UM VIÉS POLIFÔNICO NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTOR: A HORA DA ESTRELA

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Um viés polifônico na narrativa de Clarice Lispector..., p. 211 - 220

UM VIÉS POLIFÔNICO NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTOR: A HORA DA ESTRELA

Maria do Carmo Dias Xavier*

RESUMO O presente trabalho tem como desafio anunciar uma possível análise da novela A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Narrativa que pode ser lida como possuidora de um viés polifônico, plurissignificante, assim dito na terminologia de Bakhtin, em que a relação de alteridade está sempre presente, mesmo que sub-repticiamente. A questão do foco narrativo é um dos pontos altos da novela. Surpreendente e inovador, revela a sensível capacidade inventiva de Lispector ao congregar o duplo, ou seja, o outro da própria personagem. A relação com o outro está na entrelinha do discurso que opta pela relação dúbia, que não se constitui apenas masculina, mas apresenta, em vários momentos, a outra face: a contraparte de um ser feminino. Tal leitura possibilita-nos vislumbrar, no engendramento da teia ficcional, quão ilimitável é a combinatória de signos e os modos de articulação em uma narrativa. Palavras-chave: Alteridade. Polifonia. Discurso. Dubiedade. RÉSUMÉ Le presente travail a comme le but montrer une possibilité d`analise sur A hora da estrela, du Clarice Lispector, qui peut être lit comme poliphonique aussi plurisignification, selon Bakthin,et, ce que concerne les différences, elle sont toujours présents.La question du centre de la narrative est un point haut du texte surprenant et nouveaux, registre la sensibilité et la capacité de créer de Lispector au moment de dire le double,ça veut dire, l`autre face du personnage. La relation avec l`autre est caché dans le discour que veux la relation double qui n`est que masculin, mais présente, dans plusieurs moments, l`autre partie: la partie d`être féminin. Cette lecture possibilite regarder, dans le texte ficcional, les possibilités de signe et la façon d`articulation dans la narrative. Mots-clés: Différences. Poliphonique. Discour. Double. *

Mestranda em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.

211 Juiz de Fora, 2008

Maria do Carmo Dias Xavier

Segundo Rosana Rodrigues da Silva, a novela A hora da estrela é marcada por um experimentalismo no que concerne ao ato de narrar e à articulação de um sentimentalismo, descortinando “[...] um universo cultural, impregnado de ideais da autora, lidos em um conjunto de elementos culturais significativos e no sentido que nos aguarda [...]” (SILVA, 2007, p. 243). Esse sentido é o dos possíveis conteúdos na comunicação abordado por Umberto Eco ao ato de narrar um “[...] universo de noções, através das quais uma cultura organiza sua visão de mundo, subdividindo e sistematizando suas próprias experiências [...]” (ECO, 2004, p.13). O presente trabalho tem como desafio anunciar uma narrativa possuidora de um viés polifônico, plurissignificante, como dito na terminologia de Bakhtin, em que a relação de alteridade está sempre presente, mesmo que subrepticiamente. [...] a essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam – se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falamos de uma vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades do indivíduo, realiza-se a saída do princípio para além dos limites de uma vontade. (BAKHTIN, 1977, p.60). Para isso, Clarice agencia no corpo da narrativa os procedimentos de sua escrita ao criar o autor-narrador-personagem Rodrigo S.M.. O narrador está só, sua solidão o impele e instaura-lhe a necessidade de escrever para poder se entender: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever [...]” (LISPECTOR, 1998, p 11). E é pelos olhos do narrador, em suas múltiplas interrogações que, em um processo de espelhamento, cria a personagem Macabéa, como um desdobramento seu, tornando-se personagem, narrando-se em primeira pessoa: Vejo a nordestina se olhando no espelho e – um rufar de tambor no espelho aparece meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos (H.E, p. 22). Ainda bem que o que vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. (LISPECTOR, 1998, p. 20).

