguagem pretensamente objetiva e auto-evidente, baseada em – como ele mesmo dizia – “muralhas judiciárias intransitáveis”. O “direito” e a “justiça” de suas alegações emanariam dos artigos do código civil e dos votos e pareceres dos juízes, e não do fim social ou da concepção de terra que tinham os pretensos proprietários. Objetava ainda E.Brasil que nem mesmo a lei cogitava da existência do “posseiro”, o que só vinha confirmar a “injustiça” das pretensões dos “intrusos”(era assim que designava os “posseiros”). Além disso, o advogado procurava sublinhar as contradições presentes na estratégia de defesa do advogado dos lavradores, pelo qual “arrendatários”

se

auto-proclamavam

“posseiros”.

“Viciaram-se

os

lavradores

arrendatários em falar de ‘uma posse’ e transigirem com a ‘sua posse’, imaginaria. Inquilino só tem posse delegada. Intruso, nenhuma justa.”16 O que lhe permitia dizer, de forma inquestionável (ao menos assim pensava): “O Banco de Crédito Móvel é, pelo menos, confrontante. Os agitadores e empreiteiros assalariados não são nada”.

Última Hora, 06/04/1963

16

Para ver como a argumentação sobre a identificação de “confrontantes” servia como instrumento de poder, no contexto do século XIX, ver MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/APERJ, 1998. (especialmente o capítulo V).

146

A.B.C: as atitudes de B.N.V

Em 1954, um grupo de lavradores, “mais de 30 posseiros”, “há mais de 40 anos” estabelecidos nas terras da antiga Granja Avícola Pastoril, na localidade de A.B.C, diziam estar sendo objeto de tentativa de despejo movida pelo senhor Benedito Netto Velasco. Este teria recebido terras de um tal major Motta “no pé da serra”, contudo foi avançando “serra acima e para os lados”, no exato local onde ficavam os lavradores e suas benfeitorias”. E se nos fiarmos nas declarações dos lavradores, podemos ver que “as atitudes” tomadas por B.Velasco eram muito semelhantes das que outras pessoas chamadas de “grileiras” praticavam contra eles pelo Sertão Carioca afora. No início de 1954, o senhor Velasco teria “recorrido à violência com ajuda de capangas”, como estampava em uma de suas páginas o Imprensa Popular: segundo o periódico comunista, além de cortarem a cerca de Francisco Martins, teriam também “perseguido” a Otávio José Medeiros, Nelson Manuel Bitencourt, Mario de Aquiles e Carlindo Bastos. Tudo porque, eles e o restante dos “posseiros”, não aceitaram as propostas de Velasco, mediante as quais tentava oferecer “16 mil” por terras que “valiam 400 mil”, e benfeitorias “de 50 mil a 5 mil”. 17 Por seu lado, Velasco teria desmentido tudo pela imprensa. O Terra livre descrevia assim a sua tentativa em esclarecer seu público-leitor do que estava realmente acontecendo: “Para os certificarmos da verdade, fomos até essa localidade falar diretamente com os posseiros. Ao saltarmos do bonde que nos conduziu até lá, encontramos um dos mais antigos lavradores do lugar, o sr. Otaviano”, que teria dito: “Trabalho há 20 anos nestas terras e nunca conheci seu dono. De um ano para cá surgiu esse senhor intitulando-se dono da terra. Do Velasco só conheço esta área próxima à estrada, que deve medir mais ou menos uns 100 mil m².”18

17 18

Imprensa Popular, 14/06/1957. p. 4. Terra Livre, 1º quinzena de setembro/1954. p. 3.

147

Imprensa Popular, 18 de junho de 1957.

Fazia questão de mostrar sua “roça”, a qual tinha “ocupada e produzindo”: media 178 mil m² e só de laranja lima tinha 1.588 pés, naquele ano já tinha colhido 398 caixas; de aipim tinha mais de 500 pés, alem de mangueiras, bananeiras, etc. Por tudo isso, o “grileiro” queria lhe “dar uma bagatela (...) como indenização”. Segundo declarações do sr. Otaviano, prontamente confirmada pelo sr. Bitunga(“também posseiro”), “um dos posseiros recebeu a miséria de 2.555,00 a título de indenização pelo seu sítio, o qual foi vendido, depois, pelo Velasco, por ... 350.000,00”.19 D.Creuza, “uma das sitiantes ameaçadas”, conta como chegou naquelas terras, as dificuldades vencidas para consolidar sua posse e o que fez com que “de uns tempos pra cá”, passasse a viver uma situação de medo: - Cheguei para este sítio em 1922, juntamente com o meu marido. Aqui só encontramos mato. Passamos as maiores privações neste lugar e aqui perdemos 3 filhos em conseqüência da água que tomavam. Mas vivíamos calmamente: até no ano passado, quando fomos intimados, os 32 posseiros, para comparecer à delegacia de polícia. Lá encontramos o dito Velasco que se intitula dono das terras. Quase fomos espancados. 25 dos Posseiros foram “indenizados” com bagatelas. Quanto a mim, o sr. Luiz Carlos* ofereceu 17.000,00 de indenização, quando só a minha casa vale 40.000,00 e isto sem contar os 800 pés de bananas, os abacateiros, as 19 *

Ibidem. Provavelmente, devia ser um representante de Benedito Velasco.

148

mangueiras, ameixas, mamoeiros etc. Eu lhe disse que só sairia daqui dentro de um caixão. Daí pra cá ele vive nos perseguindo e disse que o posseiro Nelson vai sair das terras, quer queira ou não, porque ele vai vende-las para um delegado de polícia.20

Pouco mais de um ano depois, o Imprensa Popular voltava a publicar as mesmas denúncias contra B.Velasco. Estaria “confirmada a grilagem”, segundo o jornal, pelo que dizia uma carta de um “leitor que assina Leão”. Nela estavam relatados “fatos que comprovam essa grilagem”: Um dos posseiros mais visados, o sr, Otaviano José Medeiros,(...) procurou em sua defesa o advogado dr. Juvêncio, da Colônia de Pesca da Pedra de Guaratiba. Este advogado, diz o missivista, vendeu-se ao grileiro passando a convencer Otaviano que seu constituinte devia vender sua posse avaliada em CR$ -- 400.000,00 por 80 mil, a B.V., transação essa imediatamente quitada. Como põde o grileiro Benedito comprar terras que lhe pertenciam?21

E o “leitor Leão” informava ainda que dois “cidadãos portugueses” teriam adquirido terras griladas por Velasco. “A prova de que foram griladas”, diz em sua carta, “é que Benedito Netto Velasco nunca fez promessa de venda, e nada faz para providenciar escrituras. Os portugueses srs. Manuel e Abelardo, foram ludibriados perdendo o dinheiro que deram por essas terras e a grilagem de B.N.V. fica comprovada.”

