Uma abordagem peirceana da sequência do chuveiro em Psicose, de Alfred Hitchcock

May 30, 2017 | Autor: Leticia Capanema | Categoria: Peirce, Charles S. Peirce, Cinema, Alfred Hitchcock, Semiótica, Psicose, Saul Bass, Psicose, Saul Bass
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Uma abordagem peirceana da sequência do chuveiro em Psicose, de Alfred Hitchcock Cyntia Calhado142 Fernanda Ceretta143 Lara Mateus144 Letícia Capanema145 Resumo Este estudo tem por objetivo analisar, apoiando-se na teoria geral dos signos de C. S. Peirce, a cena do assassinato da personagem Marion, presente no filme Psicose (1960), dirigido por Alfred Hitchcock. Para tanto é feita, preliminarmente, a exposição dos fundamentos da teoria geral dos signos, bem como sua inserção na arquitetura filosófica de Peirce. O trabalho destaca a natureza triádica do signo - signo em si mesmo, objeto e interpretante – e identifica estas categorias no objeto de estudo. Palavras-chave Psicose. Teoria Geral dos Signos. Semiótica Peirceana. Abstract This study aims to analyze, relying on the general theory of signs of C. S. Peirce, the murder scene of Marion, in the film Psycho (1960), directed by Alfred Hitchcock. To do so is made, preliminarily, the exposure of the general theory of signs, as well as their insertion in Peirce's philosophical architecture. The work highlights the triadic nature of the sign - sign itself, object and interpretant - and identifies these categories in the object of study. Keywords Psicose. General Theory of Signs. Peirce's Semiotics.

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Cyntia Calhado, doutoranda e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), professora do Centro Universitário FIAM-FAAM, [email protected]. Bolsista do CNPq. 143 Fernanda Ceretta, doutoranda e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), professora da Universidade Anhembi Morumbi, [email protected]. Bolsista do CNPq. 144 Lara Mateus, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), [email protected]. Ex-bolsista do CNPq. 145 Letícia Capanema, doutora e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), professora do Centro Universitário FIAM-FAAM, [email protected]. Ex-bolsista do CNPq. 232

Introdução São inúmeros os caminhos que podem ser percorridos na análise de uma obra audiovisual. Nesse sentido, o método torna-se elemento fundamental para alcançar resultados relevantes. As especificidades de obras audiovisuais estão relacionadas às matrizes de sua linguagem, baseadas em propriedades visuais, sonoras, verbais e na relação de tais propriedades com a dimensão do tempo. Acreditamos que a semiótica peirceana, aliada aos estudos de cinema, revela-se um poderoso método para iluminar as nuances e particularidades da linguagem audiovisual. Sendo assim, este trabalho tem por objetivo analisar, com base na teoria geral dos signos de C. S. Peirce, um trecho da obra cinematográfica Psicose, dirigida por Alfred Hitchcock e lançada pela Paramount Films em 1960. Trata-se da cena em que a personagem Marion é assassinada durante o banho.

Premissas para análise

Antes de iniciar a análise da sequência audiovisual em questão, faz-se necessário expor os fundamentos da teoria geral dos signos, bem como situá-la na estrutura filosófica de Peirce. Charles S. Peirce (1839-1914) foi um importante filósofo, matemático, lógico e cientista estadunidense que buscou, em todos os campos que atuou, os fundamentos lógicos mais gerais e universais que estivessem na base do todo pensamento científico. Nesse sentido, ele desenvolveu uma semiótica não especializada, mas geral, concebida como lógica em um sentido amplo. A semiótica peirceana é uma filosofia científica da linguagem e do pensamento. Porém, ela não se restringe a tipos específicos de linguagem, como é o caso, por exemplo, da semiótica de Saussure, que limita-se ao campo linguístico. Peirce desenvolveu sua obra no sentido de construir “conceitos sígnicos tão gerais que pudessem servir de alicerce a qualquer ciência aplicada” (SANTAELLA, 1990: 11). Por esse motivo, sua semiótica não exclui a aplicação de outras teorias no processo de análise da linguagem. Pelo contrário, os conceitos gerais e abstratos da semiótica peirceana aliam-se com facilidade às teorias de outros campos do saber.

