\"Um Truque de Luz” em uma abordagem CTS e Arte

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Um Truque de Luz” em uma abordagem CTS e Arte

Sanderson Alcântara Moreira42 ([email protected]) CEFET/RJ Glória Regina P. C. Queiroz43 ([email protected]) CEFET/RJ; UERJ

RESUMO No presente trabalho, nos propusemos a investigar se o filme Um Truque de Luz (1995), do diretor alemão Win Wenders, poderia ser utilizado como um recurso que possibilitasse reflexões acerca de aspectos históricos e sociológicos envolvidos no desenvolvimento do cinema, exemplificando uma estratégia didática que relacionasse referenciais pedagógicos CTS (Ciência, Tecnologia, Sociedade) com a educação artística. Para tal, buscou-se analisar a narrativa do filme, assim como as discussões ocorridas após sua exibição a futuros professores de física em formação inicial. Como resultados, vimos que a arte do filme Um Truque de Luz pode contribuir como recurso através do qual seja explorada a relação entre ciência, tecnologia e sociedade, com a promoção de reflexões e discussões que possibilitem uma percepção crítica do desenvolvimento do conhecimento tecnológico.

Palavras-chave: CTS-ARTE, Formação de Professores, Cinema, Um Truque de Luz, Win Wenders.

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Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Educação (PPCTE) – CEFET/RJ Docente do Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Educação (PPCTE) – CEFET/RJ e do Instituto de Física Armando Dias Tavares – UERJ

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Introdução Assim como a ciência (C), a tecnologia (T) também é polissêmica. As concepções que se tem a seu respeito estendem-se desde a visão como mera aplicação da ciência a visões que contemplam a complexa relação de interdependência entre ambas, reunidas sob a nomenclatura de tecnociência (Acevedo Díaz, 2006). Como no caso do conhecimento científico, ao se abordar uma determinada tecnologia (como a cinematografia, por exemplo), percebe-se ser comum negligenciar-se a existência de invenções alternativas àquelas consideradas bem sucedidas, exaltando-se alguns personagens tidos como os únicos a terem realizado os empreendimentos tecnológicos que dispomos hoje, reafirmando-se ainda a ideia de uma tecnologia como posterior ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos a ela relacionados. Assim, encobrem-se as dificuldades e os insucessos de tentativas diferentes das “vencedoras”. Em oposição a uma visão através da qual ciência e técnica são vistas à parte do contexto social, a abordagem sócioconstrutivista propõe o estudo do desenvolvimento científicotecnológico a partir do estabelecimento da relação entre CT e a sociedade, contemplando aspectos sociais, históricos, políticos e culturais. De acordo com Pinch e Bijker (2008: 25), tanto a ciência como a tecnologia são culturas socialmente construídas. A proposta desses autores é construir uma sociologia da tecnologia que trate o

conhecimento tecnológico do mesmo modo com que são tratados os fatos científicos na sociologia do conhecimento científico: sendo imparcial com relação a crenças “verdadeiras” ou “falsas” e sendo capaz de explicá-las atribuindo-lhes as mesmas causas. Assim, uma abordagem sócio-construtivista da tecnologia não compreende o desenvolvimento tecnológico de uma maneira linear ou lógica; antes, o contempla como um processo no qual fatores sociais participam dando forma às tecnologias e direcionando seus rumos. Na educação científica e tecnológica faz-se necessária a valorização de alguns aspectos das relações do binômio CT com o objetivo de evitar visões “deformadas” que a têm empobrecido (Fernández et al., 2003), pensando em meios que viabilizem o desenvolvimento de uma visão de CT que torne explicitas a interdependência entre ambos os campos, suas relações com a sociedade, as dificuldades e limitações enfrentadas, o lado humano de seus protagonistas, seu caráter provisório etc. Os pressupostos do enfoque CTS visam uma educação científica comprometida com a formação de cidadãos que vejam de forma crítica a CT e que possam se posicionar e participar de possíveis tomadas de decisões acerca de questões que as envolvam (Aikenhead, 1994).

Na mesma perspectiva que a de Oliveira e Queiroz (2013), entendemos que a arte apresenta uma imensa relevância cultural, além de possibilitar uma abordagem intercultural no ensino (2013: 47). Neste sentido, os autores desenvolveram a abordagem pedagógica CTS-ARTE, a qual propõe o uso da arte como meio através do qual seja possível promover discussões de caráter político, social, ambiental, ideológico visando o diálogo intercultural e não apenas como mera motivação. O termo ARTE aparece aqui conotando uma estratégia que considera alguns elementos da cultura CTS com elementos da cultura Educação em Artes (2013: 48). Inspirando-se na proposta de Aikenhead (1994), a sequência didática dos autores é composta por algumas etapas que consistem em: 1) escolher um tema social a partir de uma relação com a arte; 2) a introdução de uma tecnologia; 3) estudo da ciência e de sua relação com a tecnologia e a sociedade; 4) rediscussão da questão social; 5) proposta de elaboração de um produto final científico-artístico pelos alunos. Escolhemos usar como recurso artístico o filme Um Truque de Luz, dirigido por Win Wenders, em 1995. O filme trata da história dos irmãos Max, Eugene e Emil Skladanowsky e sua contribuição nos primórdios do cinema alemão no final do século XIX. Ao longo do filme é possível observar diversos dispositivos óticos desenvolvidos como o folioscópio (flip book) e o zootrópio e o advento do bioscópio, dispositivo inventado pelos irmãos alemães na mesma época em que os

