UMA ALUCINAÇÃO NA PONTA DE TEUS OLHOS: IMAGENS POÉTICAS EM \"PARANOIA\", DE ROBERTO PIVA & WESLEY DUKE LEE

June 5, 2017 | Autor: Leonardo Morais | Categoria: Fotografia, Poesia, Roberto Piva, Wesley Duke Lee, Imagem Poética
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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens

Leonardo David de Morais

UMA ALUCINAÇÃO NA PONTA DE TEUS OLHOS: Imagens poéticas em Paranoia, de Roberto Piva & Wesley Duke Lee

Belo Horizonte – MG 2015

Leonardo David de Morais

UMA ALUCINAÇÃO NA PONTA DE TEUS OLHOS: Imagens poéticas em Paranoia, de Roberto Piva & Wesley Duke Lee

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFETMG) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagens. Área de concentração: Tecnologia e Processos Discursivos Linha de pesquisa: Literatura, Cultura e Tecnologia Orientador: Prof. Dr. Wagner José Moreira

Belo Horizonte – MG 2015

Leonardo David de Morais

UMA ALUCINAÇÃO NA PONTA DE TEUS OLHOS: Imagens poéticas em Paranoia, de Roberto Piva & Wesley Duke Lee

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG, em 14 de dezembro de 2015, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem, aprovada pela Banca Examinadora constituída pelos professores: ____________________________________________________ Prof. Dr. Wagner José Moreira – CEFET/MG Orientador ____________________________________________________ Profª. Drª. Silvana Maria Pessôa de Oliveira – UFMG Examinadora Titular ____________________________________________________ Prof. Dr. João Batista Santiago Sobrinho – CEFET/MG Examinador Titular ____________________________________________________ Prof. Dr. Mário Alex Rosa – USP-CEFET/MG Examinador Titular ____________________________________________________ Prof. Dr. Rogério Barbosa da Silva – CEFET/MG Examinador Suplente

Para Romeu e Maura, pai & mãe

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família pelo apoio incondicional. Às amigas e amigos que souberam relevar minhas ausências durante esse percurso. Aos colegas do mestrado pela interlocução afetuosa, delirante e profícua. Ao Prof. Wagner Moreira, pelo estímulo e orientação despendidos. Aos professores do PPG – Estudos de Linguagens do CEFET-MG e outras instituições que, de uma forma ou de outra, contribuíram para o amadurecimento e enriquecimento desta pesquisa e de minha trajetória acadêmica. Aos professores membros da Banca Examinadora pela leitura crítica desta dissertação. À Sandra e às meninas da secretaria pela eficiência e gentileza no trato. Ao CEFET-MG e à FAPEMIG pela concessão da bolsa de estudo. Ao Mário Alex Rosa pela sugestão inicial do tema.

“Dar tudo pela presença dos longínquos” Carlos Drummond de Andrade

RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo analisar no livro Paranoia, a partir de operações criadoras da imagem poética, as relações entre os poemas do poeta Roberto Piva e as fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee. As fotografias de Duke Lee não ilustram meramente os versos de Piva, mas estabelecem um diálogo sui generis, paradoxalmente tenso e harmonioso, entre linguagens distintas. O levantamento e a comparação de alguns elementos recorrentes tanto nos versos quanto nas imagens fotográficas é a base da estratégia para sistematizar tal hipótese. A intenção é a de contribuir com um olhar crítico não apenas em relação à materialização de imagem e palavra nessa obra literária, mas também a de sinalizar algumas perspectivas sobre o real e o imaginário. Palavras-chave: Fotografia. Imagem poética. Poesia. Roberto Piva. Wesley Duke Lee.

RESÚMEN

Esta tesis tiene como objetivo analizar en el libro Paranoia las relaciones entre los poemas del poeta Roberto Piva y las fotografías del artista Wesley Duke Lee a partir de algunas operaciones creadoras de la imagen poética. Las fotografías de Duke Lee no sólo ilustran los versos de Piva pero logran establecer un diálogo sui generis, paradójicamente tenso y armonioso, entre lenguajes distintos. El análisis de algunos elementos recurrentes en los versos y en las imágenes fotográficas se presenta como base de la estrategia para sistematizar esta hipótesis. La intención es contribuir para la construcción de una mirada crítica no sólo en la relación entre imagen y la palabra en esta obra literaria, sino también señalar una cierta perspectiva sobre el real e imaginario. Palabras-clave: Fotografía. Imagen poética. Poesía. Roberto Piva. Wesley Duke Lee.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 144 FIGURA 2 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 148 FIGURA 3 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 151 FIGURA 4 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 154 FIGURA 5 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 155 FIGURA 6 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 157 FIGURA 7 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 158 FIGURA 8 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 159 FIGURA 9 – Foto de Wesley Duke Lee......................................................................... 161 FIGURA 10 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 163 FIGURA 11 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 164 FIGURA 12 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 165 FIGURA 13 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 167 FIGURA 14 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 168 FIGURA 15 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 170 FIGURA 16 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 175 FIGURA 17 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 177 FIGURA 18 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 178 FIGURA 19 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 180 FIGURA 20 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 181 FIGURA 21 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 182 FIGURA 22 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 186 FIGURA 23 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 187 FIGURA 24 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 188 FIGURA 25 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 190 FIGURA 26 – Foto de Wesley Duke Lee....................................................................... 193 FIGURA 27 – Capa da 2ª edição de Paranoia................................................................ 202 FIGURA 28 – Folha de rosto da 2ª edição de Paranoia.................................................. 204 FIGURA 29 – Trecho do poema “A piedade” ................................................................ 207

FIGURA 30 – Capa da 3ª edição de Paranoia ............................................................... 208 FIGURA 31 – Folha de rosto “falsa” de Paranoia 3ª edição ......................................... 210 FIGURA 32 – Folha de rosto “verdadeira” de Paranoia 3ª edição ................................ 211 FIGURA 33 – Trecho do poema “A piedade”................................................................. 214

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1: DO POETA, DO FOTÓGRAFO & DO EDITOR ........................ 18 1.1 Roberto Piva, cavaleiro do mundo delirante .......................................................... 18 1.1.1 O poeta e a sua obra ...................................................................................... 18 1.1.2 Geração 60 / Novíssimos ................................................................................ 24 1.2 Wesley Duke Lee, um salmão contra a correnteza ................................................. 27 1.2.1 O fotógrafo e a sua obra ................................................................................. 27 1.2.2 Grupo Rex & Happenings .............................................................................. 36 1.3 Massao Ohno, o samurai da sombra ....................................................................... 39 1.3.1 O editor............................................................................................................ 39 1.3.2 A editora.......................................................................................................... 40

CAPÍTULO 2: IMAGENS QUE SURGEM DA PALAVRA ................................ 43 2.1 A imagem ............................................................................................................... 44 2.2 Imagem & palavra ................................................................................................. 53 2.3 Da metáfora à montagem ....................................................................................... 57 2.4 Analogia & imagem poética .................................................................................. 65

CAPÍTULO 3: COM A PALAVRA, AS IMAGENS FOTOGRÁFICAS ............. 78 3.1 Fotografar: desenhar imagens com luz ................................................................... 78 3.2 Uma práxis entre a arte & a reprodutibilidade ....................................................... 83 3.3 Entre o real & o imaginário .................................................................................... 89 3.4 Fotografia & literatura: interseções ........................................................................ 97

CAPÍTULO 4: A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS EM PARANOIA ................... 110 4.1 Das imagens poéticas ............................................................................................. 110 4.1.1 Paranoia como tema ..................................................................................... 111

4.1.2 Paranoia como tática .................................................................................... 121 4.2 Das imagens fotográficas ....................................................................................... 141 4.2.1 Táticas & temáticas ....................................................................................... 141 4.2.2 Do real ao imaginário ................................................................................... 162 4.3 Poesia versus fotografia? ........................................................................................ 172 4.3.1 Convergências ............................................................................................... 173 4.3.2 Divergências .................................................................................................. 189

CAPÍTULO 5: PARANOIA EM DOIS TEMPOS ....................................................196 5.1 Livro & imagem ..................................................................................................... 196 5.1.1 A gênese de Paranoia .....................................................................................198 5.1.2 A segunda edição............................................................................................201 5.1.3 A terceira edição ............................................................................................207 5.1.4 Algumas observações .....................................................................................215

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 217

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 227

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INTRODUÇÃO

“eu sou uma alucinação na ponta de teus olhos” Roberto Piva

A epígrafe escolhida para iniciar esta pesquisa e que, em parte, também a intitula, foi tomada emprestada do último dos versos que compõem o poema “Meteoro”. Este, por sua vez, é o poema que encerra o livro Paranoia (2000), de autoria do poeta paulistano Roberto Piva. O volume foi ilustrado com fotografias e editado, respectivamente, pelo artista plástico Wesley Duke Lee e pelo editor Massao Ohno no ano de 1963. Partindo do derradeiro verso dessa obra – obra que anunciamos como o objeto de nossa investigação por conta de seu caráter extremamente imagético – será levado a cabo uma análise relativa a alguns de seus aspectos que pensamos ser importantes no sentido de contribuir para uma leitura um pouco mais acurada não apenas do livro em si, mas também das manifestações e relações entre seus elementos constituintes de uma maneira mais ampla. Para efetuarmos tal empreitada, a pesquisa será dividida em sete capítulos, incluindo a Introdução e as Considerações Finais. Mas o quê exatamente será investigado ao longo desse percurso aqui proposto e que ainda está em seu momento introdutório? Para nos ajudar a responder essa primeira indagação, evocamos uma observação feita pelo poeta e crítico Claudio Willer, estudioso da poesia de Roberto Piva, sobre nosso objeto de estudo, o livro Paranoia: “Seu modo dominante é a imagem poética, tal como definida por Pierre Reverdy e adotada pelo surrealismo” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 150). É justamente o conceito de “imagem poética” apontado por Willer que tentaremos identificar não apenas nos versos de Roberto Piva, mas, também, nas fotografias de Wesley Duke Lee que integram o corpus deste estudo. No primeiro capítulo desta nossa trajetória, intitulado Do poeta, do fotógrafo & do editor, serão apresentados, ainda que de maneira sucinta, aspectos biobibliográficos de cada um dos envolvidos na concepção e na materialização do nosso objeto de inquirição. Para isso, nos valeremos de uma seleta de textos críticos feitos por diversos comentadores e estudiosos dos artistas envolvidos e, claro, de suas respectivas produções. Acreditamos que o conhecimento de alguns aspectos das vidas e das obras de Piva, Duke Lee e Ohno pode