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Conhecer a protagonista faz o leitor conhecer seu criador e a alagoana impõe sua presença, não sendo possível ignorá-la: “Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência” (LISPECTOR, 1998, p. 30). Como “O outro de Si-mesmo”, comentário feito por Fabiana R. Carrijo ao citar Borges em seu texto publicado na Revista Literatura e Cultura, Macabéa força o seu existir, o seu haver na existência de Rodrigo. E é pelo diferente, pelo outro que instaura a possibilidade de autenticidade do narrador-personagem, desconhecendo-se, precisa desesperadamente de Macabéa para ver-se: “Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei de me escrever todo através dela por espantos meus.” (LISPECTOR, 1998, p. 24). Ser autor de si é optar por um caminho de reflexão nas escolhas, suscitado por pausa entre os estímulos e as respostas: “E que ‘quem sou eu?’ provocaria necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto” (LISPECTOR, 1998, p.15). Tal procedimento traz sofrimento capaz de revelar a essência do narrador ao transitar no que há de mais íntimo na protagonista: seus pensamentos. Ela não pensava em Deus, [...] Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. [...] Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. (LISPECTOR, 1998, p. 26)

Sendo assim, a busca do outro é reiterada “[...] (É paixão minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço esquálido igual a ela.)” (LISPECTOR, 1998, p. 29 – grifo da autora). Nessa passagem, pode-se observar um viés de feminilização do narrador, pois torna-se possível capturar indícios de uma escrita feminina, percorrendo, mesmo que de forma sutil, um sentimentalismo não pontuado em uma escrita masculina. O racional também não povoa tal declaração: “...escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida” (LISPECTOR, 1998, p. 17). Percebe-se um relato em que se faz presente a emoção, a fragilidade, quem sabe um súbito lacrimejar. Contrapondo à possível postura feminina, o narrador tenta, contudo, racionalizar a escrita, estabelecer uma voz declinada no masculino, ao apoderar-se do adjetivo “seco” para caracterizar o insensível: “O que narrei será meloso? Tem tendência mas então agora mesmo seco e endureço tudo. E 213 Juiz de Fora, 2008

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pelo menos o que escrevo não pede favor a ninguém e não imploro socorro: agüenta-se na sua chamada dor com uma dignidade de barão” (LISPECTOR, 1998, p. 17). Os adjetivos seco/úmido, nos dois últimos fragmentos mencionados, formalizam a dicotomia: a imagem masculina, ao suportar com “[...] dignidade de um barão” a dor, e a subestimada pieguice feminina. O narrador admite que escrever o que escreve qualquer outro escreveria, “[...] mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 14). A complexa escolha de foco narrativo, em A hora da estrela, revela, mesmo que sub-repticiamente, um viés polifônico na narrativa, visto que há uma mixagem de vozes tanto da autora quanto do narrador e da protagonista, porque se acham imbricados, explicitando real dependência um do outro para sua existência. Sozinhos são incompletos e impotentes, e Márcia Guidin reitera tal leitura ao dizer: Rodrigo é narrador de Macabéa e protagonista de uma outra história que transcorre cruzada à dela: uma história de processo de construção do texto, cuja autoria é em última instância de Clarice Lispector. A partir desse narrador, ao obrigá-lo a se projetar em sua personagem, projeta-se nela também a figura da escritora, identificando-se com ela e com ele simultaneamente. (GUIDIN, 1996, p. 48)

Apoiando no excerto acima proferido, torna-se possível o outro olhar; são vozes independentes que se combinam, em que se confere o duplo entre o narrador e a personagem protagonista. Macabéa só possui vida no discurso ficcional criado por Rodrigo S.M. que não é só narrador, é a contraparte da moça. O narrador demonstra o quão necessário é explicitá-la, como se constitui em “[...] - e preciso falar dessa nordestina senão sufoco [...]” (LISPECTOR, 1998, p.17). Ao se identificar, vai gradativamente se mostrando, desdobrando-se; ao falar de Macabéa, acaba por falar de si mesmo: [...] o material de que disponho é parco e singelo demais,[...], informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo... (LISPECTOR, 1998, p.14). Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra. (LISPECTOR, 1998, p.21).