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A teoria geral dos signos, também chamada de gramática especulativa, é o ramo mais conhecido da semiótica peirceana. Contudo, é importante esclarecer que a semiótica de Peirce não se resume a ela. A semiótica, ou lógica, é uma das ciências normativas incluída na ampla estrutura filosófica construída por Peirce. Tal estrutura está fundamentada na fenomenologia, considerada por ele uma quase ciência que estuda todo e qualquer fenômeno (real ou não) que se apresenta à mente (CP, 1.284). Para o autor, todos os fenômenos perceptíveis à mente são compostos por elementos pertencentes a apenas três categorias universais: elementos de primeiridade (qualidade), de secundidade (reação) e de terceiridade (mediação). Dessa forma, a fenomenologia oferece as bases para as ciências normativas - estética, ética e lógica - que, por sua vez, são o fundamento da metafísica. Por fim, a lógica, ou semiótica, é constituída por três ramos: a gramática especulativa (ou teoria geral dos signos), a lógica crítica e a metodêutica. A gramática especulativa dedica-se ao estudo dos tipos de signos, gerando categorias abstratas que auxiliam na compreensão das condições formais para que o signo funcione como tal. A lógica crítica volta-se à investigação das formas de inferência, raciocínio e níveis de argumentação. Já a metodêutica, amparada pelos processos precedentes, busca examinar os métodos dos tipos de raciocínio, que por sua vez, ocorrem através de signos. A fenomenologia é o alicerce da arquitetura filosófica de Peirce, permeando todas as disciplinas nela contidas. Logo, os fundamentos da teoria geral dos signos, nos quais este estudo se baseia, estão intimamente relacionados à fenomenologia. Afinal todo e qualquer elemento que se apresenta à mente o faz através de signos. Segundo Santaella, “o signo é um primeiro que põe um segundo, seu objeto, numa relação com um terceiro, seu interpretante.” (2001: 40). Vale destacar que, de acordo com Peirce, as categorias sígnicas coexistem, isto é, uma não exclui a outra. Porém, há a predominância de umas sobre outras. De acordo com Peirce, os signos podem ser estudados sob três aspectos que determinam sua natureza, são eles: a significação (o signo em si mesmo, em suas propriedades internas), a objetivação (aquilo que o signo indica, representa) e a interpretação (os efeitos interpretativos que o signo provoca). Na observação do signo em suas características internas, destacam-se os aspectos de: quali-signo (pura 234