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contribuir sobremaneira para a construção de uma perspectiva mais sólida em relação à visada que pretendemos lançar sobre a obra Paranoia. O segundo capítulo trará uma série de considerações sobre os conceitos de imagem, mais especificamente, da imagem e suas relações com a palavra. Nomeada como Imagens que surgem da palavra, esta etapa da pesquisa tem por objetivo, assim como o próximo e terceiro capítulo, apresentar uma série de conceitos que constituem a linha dorsal do arcabouço teórico a ser utilizado para a feitura da presente investigação. Nesse sentido, o capítulo em questão foi subdivido em quatro seções: a primeira delas traz considerações sobre a imagem ao longo da história da humanidade. Valeremos-nos das ponderações de Martine Joly (2012), Gilbert Durand (2002), Régis Debray (1993), Jacques Aumont (1993), Sergei Eisenstein (2002), Vilém Flusser (2008), Georges Didi-Huberman (2013), Lucia Santaella e Winfried Nöth (2012) no intuito de esclarecer a produção e a recepção desse elemento em nosso imaginário cultural. A segunda parte, intitulada Imagem & palavra, trará, como o título indica, mais algumas considerações sobre as relações advindas entre esses elementos. Para tanto, além dos já citados Lucia Santaella e Winfried Nöth, proposições de Octavio Paz e de Ezra Pound sobre o tema ajudarão a consolidar essa etapa inicial. Na sequência, será apresentado o terceiro subcapítulo, cujo título Da metáfora à montagem indica que o cerne da discussão se dará na convergência desses dois elementos enumerados. As definições de Aristóteles (2004) e Massaud Moisés (2013) sobre esses mesmos elementos serão aliadas às considerações tecidas por Roman Jakobson (2007), Modesto Carone Netto (1974), Eisenstein (2002) e Jacques Rancière (2012). Na quarta e última parte do segundo capítulo, os conceitos de “analogia” e “imagem poética”, basilares à nossa pesquisa, serão deslindados a partir das reflexões tecidas por alguns estudiosos de tais estratégias. No subcapítulo Analogia & imagem poética, Silveira Bueno (2015), Aristóteles (2004), o futurista Tommaso Marinetti (1980), além de Octavio Paz (2013), Eisenstein (2002), Wagner José Moreira (2006), Vera Casa Nova (2008), Juan Eduardo Cirlot (1953) e, principalmente, o francês Pierre Reverdy (1918) – junto ao surrealista André Breton (1985) – terão parte de suas proposições relativas aos temas averiguadas. O intuito, nunca é demais ressaltar, é o de continuar a dar corpo ao referencial teórico do qual lançaremos mão para a análise de nosso objeto.

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O terceiro capítulo, ao qual nomeamos Com a palavra, as imagens fotográficas, apresentará algumas considerações sobre essa outra variante de imagem que está presente de maneira praticamente indelével nas páginas da obra Paranoia. No primeiro momento deste novo capítulo chamado de Fotografar: desenhar imagens com luz, um levantamento sobre as origens do ato fotográfico em nosso imaginário cultural será apresentado ao leitor a partir dos estudos feitos por alguns especialistas no assunto, tais como Gabriel Bauret (1992), Boris Kossoy (2014), Walter Benjamin (1994) e Claudio Kubrusly (1983). Na segunda parte desse terceiro capítulo, intitulado Uma práxis entre a arte & a reprodutibilidade, serão evocadas algumas considerações que colocam em perspectiva crítica tal manifestação. Partindo das observações contundentes de Charles Baudelaire (1859) e Susan Sontag (2006), passando pelas observações de Jean Marie-Schaeffer (1996) para chegar às inquirições do supracitado ensaísta alemão Walter Benjamin (2012), a fotografia será problematizada a partir dos conceitos, a princípio antagônicos, de arte e da reprodutibilidade. Essa perspectiva dupla também será mantida, mas com outros elementos, na próxima parte do mesmo capítulo. Com o título de Entre o real & o imaginário, essa sequência do trabalho traz uma série de reflexões sobre a confusão permanente entre as duas instâncias anunciadas no subtítulo. As considerações de Philippe Dubois (1993), Susan Sontag (2004), Boris Kossoy (2014) e, principalmente, Roland Barthes (1984) ajudarão a esclarecer algo sobre essa manifestação que ora é tomada como representação do real, ora é considerada como manifestação legítima da imaginação. Ainda, na etapa final do terceiro capítulo, serão apresentadas algumas palavras sobre as relações entre a fotografia e a literatura. Com o nome de Fotografia & literatura: interseções, essa parte da escrita privilegiará as relações entre a imagem fotográfica e o texto literário, relações que serão postas em perspectiva a partir das inquirições de Sheila Lerner (2008), Rosalind Krauss (2013), dos modernistas Mário de Andrade e Murilo Mendes (1987), Teodoro Assunção (2004), Luciano Cavalcanti (2012) e Walter Moser (2006). Na sequência, algo dos conceitos de “interartes” e “intermídia”, que acreditamos também poderem ser apreendidos a partir de nosso objeto, serão convocados tendo como base as proposições de Claus Clüver (2006) e de Irina Rajewsky (2012). Encerrando essa parte, mais um conceito, o de “coerência intersemiótica”, cunhado por Luís Hellmeister Camargo (1998), será introduzido como outra ferramenta a ser utilizada na fase analítica da pesquisa.

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É no quarto capítulo desta dissertação que a análise do corpus será levada a cabo de maneira direta. Dividido em três momentos, o capítulo Das imagens em Paranoia apresentará um panorama “tríptico” da obra. No primeiro momento, intitulado Das imagens poéticas, o conceito de “imagem poética” será investigado a partir da ideia de “paranoia”, ideia essa que entendemos ser uma possível chave de leitura para o livro. Esse movimento se dará sob duas perspectivas. A primeira tratará a “paranoia” como tema. Para isso, aplicaremos os conceitos mencionados nos dois capítulos anteriores acrescidos de algumas observações de Lucia Maria de Mello (2006) sobre o fenômeno paranoico, oriundas dos estudos psicanalíticos de Freud e Lacan. A segunda das perspectivas tentará apreender a “paranoia” como tática, isto é, como estratégia de composição poético/textual. A manifestação da “imagem poética”, mais uma vez, será sistematizada no corpus escolhido. Para tal, lançaremos mão de algo do método “crítico-paranoico” de Salvador Dali (1974) e da “montagem intelectual” de Sergei Eisenstein (2002), estratégias que, entrevistas nos versos de nosso objeto, poderiam aproximá-lo da estética cinematográfica, fenômeno observado pela pesquisadora Rosa Maria Martelo (2012) em relação a uma parcela expressiva da poesia de língua portuguesa moderna e contemporânea. O segundo subcapítulo, nomeado como Das imagens fotográficas, apresentará, conforme seu título explicitamente nos indica, uma análise do ensaio fotográfico produzido por Wesley Duke Lee. A ideia de “imagem poética”, deslindada e apreendida a partir dos versos pivianos nas etapas anteriores, também será investigada nas fotografias sob mais uma dupla perspectiva. A primeira se debruçará sobre as táticas e os temas detectáveis nas imagens fotográficas. Novamente as proposições de Dali (1974) e Eisenstein (2002), somadas às observações de Walter Benjamin (1985) e Paul Virilio (1993) sobre o assunto auxiliarão a construir mais essa visada. Na sequência, algumas considerações sobre a relação entre o real e o imaginário, considerações praticamente indispensáveis quando se pensa o ato fotográfico a partir de uma posição crítica, serão resgatadas dos capítulos anteriores. As proposições de Philipe Dubois (1993), Susan Sontag (2006), Boris Kossoy (2014) e do semiólogo Roland Barthes (1984) darão suporte a mais um movimento de análise que buscará compreender como se dá essa relação entre instâncias distintas – real e imaginário – nas imagens fotográficas do livro Paranoia.

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No terceiro e último subcapítulo desta quarta etapa de nossa pesquisa – intitulado com uma pergunta, Poesia versus fotografia? –, os versos de Piva e as fotos de Duke Lee serão contrapostos. A partir do conceito de “coerência intersemiótica” defendido por Luis Hellmeister Camargo (1998), serão acrescidas as proposições de Barthes (1984), Rajewsky (2012), Susana Dobal (2011) e outros já mencionados na apresentação das análises anteriores. O intuito é o de apontar possíveis convergências ou mesmo alguma divergência existente entre os poemas e as imagens fotográficas que, juntos, constituem a obra literária escolhida como objeto de nossa análise conforme pontuado. Antes de serem tecidas as Considerações Finais, nas quais tentaremos sintetizar e arrematar com algumas conclusões todo o trabalho empreendido, será apresentado mais um capítulo, o quinto e último da pesquisa. Intitulado como Paranoia em dois tempos, essa parte derradeira do estudo oferecerá um panorama das especificidades editorais relativas às edições que o livro Paranoia teve até o presente momento. Para tal, teóricos da área como Aníbal Bragança (2002), Richard Hendel (2006), Emanuel Araújo (2008), Jan Tschichold (2014) e o supracitado Luís Hellmeister Camargo (1998) serão convocados para nos auxiliar nesse último movimento. Por fim, esperamos que o trabalho desenvolvido e que começa a ser apresentado contribua para ajudar a cultivar e consolidar uma visada crítica, mas nem por isso menos sensível, não apenas da obra Paranoia, mas também sobre as manifestações artísticas e culturais que se aproximam de uma forma ou de outra a esse objeto prenhe de potência plástica e que, segundo entendemos, merece algum destaque no contexto artístico contemporâneo.

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CAPÍTULO 1: DO POETA, DO FOTÓGRAFO & DO EDITOR

“A obra de arte é primeiro obra, depois obra de arte.” Fernando Pessoa

Conforme anunciado na Introdução, neste primeiro capítulo, serão apresentados os três artífices responsáveis, cada um a sua maneira, pela materialização do objeto de estudo desta dissertação, o livro de poemas e fotografias Paranoia. Para tanto, será inicialmente apresentada uma breve, porém necessária, revisão biobibliográfica das travessias de Roberto Piva, Wesley Duke Lee e Massao Ohno, poeta, fotógrafo e editor, respectivamente. O objetivo é o de começarmos a angariar subsídios para a formação e subsequente consolidação do arcabouço teórico a ser utilizado para o empreendimento da análise relativa ao corpus escolhido para a constituição desta pesquisa que, a partir de agora, tem início.

1.1 Roberto Piva, o cavaleiro do mundo delirante “Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante” Murilo Mendes

1.1.1 O poeta e sua obra

Roberto Lopes Piva nasceu na cidade de São Paulo em 25 de setembro de 1937. Segundo palavras do próprio poeta no texto “Autobiografia”, que abre o livro Antologia Poética: Nasci na maternidade Pró-Matre no coração de São Paulo [...]. Piva é um antigo nome do Veneto (Itália do Norte). Meu avô era de Saleto, perto de Rovigo. O Livro da Família, que tinha lá em casa, conta a história de um antepassado cavaleiro que combateu nas Cruzadas. Como o avô Cacciaguida de Dante. Só que ao voltar das Cruzadas virou herético & começou a pregar a favor do Demônio. Por ordem do bispo local, foi queimado na praça pública com armadura & tudo. No momento, deve estar passando uma temporada na IX Bolgia do Inferno de Dante. Local destinado aos semeadores de discórdia. Os filhos fugiram da cidade & a descendência continuou. Mas em matéria de revolta eu não preciso de antepassados. A

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minha vida & poesia tem sido uma permanente insurreição contra todas as Ordens. Sou uma sensibilidade antiautoritária atuante. Prisões, desemprego permanente, epifanias, estudo das línguas, LSD, cogumelos sagrados, embalos, jazz, rock, paixões, delírios & todos os boys. O cinema holandês informará (PIVA, 1985, p. 5).