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Rodrigo revela a simbiose que estabeleceu com a protagonista ao empregar, na construção sintática, a expressão “ela se me grudou na pele”, ou seja, que tanto Macabéa grudou à pele dele, como também o grudou à própria pele. S.M. reitera tal conexão ao comentar que “[...] a ação dessa história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Assim, sugere, o que ocorre desde as primeiras linhas do romance, um processo de transfiguração, mesmo que aparente, do masculino e do feminino. “Ao travestir-se não pretende oculta-se em disfarces, mas fazer de si um terreno propício para que a voz e a presença de Macabéa ganhem existência sem traição [...]” (LISPECTOR, 1993, p.12). Nesse procedimento, o narrador demonstra ter total cuidado ao copiar-se quando afirma: “Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 20). Nesse ponto, resgata-se a idéia de que “escrever-se” não é algo fácil, mas doloroso, árduo, engenhoso, por passar horas, dias ... constituindo-se, ocultando-se, exibindo-se diante de nossos olhos. Se por um lado, ele a vê como alguém que merece amor “Só eu a amo.” (LISPECTOR, 1998, p. 24), piedade e até mesmo raiva pela sua alienação; por outro lado, S.M. estabelece com Macabéa um vínculo mais profundo, o da comum condição humana: “Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua...” (LISPECTOR, 1998, p.19), “Nunca perdera a fé” (LISPECTOR, 1998, p. 26), e ao relatar ser ela dona de uma inesperada delicadeza aos maus tratos de chefe. No entanto, S.M. parece buscar afastar-se de sua criatura, deve-se dizer, distanciar-se de seu excesso, um excesso que se caracteriza por elementos ausentes, já que sua natureza é lacunar. Entretanto, intensificar, ao tornar nítido o distanciamento que pretende manter da protagonista, Lispector realça características masculinas no discurso de Rodrigo: Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me por no nível da nordestina. (LISPECTOR, 1998, p. 19)

Dessa forma denuncia uma relação estreita com a protagonista como se afirma em:

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Ela me acusa [...], é que realmente não sei o que me escapa, tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere [...]. (Ela me incomoda tanto que fico oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama [...]) [...] Uma palavra dela eu às vezes consigo mas ela me foge por entre os dedos. (LISPECTOR, 1998, p. 17-29).

Observa-se que Rodrigo padece por não possuir total domínio sobre a nordestina ao afirmar que, embora seja sua criação, ela possui seus mistérios. Contudo, é a sua interioridade que sempre lhe escapa, por isso, indaga o sentido de existência de Macabéa e sua tosca manifestação de vida: “Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem?” (LISPECTOR, 1998, p. 21), “Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra?” (LISPECTOR, 1998, p. 26). Nessa verdadeira viagem, põe a nu a sua imagem de escritor, tentando construir, “[...] a partir do limo de uma personagem-formiga [Macabéa] e de sua própria pessoa-gigante-de-consciência, uma estrela-pessoa [...]” (LISPECTOR, 1993, p.12). Procurando uma verdade que lhe ultrapasse, um ser ralo, inócuo, inútil, uma peça solta, é acolhida pelo olhar cuidadoso do escritor que se acha perdido, desconfiado, incomodado. Macabéa é a suposta causa de seu sofrimento, de suas angústias, mas a diferença fundamental entre a nordestina e Rodrigo é que ele reconhece sua existência e tenta explicitá-la, explicá-la, reconstituí-la através de relatos, de fragmentos da história do outro. Buscando solucionar todos esses impasses, dá forma e destino a si próprio e à moça; põe fim à existência de Macabéa e, conseqüentemente, ao seu existir: “Macabéa me matou. Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça.” (LISPECTOR, 1998, p. 86). Rodrigo percebe-se ser um ser mortal: “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – eu também?!” (LISPECTOR, 1998, p.87). Esse fragmento aponta para uma grande coincidência no que diz respeito a escritor/personagem e também à possível reversibilidade entre os dois seres, já que pode ser feita uma troca de posição sem que haja perda de função. Para que esse estudo se fundamente, é importante a análise de Benedito Nunes, já abordado por Guidin (1996), ao afirmar que o texto clariciano é “[...] um jogo de encaixe narrativo[...]”, 216 CES Revista, v. 22