qualidade); sin-signo (signo como existente singular) e legi-signo (leis que regem o signo). Sob a perspectiva da objetivação do signo, Peirce distingue os objetos imediato e dinâmico. O objeto imediato é a forma pela qual o signo sugere, indica, representa o objeto dinâmico. Ele é sempre interno ao signo, funciona como uma espécie de recorte do objeto a que o signo se refere e é através dele que temos acesso ao objeto dinâmico. Este, por sua vez, é externo ao signo e se relaciona com ele através de três categorias: ícone, índice e símbolo. A relação icônica ocorre por semelhança. A indicial se dá por meio da conexão de fato do signo com seu objeto. Já a simbólica, acontece por meio de alguma lei ou convenção que determina a representação do objeto por um signo. Na relação entre o signo e seus efeitos (interpretantes), Peirce distingue três níveis: interpretante imediato, interpretante dinâmico e interpretante final. O interpretante imediato consiste no potencial interpretativo que o signo está apto a produzir numa mente interpretadora. Ele é interno ao signo, portanto é pura possibilidade, à espera de uma mente que o acesse. O interpretante dinâmico é externo ao signo e corresponde aos efeitos em um intérprete singular. Ele é subdividido em três camadas: emocional, que são as qualidades de sentimento que o signo provoca; energético, ações físicas ou mentais; e lógico, cognição provocada pelo signo caso o intérprete tenha internalizado alguma regra interpretativa. O interpretante final corresponde ao efeito que o signo produziria se levado à sua máxima potencialidade, isto é, se fossem produzidos todos os interpretantes dinâmicos de modo a exaurir suas possibilidades interpretativas. Porém, sabemos que os signos se encontram em um processo constante de crescimento (semiose), por esse motivo, o interpretante final é inalcançável. O interpretante final, seguindo as categorizações de Peirce, subdivide-se em três: rema, discente e argumento. O interpretante do tipo rema corresponde ao efeito interpretativo de mera hipótese, conjecturas. Por isso, ele se situa no campo da primeiridade, provém de signos essencialmente icônicos, pois é um efeito que representa pura possibilidade qualitativa. O interpretante discente refere-se ao signo de existência real, por isso é gerado por signos predominantemente indexicais. Já o interpretante argumentativo é produzido por signos que são prioritariamente leis, isto é, sua interpretação funciona por meio de sistemas simbólicos. 235

Feita a contextualização da teoria geral dos signos na arquitetura filosófica de Peirce e apresentados os fundamentos que regem esta teoria, destacamos, na análise que se segue, a natureza triádica do signo: signo em si mesmo, objeto e interpretante. Assim, este estudo se dedica à aplicação de tal teoria em uma cena cinematográfica retirada do filme Psicose, a saber, aquela em que a personagem Marion é assassinada durante o banho. Seguindo o método proposto por Santaella (2010), a análise tem início na observação do signo em si mesmo, ou seja, a observação e descrição pura, sem julgamentos, da sequência audiovisual em suas características imanentes. Em seguida, destaca-se a relação do signo com o objeto que representa. No caso desta análise, consideramos o assassinato da personagem Marion como objeto do signo cena cinematográfica de Psicose. Por fim, revelam-se os efeitos interpretativos que o signo provoca numa possível mente interpretadora, levando em conta que esta mente está familiarizada com os códigos da linguagem audiovisual.

O signo em si mesmo

Como explicado anteriormente, a observação do signo em si mesmo tem a função de iluminar suas propriedades internas, através da pura descrição de qualidades, sem ativar, por ora, o olhar interpretativo. Assim, os aspectos sin-signo da cena em questão referem-se às propriedades que tornam o signo um existente singular. A sequência audiovisual do assassinato de Marion possui aproximadamente 3 minutos de duração, cerca de 60 planos e é extraída do longa Psicose. Logo, a cena é parte de um filme que, por sua vez, é parte da filmografia de Hitchcock. O filme está contextualizado em uma fase específica da história do cinema, a produção hollywoodiana da década de 1960. Além disso, Psicose faz parte do gênero suspense e é adaptação do romance homônimo de Robert Bloch. É importante mencionar que filmes pertencem ao paradigma fotográfico, formado por imagens produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível. Por esta razão, possuem forte caráter referencial. Já as particularidades quali-signo da sequência, seus aspectos plásticos, podem ser distinguidas em: cor, pontos de vista, enquadramentos, movimentos de câmera, composição visual, duração dos planos, tom e harmonia do som. A cena é em preto e 236

branco. No banheiro, predomina o branco que é contrastado com a figura do assassino que se apresenta sempre escurecido e, por vezes, disforme e fora de foco. O ponto de vista da câmera varia bastante, temos a perspectiva de Marion, de observadores quaisquer e do assassino. Há mistura de planos médios, que mostram o ambiente em que os personagens se encontram, com primeiros planos, close de Marion gritando e planos de detalhe do ralo e do olho. Em certos planos, a câmera se movimenta seguindo a ação, como naquele em que Marion joga o papel na privada, se despe e entra no chuveiro; ou no plano que acompanha o sangue misturado à água, escorrendo pelo ralo. Notam-se também movimentos de câmera circulares, como na cena que enquadra o olho de Marion morta, em analogia à água descendo pelo ralo.