Última Hora, década de 1960.

20 21

Ibidem. Imprensa Popular, 05/06/1955. p. 7.

149

Mas dentre as conseqüências das “atitudes” de B.Velasco, que segundo declaração de um lavrador, só contribuía para aumentar a “insegurança que reina nestas terras”, havia uma peculiar em comparação com outras áreas. O que mais os preocupava era o fato daquele senhor estar acabando com “uma passagem” usada há mais de 34 anos por eles. Este caminho ligava o morro do A.B.C (onde moravam) às terras de cultivo e aos campos de pastagem. Ela era considerada um “caminho vital”, por onde os lavradores levavam “suas mercadorias às quitandas, mercados, etc.”.22 Velasco teria feito outro, porém muito mais estreito, impossibilitando a passagem de animais. Outros lavradores diziam também que esta nova passagem era três vezes maior que a antiga. Apesar das várias denúncias que circulavam contra B.Velasco, O Popular – jornal cujo proprietário era seu irmão, o senador Domingos Velasco – afirmava que as terras em questão pertenciam a ele, pois as tinha adquirido entre os anos de 1924 e 1946, “umas por compra e outras arrematadas em hasta pública”. Não só tinha direito sobre as terras, como também tinha cumprido – fazia questão de afirmar - com “todas as exigências” das leis relativas à constituição de loteamentos. Além disso, toda a documentação estaria no 9º Ofício de Registro Geral de Imóveis.23 E para aqueles que por acaso estivessem interessados em comprar algum lote ou chácara do “Loteamento Mato Alto”, todo ele servido de “luz, bondes, ônibus, lotações, escola e armazéns à porta, perto da praia”, mas que apesar disso tivesse algum receio em função daquelas notícias, B.Velasco prometia, no exato momento da compra, “posse e escritura imediata”.

MENDANHA: a origem das escrituras nada sagradas

Esta região era constituída pelas fazendas Sete Riachos, Guandu do Sena e GuanduSapê. Suas terras produziam hortaliças e verduras e, em menor escala, cana-de-açúcar, banana, laranja e aipim. A agricultura parecia ser a principal preocupação dos habitantes do lugar até o momento em que o “drama” vivido pelos “colonos” dessa região passou a mobilizar as atenções da imprensa e políticos cariocas a partir do início dos anos 50. As duas primeiras fazendas citadas tinham sido desapropriadas pela prefeitura mediante o decreto de nº 9.942 de 29 de outubro de 1949, com o fim de impedir o seu loteamento. 22

Última Hora, 27/11/1956. p. 11. O Popular, 01/11/1953. p. 5. Os anúncios do “Loteamento Mato Alto” passaram a ser veiculados quase que diariamente n’O Popular a partir de novembro de 1953 até outubro do ano seguinte, quando o jornal parou de circular. 23

150

Mas por “arte de berliques e berloques que não posso explicar, essas desapropriações foram tornadas, posteriormente, sem efeito”, lamentava na tribuna o vereador petebista Gonçalves Maia numa das sessões da Câmara Municipal em meados de 1951. Segundo G.Maia, 80 lavradores “que ali nasceram e, há cerca de 50 anos desbra[va]vam aquelas terras”, mandando para o Mercado Municipal 40 toneladas de frutas e legumes, estavam “agora, na iminência de serem despejados, pela ganância de companhias que querem retalhar aquelas terras em pequenos sítios para ‘grâ-finos’ do Distrito Federal fazerem seu week-end”. Os autores desse “atentado” seriam, segundo o tribuno carioca, Adroaldo Mesquita, ex-ministro da marinha e “uma criatura que devia medir as suas responsabilidades públicas e não lançar à miséria aquêles desbravadores do sertão carioca”; e a Cia. Imobiliária Nossa Senhora das Graças, da Congregação dos Marianos. Um ano depois, o que parecia difícil acabou acontecendo – a situação dos lavradores ganhava lances mais “dramáticos”. No dia 30 de junho de 1952, o então ministro da Marinha Renato Guilhobell recebia em seu gabinete um telegrama do vereador petebista João Luiz de Carvalho dando conta de um “desrespeito à Constituição da República” praticado segundo ele pela Marinha.24 Tratava-se de um “atentado praticado contra centenas de lavradores na Fazenda Guandu do Sapê (...) pondo em perigo a vida de laboriosos homens do campo que tiveram ainda suas benfeitorias avariadas”. Os autores de tal crime teriam sido dois “choques” de fuzileiros navais. Ao fim do telegrama, o indignado vereador pedia que o ministro salvaguardasse os “direitos de modestos patrícios ameaçados de violência”. Uma semana depois, o Imprensa Popular apresentava mais detalhes sobre a incursão da Marinha sobre a região. Segundo o jornal, 50 famílias “camponesas” estabelecidas “há mais de vinte anos” estavam sendo expulsas a canhões e metralhadoras pelo Ministério da Marinha”. A operação dos fuzileiros navais teria começado em 27 de junho, quando “fincaram bandeiras num morro, onde fica[va]m várias casas, e para lá apontaram os canhões, metralhadoras e fuzis”. Alguns lavradores, especialmente suas esposas, tentaram interromper a operação, mas “os gritos das crianças e mulheres não comoviam os atiradores, que continuavam impassíveis a disparar suas armas”. O resultado de tudo isso foi um sem número de roçados destruídos, casas avariadas e lavradores atormentados, “já que permanecia viva naqueles trabalhadores a visão do que ocorrera”. D. Noêmia Alves 24

Imprensa Popular, 01/07/1952.