irmãos Lumière desenvolveram o cinematógrafo. O filme também mostra as dificuldades enfrentadas pelos diversos inventores engajados nesta atividade, os “êxitos” e “insucessos” dos artefatos e a dimensão sociocultural do que viria a ser chamado cinema. Entendemos que a temática da tecnologia cinematográfica apresenta relevância social, uma vez que o cinema faz parte do cotidiano dos cidadãos e é uma forma de arte capaz de retratar o mundo e impactar sociedades de diferentes épocas. Buscamos entender de que formas este filme pode ser um elemento artístico que promova discussões e reflexões acerca das relações CTS-Arte.

Resultados Metodologia O trabalho foi desenvolvido no contexto de duas aulas para um grupo de 7 alunos do curso de Licenciatura em Física de uma universidade pública no Rio de Janeiro. Após a exibição do referido filme houve um debate gravado em áudio, orientado por perguntas previamente elaboradas. A partir da transcrição foram extraídos os enunciados dos alunos sobre o cinema e suas reflexões sobre diferentes aspectos do filme. Na análise de conteúdo realizada (Moraes, 1999) foram definidas cinco categorias correspondentes a diferentes aspectos do cinema, tendo sido inseridos em cada uma delas enunciados extraídos do filme que evidenciam tais aspectos.

Nas perguntas que guiaram o debate, buscamos inicialmente conhecer o que os estudantes sabiam sobre a história do cinema. Os alunos apresentaram dúvidas e diferentes interpretações do que seria essa “história”. De seus conhecimentos prévios, os alunos referenciaram elementos voltados aos principais protagonistas e categorias da sétima arte, citando atores como Charles Chaplin e seu personagem Carlitos, John Wayne, Mazzaropi, exemplos do cinema brasileiro e dos filmes norte-americanos de Bang Bang. Refletindo sobre os impactos que a tecnologia do cinema exerceu na sociedade da época retratada pelo filme, os alunos se referiram ao entretenimento e mudanças de hábito: «A cultura de ver filme»; «Foi uma opção de lazer para eles [...], apesar de que era voltado para a burguesia». Na visão dos alunos, a nova tecnologia da época se restringiu apenas às classes mais abastadas, o que segundo eles acontece com as tecnologias atuais: «Todo equipamento novo é voltado pra gente que tem uma situação de burguês. Por exemplo, um celular desses aí, nem todo mundo pode ter um». Discutiu-se nesse momento a importância do cinema ao permitir que pessoas conhecessem e comparassem lugares e culturas diferentes no mundo, além de seu impacto na ciência como o uso do fuzil fotográfico na astronomia do século XIX, o estudo da fisiologia animal etc. Além disso, o cinema teria tido importância na vida pessoal dos indivíduos ao possibilitar registrar

memórias, como quando um dos tios da personagem principal vai embora e a família se propõe a arranjar uma forma de «guardar o tio na caixa», sugerindo um aspecto afetivo. No que tange à relação entre C e T, os alunos perceberam no filme a importância da rotação e da persistência retiniana e houve até referências ao taumatrópio: «tem aquele experimento que vai girando e aí a televisão “engole o cérebro da pessoa”». Mencionou-se o fato de que existiam outros inventores que também se empenhavam nesta atividade e que muitas tentativas não foram bem sucedidas. Relatam também que no filme os inventores construíam folioscópios como brinquedos e «ganhavam mais dinheiro com isso» do que com os próprios filmes, o que trouxe mudanças no modo de se ver a história do cinema. A controvérsia entre os irmãos Skladanowsky e os irmãos Lumière abriu possibilidades para reflexão sobre a controvérsia de outras tecnologias, como a de Santos Dumont e os irmãos Wright na aviação. O assunto também se estendeu ao campo da ciência, quando os alunos comentaram sobre cientistas que ofereceram importantes contribuições mas foram “esquecidos”. Segundo os alunos, não é comum falar sobre os irmãos Skladanowsky «porque eles não eram famosos», «tinham poucos recursos para investir e divulgar seus trabalhos», e «porque as invenções dos irmãos Lumière os ofuscaram». Aqui os alunos perceberam a influência de fatores externos. O cinematógrafo francês teria se tornado mais reconhecido do