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Uma outra presença, que disputa com a do narrador, insinua-se nessa modalidade de fala: a presença da própria escritora, já declarada na dedicatória da obra [...] Suspendo, pois, a sua máscara de ficcionista acreditada ao identificar- se com S.M. – na verdade Clarice Lispector - e por intermédio dele com a própria nordestina, Macabéa - a quem se acha colado o autor interposto -, Clarice Lispector fez-se igualmente personagem. E é ainda ela, Clarice Lispector, que dedica o livro, “esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje, ossos, ai de nós”. (GUIDIM, 1996, p. 48)

Analisando a curiosa “Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector)”, depara-se com o sentido duplo de narrar, uma androginia textual em que uma das faces, externa, é masculina neutra; e, a outra, mal escondida nos parênteses, é a de Clarice Lispector, pessoa individual. Assim, resta considerar o jogo de dissimulação inerente à ficção, pensamento ratificado por Fukelman (apud LISPECTOR, 1993, p. 17) na apresentação da obra em estudo, ao dizer: Este ser múltiplo chama a atenção para a situação da ficção enquanto jogo de máscara, onde o foco irradiador de verdade é posto sob suspeita e a própria idéia de verdade aflora como ponto de reflexão. [...] Para tudo haverá uma gama bem grande de opções. Se uma “verdade” existe, ela se dá na multiplicidade de versões que um fato, história ou pessoa podem fazer evocar. A ficção é este jogo.

Tal excerto faz coerente a análise no jogo dos traços identificadores semelhantes de Clarice, Macabéa e Rodrigo. A autora divide sua identidade por várias camadas do texto – Clarice é Rodrigo, que é Macabéa: portanto, Clarice é Macabéa. Lispector ao promover essa revolução interna em sua escrita, objetiva expulsar de si a dor e fazer algo pelos miseráveis. O fato de a nordestina não conseguir interagir-se na sociedade, o que a conduz ao isolamento, revela não só problemas de moradia, de alimentação e trabalho dentro da sociedade urbana brasileira, mas a omissão, a falta de sensibilidade de uma classe de elite intelectualizada que deveria tomar uma posição diante de tão absurda realidade social. Marta Francisco de Oliveira em sua tese, faz alusão a uma entrevista ao jornalista Júlio Lener, em que Clarice confessa sua identificação com a personagem alogoana, bem como os traços biográficos nela presentes: 217 Juiz de Fora, 2008

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_ Que novela é essa Clarice? _ A história de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente. A história não é só isso. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima _ Quando você foi buscar dentro de si mesma... _ Eu morei no Recife; eu morei no Nordeste; eu me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá e peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a idéia. (OLIVEIRA, 2008, p. 17)

De modo semelhante, Rodrigo S.M. explica a criação de sua personagem: Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. (LISPECTOR, 1998, p.12)

É necessário reafirmar que Rodrigo não narra apenas a história da moça nordestina, como também a sua própria história que comunga, em alguns pontos, com a história de Clarice Lispector que se criou no Nordeste. O percurso para se compreender a construção de Rodrigo esbarra-se com problemas de identidade literária no sistema cultural brasileiro vivido por Lispector. Afirma Nunes (1989 apud GUIDIN, 1996, p.84) que “O sentimento de fracasso na linguagem, que sempre acompanhou a escritora, instala-se brutalmente na figura de Rodrigo, em quem estão projetadas as amarguras do escrever [...]” “[...] Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 18). “[...] Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 21) Nos relatos sensoriais apresentados por Rodrigo - o tédio, o cansaço, a necessidade de escrever -, lê-se os sinais de sua própria composição. Não se pode ignorar que Clarice, ao criar Rodrigo S.M., o fez como criação de sua própria extensão. Rodrigo sofre no processo de composição de Macabéa, como também poderá ter sofrido Clarice no de Rodrigo: “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.” 218 CES Revista, v. 22