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Ferreira, “espôsa de um colono”, contou: “- Estava deitada com meu filho de quatro meses. Quase morri de pavor. Fiquei como louca, com tanta explosão e tiro”. 25 Os lavradores diziam que o Ministério da Marinha pretendia instalar ali uma fábrica de armamentos. Ao invés de negociar, o órgão tentava expulsá-los através da intimidação. Ao que parece, os lavradores da Guandu-Sapé não estavam dispostos a questionar abertamente a legitimidade do domínio da Marinha sobre as terras. O que eles não aceitavam era a forma como a Marinha pretendia removê-los, com base na violência e sem nenhum tipo de indenização. Esta última era vista como um direito, já que diziam ser “arrendatários” do “antigo dono” – o coronel. João Crisóstomo. Pouco mais de quatro meses depois, João Luiz de Carvalho ia à tribuna da Câmara Municipal reclamar das “autoridades competentes”, que nada fizeram depois do telegrama por ele enviado dando conta do “crime de lesa-pátria” da Marinha: “Quando um brasileiro pretende trabalhar e ser útil à sua Pátria e procura melhorar o seu nível de vida e quer dar maior confôrto à sua família, vem o próprio Governo despeja-lo de suas propriedades, para, nos seus terrenos, construir uma fábrica de cartuchos.” No mesmo ano, bem perto dali, os lavradores estabelecidos nas fazendas Sete Riachos e Guandú do Sena, comemoravam a decisão da Câmara Municipal em desapropriar a área abrangida pelas duas fazendas. A Câmara, apoiada pelo então prefeito João Carlos Vital, tinha decido também destinar uma verba de 30 milhões de cruzeiros para a realização da desapropriação. Porém, nos últimos meses do ano seguinte encontramos os lavradores protestando contra o não cumprimento da lei pelo prefeito Dulcídio Cardoso, sucessor de Vital. Dulcídio estaria “prendendo a verba”, fato que para o Imprensa Popular, evidenciaria o seu conluio com uma cia. imobiliária, neste caso, a Nossa Senhora das Graças. Dois dias depois, o mesmo jornal denunciava que parte da renda estava sendo utilizada para compra de jaulas de leões e girafas para o Jardim Zoológico. Desde então, sempre que tinham oportunidade, os lavradores expunham a história da ocupação daquelas terras. Através dela, os lavradores tentavam mostrar que sua posse além de muito antiga, tinha se dado de forma mansa e pacífica, fato que só foi interrompido com a construção das primeiras estradas de rodagem e a conseqüente valorização imobiliária da região, o que teria despertado a “cobiça” de pretensos proprietários, que sempre agiriam com base na violência. Outra estratégia usada era a 25

Imprensa Popular, 06/07/1952. p. 3.

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caracterização da área como terra devoluta. Assim como em outras áreas, os lavradores também destacavam o fim social de sua produção em favor da população da cidade do Rio de Janeiro: só do Guandu do Sena, saíam 10 toneladas de gêneros toda segunda, quarta e sexta para o mercado de Madureira. Assim, os lavradores procuravam argumentar que as ações dos grileiros eram prejudiciais não só aos lavradores como a toda população carioca. Vejamos o depoimento de um desses lavradores. Caso de Cirilo Ribeiro, “lá há 58 anos”, preocupado com a situação pela qual estava passando depois que “beneficiou em dezenas de contos as terras onde nasceu e cresceu toda a sua família”: “Desde 1929, no governo de Washington Luiz, apareceu por aqui a ambição de terra. De lá para cá nunca se teve mais sossego. Quando cheguei aqui, quem queria, plantava.” Antes “só havia capoeira”, sendo portanto terras da União. Depois de muito tempo apareceram “pessoas que cercaram as terras dizendo-se suas proprietárias”. Alguns fizeram um leilão, arrematado por 11 contos e 500 por José Garcia Ferreira; dele herdou as terras Marcos Garcia Pereira, que passou a cobrar aluguel “logo que umas estradas começaram a passar pelas proximidades”. Em 1947 “apareceram os Padres e a Cia. que todo dia avisavam que deveriam abandonar as terras”.26 E aquilo que os lavradores mais temiam era oficializado em 22 de janeiro de 1954 no Diário Oficial: o prefeito revogava a desapropriação das fazendas Sete Riachos e Guandú do Sena. Dois dias depois, o Radical publicava o agradecimento da agora Cia. Imobiliária Jardim Nossa Senhora das Graças pelo ato do prefeito. Domingos Otavio Jacobina Lacombe, o autor da mensagem, também agradecia ao senador Apolônio Sales, ao coronel Saturnino Lange e demais “acionistas militares”.27 Além da Cia. Jardim Nossa Senhora das Graças, outro pretenso proprietário a requerer o domínio sobre as terras era Antônio Vaz Cavalcanti. Na verdade a área por ele requerida era parte da Sete Riachos. Zé Mota, lavrador ali estabelecido “há 16 anos” dizia que assim como ele, “os outros” também sofriam com as “ameaças de grilo” por parte de Cavalcanti, que teria se interessado por aquelas terras a partir de 1950, no momento em que “as estradas chegaram”. Segundo Zé Mota, “tudo ali era terra da União” desbravada por ele, só depois começaram a aparecer as “escrituras”. E com elas, ações truculentas de Cavalcanti com a ajuda do seu “pau-mandado” Lourival Silvestre dos Santos. Outro lavrador, Otacílio Ribeiro dos Santos, que mesmo “sem nenhuma instrução”, dizia saber 26 27

Imprensa Popular, 11/11/1953. p. 8. O Radical, 24/01/1954. p. 5.

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de cor o parágrafo 3º do artigo 156 da Constituição (sobre o direito do Usucapião), “de tanto lidar com os advogados”, dizia ter sido “diversas vezes ameaçado de ter sua casa incendiada”. “Ameaças de despejo, incêndio e filhas violentadas”, teria narrado o lavrador Manuel Charles aos presentes numa assembléia realizada na sede da Associação de Lavradores do Sertão Carioca.

FAZENDA COQUEIROS: seus donos e “donos”

“Existe ali muita terra devoluta, e já houve muita encrenca e muita morte, também.”, ponderava Aguir Tavares, em 1946, sobre um conflito na Fazenda Coqueiros, em Senador Câmara, “entre uma Cia. Portuguesa e sitiantes que lá vivem há 12 anos.” 28 No ano seguinte, o vereador petebista João Luiz de Carvalho dizia estar em curso na referida fazenda uma “grande ofensiva” de “grileiros” e “latifundiários” através da Cia Rural e Urbana para o despejo de 200 lavradores, “num total de 12 mil patrícios”.

Imprensa Popular, 22 de setembro de 1954. 28

Tribuna Popular, 11/07/1946. p. 2.

154

Anos depois, o representante trabalhista apresentava “um histórico” da Coqueiros: teria se originado de uma “sesmaria” doada pelo governo aos pretos forros. Na visão de Carvalho, ela seria uma herança jacente, pois não viviam mais descendentes dos pretos forros ali. Posteriormente, a propriedade foi “empolgada por um dos mais vorazes e desumanos grileiros que proliferam nesta terra, Hermano Barcelos”, dono da Cia. Rural e Urbana. A União teria conseguido reincorpora-la em 1942, mas três anos depois, ela voltou às mãos de Barcelos, “que por influências políticas e de amizade, conseguiu anular o ato do governo”. Finalmente, parte dela fora vendida ao IAPI(Instituto de Aposentadoria e Penção dos Industriários). Em setembro de 1952, o número de lavradores ameaçados pelo IAPI tinha dobrado para 400, segundo cálculo do Imprensa Popular, apesar da sempre crescente ameaça de despejo.29 A luta desses lavradores – que se auto-intitulavam “posseiros” que lá trabalhavam “há dezenas de anos” - seria muito antiga, confirmando a versão de Aguir Tavares: em 1927, por exemplo, eles teriam obtido “uma manutenção de posse e direito de retenção contra a Cia. Rural e Urbana do Distrito Federal”. Mas diferentemente desses anos, em que a luta parecia respeitar os limites impostos pela lei, o pretenso proprietário (IAPI) se utilizava de métodos pouco amistosos. Os lavradores denunciavam que ele queria que eles assinassem um contrato de locação; diante da resistência dos “posseiros”, o instituto teria recorrido à polícia e a um oficial de justiça, “que intimidaram os trabalhadores”. Ao que parece, a situação permaneceu tensa durante toda a década de 50, com várias idas dos lavradores de Coqueiros ao centro da cidade. Numa delas, já em 1957, eles protestavam contra a violência praticada pela polícia numa medição feita pelo IAPI.30 Em fins de 1963, o referido órgão ainda era objeto de denúncias; numa concentração de lavradores na Assembléia Legislativa, o presidente da Associação Rural de Santíssimo José Ribeiro, alegava que o instituto, “por incrível que pareça”, tentava “despejar os verdadeiros donos” daquelas terras.31