O tom deste texto revela um pouco da personalidade entusiástica do poeta e desvela uma postura inconformista que oscila entre o questionamento da ordem estabelecida e a conclamação para uma existência de caráter libertário. As múltiplas referências à história e à literatura associadas a sua ‘autobiografia’, ainda no mesmo texto, revelam um poeta que, em certa medida, intenta abolir, ou ao menos tornar difusas as fronteiras entre o real e o imaginário. Nesse sentido, Piva, por meio de uma persistente afirmação da indissociabilidade entre poesia e vida, pareceu levar a termo a construção de não apenas uma poética muito particular, mas também de uma experiência ética e estética que extrapola as páginas de seus livros suscitando reflexões sobre determinadas estruturas de poder que orientam um cotidiano tacanho ao qual o poeta sempre empreendeu crítica ferrenha. Embora tenha nascido na capital paulista, Roberto Piva passou a primeira infância no interior do estado, entre as cidades de Brotas e Analândia, onde seus pais eram fazendeiros. No livro Os dentes da memória (2011), das jornalistas Camila Hungria e Renata D’Elia, Piva, em um trecho das várias entrevistas que formam o volume, recorda-se desse período: Antes de vir para São Paulo, eu não tinha acesso à literatura. Estudei no Mackenzie até os 15 anos porque meus pais eram fazendeiros [...] onde não havia ginásio. Então, eu ficava em São Paulo na pensão da Dona Dorinha e, nos finais de semana, voltava para a fazenda. (PIVA apud D’ELIA, HUNGRIA, 2011, p. 12)

Interessante pontuar que, apesar de não ter acesso à literatura dita ‘formal’ ou ‘canônica’ nestes anos iniciais, Roberto Piva teve acesso a outras manifestações culturais pouco ortodoxas que talvez tenham sido decisivas não apenas à formação da personalidade do jovem que logo no início da maioridade começou a se afirmar como um poeta talentoso, mas também na maneira como este viria a propor uma visão plástica de tons proféticos e alucinatórios do contexto em que atuava. De acordo com Piva em livro que reúne grande parte de suas entrevistas, organizado pelo editor Sérgio Cohn (2009):

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Eu sempre pratiquei e pesquisei o xamanismo, desde os 12 anos. Meu pai tinha fazenda em Analândia, perto de Rio Claro. Tinha um empregado mestiço de índio com negro, o Irineu. Ele me fazia ficar olhando para o fogo. E me iniciou na piromancia; as imagens e os espectros que saem do fogo. (PIVA apud COHN, 2009, p. 149)

Percebe-se, desde a infância, uma especial atenção do poeta para com as imagens, esse elemento que, acreditamos e tentaremos demonstrar ao longo desta dissertação, é um elemento fulcral à construção do projeto poético empreendido por Roberto Piva. Outras experiências não necessariamente literárias, mas que tangenciam em vários momentos essa modalidade artística, aparentemente contribuíram para a formação sui generis do autor. Dentre elas, os quadrinhos e o cinema, conforme revela o próprio Piva em outra entrevista: [...] a minha formação, costumo dizer sempre, foi futebol, troca-troca, Hegel e as matas do interior de São Paulo. E o gibi, que é uma coisa importantíssima. Antes não tinha televisão. [...] A maioria das pessoas matava o cinema para ir para a escola, eu matava aulas para ir pro cinema. (PIVA apud COHN, 2011, p. 166)

Tal expediente de substituir as aulas pelo cinema, assim como a menção aos quadrinhos, suporte no qual também há uma conjunção entre a palavra e a imagem, evidencia a importância destas instâncias para a composição do referencial artístico e teórico que o poeta viria a se utilizar alguns anos depois já na capital de São Paulo, onde começou a escrever seus primeiros poemas. O interesse de Piva pela poesia começou a consolidar-se quando este se muda com a família para uma casa na capital paulista. “Quando nos mudamos pra cidade é que passei a ler” (PIVA apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 12). Sobre os pais, o poeta se recorda: “De poesia eles não gostavam, não incentivavam e não tinham o menor interesse” (PIVA apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 12). Nesse período, entra em contato com os poetas Claudio Willer, Antonio Fernando de Franceschi e outros que formariam nos anos seguintes a assim chamada “Geração 60” ou “Novíssimos”, a ser comentada no próximo subcapítulo. Ainda sobre as primeiras leituras e tentativas de escrita, em depoimento no mesmo livro, Piva recorda: “comecei a me interessar e ler poesia por uma questão de saúde, como dizia o Henri Michaux. Escrevia para minha saúde. ‘Na absoluta capacidade de inconformar-me’, já aos 19 ou 20 anos” (PIVA apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 12).

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Por meio do editor Massao Ohno, em 1961 os primeiros poemas de Piva acabam sendo publicados junto aos de outros poetas jovens em um volume chamado Antologia dos Novíssimos. Meses depois, no ano de 1962, novamente o editor Massao Ohno convida o jovem poeta para publicar por meio de sua editora, desta vez, um livro exclusivamente com poemas autorais. Conforme o próprio Piva: [...] saí na Antologia dos Novíssimos e depois de dois anos tive a explosão do Paranoia, nas minhas leituras dos futuristas, dos surrealistas, Murilo Mendes, Jorge de Lima, a beat, as andanças, as orgias, as vivências e tudo isso (D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 53).

Lançado em 1963, Paranoia acabou sendo publicado não apenas com os poemas de Roberto Piva. Foram acrescidas fotografias tiradas pelo artista plástico Wesley Duke Lee, que também foi o responsável pela diagramação do livro. Segundo o próprio Piva:

Bom, esse livro eu escrevi em 1962 e fiquei com ele guardado até que Tomás Souto Corrêa, jornalista do Estadão, me apresentou para o Wesley Duke Lee, que tinha acabado de chegar de Paris e de Nova York [...]. Ele ficou entusiasmadíssimo com a poesia, gostou demais, entrou em transe. E saiu por São Paulo fotografando a cidade a partir dos poemas. (PIVA apud COHN, 2009, p. 56)

O trabalho passou despercebido pela crítica, mas fez relativo sucesso de público, segundo o próprio autor: “Paranoia esgotou em duas semanas e, desde então, ficou como um mito, parado no ar” (PIVA apud COHN, 2009, p. 120).1 Sobre a repercussão de Paranoia2, seu editor, Massao Ohno, também teceu alguns comentários em entrevista no livro Os dentes da memória: Eu já supunha que o livro fosse causar alguma celeuma, algum estardalhaço, mas nem tanto. Um ou dois anos antes eu havia lançado três livros de Hilda

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Aspectos do livro Paranoia e também do contexto no qual foi editado e publicado são analisados mais adiante neste mesmo capítulo e de forma mais aprofundada ao longo desta dissertação. 2 Segundo Claudio Willer, o livro Paranoia chegou às mãos dos surrealistas franceses ainda em meados da década de 1960 e ganhou uma resenha entusiasmada na revista dirigida por André Bretón. No número 8 da revista La Brèche, de novembro de 1965, o artigo “Le surréalisme à Sao Paulo” traz, além das observações acerca do livro de estreia de Roberto Piva, considerações sobre o livro Amore, de Sérgio Lima, e sobre o livro de estreia do próprio Claudio Willer intitulado Anotações para um apocalipse, de 1964, ano que Piva também lançou seu livro Piazzas pela editora de Massao Ohno. Disponível em: https://claudiowiller.wordpress.com/2014/10/30/a-famosa-resenha-em-la-breche-action-surrealiste/. Acesso: 30 de novembro, 2015.

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Hilst que não tiveram a mesma repercussão do Paranoia, e no entanto, são livros de altíssimo nível. Não há uma regra que determine que tal livro vai fazer sucesso. O Paranoia fez. (OHNO apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 58).

No livro Paranoia, segundo o poeta e crítico Claudio Willer em posfácio escrito para o primeiro volume da reedição da obra completa de Piva, o autor “alcança sua identidade literária com uma escrita livre, ignorando qualquer restrição lógica ou vocabular” (2005, p. 150). Ainda segundo Willer, a poesia de Paranoia é uma “poesia de afirmação vital, e também da negação” (2005, p. 150), que “não apenas proclama a rebelião, mas quer ir além, destruindo simbolicamente o mundo” (WILLER, 2005, p. 150). Em 1964, Roberto Piva publica, na esteira de Paranoia e ainda pela editora de Massao Ohno, os poemas que compõem o livro Piazzas. Novamente de acordo com Claudio Willer, que teve seu primeiro livro, Anotações para um apocalipse, editado e publicado em 1964 também por Massao Ohno: “Entre Piazzas e Paranoia há relações de continuidade, e também de complementaridade” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 157). Isso já revela a intenção de construção de um projeto poético por parte do autor. Projeto que foi levado a cabo, ao longo dos anos, entre longos intervalos e intensos surtos criativos. Após a publicação desses dois livros iniciais, Piva passou por um primeiro hiato de doze anos. Em 1976, ele retornou à cena literária com os poemas do livro Abra os olhos e diga Ah!, mais uma vez por meio de Massao Ohno. Segundo Willer, se “comparado à Paranóia, vê-se, em Abra os olhos e diga Ah!, um distanciamento maior das referências urbanas diretas, da nomeação de lugares de São Paulo. A cidade deixa de ser tema” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 162). Tal posicionamento foi intensificado depois na última fase da poética de Piva3. Em 1979, desta vez pela editora Feira de Poesia, Piva retorna com seu livro Coxas. Diferente dos livros anteriores, os poemas em prosa de Coxas apresentam um viés narrativo, mas sem perder a característica imagética e transgressora que permeia toda a obra do poeta:

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De acordo com o professor e crítico Alcir Pécora (2006), organizador das obras reunidas do autor, editadas pela Editora Globo, a poesia de Piva se divide em três fases: a primeira, que envolve os poemas produzidos na primeira metade da década de 60, de viés beat e surrealista (publicada no volume Um estrangeiro na legião, em 2006); a segunda, que deu-se entre a segunda metade da década de 70 e os anos iniciais da década de 1980, e leva traços psicodélicos somados a uma intensa erotização (publicada no livro Malas na mão & asas pretas, em 2006); a terceira, já no final da década de 1990 até os últimos anos da primeira década dos anos 2000, de características ecológicas e místicas (publicada no volume intitulado Estranhos sinais de Saturno, em 2008).