que o bioscópio «porque os irmãos Lumière tinham uma patente melhor». Os alunos também refletiram acerca dos elementos necessários na época para o desenvolvimento técnico do cinema, como a química da fotografia, a criação de dispositivos como a câmara escura e a lanterna mágica, as lentes e conhecimentos científicos como os efeitos da persistência retiniana. Com base na discussão com os alunos foram definidas cinco categorias as quais refletem aspectos: (1) técnicos: enunciados que fazem referência aos dispositivos e procedimentos técnicos envolvidos no desenvolvimento do cinema, como: «Esses livrinhos (flip books) eram montados e vendidos aos milhares [...] Era na verdade o filme que ele cortava em pedacinhos e montava»; «O que o cinematógrafo tinha a oferecer era imenso. O nosso bioscópio não podia competir»; «O material filmado ainda não tinha a perfuração. Nós mesmos a fazíamos com ilhós de sapato». (2) científicos: enunciados que mostram relações com conhecimentos científicos ou fenômenos físicos envolvidos nos equipamentos desenvolvidos, tais como: «Dava muito trabalho porque ainda não existia luz elétrica, não havia luz. Precisava ser filmado quando houvesse uma boa luz. Então junho e julho eram os meses perfeitos [...]»; «Imagens se movimentando sozinhas, com nada mais gerando-as além de luz»; «Fotografia colorida, fotografia com cores artificiais. São placas azuis e vermelhas que quando colocadas uma em cima da outra, produziam uma foto em cores naturais». (3) socioculturais: enunciados que evidenciam como o contexto sociocultural dos

inventores influenciava seu trabalho, além do lado humano dos envolvidos e das dinâmicas internas do mundo do cinema. São exemplos: «Nós estávamos à beira da falência; há semana nós só comíamos batatas»; «No mundo todo, inventores estavam trabalhando nisso. O cinema estava no ar, seja no nosso ar berlinense ou no ar parisiense»; «Os franceses tinham uma patente melhor que lhes garantia uma maior qualidade em imagem e movimento do que meu velho sistema de projeção duplo». (4) afetivos: enunciados que externalizam a diversidade de sentimentos e emoções dos indivíduos, expressando a importância que tal atividade tinha, como: «Esse filme colocaria o tio Eugen dentro de nossa pequena câmera e o bioscópio do papai o traria de volta à vida»; «O nosso bioscópio não poderia competir com aquilo; o nosso sonho se desfez como bolha de sabão»; «Toda aquela exaltação me fez verter uma lágrima atrás da tela». (5) axiológicos: enunciados que evidenciam os interesses e valores éticos dos indivíduos: «O bioscópio precisava estar pronto antes que alguém tivesse a mesma idéia ou roubasse a nossa!»; «A nossa estréia aconteceu oito semanas antes! Isso ninguém pode tirar de nós!»; «O dinheiro e a fama do cinema irão para outra pessoa, mas nós fomos os primeiros e agora você também sabe disso!».

Considerações Finais A partir da análise feita, vimos que a arte do filme Um Truque de Luz pode contribuir como recurso através do qual sejam exploradas relações CTS e com a promoção de reflexões e discussões que possibilitem uma percepção crítica do desenvolvimento do conhecimento tecnológico. Durante a investigação foi possível argumentar a respeito da relatividade existente nos valores que estão enraizados nos modos de pensar e agir dos licenciandos, futuros professores de física, compreendendo e valorizando o outro e sua diversidade de crença e pensamento. A análise de tal atividade didática visa contribuir com um exemplo de um filme com alto potencial para que futuros e atuais professores lancem mão da arte para abordar questões CTS, explorando a dimensão sociocultural da tecnologia e da ciência.

Referências ACEVEDO DIAZ, José Antonio (2006). «Modelos de Relaciones entre Ciencia y Tecnología: un análisis social e histórico». Em: Revista Eureka sobre Enseñaza y Divulgación Científica, Vol. 3, No. 2, pp. 198-219. AIKENHEAD, Glen (1994). «What is STS science teaching?» Em: Solomon, Joan, Aikenhead, Glen. STS education: international perspectives on reform, 1.ª ed. New York: Teachers College Press, pp.4759. FERNÁNDEZ, Isabel, GIL, Daniel, VILCHES, Amparo, VALDÉS, Pablo, CACHAPUZ, António, PRAIA, João, SALINAS, Julia (2003). «El olvido de la tecnología como refuerzo de las visiones deformadas de la ciencia». Em: Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vol. 2, No. 3, pp. 331-352.

MORAES, Roque (1999). «Análise de Conteúdo». Em: Revista Educação, Vol. 22, No. 37, pp. 7-32. OLIVEIRA, Roberto Dalmo Varallo Lima de, QUEIROZ, Glória Regina Pessôa Campello (2013). Educação em Ciências e Direitos Humanos: reflexão-ação em/para uma sociedade plural. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Multifoco. Pinch, Trevor, Bijker, Wiebe (2008). La consctrución social de hechos y

artefactos: o acerca de cómo la sociologia de la ciencia y la sociología de la tecnología pueden beneficiarse mutuamente. Em: Thomas, Hernán, Buch, Alfonso (coord.) Actos, actores y artefactos: Sociología de la tecnología. 1.ª ed. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, pp. 19-62.

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