29

Imprensa Popular, 02/09/1952. p. 3. Imprensa Popular, 25/09/1957. p. 8. 31 Novos Rumos, 15-21/11/1963. p. 7. 30

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O Ser “Intermediário”

[...] o pobre ou o homem medio que nao tivesse casa com viveiro de peixe, no dia que quisesse dar-se ao luxo de comer peixe fresco, para variar do seco, tinha que enfrentar nao um atravessador apenas, mas toda uma serie de intermediarios. E esses intermediarios nao eram judeus nem ciganos - cabecas-de-turco para todo negocio desonesto; nem gente bangalafumenga. Eram cristaos-velhos dos mais puros, gente das casas nobres e ate mais cavalheirescas da classe dominante. Queixando-se do fato de ser tão caro o peixe fresco em Salvador de Todos os Santos, então a cidade mais importante da colônia, Vilhena escrevia no século XVIII que era inevitável o preço alto: o peixe passava ‘por quatro ou cinco mãos antes de chegar às de quem o compra para comel-o...’. E comentava: ‘[...] todos sabem esta dezordem mas ninguém a emenda por ser aquelle negocio como privativo de ganhadeiras que de ordinário são ou foram captivas de casas ricas e chamadas nobres, com as quaes ninguém quer intrometter, pela certeza que tem de ficar mal, pelo interesse que de commum teem os senhores naquella negociação. Vendem as ganhadeiras o peixe a outras negras para tornarem a 32 vender e a esta passagem chamam carambola.

32

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. São Paulo: Global, 2004. p. 285.

156

Esta longa descrição de Gilberto Freyre em obra clássica sobre o comércio de gêneros na Salvador do século XVIII também pode servir como parâmetro para o Rio de Janeiro na mesma época. Quase o mesmo sucedia com a carne verde. Com os legumes. Com toda a espécie de alimentação, que o pobre da cidade tinha de comprar pelos olhos da cara, por culpa menos da terra, que dos seus donos – os proprietários de latifúndios e sesmarias, dos primeiros tempos da colonização, que no século XVIII continuavam a servir de ‘covis de onças’ e tigres nas próprias immediações das cidades’. Quando nessas terras abandonadas bem podia estar se criando gado que abastecesse de carne a população urbana. Salvador de Todos os Santos, com toda essa terra boa em redor da cidade, dependia de bois do Piauí; e estes, explorados da maneira mais sórdida por militares, que foram dos maiores atravessadores de gêneros nos tempos coloniais. E quadro parecido foi descrito em relação às “cidades mineiras”, que “cresceram com a sua população mais pobre lutando contra a falta de víveres e o alto preço dos gêneros” e na qual havia “entre os exploradores da falta de víveres na área de mineração, não tanto os tão falados judeus, nem ciganos, nem ‘gringos’, mas frades. Simplesmente frades. Um deles, religioso da Santíssima Trindade, frei Francisco de Meneses”;33 assim como no Norte, onde “houve militares que se entregaram a negócios desbragados de fornecimento de carne, enriquecendo à custa da exploração do povo mais miúdo das cidades”. Já estamos em 1820, no Rio de Janeiro, e um certo almotacé Cunha faz um relato assombroso sobre o grau de ilegalidade que havia atingido o comércio de gêneros na cidade. A ponto de ele escrever os seguintes termos: Estas minhas reflexões não produziram efeito deseja do, pois que em minha presença achando-me no açougue de Santa Luzia, os carniceiros ousaram vender carne por maior preço que o taxado e estranhando em tão criminoso procedimento, tive o dissabor de ouvir uma resposta que se reduziu ao auto de que tenho a honra de transmitir a Vossa Excelência a cópia inclusa.34

33 34

Ibidem, p. 286. Apud CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Nos Caminhos da Acumulação... , p. 70.

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O abastecimento de gêneros sempre foi algo bastante problemático no dia-a-dia das cidades coloniais, e do Rio de Janeiro em particular. E tal problema atravessaria todo o período imperial. A esse respeito, Pedro Henrique elaborou um estudo ricamente documentado sobre a conformação de redes monopolísticas ligadas ao comércio de alimentos no Rio, especialmente o de carnes verdes. Os impropérios contra o “vil negócio” eram costumeiros. O autor cita uma representação popular dos anos 1820, que lança pesadas críticas aos poderes públicos contra a falta de controle sobre as ações dos comerciantes: O povo desta Corte representa a VVSS que os cortadores da carne verde tem alevantado o preco a vender a quatro vintens e a seis e pelo preço que muito bem lhe paresem a seu arbítrio. [...] Por isso, implorão de VVSS que haja de dar providencia sobre estes generos da maior necessidade em dar regimento estepulando preço certo para hum e outros asougues tanto de carne verde como de carne de porco: e que os cortadores sejao obrigados a tirar este regimento e tello e quando exceda a vender por mais serem castigado com penas que VVSS acharem ser justas assim como nos pezos que sempre he de menos em libra e mais isto acontesse em hum e outro talho a falcificação de pesos. 35

Citando os trabalhos das historiadoras Maria Yedda Linhares e Bárbara Levy sobre o tema, no período imperial em seu início, Pedro Campos nota que as revoltas urbanas no Rio, nos anos de 1831 e 1832, tinham como causa eminente a carestia dos gêneros básicos de alimentação.36 Ou seja, abastecimento de gêneros seguirá sendo um tema espinhoso ao longo de todo o período imperial. A esse respeito, Pedro Campos elaborou um estudo ricamente documentado sobre a conformação de redes monopolísticas ligadas ao comércio de 35

Ibidem, p. 59. Assim como Freyre, que afirmava que a recorrentes crises de abastecimento prejudicavam mormente as “camadas inferiores”, do ponto de vista socioeconômico, Pedro chega a uma conclusão parecida. Mas diferente do sociólogo pernambucano, ele procura explicitar os fundamentos de tal fenômeno: “As crises de suprimento no comércio de carnes verdes também podem ser compreendidas dentro da lógica do escravismo colonial, já que cada estrutura social tem sua crise própria. Limitações como as cláusulas dos contratos, a concorrência com a produção de charque, a má condição das estradas e a não intervenção firme dos governos para forçar produtores e mercadores a suprir os mercados com abundância e baixos preços eram fatores que levavam à escassez e carestia do gênero na Corte. Todas essas limitações devem ser compreendidas dentro disputas econômicas e das relações de força presentes na sociedade escravista e nos aparelhos políticos, que acabavam por afetar as populações urbanas, incidindo muito mais sobre as camadas inferiores e intermediárias dos habitantes da cidade, já que os membros da classe dominante podiam recorrer ao mercado paralelo ou a outras carnes mais caras.” (p. 202). 36 Ibidem, p. 69.