Fig. 1: Fotogramas dos planos em que são apresentadas as composições claro/escuro nítido/disforme, representando a personagem Marion e o vulto de seu assassino. Fonte: Psicose (1960)

Na composição visual dos enquadramentos, há a predominância de linhas diagonais descendentes, consequência do movimento dos jatos de água do chuveiro, da faca do assassino e da protagonista caindo. Os planos do chuveiro, do ralo e do olho de Marion morta se relacionam por apresentarem composição gráfica que enfatiza a forma circular. Durante a cena do assassinato em si, os planos são extremamente curtos, contrastando com planos mais longos, anteriores e posteriores. Dos 60 planos existentes na sequência, 42 estão concentrados na ação principal da cena, o esfaqueamento de Marion. Em relação ao som, não há diálogos, apenas sonoplastia e trilha sonora. No início da cena, a música é suave, porém com tom de suspense. Ela se esvai no decorrer da cena até desaparecer. Então, o silêncio é interrompido por barulhos diegéticos 146 da descarga, da cortina sendo aberta, do suspiro da protagonista e do chuveiro que é ligado. Em seguida, o som do chuveiro é sobreposto bruscamente pelo som extra-diegético da música aguda e tensa. Depois, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 146

De acordo com o Aumont e Marie (2012: 77), diegese é uma palavra de origem grega (diègèsis) e significa narrativa. Logo, um som diegético é aquele que faz parte da narrativa, isto é, interno a ela, como por exemplo, os diálogos de personagens. Um som extra-diegético, por sua vez, seria aquele externo à narrativa, como são as trilhas sonoras em um filme. 237

ouvem-se gritos e sons das facadas. Assim que o assassino sai do banheiro, a trilha muda para tons graves, ainda tensos. No final da cena, a trilha vai desaparecendo, restando apenas o som diegético do chuveiro.

Fig. 2: Fotogramas que evidenciam as composições diagonais descendentes. Fonte: Psicose (1960)

Fig. 3: Fotogramas dos planos nos quais se destaca a forma circular. Fonte: Psicose (1960)

Do ponto de vista dos aspectos legi-signo, destacam-se as leis que regem o signo analisado. Dentre elas, está o código audiovisual, especificamente cinematográfico. Por isso, a cena segue convenções como a continuidade dos planos, plano e contra-plano, elipses, entre outros. Por estar enquadrado no suspense, o filme obedece a um conjunto de regras estéticas e narrativas que caracterizam este gênero. A mais importante delas é suspensão e dilatação da ação dramática, que causa o efeito emocional de ansiedade no público. A cena é também submetida às leis do estilo hitchcockiano de filmar, caracterizado, por exemplo, pelo suspense e pela sofisticação estética das cenas de crime. A adesão à convenção do preto e branco é outro elemento legi-signo da sequência. Caso a cena fosse colorida, a abundância do vermelho do sangue traria um tom de violência exagerado, por isso a opção pelo preto e branco. Outra particularidade importante desta cena encontra-se no fato dela romper com as regras do cinema clássico. Isso acontece por ela estar no início da narrativa, fazendo

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com que a personagem apresentada como principal seja morta nos primeiros 20 minutos do filme, causando grande surpresa ao público habituado à narrativa clássica.