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“Se em Piazzas havia contemplação, em Coxas há ação” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 163), conforme observou Claudio Willer em um belo estudo sobre a poética piviana que está presente no primeiro volume da edição da obra completa de Piva. Em 20 poemas com Brócoli, editado por Massao Ohno em 1981, Roberto Piva apresenta uma série de poemas com extensão mais curta, regido pela “concisão e condensação”. Ainda segundo Willer (2005), é o seu livro mais “ordenado”. Neste livro, também salienta o poeta e crítico, afloram os estudos da Divina Comédia de Dante Alighieri, feitos por Piva ainda nos anos da década de 1960, com Edoardo Bizzarri, tradutor de Guimarães Rosa para o idioma italiano. Como numa espécie de contraponto radical à organização do livro anterior, Piva lança em 1983, pela editora Global, Quizumba, considerado o mais hermético de seus livros. De acordo com Willer, “Quizumba é sua obra mais caótica e ensandecida” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 177). Mais uma vez, de acordo com Willer, “os dois planos, o real imediato e o simbólico, são rebatidos ou projetados um no outro, procurando tornar poético o real, carregando-o de simbolismo, e realizar o poético” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 177). Após outro considerável hiato, Roberto Piva ressurge quatorze anos depois com os poemas de Ciclones em 1997, editados pela Editora Azougue. Com poemas curtos, que muitas vezes se assemelham ao haicai japonês, Piva abandona a “cidade sucata”, conforme verso de um dos poemas do livro, para eleger a natureza, o erótico e o sagrado como temas dos versos. As referências geográficas retornam dessa vez associadas aos espaços representados pela natureza, mais uma contraposição àquela visada sobre o espaço urbano, empreendida pelo poeta nos seus primeiros livros. No ano de 2008, no terceiro e último volume de suas obras completas, lançadas pela Editora Globo, vem à luz o último inédito livro de Roberto Piva em vida. Intitulado Estranhos sinais de Saturno, o livro traz poemas que mantém a temática anterior do livro Ciclones, cujos poemas também foram coligidos neste mesmo volume. A natureza, o erótico e o sagrado se somam aos ‘discos voadores’ tematizando os versos pivianos. Dois anos depois, no dia 3 de julho de 2010, o poeta Roberto Piva morreu aos 73 anos. O corpo, segundo desejo do próprio autor, foi cremado. Na cerimônia, presenciada pelos amigos mais próximos, de acordo com as jornalistas Renata D’Elia e Camila Hungria “um imenso gavião carregou um pássaro morto no bico e sobrevoou o Crematório da Vila Alpina, onde se deu a cerimônia” (D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 186). O gavião era considerado pelo

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próprio Piva, de acordo com vários de seus poemas, manifestos e entrevistas, o seu animal totêmico, a imagem de seu duplo na natureza, segundo as crenças xamânicas que ele cultivou ao longo da sua vida.

1.1.2 Geração 60 / Novíssimos

O contexto no qual Roberto Piva começou a percorrer sua trajetória poética revelou não apenas o autor de Paranoia, mas também outros poetas que, a despeito de suas particularidades e aparentemente não comungarem com nenhum projeto literário específico, acabaram por se agrupar, ainda que circunstancialmente, em consequência da afinidade com determinados posicionamentos estéticos e éticos. O período foi profícuo em variedade. Na mesma época, os concretistas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari atuavam sob as premissas de uma poética que diferia radicalmente da lírica produzida por Piva e alguns de seus companheiros poetas naquele período de transição ocorrido entre os “anos dourados” e a nova década, cheia de transformações, que começaria no ano de 1960. Uma das expressões utilizadas para designar esse novo grupo que se formava foi o termo “Novíssimos”. Um dos integrantes desse grupo, o poeta Antonio Fernando De Franceschi, em depoimento citado por Claudio Willer no texto “A cidade, os poetas, a poesia” revela algo mais das convergências e antagonismos dessa geração: A verdade é que os Novíssimos nunca tiveram o viés escolástico dos concretos, não se organizaram como movimento nem defendiam teses relacionadas com um ‘projeto geral de criação’. Como foram, de algum modo, o oposto dialético dos concretos na década de 60, também o quadro de referência intelectual do grupo era tudo, menos um paidêuma [...] predominava um ecletismo de base nessa constelação literária, onde se percebia também – e nisso com os concretos – grande interesse pelos poetas brasileiros da geração de 22. (DE FRANCESCHI apud WILLER, 2000, p. 226)

Um dos responsáveis pelo aparecimento dessa nova leva de poetas, na maioria constituída por integrantes que eram oriundos ou residiam em São Paulo, foi o editor Massao Ohno. Por meio da Antologia dos Novíssimos, lançada em 1961, junto aos lançamentos de outros livros solo de alguns desses mesmos poetas, o editor Massao forneceu, ainda no alvorecer daquela década, uma amostra significativa da poesia produzida na capital paulistana de então.

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Willer, ainda no texto supracitado, destacando “a importância do trabalho editorial do Massao Ohno para que jovens poetas saíssem do ineditismo” enumera alguns deles: “Celso Luiz Paulini, Paulo Del Greco, Roberto Piva, Carlos Felipe Moisés, Eduardo Alves da Costa, Claudio Willer, Rodrigo de Haro” (WILLER, 2000, pp. 225-226). O próprio editor, em entrevista também coligida no livro Os dentes da memória, teceu suas considerações sobre o ocorrido: Em qualquer canto havia um grau de criatividade muito grande. Esses poetas traziam uma inovação que gostávamos de incorporar à produção editorial. Mas o critério de escolha não se dava apenas por serem autores novos, e sim pelo fato de conter uma mensagem nova ou um estudo de forma interessante. Aí sim, eu creio que valeu a minha opinião, independente de críticos literários. Foi uma tentativa de sondagem. Um gosto pessoal. (OHNO apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 18)

Cabe pontuar na fala de Massao que o fato de o critério adotado para a escolha dos autores integrantes dessa antologia não ter sido baseado em uma metodologia formalmente literária, e sim em um “gosto pessoal”, não a invalida. Carlos Felipe Moisés, um dos integrantes da “Geração 60” e que teve poemas publicados na Antologia dos Novíssimos, salienta que “a série editada por Massao Ohno galvanizou a geração” (FARIA; MOISÉS, 2000, p. 10). Os critérios editoriais dos quais Ohno lançou mão para escolher os integrantes que integrariam as páginas da antologia, a “mensagem nova” ou algum “estudo de forma interessante”, parecem ter sido, apesar da aparente fragilidade metodológica, suficientes ao menos para contribuir como registro histórico de uma parte da produção literária da época. Ainda segundo o que nos indica o hoje crítico e professor Carlos Felipe Moisés, por outro lado, ocorreu certo esvaziamento dos “Novíssimos”. Geração da qual ele mesmo faz parte. Um esvaziamento supostamente ocorrido logo após a publicação dessa primeira antologia: A Antologia reúne vinte e quatro jovens autores, dos quais dez não conhecíamos. Nunca tive notícia de qualquer livro publicado por esses autores, nas décadas seguintes. Dos quatorze restantes, oito estrearam na antologia e só quatro deram continuidade à atividade literária, vindo a publicar seus livros ‘solo’. Os outros ficaram por ali mesmo (MOISÉS apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 21).

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Embora uma parte significativa dos nomes incluídos na Antologia dos Novíssimos não tenha conseguido prosseguir na cena literária depois do lançamento do livro, outros nomes da mesma cena de então, como os de Claudio Willer, Antonio Fernando De Franceschi, Jorge Mautner, Roberto Bicelli, Rodrigo de Haro, Sérgio Lima, Décio Bar e vários que ficaram de fora desse mesmo volume, acabaram por se destacar posteriormente e consolidar, a despeito do já mencionado lapso editorial, o que viria a ser conhecida como a “Geração 60”. Vale mencionar rapidamente outro estudo feito sobre a geração de Piva e outros coetâneos. Pedro Lyra, em um texto que abre a antologia Sincretismo: a poesia da geração 60 (1995) vincula os componentes dessa geração de poetas a três categorias ou “variantes”, conforme termo adotado por ele em sua análise: “tradição discursiva”, “semioticismo vanguardista” e, por fim, a “variante alternativa”. Segundo Lyra, Piva, ligado aos “Novíssimos”, foi associado à “variante alternativa”, na qual segundo o autor do estudo a produção da época era “o retrato vivo do desbunde de todo um segmento geracional – a recusa do seu mundo [...] à procura de formas não apenas de resistência, mas de sobrevivência” (LYRA, 1995, p. 124). Entretanto, cabe que se faça uma ressalva. No estudo, Lyra associa a trajetória de Piva à “variante alternativa”, muito mais próxima cronológica e esteticamente à chamada “Geração Marginal” dos anos de 1970, o que consideramos um equívoco. Afinal, Piva já vinha atuando na cena poética desde o início dos anos de 1960, ainda que a segunda fase de sua produção tenha se dado mais próxima do período ao qual se refere Pedro Lyra. Heloísa Buarque de Hollanda na antologia 26 poetas hoje (2007) também nos parece ter cometido o mesmo deslize. A pesquisadora incluiu em sua antologia alguns poemas do primeiro livro de Piva, Paranoia, escrito ao longo do ano de 1962 e lançado em 1963. A presença desses poemas, escritos e publicados mais de dez anos antes da época do lançamento da antologia de Hollanda pode confundir o leitor menos informado fazendo com que Piva seja associado, equivocadamente segundo entendemos, a poetas de uma geração posterior, ligados à “Geração Mimeógrafo”, tais como Cacaso, Chacal, Francisco Alvim e outros. Esta pesquisa está longe de oferecer um panorama completo dessa geração, que foi chamada de “Geração 60” ou, ainda, de “Novíssimos”. O apresentado até o momento tem apenas o objetivo de situar um pouco melhor os personagens principais ligados ao contexto no qual se deu a produção do livro Paranoia. Nesse sentido, corroboramos com mais uma afirmação de Claudio Willer. Para um dos principais integrantes dessa geração, o

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estudo mais detalhado de todo esse movimento de poetas de São Paulo talvez venha expor mais alguns paradoxos. Poderá mostrar o que as periodizações e séries cronológicas de gerações têm de enganador, deixando lacunas como essa, além de encobrirem o caráter plural da criação poética sob um rótulo e uma data. [...] Subsequentes estudos poderão mostrar como uma dimensão fundamental da criação literária, a relação entre o particular e o universal, entre uma literatura nacional e uma weltliteratur, aparece de um modo específico, bem característico, nesses poetas da Geração 60 em São Paulo. (WILLER, 2000, p. 231)

O estudo mais acurado da produção dos integrantes da “Geração 60”, dessa forma, poderia contribuir para um melhor entendimento dos aspectos relacionados ao contexto em que foi gestado não apenas o livro Paranoia, mas uma parte no mínimo instigante da cena literária brasileira que ainda nos parece não ter sido suficientemente investigada. Entretanto, o momento por hora é o de continuarmos a apresentar os criadores de nosso objeto de estudo.