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alimentos no Rio, especialmente o de carnes verdes. Os impropérios contra o “vil negócio” eram costumeiros. A revolta contra o lastimável comércio de gêneros também se faria sentir no período republicano. Em pesquisa sobre o famoso “Triângulo Carioca”, um grupo político que atuava na zona rural do Distrito Federal e que dominava o abastecimento de carne verde, a historiadora Luciana da Silva Santos apresenta importantes depoimentos de época sobre a situação. Em 1894, em debate na Câmara Municipal, o intendente Alfredo Barcelos afirmava que atuação dos marchantes (negociadores de carnes) era feita de “[...] conluios, [donos de] sindicatos exploradores sem compaixão, atiram-se muitas vezes aos campos de Minas, vão cercar as boiadas, comprá-las por uma bagatela aos criadores, para virem auferir lucros fabulosos aqui e para tal fim dá-se um monopólio desta ordem.”37 De todas as questões que interessam ao Distrito Federal e das questões das quais teremos de ocupar-nos, nenhuma impõe tanto o nosso estudo como a que se refere à alimentação pública. [...] Ainda agora nós acabamos de observar o imenso sacrifício que fez o cofre municipal para o suprimento de carne a esta capital, sendo certo que nenhum proveito colheu a população, que compensasse tamanho sacrifício. [...] Em geral, tem-se atribuído ao monopólio a causa do aumento do preço da carne, e creio que foi com vistas a impedir o monopólio que a passada Intendência tratou de entrar no comércio do gado, a fim de abastecer o mercado por preço mais conveniente. [...] entretanto, parece-me que a causa principal da elevação do preço da carne não é essa, mas sim a falta real do gado, a diminuição da produção.38 Os jornais eram os principais meios de exposição da indignação dos habitantes da cidade quando havia carestia e escassez de carne verde, como se pode verificar no desabafo não assinado, em plena segunda-feira, 19 de dezembro de 1892, na primeira página de O Paiz, intitulado “A Carne Verde”: Não se pode dizer que ela, a carne verde, anda pela hora da morte, porque agora a questão já não é o preço. O público pagou-a sempre por quanto lhe exigiram, defraudando-lhe a bolsa, levando-o a miséria; pagou em silêncio, não fugiu nem mugiu, antes deu graças aos deuses municipais porque de todo não o deixou morrer à fome. Mas agora a questão é 37

Apud SANTOS, Luciana da Silva. “Terceiro Distrito, carne verde e matadouro: um Triângulo bem articulado na primeira capital republicana (Rio de Janeiro, final do século XIX)”. In: Fronteiras: Revista Catarinense de História, Florianópolis, n.19, p.73-94, 2011. pp. 84-5. 38 Ibidem, pp. 89-90.

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outra: já não há dinheiro que pague o fornecimento de carne verde à população, porque esse gênero de primeira necessidade não existe ou não querem que ele exista, o que é mais certo. E foi isso o que viu ontem toda ou quase toda população do Rio de Janeiro. Não houve carne na Cidade; a maior parte dos açougues mantiveram-se fechados e poucos que foram abertos o fizeram para expor ao consumo um pouco de carneiro ou de porco, vendido quase que por esmola, pelo preço que a ganância aconselhou. E tudo passou-se sem que a Intendência Municipal, por caridade ao menos, para poupar uma surpresa dolorosa, às classes pobres principalmente, mandasse um aviso à imprensa do que quer que ocorria 39 sobre a insuficiência da matança. Desgraçado paiz este!

Ao chegarmos em meados do século XX, com a República bem consolidada, e na mesma cidade do Rio, a então Capital Federal, o quadro aparentemente continua o mesmo: a venda de produtos alimentícios segue sendo um tormento para a população. Mas o uso do termo aparentemente não é casual, pois trata-se de avaliar no transcorrer desse período o que mudou em relação a esse fenômeno, que parece ter sido o mesmo quando visto desde o tempo colonial. Como a questão da atuação de intermediários na venda de gêneros é percebida e entendida? Que outros processos ele ajuda a desencadear? Quais são exatamente os agentes sociais envolvidos nesse questionamento? Em suma: o que o problema do comércio de gêneros do Sertão Carioca tem de específico? O tempo das panelas vazias e seu “culpado”

Houve sem dúvida um grande crescimento do noticiário sobre os conflitos de terra na década de 1950. Através dessa oportunidade aberta pela imprensa, os lavradores e as lideranças procuraram transformar questões como “despejos” e violências de “capangas” numa questão social que dizia respeito a toda cidade do Rio de Janeiro. 40 O “grileiro”, esse personagem cuja produção também se consolida nessa época, seria um adversário não só dos lavradores do Sertão Carioca, mas de todos os cariocas, pois estaria impedindo os lavradores de abastecer o mercado do DF com mais eficiência. E isso não era um simples detalhe naqueles anos. A cidade passava por uma grave crise de abastecimento (o que só seria contornado na década de 1980), os gêneros alimentícios eram escassos e relativamente caros. Ao estabelecer uma relação causal entre esta crise e o problema da instabilidade dos lavradores no Sertão Carioca, estes procuravam não só legitimar suas pretensões como também demonstrar que a sua vitória era necessária para o bem-estar da população da cidade. 39

Ibidem, pp. 90-1.

40

Idem.