O signo em sua relação com o objeto

Quando se trata de analisar o objeto, ou seja, aquilo que o signo indica, o percurso metodológico proposto por Santaella (2010) se detém em três aspectos que devem ser especificamente destrinchados: o icônico, o indicial e o simbólico. Antes da análise destes itens, cabe, contudo, definir o assassinato de Marion, personagem interpretada por Janet Leigh no longa de Hitchcock, como objeto dinâmico do signo analisado. O signo (cena de Psicose) representa o assassinato de Marion. Vale mencionar que o assassinato também é representado por outros signos, caso das refilmagens e do romance que deu origem à obra de Hitchcock. O objeto imediato, conforme indicamos, corresponde à forma como o signo representa o objeto dinâmico. Sendo assim, o assassinato da personagem Marion se apresenta de formas distintas em cada signo que o representa. O romance utiliza os recursos da linguagem literária; o filme de Hitchcock, da linguagem cinematográfica; a refilmagem de Psicose por Gus Van Sant (1998) se vale, por exemplo, do recurso da cor. Analisaremos estas obras posteriormente, quando for abordado o interpretante final.

Aspecto Icônico

O aspecto icônico leva em consideração a relação de similaridade posto que, o ícone, “representa o objeto por meio de qualidades que ele próprio possui, exista ou não o objeto que ele representa” (SANTAELLA, 2010: 125). Para observar este aspecto é necessário identificar as semelhanças que se estabelecem entre o referente e a maneira que o filme o representa. Uma delas diz respeito ao movimento da câmera. No plano do ralo, o movimento de câmera utilizado é similar ao movimento da água misturada ao sangue. Ele é construído em panorâmica, percorrendo suavemente o espaço até chegar ao ralo. No plano do olho fixo de Marion, o movimento circular da câmera é análogo à trajetória, também circular, dos redemoinhos de água descendo pelo ralo. 239

Outra

semelhança

refere-se

à

composição

visual.

Como

apontado

anteriormente, observa-se uma predominância de linhas diagonais descendentes, que se relacionam ao assassinato em si, posto que a faca desenha o mesmo movimento. Além disso, a composição dos planos chuveiro/ralo/olho se parece pela forma circular. Na montagem, o aspecto icônico surge por meio dos planos do assassinato, através da fragmentação e da aceleração da montagem, semelhantes à ação das facadas. As imagens se relacionam à sonoplastia por correspondência (chuveiro, água etc...). Destaca-se o som das facadas, que funciona em complementaridade à ação, já que não se enxerga a faca perfurando o corpo de Marion, mas escutamos a perfuração. Importante destacar a textura viscosa, molhada e contundente do som das facadas. Assim, o som aliado à edição das imagens conduz à ideia de que, de fato, um corpo foi perfurado por uma faca. A música também se relaciona por correspondência à imagem, já que inicia suave, torna-se tensa e aguda durante o assassinato e termina de forma grave e suave, desaparecendo com a morte da vítima, dando lugar ao som do chuveiro.

Aspecto Indicial

A preocupação deste aspecto é verificar a relação do filme com a realidade que retrata. Nos filmes e vídeos, o aspecto indicial domina. A cena é o registro parcial da realidade apresentada. De fato, havia, dentro de um estúdio, uma equipe cinematográfica, atores e o diretor que executaram a cena do assassinato no chuveiro. Tal equipe concretizou uma tradução da cena do assassinato presente no romance. Na sequência, é possível, também, destacar o caráter indicial de imagens e sons. O espectador não enxerga, em momento algum, a consumação do assassinato, mas há evidências de que o fato aconteceu: o sangue que escorre pelo ralo, o grito de Marion, a sombra do assassino e o som da facada.