1.2 Wesley Duke Lee, um salmão na corrente taciturna “Eis um salmão na corrente taciturna.” Walter Zanini

1.2.1 O fotógrafo e sua obra

Wesley Duke Lee nasceu em 21 de dezembro de 1931 na capital paulista. Seus pais eram William Bowman Lee Jr., norte-americano, e Odila de Oliveira Lee, de ascendência portuguesa. Segundo a pesquisadora da obra de Duke Lee, Cacilda Teixeira da Costa, de parte da família, o artista herdou uma atitude desconfiada e negativa com relação a todas as tendências ideológicas, sobretudo às de esquerda (o que lhe valeu muitos dissabores, patrulhamentos e incompatibilidades com o seu próprio meio – o das artes plásticas –, para não falar das críticas pesadas dos intelectuais, de quem sempre divergiu com ironia). (COSTA, 2005, p. 17)

Interessante notar que, ao longo de suas respectivas trajetórias, tanto Duke Lee quanto Piva tiveram relações conflituosas com o status quo artístico-literário, além de adotarem

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posições políticas pouco ortodoxas. Ambos, em determinado momento da vida, declararam-se monarquistas, à margem da polarização esquerda versus direita que definiu o cenário político das décadas que se seguiram a partir do pós-guerra no século passado. Essa insurreição permanente à ordem estabelecida adotada como espécie de modus operandi por Duke Lee, assim como a entendemos em Piva, estaria ligada a um “percurso introspectivo comprometido com ânsia de autoconhecimento” conforme aponta Costa (2005, p. 9). Tal percurso também estaria impregnado de referências autobiográficas, mais uma vez fazendo convergir sobre ambos, poeta e artista plástico, a ideia de “indissociabilidade entre arte e vida”, propagada por uma parcela significativa dos movimentos de vanguarda. Entretanto, tal insurreição só viria realmente à tona na vida adulta e de artista de Duke Lee. Wesley passou a infância e a adolescência “sob a preponderância religiosa e ideológica dos avós” (COSTA, 2005, p. 12). O primeiro retrato que pintou, em 1952, foi da avó. Entre os anos de 1951 e 1955, Duke Lee estudou no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e na Parsons School, uma escola de publicidade em Nova York. Após esse período, começa a ter aulas de arte com Karl Plattner, em São Paulo. A partir dessas aulas, Duke Lee começa a incorporar parte dos processos criativos de seu professor italiano a seu próprio fazer artístico. Ainda de acordo com Costa (2005), Duke Lee, “formalmente próximo a Plattner e muito influenciado por Paul Klee [...] entrava num tema em que a surrealidade se mesclava à preocupação histórica e espiritual” (COSTA, 2005, p. 32). A partir de 1960, Duke Lee passa por um período de estudos em Paris e outras cidades europeias. Na capital francesa, ele encontra o Surrealismo “já devidamente absorvido” (COSTA, 2005, p. 38) conforme ressalta Cacilda Teixeira da Costa. A pesquisadora ainda chama a atenção para o fato de que Duke Lee, em busca de “distinguir e liberar uma poética própria” (COSTA, 2005, p. 39) pesquisou e foi tomado pelo clima “surreal-dadaísta, o nonsense, as subversões da lógica” no qual estava subentendido “um processo de conhecimento em que estavam presentes elementos construtivos fundamentais”, tais como “a paródia, o paradoxo e o humor, este estendido como contraste e surpresa, verdadeiro processo de conhecimento por meio da oposição de conceitos ou imagens” (COSTA, 2005, pp. 39-40). Importante ressaltar que alguns desses “elementos construtivos” tangenciam, segundo hipótese desenvolvida e que será esclarecida ao longo desta dissertação, os procedimentos utilizados pelo poeta Roberto Piva na construção de sua poética. Para fazer funcionar tais

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elementos, sugerimos, foi necessário o emprego de uma práxis que, configurando-se basilar no corpus a ser investigado, inicialmente, dar-se-ia a partir de processos criativos baseados justamente na “oposição de conceitos ou imagens”, oposição de natureza tensa, conforme denotado no parágrafo anterior. Ainda segundo Costa (2005), outras correntes artísticas influenciaram Duke Lee, aproximando o artista, mais uma vez, das poéticas vanguardistas. Um deles teria sido o Novo Realismo, por exemplo, em que se defendia “três fatores fundamentais: o movimento, a imagem, o sonho, elementos que Wesley trabalhou” (COSTA, 2005, p. 41). Entendemos que tais elementos podem ser tomados como pontos de contato entre as poéticas de Duke Lee e Piva, já que ambos os artistas comungaram referenciais para a construção de suas respectivas obras. Em 1960, estabelecido em um ateliê na Rua Augusta no centro de São Paulo, Wesley Duke Lee inicia a série das Ligas. Esse trabalho foi composto por uma série de desenhos feitos à nanquim, guache, carvão e outras técnicas sobre papel. Nos desenhos, foram representadas figuras femininas nuas em partes, sempre com foco no torso, no ventre e nos membros inferiores, adornados com cintas-ligas. Segundo Cacilda Teixeira da Costa, para Wesley o referencial feminino trazia prazer, ebulição interior e emoções que remetiam não só às mulheres amadas como aos conflitos e ao fascínio pela mulher proibida, a grande mãe, a matriarca poderosa em torno de quem, na vida diária, prevaleciam divergências concretas, mas, de certa forma, também encerrava um sentido de amor impossível. (COSTA, 2005, pp. 5556)

No período entre 1961 e 1962, Duke Lee foi apresentado a Roberto Piva pelo jornalista Thomaz Souto Corrêa. Segundo Piva em uma de suas entrevistas: Wesley havia chegado de viagem de Paris ou Nova York, acabou lendo os poemas do Paranoia e falou para o Thomaz que queria ilustrar o livro com imagens de São Paulo. Estava completamente tomado por aquilo. Passou três ou quatro meses fotografando a cidade e realizou essa obra-prima que é a integração da poesia do Paranoia com a São Paulo da época. Era aquilo que ele projetava como sendo a cidade no futuro. (PIVA apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 56)

Interessante ressaltar que, apesar de Wesley Duke Lee não ter sido um fotógrafo de formação, mas sim artista plástico, conforme apontado pelo jornalista, o fato aparentemente

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não prejudicou nem mesmo impediu que o artista empreendesse um olhar extremamente poético sobre a metrópole, ainda que guiado por Piva, que erigiu uma visada alucinada e delirante sobre a cidade nos versos de seus poemas. Massao Ohno, editor de Paranoia e também responsável por esse encontro de artistas e poéticas tão singulares, reaviva em depoimento uma impressão despojada sobre a figura de Wesley Duke Lee: O Wesley era um bon vivant, um excêntrico à sua moda e um cara muito informado. Ele estava por dentro de todos os movimentos artísticos e literários da Europa e dos Estados Unidos, e tinha uma visão de mundo bem configurada à época. Fazer este livro com Piva e Wesley foi como juntar a fome e a vontade de comer. (OHNO apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 57)

Sobre a importância da contribuição artística que Duke Lee acabou legando ao livro Paranoia, outro poeta da “Geração 60”, Antonio Fernando De Franceschi, comentou: Aquele foi um momento de altíssima criatividade do Wesley. As linguagens poética e visual estão tão afinadas que tudo funciona como sonata, como se eles estivessem tocando um piano e um violino. Isso também denotava o caráter multidisciplinar da nossa geração, embora somente agora percebamos tamanha ousadia e possamos notar o sucesso dessa experimentação. Creio que Piva sabe muito bem que Paranoia não seria o mesmo sem as fotos do Wesley. (FRANCESCHI apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 57)

Sobre a produção artística de Wesley no período, evocamos mais uma vez as preciosas informações da tese de Cacilda Teixeira da Costa. Escreveu a pesquisadora: “Entre 1957 até aproximadamente 1964, configuram-se as três grandes vertentes de seu trabalho nas séries do Templário, das Ligas e do Chefe” (COSTA, 2006, p. 59). A série de desenhos Chefe remete ao francês Alfred Jarry, poeta e dramaturgo que, entre outros trabalhos, escreveu em 1896 a peça Ubu Roi, também citada por Piva como parte de suas leituras. Ainda tendo como foco a produção de Duke Lee, continuamos com os dados levantados por Costa (2006) sobre a obra do artista. A pesquisadora propõe sua divisão em três fases. Vale lembrar que a obra de Piva também foi dividida em três partes ou fases, conforme citado em nota anterior (ver p. 22). Para Costa: No que concerne ao elemento intrínseco da obra de Wesley, podemos emprestar de Jung o símbolo de Nekya, uma descida ao abismo, em um movimento de introspecção do qual o viajante regressa como um homem

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renovado. Tal movimento se manifesta por meio de três grandes forças motrizes: a transcendente, que se concretiza nas séries de caráter épico e de aspiração mística; a erótica, manifestada na visão da sexualidade; e a utópica, como reflexão sobre a política e o poder. A elas juntam-se outras variantes, como a retratística e a botânica, que surgem ligadas a uma ou outra via mais importante, dependendo do momento. (COSTA, 2006, p. 10)

Não é objetivo deste trabalho empreender um levantamento exaustivo das características de toda a obra de Duke Lee, tampouco daquelas associadas à obra poética de Piva. No entanto, não se pode deixar de apontar algumas similaridades a despeito da natureza distinta de suas respectivas manifestações artísticas. A similaridade entre os procedimentos de construção artística de Piva e Duke Lee – que serão devidamente investigados no livro Paranóia – denotam uma fonte comum de influências e referências, como, por exemplo, as vanguardas europeias do início do século XX. Em texto escrito sobre a Bienal de Tókio de 1965, o crítico Ichiro Haryu destacou uma dessas linhas de força que, desconfiamos, foram tomadas emprestadas das vanguardas por Duke Lee. De acordo com Haryu: “Alguns são desenhos eróticos de mulheres, combinados com caricaturas extraídas de Cartoons e paisagens estereotipadas sobrepostas aos desenhos formando montagens entre realidades discordantes” (HARYU apud COSTA, 1981, p. 19). O uso de tais procedimentos e referências será investigado mais apuradamente nas fotografias de Duke Lee e nos poemas de Piva em momento oportuno desta dissertação. De uma maneira geral, a década de 1960 foi positiva para o percurso de Wesley Duke Lee. Além de se tornar professor de alguns novos artistas promissores surgidos naquela década, como Frederico Nasser, Carlos Fajardo, José Resende e Luiz Paulo Bavarelli, agiu no sentido de divulgar e consolidar o estilo que chamou de “Realismo Mágico 4”, não necessariamente relacionado ao fenômeno literário de matriz hispano-americana, mas uma visão estilística particular que chamou a atenção sobre sua obra e possibilitou a veiculação dessa última em galerias nos Estados Unidos, Europa e Japão. Algumas das pinturas de Duke Lee que se destacaram nesse contexto pertenciam a uma série intitulada Zona, realizada a partir de 1964. Certo número de quadros dessa série,

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Conforme Cacilda Teixeira da Costa, nesse período “Wesley empenhava-se na arregimentação de um movimento, o Realismo mágico, em que se associa aos pintores Marília Cecília Gismondi e Bernardo Cid, entre outros. [...] Tinha muito de ironia, de sátira à seriedade dos concretistas e homenagem bem-humorada à Semana de 22. Valeu como uma experiência que, em seguida, propiciou o surgimento da Galeria Rex [...]” (COSTA, 2006, pp. 89-90).