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Mas a crise do abastecimento que se intensificaria a partir de meados da década de 40, evidenciaria um outro elemento dessa hipotética comunhão entre interesses de “todos os cariocas” e os dos lavradores. Para os primeiros, o grande responsável pela crise de abastecimento era o “intermediário” ou “atravessador” 41 de gêneros alimentícios. Essa era uma opinião dos próprios poderes públicos. Na verdade, desde o Estado Novo, o Governo tomaria algumas medidas com o fito de consolidar a idéia de que ele estava “junto” com a população no “combate” aos agentes da especulação de gêneros alimentícios. Com essa justificativa era decretada em 18 de novembro de 1938 a Lei 869 sobre Crimes contra a Economia Popular, que punia todos aqueles que destruíssem mercadorias, fraudassem pesos, contribuíssem para o aumento ou queda de preços por notícias falsas. A atuação do “intermediário” no sentido de obter lucros acima do “normal” era classificado, portanto, como crime, pelo qual era passível de prisão e julgamento pelo Tribunal de Segurança Nacional.42 Na década de 40 se assistiria a criação de um considerável aparato jurídico e de órgãos governamentais estritamente voltados para o controle da atuação dos “intermediário” nas diversas formas de venda e distribuição de gêneros alimentícios.43 Muito embora fossem de eficácia duvidosa, as leis, portarias e resoluções então criadas contribuíram para consolidar a noção da

atividade do

“intermediário” como um crime contra o bem-estar da população e, por consequência, contra a Nação. E a principal consequência era o enquadramento dessa questão sob um viés criminal, mesmo sendo algo eminentemente de ordem econômica e política. E pior: insistia ignorar os meandros burocráticos que alimentavam a corrupção impregnava o circuito de comercialização de gêneros. Coerente com tal abordagem (policialesca) do problema, o então secretário de agricultura da cidade, João Luiz de Carvalho, promoveria um “cerco” ao Mercado Municipal com o apoio de a “35 homens armados”. No entender do Diário Trabalhista, aquele (o Mercado) “dominado, a cidade terá melhor abastecimento”.44

41

Intermediário: “negociante que exerce suas atividades, colocando-se entre o produtor e o consumidor”; Atravessador: “açambarcador, monopolista”. In: Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986. 42 GAWRYSZEWSKI, Alberto. Panela Vazia: o cotidiano carioca e o fornecimento de gêneros alimentícios 194550. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2002. p. 30. 43 Ibidem, passim. 44 Diário Trabalhista, 11/04/1953, p. 2.

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Mercado Municipal do Rio, década de 1950. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Alguns jornais, mesmo o Diário Trabalhista, ainda conseguiam tocar na ferida. Numa nota publicada no dia, sob o título “Escandalo nas Feiras-Livres”, lemos que “um feirante, há tempos, fez publicar o seguinte anúncio: ‘Vende-se uma barraca de cereais, que faz ponto nas principais feiras desta Capital. Negocio muito lucrativo. Motivo: viagem do proprietário à Europa’.” 45 E tudo ficaria mais complicado quando o próprio João Luiz de Carvalho viesse a ser envolvido em denúncias de corrupção na pasta da Agricultura. Em abril de 1953 o secretário seria responsabilizado pelo vereador Miécimo da Silva pelo sumiço de 40 mil galinhas da Fazenda Modelo em Guaratiba. O “debate” ganhava em temperatura, chegando ao ponto de João Luiz declarar, segundo o Diário Trabalhista, que estava disposto em ir à “Câmara Municipal dar tiros na boca dos vereadores”.46 Um desses vereadores era certamente Miécimo da Silva. Em maio, ele dizia estranhar “o fato de João Luiz de Carvalho não ter ido a público dar satisfações sobre o escândalo das galinhas”. Nos meses seguintes, Miécimo só aumentaria o tom. Em praticamente todos as suas declarações, fosse na imprensa ou na câmara (ou nos dois ao mesmo tempo), o vereador da zona rural dedicava palavras nada 45 46

Diário Trabalhista, 10/09/1952. p. 3. Diário Trabalhista, 22/05/1953. p. 1.

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agradáveis ao “turbulento sertanejo de Campo Grande” (era a João Luiz de Carvalho a quem ele se referia). Não satisfeito, a partir de julho, o “jovem vereador das bicas de Campo Grande” (agora é o Diário Trabalhista se referindo a Miécimo) decidiria - assim afirmava – provar que João Luiz era “ladrão”. Este respondia, afirmando que iria “acertar Miécimo” (lembrando que João andava armado). 47 Ao fim de tudo, todo o enfoque sobre a questão do Mercado Municipal, em particular, e o abastecimento de alimentos, de maneira geral, era todo reduzido a uma pendenga envolvendo a moral e o caráter de alguns vereadores e funcionários do Mercado Municipal. E tudo isso poderia ser resolvido pela simples intervenção policial. Em julho de 1952, o Diário Trabalhista assim resumia a questão: “Gananciosos e desumanos como sempre, os ‘tubarões’, sobretudo os que exploram o comércio de gêneros alimentícios, estão investindo contra a sacrificada população carioca.” 48 O rol de “bandidos” não parava por aí. Na verdade, o principal deles era mesmo o “intermediário”. E mais do que nunca, a atuação desse tipo de agente será caracterizada pelo viés da criminalização. Tem-se a impressão que o fenômeno seria plenamente resolvido caso o código criminal fosse eficazmente cumprido. A própria imprensa (conservadora ou não) reforçava esse tipo de ideia. Para o Correio da Manhã, a “eliminação” do intermediário resolveria um “grave problema da vida carioca” – o alto custo de alimentos. 49 Com igual convicção o’Globo afirmava ser o “intermediário” a principal causa do “encarecimento da vida”.50 Aliás, esta convicção seria alegada como principal justificativa para que o jornal tenha realizado ao longo de quase todo o ano de 1951, a Campanha pela Cooperativização. No final daquele ano, o Diário Trabalhista noticiava exultante a prisão “em flagrante” de vários “tubarões”, estes “comerciantes gananciosos que sonegando ou majorando as mercadorias vão matando pouco a pouco os cariocas, abusando de sua complacente índole.”

51

Em janeiro do ano seguinte, o mesmo

jornal assim descreveria as atividades ligadas ao comércio de gêneros: Os assaltos já não têm por palco as estradas desertas nem os becos escuros. Ao contrário, são efetuados à luz do dia, à vista de todos. Pobre de quem se vê forçado a entrar em contacto com uma parte considerável daqueles que negociam com gêneros de primeira

47

Diário Trabalhista, 29/07/1953. p. 4. Diário Trabalhista, 22/07/1952. p.1. 49 Correio da Manhã, 02/05/1951. p. 5. 50 O Globo, 28/03/1951. p. 1. 51 Diário Trabalhista, 14/12/1951. p. 3. 48

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necessidade. São roubados, maltratados e, quando procuram uma defesa legal, recebem de 52 certas autoridades demonstrações de pouco caso e menosprezo.