Aspecto Simbólico

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Ao tratar-se do aspecto simbólico, a intenção é perceber como o signo vai se referir ao objeto, o que faz através de uma lei, na maior parte das vezes por meio de uma associação geral de ideias que conduz à interpretação do símbolo como um determinado objeto (SANTAELLA, 2010: 128). Nesta sequência de Psicose, não há a lei do discurso verbal. A cena não possui diálogos e todo o sentido narrativo é construído pelas ações, enquadramentos, montagem, movimentos de câmera, sonoplastia e trilha sonora. Eles funcionam de forma associativa para que o signo seja interpretado. Destaca-se, nesta sequência, algumas simbologias passíveis de interpretação como figuras de linguagem: o banho que se apresenta como uma espécie de purificação do corpo e da consciência da personagem. Afinal, Marion havia cometido um crime (o roubo na imobiliária em que trabalhava) e estava arrependida. Importante também mencionar o momento do banho como ocasião de vulnerabilidade, já que, neste momento, a pessoa se encontra nua e sem proteção. Por último, a vida que se esvai pelo ralo, construída primordialmente através do plano do olho e do ralo. Também é importante salientar que a cena escolhida é, por si só, um signo de forte caráter simbólico. Bastante referenciada em diversas outras obras, ela funciona como uma espécie de metonímia, já que se tornou uma representação mundialmente reconhecida do filme, do diretor e mesmo do gênero do suspense.

O signo e seus efeitos interpretativos

Uma das definições mais básicas de signo é algo que representa alguma coisa para alguém. Ou seja, o signo gera, numa mente potencial, outro signo, denominado por Peirce de interpretante.

O interpretante imediato

O interpretante possui vários níveis de realização. O primeiro deles, o interpretante imediato, está relacionado à primeiridade. Isso significa que este nível de realização encontra-se dentro do próprio signo, no plano da pura possibilidade. Aplicando este conceito em um signo cinematográfico, trata-se do potencial que uma

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cena ou filme tem para ser interpretado de determinada maneira, o que se traduz em características como o público alvo esperado e o nível de repertório pressuposto. No caso da cena em questão, o público alvo é de espectadores de cinema comercial, familiarizados com a vida urbana e com a cultura norte-americana. Estes espectadores, já habituados com a linguagem cinematográfica, poderiam compreender a narrativa linear e didática da cena, bem como a significação da montagem com tal sucessão de planos. Portanto, o repertório implícito é o código cinematográfico e do suspense.

O interpretante dinâmico

Deixando o plano das possibilidades e pensando o interpretante no âmbito dos existentes (secundidade), temos o interpretante dinâmico. Esta é a denominação peirceana para o efeito singular e psicológico que cada uma das mentes, em contato com o signo, produzirá no exato momento desta exposição. A primeira subdivisão do interpretante dinâmico é o efeito emocional - o que sentimos ao assistir a cena em questão. Este interpretante está presente em qualquer interpretação, mesmo que não tenhamos consciência dele. Sendo o cinema um dispositivo de poderosa imersão, os cerca de vinte minutos de exibição que antecedem o assassinato são suficientes para que o espectador tenha criado forte empatia pela personagem Marion. Agonia, tensão, apreensão, surpresa e perplexidade são algumas das emoções que nos acompanham ao assistir Marion sendo esfaqueada. Um dos fatores que explicam a importância da cena para a história do cinema e suas inúmeras referências é o seu poder de despertar interpretantes emocionais nos espectadores. Outro efeito presente no interpretante dinâmico é o energético. Neste caso, promove-se um esforço, despende-se energia, seja ela física ou mental. Audiências contemporâneas ao lançamento do filme estavam tão entregues a Psicose – gritando, rindo, jogando pipoca – que até mesmo Hitchcock ficou surpreso, a ponto de conversar com o Departamento de Psicologia da Universidade de Stanford sobre um possível estudo para entender as reações histéricas ao longa (PHILLIPS, 2008: 67). Esta histeria citada em relatos históricos, envolvendo gritos, mãos cobrindo os olhos e arrepios dos espectadores, são exemplos do efeito energético que a cena provoca. 242