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(LISPECTOR, 1998, p.19). O autor Rodrigo S.M. explicita o que Lispector acredita ser a escrita uma forma de se ficcionalizar. Assim, é possível evidenciar que a autora projeta-se nos protagonistas por ela criados. A irônica escolha do foco narrativo, fingindo-se narrador masculino, corrobora para o anonimato não só da autora, como também de Rodrigo. S.M. não é só o narrador, ele é um narrador sem individualidade exterior, para que, através de seu anonimato, possa exibir o que vai por dentro, o que lhe vai à alma, o pensamento. Por isso, acha-se refletido por um espelho, e como toda imagem especular é invertida, ele se encontra em Macabéa, que, por sua vez, reflete-se em Rodrigo, que se reflete em Clarice. Cumpre ressaltar que o anonimato garante reversibilidade, bem como o desafio de se colocar no lugar do “outro”. Segundo Fabiana Rodrigues Carrijo (2002), é preciso lembrar que a presente narrativa não se faz dentro de um processo de identidade dúbia, mas que há uma voz feminina, mesmo que ela se sirva de um narrador duplo como se procurou sugerir ao longo dessa leitura. Assim, visualiza-se uma particularidade no processo discursivo da obra, um vez que há um narrador que se projeta de forma paradoxal masculino/feminino, mas a narrativa possui temática e problemática, de certo modo, voltadas para o feminino, em que se faz ouvir uma dicção feminina. Será que não se estaria diante da busca da perfeição, da completude, em que ao se unir masculino e feminino, poder-se-ia criar uma obra harmônica, congregando o duplo, a eterna procura da felicidade, porque “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 11). Mas é melhor deixar a indagação em aberto, porque mais que sugerir um caminho é deixá-lo a ser escolhido. Enfim, como se procurou estabelecer ao longo desse estudo, a relação com o outro não se faz por caminhos harmoniosos, equilibrados, previsíveis, mas justamente pelo avesso, pelo inverso, de forma conflitante, dolorosa, fragmentada, multifacetada. “A ironia empregada pelo narrador nos leva, no entanto, a um outro aspecto, que a existência mesma do livro confirma: o crédito atribuído à ficção como via de acesso à compreensão do mundo” (LISPECTOR, 1993, p.11), que permite provocar um novo olhar sobre a vida.

Artigo recebido em: 03/09/2008 Aceito para publicação: 31/10/2008 219 Juiz de Fora, 2008

Maria do Carmo Dias Xavier

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1977. p.105-127. CARRIJO, Fabiana Rodrigues. A dubiedade narrativa em Clarice Lispector: um olhar sobre A Hora da Estrela. Literatura e Cultura, ano 2, n. 2, 2002. Disponível em: http://www.litcult.net/revistalitcult_vol3.php?id=225 Acesso em: 21 abr. 2009. ECO, Umberto. As formas do conteúdo. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura: a hora da estrela de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1996. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 22. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. OLIVEIRA, Marta Francisco. A Migração Nordestina e a Construção da Identidade Cultural: uma Análise da Realidade Coxinense à Base de A hora da Estrela, de Clarice Lispector. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL – MEMÓRIAS E MIGRAÇÕES. MUSEUS, EDUCAÇÃO, DIVERSIDADES E DIREITOS HUMANOS. Comunicação... [s.L.]: FAFE, 5-8 jul. 2007. Disponível em: http://www.museuemigrantes.org/seminario-comunicacao-marta-fran.htm Acesso em: 21 abr. 2009. SILVA, Rosana Rodrigues da. Clarice Lispector, Rodrigo S. M. e Macabéa: no limiar da ficção. Revista Cerrados, Brasília, v. 16, n. 24, p. 243-259, 2007. Disponível em: http://www.andrelg.pro.br/cerrados/index.php/cerrados/article/ viewFile/20/25 Acesso em: 21 abr. 2009.

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