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composta a partir de variadas técnicas, foi pintado a duas mãos com seus alunos como trabalho final do curso que lhes ministrara. Wesley Duke Lee também incluiu um retrato de Piva5 nessa série. Conforme Costa (2006), “Zona designa um grande número de obras realizadas a partir de 1964 cuja delimitação é imprecisa, pois se mistura à Lisérgica e se manifesta por meio de diversas variantes [...]” (COSTA, 2006, p. 94). Duke Lee, assim como Piva, realizou experiências com drogas que acabaram influenciando ou sendo aludidas em seus respectivos trabalhos. Dexedrina, LSD e cânhamo estavam no cardápio de Wesley, segundo relatou em sua tese Cacilda Teixeira da Costa: “a investigação desses recursos não tinha significado de fuga e sim de um mergulho, que considerava fundamental no desabrochar de seu trabalho e o ajudava a suportar as desarmonias entre a realidade do dia-a-dia e a interior” (COSTA, 2006, p. 90). Um dos trabalhos resultantes dessas experiências de Duke Lee com substâncias alteradoras da percepção foi uma série de pinturas intitulada Lisérgica. A paleta de cores, entretanto, era “parcimoniosa”. Segundo Costa, “Wesley não se considerava um colorista” (COSTA, 2006, p. 91). Foi naquele momento que começou a introduzir textos manuscritos em seus quadros. Os textos, ainda segundo pôde constatar Costa, tinham o “significado de grafismos”, permanecendo “entre o escrever e o desenhar” (COSTA, 2006, p. 92). O artista designou apenas um total de sete obras como pertencentes a essa série, entre elas Arkadin d’y Saint Amer, Save dire que ce de lá... não e A zona: o rio Amazonas é quem manda, de abril de 1964. Dando continuação à exploração da temática erótica da série As ligas, Duke Lee, por meio de desenhos, gravuras e pinturas compôs a série No espelho mágico na segunda metade da década de 1960. Concomitantemente, também fez uma série de seis obras denominada I Ching, “por meio de desenhos executados com pincel sumi-ê, técnica japonesa que pesquisava naquele período, buscava compreender as articulações visuais do I Ching.” (COSTA, 2006, p. 102). Duke Lee desenvolve várias outras séries até o final da década de 60. Dentre elas, uma série em homenagem à atriz norte-americana Jean Harlow, cuja vida teve um desfecho trágico. Também criou outra série intitulada Killing e a última dessa década, chamada de

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Esse retrato de Piva pintado por Duke Lee foi intitulado A zona: o fantasma (1966).

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Páginas de descrição que, de acordo com Costa, “liga-se às séries anteriores, na contraposição de fragmentos em colagens, frotagens e desenhos” (COSTA, 2006, p. 133). Na década de 1970, Wesley começa a experimentar outras possibilidades de expressão. Além das séries de desenhos iniciadas anos antes, o artista começa a desenvolver os chamados “ambientes”, no qual o espectador deve sentir-se parte integrante da obra. Importante mencionar que no Rio de Janeiro, um pouco antes desse período, o artista plástico Hélio Oiticica já havia começado a trabalhar nesse sentido desenvolvendo sua própria proposta de “ambientes”, materializada em obras como as da série Parangolé e outros trabalhos como Penetráveis, feitos para serem experimentados, e não apenas observados pelo público. Inspirado pelo Futurismo, conforme apontado por Costa (2006), “Wesley se volta para a arquitetura de um circo, para criar o espaço e a situação onde um determinado momento da vida se concretiza” (COSTA, 2006, p. 143). Cria assim a obra Trapézio ou uma confissão, cujos dados técnicos a seguir dão uma ideia de sua constituição: “ambiente suspenso, quatro óleos s/ tela e dois painéis de acrílico, parte superior de alumínio em parafuso de Archimedes e ruído branco eletrônico, 9m², cada painel 200 x 200 cm” (COSTA, 2006, p. 143). Outro “ambiente” significativo elaborado por Duke Lee foi a obra The helicóptero. É um “ambiente” feito a partir de pintura s/ madeira, componentes mecânicos e eletrônicos, 400 cm de diâmetro. Cacilda Teixeira da Costa, em comentário sobre esse trabalho, suscita o caráter vanguardista do artista: “Em termos de espaço, pela soma de diversos meios e instrumentos cinéticos, Wesley cria um espaço tecnológico que hoje chamaríamos de instalação multimídia [...]” (COSTA, 2006, p. 149). A Cápsula do nascimento foi o último “ambiente” dessa época criado por Duke Lee para ser apresentado no projeto Art & Technology, nos Estados Unidos. Entretanto, problemas de construção e instalação do ambiente no evento inviabilizaram o projeto fazendo com que o autor o abandonasse e retornasse aos “ambientes” somente décadas depois. Uma série de retratos de amigos, parentes e conhecidos é realizada por Duke Lee nessa época, como numa espécie de “levantamento de seu mundo afetivo essencial” (COSTA, 2006, p. 157). Dentre eles, Retrato de Sigmund Freud ou a respeito de papai, Retrato de Ralph ou a respeito de meu irmão e Retrato de Sérgio e Leila ou a respeito do casal. Além dessa série de retratos, Duke Lee empreende também uma série inspirada nas plantas, a qual intitulou Iconografia botânica e distribuída ao longo de cerca de vinte trabalhos.

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Algo da mitologia clássica também foi fonte de inspiração em parte da obra de Duke Lee. O artista compôs uma série de telas que, em conjunto, funcionariam como uma instalação. Esse trabalho foi batizado de O/Limpo. As telas, no entanto, ficaram guardadas por vinte anos no ateliê do artista e mostradas de forma incompleta em 1992, conforme nos chama a atenção mais uma vez Costa: “o sentido precursor da obra, presente em seu caráter de instalação, perde-se por não ter sido exposta no devido tempo” (COSTA, 2006, p. 164). Ainda nos anos da década de 1970, Duke Lee continua suas experimentações. Com a série As sombra ações, de 1976, o autor cultiva a pintura com uma paleta mais forte, acentuando o “brilho e vivacidade das cores” (COSTA, 2006, p. 168). Destaca-se dessa série a pintura O um (o macaco), um óleo s/tela feito a partir de colagem, madeira e plástico. Nesse trabalho, o artista desejava liberar “algo primitivo ir no fundo do poço” (COSTA, 2006, p. 169). Tal visceralidade também pode ser arrolada como traço da poética piviana. Essa possível relação entre os elementos das obras pivianas e de Duke Lee, cabe mais uma vez pontuarmos, não será tratada aqui de maneira tão abrangente, mas pode servir como ponto de partida a pesquisas futuras. Em 1977, Wesley Duke Lee realiza mais uma de suas séries. Chamada de Caligrama, ideograma, etc., o artista, que começara a incorporar textos a seus trabalhos já há alguns anos, “enfatiza a visceralidade, o ímpeto erótico e a energia na execução da escrita, além da ironia e da paródia nas frases escolhidas aleatoriamente” (COSTA, 2006, p. 175). Segundo palavras do próprio Duke Lee: para mim, a escrita é um desenho e sempre tive por ela um gosto muito especial. [...] Queria converter as palavras em signos, como os dos chineses. Mas, até onde experimentei, me parece que nosso sistema alfabético é incompatível com isso. [...] O possível, talvez, é a busca de uma escrita, cujo sentido estando nela mesma, libere outros. (DUKE LEE apud COSTA, 2011, p. 176)

Interessante comentar que Piva nos parece ter intentado erigir imagens por meio das palavras em sua forma semântico-discursiva, conforme tentaremos demonstrar ainda nesta dissertação. Duke Lee, entretanto, movimenta-se aparentemente de maneira diversa, uma vez que atribui às imagens construídas a partir das formas e cores das letras e palavras um sentido que consiga ir além das significações semântico-gramaticais imediatas, desvelando uma

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escrita iconográfica sob essa perspectiva. Mais uma vez surge outro ponto que possivelmente poderia ser abordado com mais profundidade em trabalhos futuros sobre a obra desse artista. Outra possibilidade de manifestação artística por meio da imagem foi utilizada por Wesley Duke Lee entre o final da década de 1970 e o início dos anos 1980. A série Papéis foi composta a partir de xerox em cores s/ papel e materializada em cerca de quatrocentas colagens. Nesse mesmo período, tenta voltar aos “ambientes” com dois trabalhos: Kiva e o Projeto laser: vitriol. No entanto, segundo Costa (2006), esses “dois grandes projetos não se concretizam e ficam como exercícios de criação ou sonhos não realizados” (COSTA, 2006, p. 181). Sobre a série Cartografia anímica, escreveu Jorge de Andrade em artigo publicado na revista Vogue do ano de 1980: “Partindo do conceito de mapa – relações ou representação, em superfície plana e em escala menor, de um terreno, país, território etc. – Wesley Duke Lee concebeu uma belíssima cartografia da alma” (ANDRADE apud COSTA, 2006, p. 182). Ainda sobre esse trabalho, Costa salienta que visualmente lembrava “as colagens de televisão que fazemos com controle remoto e, em segundos, relacionamos mentalmente imagens de lugares distantes, telenovelas, desastres e comerciais” (COSTA, 2006, p 182). Ainda na década de 1980, Wesley Duke Lee dá continuação a sua intensa atividade criativa. Cria, a convite de algumas instituições, trabalhos e projetos como o Após Calipso, o Fórum de Ipanema, e o Jardim metafísico. Esse último, segundo aponta Costa novamente em seu importante estudo, mais uma vez ficou apenas como “exercício de criação” devido à falta de “patrocinadores para concretizá-los” (COSTA, 2006, p. 185). Com as obras O triumpho de Maximiliano I, num total de vinte e oito composições feitas à bico de pena, e Sequência do corvo, elaborada a partir de aquarela, Duke Lee fecha a década de 1980. O artista abre a década seguinte com a Fortaleza de Arkadin. Descrito por Cacilda Teixeira da Costa como uma “cidadela cujos muros estão dispostos de acordo com a forma de uma vulva, figura encontrada desde os primeiros desenhos de Wesley” (COSTA, 2006, p. 189), a instalação, por outro lado, deu a possibilidade de realização efetiva de um projeto do tipo “ambiente”, fato que não se dava desde o fim da década de 1960. Na série Os trabalhos de Eros, Duke Lee novamente evidencia duas facetas de sua obra: o erotismo e a ironia, pois o título é uma paródia evidente aos “Doze trabalhos de Hércules”, narrativa que faz parte da mitologia clássica. Costa chama a atenção para o fato desse trabalho ser o “resultado da associação entre o computador e o scannerprint, a partir de

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fotos dos baixos-relevos que se encontram na base das colunas do Grand Palais de Beaux Arts em Paris” (COSTA, 2006, p. 193). Fica evidente a partir de tais observações a atenção de Duke Lee para com a atualização das tecnologias relacionadas à produção artística. Ainda em 1992, foi realizada a exposição Retrospectiva Wesley Duke Lee no Masp. Segundo Costa (2006), foram expostas trezentas e doze peças do artista, grande parte, ainda desconhecida do grande público até aquele momento. Sofrendo do Mal de Alzheimer, Wesley Duke Lee veio a falecer em 12 de setembro de 2010, cerca de dois meses após a morte de Roberto Piva, seu parceiro na obra Paranoia.