Entre as subdivisões do interpretante dinâmico, está o efeito lógico. Para que um signo seja interpretado, é necessário que a mente em questão possua determinadas regras interpretativas internalizadas, ou seja, conhecimentos prévios. Quando não compreendemos um texto redigido em outro idioma, é porque não possuímos regras interpretativas suficientes para que este signo atravesse o interpretante dinâmico e chegue até o interpretante final. Sendo assim, o efeito lógico da cena de Psicose é o código cinematográfico/audiovisual. O espectador precisa entender, por exemplo, que a sucessão de planos do assassinato e o som, em conjunto, pretendem retratar a personagem sendo esfaqueada, mesmo sem nunca vermos a faca cortando o corpo da atriz. Além disso, quando Marion entra no banho, são utilizadas elipses, recurso bastante popular no cinema que denota passagem de tempo, fazendo com que o tempo fílmico seja superior ao tempo real. Se o espectador não está familiarizado com esta linguagem, o corte da personagem para ela mesma gera “pulos” incongruentes e confusos, distorcendo a mensagem que o diretor tinha a intenção de transmitir para a audiência. Outro elemento que pode ser analisado sob a perspectiva do interpretante lógico é o uso do MacGuffin, termo utilizado por Hitchcock, e por profissionais da narrativa, para caracterizar a motivação dos personagens na trama (GARDNIER, 2011: 21). Essa motivação pode ser traduzida em um objeto, um lugar, uma pretensão, ou seja, um desejo que impele as ações dos personagens. No caso de Psicose, o MacGuffin, a priori, corresponde aos quarenta mil dólares roubados por Marion. Porém, no momento em que a personagem principal é assassinada, o dinheiro perde importância na trama. Nesse sentido, a cena do crime no chuveiro corresponde ao ponto de virada da narrativa. A partir de então, a trama é reconfigurada: o personagem Norman Bates assume o papel de protagonista e o assassinato de Marion passa a ser a motivação narrativa. Analisar o efeito lógico em Psicose é curioso, pois o próprio assassinato de Marion funciona como efeito lógico para as diversas paródias já realizadas, que ressignificam a cena de inúmeras formas. Se não conhecemos a produção original, não temos a informação necessária para compreender as diversas releituras contidas em obras cinematográficas, televisivas, gráficas, entre outras.

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O interpretante final

Em relação à terceiridade, Peirce define o interpretante final. Trata-se do interpretante com o poder de constituir a “verdadeira” interpretação, ou seja, aquela que todas as mentes seriam levadas a produzir. Ao realizar um profundo estudo de determinado signo, chegamos a uma série de conclusões. Sendo assim, a interpretação final torna-se inalcançável, tamanhas as possibilidades. Estas tendem ao infinito, pois o signo nunca para de crescer, em um processo de semiose constante. O interpretante final, de acordo com a categorização de Peirce, possui três subdivisões: rema, discente e argumento. No caso da cena do assassinato de Marion, destacamos os interpretantes finais do tipo discente e argumentativo. Por pertencer ao paradigma fotográfico, isto é, com forte caráter referencial, a cena cinematográfica possibilita interpretações discentes relacionadas a um existente real. De fato, sabemos que uma equipe, composta de diretor, atores, fotógrafos, sonoplastas, continuístas etc, captaram imagens e sons existentes em determinado tempo e espaço. Através de experiências colaterais, que fazem parte do vasto interpretante final, sabemos, por exemplo, que o som das facadas foi extraído de perfurações feitas em um melão (REBELLO, 2012: 135). Vem daí a qualidade de textura sonora que se assemelha ao som de uma faca perfurando o corpo humano. Outra interpretação relacionada ao efeito discente refere-se à participação do artista gráfico Saul Bass na concepção dos planos que compõem a cena. Saul Bass foi o responsável pela criação do storyboard da sequência do chuveiro (ibid.: 119). Ao analisar a composição visual da cena, percebemos que ela possui forte aspecto gráfico, principalmente nos desenhos das linhas verticais (jatos do chuveiro, movimento da faca e queda de Marion) e circulares (chuveiro, ralo, olho de Marion). Sob o ponto de vista dos interpretantes finais argumentativos, podemos destacar, além dos livros e filmes sobre o Psicose e Hitchcock 147 , as diversas refilmagens e paródias realizadas a partir da cena do assassinato de Marion. Tal cena reaparece em outros signos, como na refilmagem de Psicose, feita por Gus Van Sant, em 1998, e na paródia realizada em episódio do desenho animado Tiny Toons. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 147

