Um sopro contra o Estado de exceção

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Um sopro contra o Estado de exceção

Alexandre Pandolfo

A tradição dos oprimidos nos ensina. Faz eco entre nós. Vozes que foram emudecidas. O sofrimento dos corpos prostrados, espezinhados, esquartejados. Não apenas de ontem. O estado de exceção é a regra. Hoje sabemos que as expressões cujas formas correspondem a essa verdade não logram mais ser meramente recalcadas diante da conservação e manutenção do ordenamento social como um todo regido pela suspensão abstrata das suas leis em nome da sua força de lei concreta e assassina, policial, por assim dizer, não apenas fundante, mas estruturante dos mecanismos que levam a cabo a destruição do outro, sempre que for necessário para a justificação do status quo. Amarildo, Claudia, inúmeras Mães de Maio – quantos nomes devemos dizer? Contudo, a filosofia e a literatura dignas das suas histórias erguem-se contra a dominação da realidade. Todo o resto é expansão e repetição. Mas não apenas diretamente enfrentamos hoje os ditadores, os amigos dos ditadores, os seus cúmplices sempre muito bem articulados com o estado oligárquico das coisas – e que, portanto, ousam, assim como outrora já ousaram, dizerem-se legítimos – um estado de todo lamentável, no qual se sustenta ainda a ficção da sua fundação “naturalmente” com base em teorias contratualistas, justificacionistas e civilizatórias, cuja potência criminógena e bandida ainda não prescreveu ante todas as suas consequências genocidas, e por isso dá as caras, sob togas, braceletes e aventais, e com camisas da CBF, principalmente apontam contra a pele de negros ou índios ou de bárbaros, naturalmente identificados conosco, mas dos quais eternamente os civis gostariam de se diferenciar, sem no entanto abdicar da entrega de suas próprias vidas às articulações instrumentais, cuja ideia vazia e preenchida pelo medo, repetida e expandida identifica-se ao todo da organização social. A esse respeito, em K., de Bernardo Kucinski, a visada da coisa nos abre o próprio autor antes do narrador, numa página preta inicial, na qual ele escreve: “Caro leitor: Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Não se trata meramente de uma advertência de cunho editorial, apesar de lograr desequilibrar um estado geral de coisas aparentemente acomodado com a sua composição e a sua execução, levando à crise o enredamento da comunicação em geral na técnica que organiza não apenas linguisticamente o todo. – É a dúvida melancólica acerca da realidade. O transtorno até o limite do que é. Do que foi. O que deixa de ser. Ler? Isso incomoda inicialmente o estado de coisas confortado sob a divisão do mundo administrado em quase todos os âmbitos da vida nua, equacionado à separação entre teoria e práxis. Com essa advertência, a ficção profana as concepções de domínio da realidade como exercício da violência, trazendo para a sua tensão textual gestual interna a realidade social da atualidade da sua

palavra. Que quase tudo da “invenção” tenha ocorrido espelha-nos o facho de trevas, onde é possível suspirar o rompimento com o furor da racionalidade hegemônica através da criação. Conturbando a sua realidade própria, origina um verdadeiro estado de exceção. Ela excede ao desarranjo linguístico da realidade, desarranjo retroalimentado jurídico-politicamente para a conservação da irracionalidade social e do assassínio. Ela excede à regra, à comunicação, à realidade dominada pela ardilosidade orquestrada em suas tratativas para convencer a sua dominação e ao mesmo tempo a sua equalização com a realidade mediada pela cotidianidade do absurdo. Essa oração não se submete à determinação dos arranjos linguísticos. Mas o assombro com o apagamento da fronteira entre ficção e realidade, da fronteira entre teoria e prática, – ele é um assombro filosófico. Assombrados, nossa posição fica mais forte na luta contra o fascismo, cuja persistência hoje talvez não cause mais espanto.

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