1.2.2 Grupo Rex / Happenings

Cabe pontuarmos neste momento do trabalho que Wesley Duke Lee, a despeito de ter feito uma trajetória personalíssima pela cena cultural brasileira contemporânea, também atuou junto a outros artistas para a manutenção de projetos em comum. Junto a alguns de seus exalunos, somada a ajuda do multiartista Geraldo de Barros e outros, Duke Lee, por inquietações e motivações de ordem ética e estética, funda em 1966 a Rex Gallery & Sons. Alguns dos acontecimentos que motivaram a criação deste breve, mas ainda assim ousado empreendimento artístico-cultural para a época, estão descritos na tese de Thais Assunção Santos sobre outro empreendimento tão interessante quanto, a chamada “Escola Brasil:”. Por ordem da censura, o trabalho de Décio Bar foi retirado da mostra ‘Proposta 65’; a ditadura militar recém-instaurada alegava subversivo o conteúdo erótico do trabalho deste então jovem artista e arquiteto. Geraldo de Barros, Nelson Leirner e Duke Lee, contestando o acato do júri retiraram suas participações, dando início a uma série de reuniões entre interessados num ‘movimento que visaria à defesa de interesses comuns’ no campo da arte. O líder do protesto teria sido, segundo Resende, Duke Lee. Assim surgiu a Rex Gallery & Sons, fundada por Leirner e Barros acompanhados de Lee, Fajardo, Nasser e Resende. A galeria durou pouco mais de um ano e fez com que artistas tomassem parte de três momentos fundamentais na atividade: expor, problematizar e sublinhar a crítica, vender. (SANTOS, 2012, p. 14).

Vale salientar que um dos protagonistas do episódio que atuou como fagulha para a criação da Rex Gallery & Sons foi o artista Décio Bar, que fazia parte do círculo literário que Roberto Piva e amigos constituíram, ainda que informalmente, e que mais tarde foi nomeada

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como “Geração 60” conforme já apresentado neste trabalho. Nesse sentido, podemos inferir que, apesar das dificuldades de circulação das obras à época, ou talvez por isso mesmo, artistas de campos distintos foram forçados, para sobreviver no circuito cultural de então, a compartilhar fazeres e trocar experiências, muitas vezes, à margem das estruturas oficiais. A pesquisa de Cacilda Teixeira da Costa sobre a trajetória artística de Wesley Duke Lee também colaborou no sentido de jogar um pouco de luz sobre o projeto: A galeria era um misto de cooperativa e espaço experimental, em que os artistas, além de ter um lugar para expor, podiam gerir seu negócio e desenvolver um programa cultural. Graças a Geraldo de Barros, que ofereceu graciosamente um espaço na loja Hobjeto, o projeto tornou-se viável. Na verdade, a Rex acabou constituindo um núcleo de informação e arregimentação de artistas, em que se percebia muitas afinidades com o movimento Fluxus, tanto na relação com o Dada como na liberdade de pensar, de expressar e de agir. (COSTA, 2006, p. 123)

As obras que Wesley enviou para a primeira exposição da galeria fazem parte das séries Lisérgica e Zona, conforme ainda aponta a estudiosa da obra do artista (COSTA, 2006, p. 124). Ao mesmo tempo, é “publicado [...] o primeiro Rex Time, uma espécie de folhetim que trazia as inquietações e manifestações do grupo sob a forma de artigos e manifestos. Na diagramação do jornal, executada por Wesley e Fajardo, fica evidente a influência das publicações surrealistas dos anos 1920, cujos estilemas Wesley usava frequentemente em trabalhos de publicidade” (COSTA, 2006, p. 124). De acordo com a pesquisa intitulada Éramos o time do rei: a experiência Rex (2006), de autoria de Fernanda Cardoso Lopes: ‘O nome da galeria e do movimento era sempre em inglês para dar aquele ar de seriedade, de credibilidade daquelas firmas inglesas que vão passando de pai para filho durante gerações’, lembra Nelson Leirner. Em quase um ano de atividade, o grupo promoveu conferências; sessões de filmes experimentais e de documentários; organizou cinco exposições, uma delas reunindo artistas jovens; e editou cinco números do jornal Rex Time. (LOPES, 2006, p. 18)

Além do jornal Rex Time, outras ações que visavam divulgar a produção dos artistas associados à galeria foram empreendidas. Uma delas foi rememorada por um dos fundadores do Grupo Rex, Geraldo de Barros, em entrevista no ano de 1978:

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Nós fazíamos o brainstorm. Às vezes gravávamos, às vezes tomávamos notas e compunha-se o jornal. Havia toda uma característica de gozação no jornal e no movimento Rex; manipulavam-se os meios de comunicação, indo-se contra o conceito de inauguração de mostra – o vernissage -, contra a crítica de arte de um modo geral, exacerbando o sentido atual assumido por aqueles elementos, através do próprio acontecimento artístico que se transformava num happening. Em cada exposição, lançava-se um jornal. (BARROS apud COSTA, 2006. p. 125)

O happening6 mencionado por Geraldo de Barros, ainda considerado uma novidade na quase provinciana São Paulo da época, já era de conhecimento de Duke Lee antes da instauração da Rex Gallery. Segundo o artista, há dezenas de anos Flávio de Carvalho, com suas ‘experiências’, já fazia happenings. A provocação pela arte existe entre nós desde a Semana de Arte Moderna e artistas como Flávio, Carlos Prado, Quirino e Gobbis tiveram um papel marcante neste sentido, papel este hoje ignorado pela juventude, que não conhece a história da nossa arte porque não há livros de história da nossa arte, não há monografias. (DUKE LEE apud COSTA, 2006, p. 126)

O próprio Wesley, além de referenciar tal fenômeno na cultura nacional, valera-se desse mesmo recurso como forma de divulgar seu trabalho exatamente em 1963, o ano exato do lançamento da primeira edição do livro Paranoia. Na tese de Fernanda Lopes, o acontecimento é descrito da seguinte maneira: Ainda em 1963, realiza, no João Sebastião Bar, um happening, misturando cinema, som, dança, uma investida sarcástica à crítica, estímulos sensoriais através de uma chuva de penas [...] tiros de espingarda de brinquedo, um anti-streep-tease frustrante, além da exposição dos desenhos no escuro para serem vistos com lanternas: O Grande Espetáculo das Artes (LOPES, 2006, p. 28).

Em 1968, apenas um ano após sua fundação, a Rex Gallery tem suas atividades interrompidas. Infelizmente, a galeria não conseguiu se sustentar, talvez devido ao alto custo

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Termo inglês (literalmente significa “acontecimento”) para uma representação teatral feita de improviso ou em tom informal, sem obediência a um guião previamente definido e apelando muitas vezes à participação activa do público. Os ingredientes suplementares do happening podem incluir todo o tipo de artifícios, desde a pintura, a música, o cinema, a dança, a luminotécnica, sons diversos, etc., numa mistura envolvente. O espaço da representação é também informal: um café, uma pequena sala, um hall, ou mesmo na rua. A improvisação também pode ser estruturada e seguir algumas regras de actuação, como se pode verificar na proposta do Staircase Cafe Theatre (cf. http://www.staircase.org/structures/). Disponível em: . Acesso: 03 jan. 2015.

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operacional somado às baixas vendas de obras que ainda demandariam mais tempo para serem inseridas em um mercado tradicionalmente conservador. Segundo Costa (2006) concluiu em sua tese, “não havia uma visão objetiva sobre o aspecto financeiro do empreendimento. Embora o espaço oferecido por Geraldo de Barros constituísse um grande incentivo, não era suficiente [...]” (COSTA, 2006, p. 129). Duke, apesar disso, continuou a empreender sua trajetória artística, assim como o fizeram os outros integrantes do grupo. Remanescentes da Rex Gallery acabaram por fundar a Escola Brasil: logo na primeira metade dos anos 1970, instituição que também foi efêmera, porém emblemática no contexto sociocultural da época.

1.3 Massao Ohno, o samurai da sombra “Imperturbável, justificava chamarem-no de ‘editor zen’ e ‘samurai’.” Claudio Willer

1.3.1 O editor

Impossível falar de Roberto Piva, de Wesley Duke Lee, de Paranoia e de outros que integraram a “Geração 60” sem mencionar a figura do editor Massao Ohno. Nascido em São Paulo em 1936, Massao, filho de pais japoneses, foi o caçula entre nove irmãos. Numa família de engenheiros, formou-se em odontologia por exigência familiar, a despeito de sua declarada inclinação para a filosofia e as letras. Depois de se graduar e exercer a profissão por dois anos opta por fechar os consultórios, envolvendo-se rapidamente em seguida com o mundo editorial, adquirindo equipamentos de impressão. Abriu uma gráfica em um casarão na rua Vergueiro e passou a se dedicar à impressão de apostilas para cursinhos pré-vestibulares. Massao também chegou a trabalhar no Rio de Janeiro por alguns anos na Editora Civilização Brasileira, onde ampliou seus conhecimentos de diagramação e outros necessários ao trabalho que já vinha propondo. Essa experiência o ajudou a atualizar seu projeto editorial, e continuou produzindo material didático para cursinhos pré-vestibulares, além de passar também a editar poesia. O livro de poemas que marcou a estreia de Massao Ohno como editor

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desse segmento foi justamente a Antologia dos Novíssimos, em 1961, já mencionada neste trabalho. Ao longo de cinco décadas, Massao Ohno continuou a exercer com a paciência, a sensibilidade e a tenacidade próprias a sua ascendência oriental, o trabalho de editor. Demonstrou estar sempre atento ao mercado. Tinha ainda diversos projetos a executar perto do fim da vida, conforme depoimento para o projeto “Memória Oral”, da Biblioteca Mário de Andrade7. Um desses projetos era a publicação de uma “nova Antologia dos Novíssimos”. Massao faleceu em 12 de julho de 2010, o mesmo ano em que também morreram Piva e Duke Lee.