A saber: o filme Hitchcock, dirigido por Sacha Gervasi e lançado em 2012; o livro Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose, de Stephen Rebello (1990) e o conhecido livro de entrevistas Hitchcock/Truffaut (1983), entre outros. 244

Fig. 4: Charles S. Peirce. A refilmagem Psicose (1998) de Gus Van Sant é um interpretante final argumentativo. Fonte: Psicose (1998)

Fig. 5: Assim como a paródia realizada em episódio do desenho animado Tiny Toons.Fonte: Imagem retirada de Tiny Toons, episódio Fifi Appreciation Day (quarto episódio da segunda temporada de The Tiny Toons & Looney Tunes Show – 1991).

Estes dois outros signos partem do mesmo objeto dinâmico para criar representações bastante distintas. O primeiro deles, também sob o paradigma fotográfico, refaz a cena original, propondo a inserção da cor, novos atores e traços estéticos próprios da produção audiovisual da década de 1990. Já o segundo, utiliza desenho animado, isto é, não se trata de captação de imagem, mas de sua geração através de técnicas de animação.

Considerações finais

Como demonstrado, o signo “cena do assassinato de Marion” está em constante processo de semiose, que “regride infinitamente em direção ao objeto dinâmico e progride em direção ao interpretante final” (SANTAELLA, 2010: 42). No entanto, não podemos esquecer que, quando observamos um signo, somos interpretantes dinâmicos, singulares, postos em diálogo com o signo interpretado. Logo, este estudo não tem a pretensão de esgotar as investigações sobre o signo 245

escolhido, mas sim contribuir, através da semiótica peirceana, para melhor compreensão das nuances da linguagem audiovisual. Dessa forma, concluímos que a teoria geral dos signos, permeada pelos fundamentos da fenomenologia, revela-se uma eficaz estrutura de pensamento para compreensão e análise da linguagem audiovisual, assim como das demais linguagens.

Referências bibliográficas AUMONT, Jacques e MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas, SP: Ed. Papirus, 2012. GARDNIER, Ruy. Introdução. In: Hitchcock. catálogo de exposição. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2011. PEIRCE, Charles S. Collected Papers, vols. 1-8, C. Hartshorne, P. Weiss y A. W. Burks(eds). Cambridge, MA: Harvard University Press. Electronic Edition of J. Deely,Charlottesville, VA: InteLex, 1931-1958. PHILLIPS, Kendall. Controversial Cinema: The Films That Outraged America. EUA: Praeger Publishers Inc, 2008 (49-85). REBELLO, Stephen. Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose. Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca, 2013. SANTAELLA, Lucia. O que é Semiótica. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990. _________________. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2001. _________________. Semiótica Aplicada. 5ª reimpresão. São Paulo: Cengage Learning, 2010. TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas. São Paulo: Companhia das letras, 2004. Audiovisual PSICOSE. Psycho. Direção Alfred Hitchcock. Produção Alfred Hitchcock. Estados Unidos: 1960. Estados Unidos: Universal Pictures. DVD (104 min), p&b. PSICOSE. Psycho. Direção Gus Van Sant. Produção Gus Van Sant, Brian Grazar. Estados Unidos: 1998. Estados Unidos: Universal Pictures. DVD (104 min), color. FIFI APPRECIATION DAY, Tiny Toons & Looney Tunes Show. Criação Tom Ruegger. Produção Amblin Entertainment, Warner Bros. Animation. Estados Unidos: 1991. (22 min), color.

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