No caso específico do Sertão Carioca, a preocupação com a atuação dos intermediários no comércio de alimentos era mais antiga do que aquela referente ao gradativo desaparecimento da sua área agrícola. No início da década de 1940, o Governo Federal acreditava que essa região ainda era a melhor zona produtora de alimentos para a capital. Com o núcleo agrícola de Santa Cruz funcionando como o esperado, tinha o Governo “a firme convicção que dentro de pouco a zona rural” poderia “abastecer com fartura, a preços módicos, frutas, legumes e produtos da roça, à cidade do Rio”.53 Ou seja, o Governo mostrava-se tranquilo quanto à questão da produção agrícola; o que na verdade lhe preocupava era pôr “os produtores em comunicação direta com os consumidores para frustrar os abusos da ganância intermediária...”.54 Mas passado tanto tempo, os “pequenos lavradores” do Mendanha não tinham muito o que celebrar a respeito do tema dos transportes. Muito pelo contrário, a questão suscitava protestos ainda em 1959. Numa audiência junto ao Ministro do Trabalho Fernando Nóbrega, os lavradores relataram a situação na qual se encontravam, “à mercê dos intermediários e dos especuladores, que lhes toma[va]m a produção a baixo custo”, por isso pediam “a criação de silos e o estabelecimento de um sistema de transporte para escoamento da produção”. 55 Além da escassez, era grande o encarecimento dos poucos produtos que chegavam às feiras e aos mercados, conforme lemos em algumas passagens da imprensa. Silvio de Abreu, um dos maiores estudiosos da zona rural na época, acreditava que tal valorização esteve muito longe de favorecer aos lavradores cariocas, pois a quase totalidade dos lucros ficava em mãos que não as deles e sim na dos intermediários. Lembrava ainda que a renda per capita dos lavradores era muito baixa, devido àquilo que lhe pagava “o ganancioso intermediário, no atual regime de extorsão”.116 Sendo os ganhos obtidos com a produção de gêneros muito inferior àquele obtido com a atividade de circulação, alguns lavradores, como

52

Diário trabalhista, 13/01/1952. p. 1. Apud PECHMAN, Robert. Formação histórica da estrutura fundiária na Zona Oeste do Rio de Janeiro e Barra da Tijuca. Relatório de Pesquisa apresentado ao IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987. p. 76. 53 54

Idem.

55

Terra Livre, março de 1959, p. 1.

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o de Vargem Grande (Jacarepaguá), tornaram-se “intermediários-feirantes”, “abandonando suas lavouras e adquirindo produtos de outros lavradores para revendê-los nas feiras do DF”. Práticas antes restritas ao Mercado Municipal se espraiavam pelas “feiras-livres”. O Diário Trabalhista afirmava que tais feiras haviam se tornado “reduto de exploradores da população”, os feirantes formando uma “caixinha” e fornecendo “com regularidade, o jabaculê aos fiscais”. O jornal assegurava que isso ocorria em toda a cidade; “de Copa até Madureira, do Leblon a Campo Grande”.25 E um ano antes, o mesmo reportava que “os tentáculos dos açambarcadores do Mercado Municipal se estendem a milhares de quilômetros de distância, indo até os campos de cultura de modestos colonos e pequenos produtores, que outra alternativa não têm senão suportar a ´proteção´que lhes é oferecida pelo odioso sindicato [de “rackteers”]”.26 Diante de tal quadro, desde a década de 1940 a prefeitura do DF buscava implementar medidas que ajudassem a contornar a crise de abastecimento da cidade e que, por tabela, livrasse não só os lavradores como também a população carioca da “ganância” dos intermediários do comércio de gêneros. A primeira delas foi o sistema de licenciamento dos caminhões de gêneros. Estes teriam a tarefa de fazer com que os produtos do Sertão Carioca saíssem direto dos sítios dos lavradores para as bancas do Mercado Municipal. No entanto, em pouco tempo, o sistema deixou de corresponder ás nobres intenções que o inspiraram. Os caminhões não mais percorreram os bairros. Pas[s]aram a estacionar em cruzamentos de ruas, praças ou outros logradouros de maior influência da população. Transformaram-se em barracas permanentes, montadas sobre rodas. Já não iam aos limites da zona rural buscar as frutas e legumes do lavrador. Eram abastecidas nos entrepostos e dali partiam para os pontos de estacionamentos, até, não saiam desses pontos e aí recebiam de outros veículos a mercadoria que expunham à venda. Não concorreram para a baixa dos preços. Ao contrário, beneficiados por toda a sorte de facilidade, inclusive pela isenção de impostos e taxas, acompanharam a alta e a especulação participando de tôdas as flutuações descontroladas, ora de fartura ora de escassez de mercadorias que caracterizam o comércio, nesta capital, a partir do início da última guerra.27 Uma segunda tentativa, já na segunda metade da década, foi a construção de onze mercados regionais, de modo a descentralizar o comércio de gêneros. Mas seu próprio 25

Diário Trabalhista, 11/07/1952, p. 3. Diário Trabalhista, 16/12/1951, p. 8. 27 GRILLO, Heitor. “Prestação de contas”. In Diário Oficial. Distrito Federal,17/04/1947, p.301. 26

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criador, o secretário de agricultura Heitor Grilo, admitia que em “regra geral” os lavradores “espontânea ou forçadamente” estavam “comprometidos” com o Mercado Municipal. Este era, nas palavras do Diário Trabalhista, uma “verdadeira rêde de exploração e especulação da fome do povo carioca”, dominada por um sindicato de “rackteers” (os asseclas do eminente contraventor norte-americano Al Capone); para o jornal, este verdadeiro “empório da exploração”, não era, na época, mais do que uma “boca que devora 2 milhões de quilos de legumes, frutas e verduras”. 28 Detalhe: o referido jornal escrevia isso em fins de 1951, o que demonstra que o secretário de agricultura citado acima tinha lá as suas razões para tanto desânimo. Porém, em que pese os persistentes insucessos, a prefeitura continuava a elaborar novas medidas para combater os intermediários. A outra medida foi a construção junto aos mercados regionais de quatro empórios, que receberiam a produção diretamente dos lavradores, eliminando – assim entendiam - a interferência dos intermediários. No entanto, a fatia que os intermediários continuavam a ter nos lucros do comércio de gêneros, mesmo depois de todas as medidas da municipalidade, era surpreendente. Se os lucros dos lavradores na comercialização dos principais produtos do Sertão Carioca (banana, laranja, couve, agrião e tomate) eram em torno de 460%, o dos intermediários era de quase 1.300%.29 Vejamos o caso do comércio das bananas, nas palavras de um técnico do ministério da agricultura em 1946: A grande maioria (dos musicultores*) vende a banana ao chofer, [que] em vez de contentarse com o lucro de transportador, transforma-se em um intermediário, adquirindo o produto de Cr$50,00 a dúzia de cachos, postos à margem da estrada de rodagem. Êsse transportador revende ao proprietário de um depósito, segundo intermediário, ao preço de Cr$ 60,00 e Cr$70,00, o qua l, depois de dividir os cachos grandes em pencas, vende ao quitandeiro, não mais naquela unidade (dúzia), porém por milheiro, à razão de Cr$60,00 e Cr$70,00. Só nesta transação o lucro é de cêrca de 100%, de vez que uma dúzia de cachos contêm de 1.000 a 2.500 bananas. O quitandeiro, terceiro intermediário, então, nos faz o ‘favor’ de vender uma dúzia de bananas por 2 a 4 cruzeiros, o que lhe custou 70 a 80 centavos. Nessa transação ganha de 150% a 300%!!! É por isso que o pequeno produtor vive esfarrapado, descalço, desnutrido e descrente. É um paria. 30

Mas o “intermediário” também era visto pelos lavradores e lideranças camponesas como o outro responsável pela crise agrícola do Sertão Carioca. Era muito difundida entre

28

Diário Trabalhista, 16/12/1951, p. 8. SOUZA, José Gonçalves de. “Custos de produção e preços de venda dos produtos agrícolas do Distrito Federal” In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, ano IV, n°1, 1951, p. 38. Ver também GEIGER, Pedro Pinchas. “A respeito de ‘produtos valorizados’”. Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, nº 3/4, 1953. p. 22. 29

30

Idem, p.28.

166

eles a noção que apreendia a figura do intermediário como um equivalente do “grileiro” no comércio de produtos agrícolas, pois que agia com igual “ganância” e “desumanidade”.

Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Em certas localidades, a causa do enfraquecimento da agricultura será posto na conta dos “gananciosos” intermediários. Em inícios da década de 50, os “bananeiros” de Jacarepaguá diziam-se “tomados pelo desânimo”, apesar da alta dos preços. Eram apontadas como as causas principais dessa situação as chuvas de granizo de outubro de 52 e as “transações dos intermediários”.31Assim como muitos lavradores de Jacarepaguá, os de Mendanha também procuraram “eliminar” a influência dos intermediários transformando-se

31

NOGUEIRA, Amélia Alba. NOGUEIRA, Amélia Alba. “Vargem Grande (alguns aspectos geográficos)”, In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, nº1-2. p. 61.

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em “feireiros” ao adquirir caminhões e “fazendo, então, o transporte e a venda de seus produtos nas feiras dos subúrbios”.32 Os lavradores de Jacarepaguá também conseguiam se manter livres das “garras” dos intermediários. J.G. de Souza afirmava que a proximidade do centro da cidade facilitava a venda de seus produtos diretamente ao consumidor: “Mas o restante dos lavradores - acrescenta ele - a grande massa, se entrega a atravessadores, ao dono do caminhão que lhe vai ter à chácara, ou ao agente do Mercado Municipal”. 33 A situação era tão grave aos seus olhos, que ele chegaria a dizer que a simples posse de um meio de transporte naqueles dias era o mesmo que ter em mãos um instrumento de “libertação”, não tê-lo, consequentemente, era o mesmo que estar entregue à “escravização”. Um indicador desta última condição, segundo Souza, era o fato da “exploração” sobre os lavradores não acontecer apenas na Praça XV, onde se localizava o Mercado Municipal, mas também nos mercados regionais, mercadinhos e quitandas, para onde se dirigiam os lavradores que buscavam fugir dos “intermediários”.

32

SILVA, Hilda. “Uma zona Agrícola do Distrito Federal – O Mendanha”, In: Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, vol. XX, nº 4, 1958. p. 457. 33 SOUZA, José Gonçalves de. “Custos de produção e preços de venda dos produtos agrícolas do Distrito Federal” In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, ano IV, n°1, 1951, p. 40.

168

Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

O próprio Mercado Municipal, sede maior da atuação dos “intermediários”, era comumente representado como algo que tivesse vida própria: era uma verdadeira “sanguessuga do bolso do trabalhador”, asseverava o Diário Popular em 1951.34 Pouco mais de um ano depois o mesmo jornal classificava o Mercado Municipal de “mercado dos AliBabás”.35 Diante da construção de representações negativas sobre a figura do “intermediário” no contexto da crise de abastecimento, destacando sobremaneira a ilegalidade e ilegitimidade de suas ações, os lavradores cariocas extrairiam elementos que reforçariam a legitimidade de sua luta pela terra no Sertão Carioca. Seguindo esse entendimento, o Novos Rumos escreveria exatamente um editorial equiparando os dois agentes, num editorial intitulado significativamente de “O latifundiário

34 35

Diário Popular, 25/03/1951. p. 4. Diário Trabalhista, 21/09/1952, p. 4.

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e os atravessadores”: “lugar de destaque na lista dos ladrões do povo cabe aos latifundiários e intermediários que dominam a produção e venda de produtos alimentícios”.36

36

Novos Rumos, 25-31/01/1963, p. 8.

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O então secretário de Agricultura João Luiz de Carvalho inspecionando uma feira-livre em Campo Grande. Fonte: Última Hora, Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Junto com o problema da instabilidade da posse da terra (cuja responsabilidade recaia sobre os pretensos proprietários), a ação dos intermediários também era vista como uma das causas da difícil situação por qual passavam os lavradores do Sertão Carioca. Isso estaria

171

presente em diversas reivindicações e protestos realizados nas duas décadas seguintes. E mais do que isso, ao longo de todo o período estudado, os lavradores, as lideranças e boa parte da imprensa utilizariam a figura do “intermediário” para afirmar uma idéia de que os interesses dos lavradores eram indissociáveis do bem-estar da população da cidade. O testemunho que veremos a seguir é emblemático. Em maio de 1951, quinze “agricultores em Campo Grande e adjacências” visitavam a redação do’Globo para reclamar da falta de transporte adequado dos seus produtos até o centro da cidade, fazendo com que gêneros como alface, couve, agrião, abacate, laranja, banana, “que o carioca paga muito caro nas feiras, mercadinhos e quitandas”, apodrecessem na própria terra. Reclamavam também do alto imposto cobrado na “barreira” de Campo Grande pela banana e da “ganância dos intermediários”, que “compram a laranja por 6,00 o cento e o revendem por 80,00”. Mas não eram somente os lavradores a sofrerem com esses problemas, eles acreditavam que a “outra vítima” era o “povo da capital”, “que não têm o que comer ou paga caríssimo”. 37 Uma década depois lá estavam os “pequenos lavradores” de Jacarepaguá subscrevendo um documento junto a várias “personalidades” (Roland Corbisier, Hércules Correia, Adalgisa Néri e outros), a ser enviado ao II Congresso de Lavradores em Belo Horizonte, e que listava a certa altura as razões do gradativo desaparecimento do cinturão verde carioca: “É o lamentável resultado de uma política de liquidação de nossa atividade agropecuária, em proveito do tubaronato imobiliário. Não há assistência técnico-financeira ao homem do campo; não há mercado garantido, o ‘atravessador’ é o senhor absoluto da situação”.38

37 38

O Globo, 09/05/1951. p. 1. Novos Rumos, 11/10/1961, p. 1.

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