1.3.2 A editora

A editora de Massao Ohno, mesmo com as dificuldades inerentes ao mercado editorial brasileiro em relação à publicação deste tipo de texto literário, ao longo de várias décadas, ofereceu ao público leitor um recorte significativo da produção poética brasileira. Carlos Felipe Moisés e Álvaro Alves de Faria, editados por Massao na Antologia dos Novíssimos, afirmam, em texto que abriria outra antologia do mesmo teor que “a história da Geração 60, em São Paulo, seria substancialmente outra” (FARIA; MOISÉS, 2000, p. 13). É possível que sem a intervenção editorial de Massao, provavelmente a maioria dos poetas dessa geração sequer teria tido alguma chance de publicar por outras editoras. Um dos motivos é relativo à época em que as atividades da editora com a poesia estavam se processando. Em 1964, o mesmo ano do lançamento de Piazzas e Anotações para um apocalipse, de Piva e Willer respectivamente, houve o golpe militar que lançou o país em uma sinistra ditadura que durou vinte e um anos. Massao, em entrevista, relembra os acontecimentos à época: Logo depois de Paranoia, Piazzas e Anotações para um apocalipse eu parei de publicar por uns tempos. Eu estava muito visado politicamente naquele começo de ditadura. E chegaram à conclusão de que o meu trabalho como editor era subversivo. Foi censura total. (OHNO apud D’ELIA; HUNGRIA, 2006, p. 74)

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Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=qw25wWzayOk. Acesso em 5 fev. 2015.

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Sobre o contexto no qual inicialmente a editora começou a publicar essas obras, ainda na mesma entrevista, Massao complementa que o pai era um militar japonês e “não era de interesse dos militares brasileiros entrar num conflito que escapava à repressão propriamente” (OHNO apud D’ELIA; HUNGRIA, 2006, p. 75). De qualquer forma, Massao optou por viajar pelo Brasil e se distanciar da questão política, voltando a publicar poesia somente na década de 1970. A pouca valorização desse gênero literário, somada aos já referidos fatores de ordem política e social, não facilitaram exatamente as coisas para o editor. Para viabilizar as edições, Massao Ohno além de usar as sobras de papel dos materiais que imprimia, atuava ele mesmo como impressor, depois do expediente e aos finais de semana. O objetivo era o de baixar os custos dos livros para possibilitar uma qualidade e quantidade maior de trabalhos editados. A distribuição dos títulos era feita por meio de assinaturas isto é, os livros chegavam a um público pré-determinado através do serviço postal. Um detalhe importantíssimo sobre a identidade da editora está no fato de que Massao sempre procurou incorporar obras de outros artistas a seus livros, nas capas ou nas ilustrações das páginas. De acordo com o jornalista Miguel de Almeida, Massao Ohno colocou em circulação livros com design elaborado, em capas cuidadosamente desenhadas, muitas vezes ostentando de quebra trabalhos de novos artistas (veja só: Wesley Duke Lee, Tomoshigue Kusuno ou Rodrigo de Haro, quando jovens). Num balaio só, a sua cara: poesia e artes plásticas. Pura sofisticação. (ALMEIDA, 2010)

Nesse sentido, Massao Ohno conseguiu levar a termo, de forma ousada e sensível, a integração entre as artes poéticas e as artes visuais em um mesmo suporte, o livro, a cuja evidente característica de produto comercial ele acrescentou, com esse movimento, a possibilidade de se empreender uma visada a partir da perspectiva artística sobre tal objeto. Vale salientar que esse movimento de aproximação entre artes, interartes, vem sendo cada vez mais utilizado na produção artística contemporânea e tem sido investigado com alguma atenção no âmbito acadêmico. Tal cuidado com as edições revela a preocupação do editor não apenas em relação ao conteúdo, mas a atenção dispensada à forma como o suporte era materializado. Podemos inferir com isso que, nos projetos editoriais de Massao Ohno, a imagem, sendo representada por meio de uma pintura, de fotografias ou mesmo por um desenho, afigura-se, tal qual o

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texto poético, como outro elemento fulcral para a composição de suas edições. Inclusive na obra Paranoia, o objeto do presente estudo. São justamente alguns aspectos da imagem que, desconfiamos, podem estar presentes nesta obra editada por Massao, que nossa investigação, daqui por diante, pretende apontar.

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CAPÍTULO 2: IMAGENS QUE SURGEM DA PALAVRA “Imagens são palavras que nos faltaram” Manoel de Barros

A imagem, ao lado da palavra, afigura-se como uma das linhas de força que alimentam a poética de Roberto Piva. Em Paranoia, livro que constitui o objeto deste estudo, a imagem, empregada de maneira significativa, acaba por gerar possibilidades de apreensão definitivamente poéticas. Entretanto, a despeito de sua marca indelével, salientamos que tal elemento não está materializado de maneira unívoca, afigurando-se dessa forma como uma amostra sui generis de um fazer literário que se apropria e maneja sem pudores múltiplas linguagens e referências. Elemento que constitui uma espécie de fio condutor do percurso poético inicial de Piva, a imagem, segundo este trabalho pretende demonstrar, foi plasmada, em um primeiro movimento, a partir das palavras que constituem os versos. Em outro movimento, as imagens fotográficas garantiram a presença da segunda variante deste mesmo elemento. Nesse sentido, podemos inferir que, em mais de uma variante, a imagem apresenta-se como peça fundamental utilizada tanto na tessitura da própria trama poética erigida por Piva, quanto na composição das fotografias feitas por Duke Lee, registro artístico de inexorável natureza imagética. Para que possa ser percebida com um pouco mais de clareza a manifestação da imagem nesse corpus é importante que se defina primeiramente qual é o conceito de imagem adotado como norte da presente investigação. Nunca é demais ressaltarmos que essa palavra aparentemente simples representa no imaginário cultural uma grande variedade de manifestações, quer na esfera literária, quer na seara fotográfica ou mesmo em outras formas de expressão, não necessariamente artísticas, que permeiam o cotidiano. É justamente a manifestação desse elemento, a imagem, o que será investigado a partir do livro Paranoia daqui por diante. O caminho a ser percorrido neste capítulo partirá de uma breve revisão histórica sobre a imagem para, em seguida, pontuar algumas de suas variantes cujas especificidades, entrevemos, podem ser relacionadas ao objeto desta nossa pesquisa.

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2.1 A imagem “Há que retornar à linguagem para ver como a imagem pode dizer o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de dizer.” Octavio Paz

A imagem confunde-se com a própria noção de arte e humanidade de acordo com o que pode ser inferido quando pensamos acerca de algumas de suas manifestações, especificamente aquelas de caráter artístico. Sua importância se assenta no papel fundamental que representa enquanto instância geradora de linguagem, desde as pinturas rupestres com milhares de anos encontradas em Lascaux, complexo de cavernas na França, até os gigantescos telões digitais publicitários incrustados nas fachadas de grandes metrópoles como Nova York, Tókio ou São Paulo. A imagem, nesse sentido, é legítima manifestação ética e estética da condição humana no mundo. De acordo com Francisco da Silveira Bueno (2015), o vocábulo “imagem”, substantivo do gênero feminino, está associado, dentre outras, às seguintes definições: “representação de um objeto pelo desenho, pintura, escultura, [...] figura; comparação; semelhança” (BUENO, 2015, p. 407). O que se destaca nas possíveis variantes desse termo é, a princípio, a característica que a imagem encerraria como forma de representação de algo existente ou imaginado. Uma representação que, segundo podemos inferir, se dá quase sempre baseada na relação que a imagem tem com um determinado contexto ou objeto, inclusive os artísticos, por meio da comparação ou semelhança. Sobre as origens do conceito de imagem, Martine Joly, em seu trabalho Introdução à análise da imagem (2012), referencia o filósofo Platão como um dos primeiros definidores desse termo no âmbito cultural ocidental. Platão chamou de “imagens em primeiro lugar as sombras, depois os reflexos que vemos nas águas ou na superfície de corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as representações do gênero” (PLATÃO apud JOLY, 2012, pp.13-14). Dessa forma, a imagem para Platão, conforme apresenta Joly, “seria um objeto segundo com relação a um outro que ela representaria de acordo com certas leis particulares” (JOLY, 2012, p. 14).

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Ainda tomando como referência a Antiguidade Clássica, Joly contrapõe dois conceitos de imagem. O de Platão, supracitado, e o de Aristóteles8. Segundo a autora, a imagem, “imitadora, para um, [...] engana, para o outro, educa. Desvia da verdade ou, ao contrário, leva ao conhecimento. Para o primeiro, seduz as partes mais fracas de nossa alma, para o segundo, é eficaz pelo próprio prazer que se sente com isso” (JOLY, 2012, p. 19). Importante o destaque dado pela autora sobre percepções distintas do mesmo conceito, assinalando haver na tradição ocidental tanto uma perspectiva mais conservadora quanto uma visada mais receptiva acerca da mesma ideia. A indecibilidade e a desconfiança relativas à imagem continuaram a ser cultivadas mesmo com o passar do tempo e o desenvolvimento tanto do pensamento quanto da estética ocidentais. Descartes e Malebranche, séculos após Aristóteles e Platão terem firmado suas primeiras delimitações sobre o conceito, também teceram suas considerações sobre o tema evidentemente sob um viés de base racionalista que, à época, sobrepujava o medievalismo e abria campo para o Iluminismo. O professor de antropologia cultural Gilbert Durand salienta essa resistência à imagem ao longo da história e da cultura ocidentais da seguinte forma: O pensamento ocidental e especificamente a filosofia francesa têm por constante tradição desvalorizar ontologicamente a imagem e psicologicamente a função da imaginação, ‘fomentadora de erros e falsidades’. Alguém notou, com razão, que o vasto movimento de ideias que de Sócrates, através do augustinismo da escolástica, do cartesianismo e do século das luzes, desemboca na reflexão de Brunschvicg, Lévy-Bruhl, Lagneau, Alain ou Valéry tem como consequência o “pôr de quarentena” tudo o que considera férias da razão. (DURAND, 2002, p.21)

Um exemplo que ilustra bem esse tratamento severo dispensado à imagem apontado por Durand pode ser encontrado nas ideias dos já mencionados Descartes e Malebranche. Os racionalistas franceses, talvez numa tentativa de minorar a importância de tal elemento para a formação de um entendimento ideal da própria noção de condição humana, outorgaram à imagem, no contexto de então, a condição de “a louca de casa”. Essa expressão funcionou e

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Aristóteles problematiza a questão do caráter de veracidade ou representação atribuído à imagem: “E assim, o homem que diz que a lei é literalmente uma “medida” ou “imagem” emprega uma expressão falsa, pois uma imagem é uma coisa produzida por imitação, e tal não é o caso da lei. Se, por outro lado, ele não entende o termo na sua acepção literal, é evidente que usou uma expressão obscura e, além de obscura, pior do que qualquer espécie de expressão metafórica.” (ARISTÓTELES, 1987, p.154)

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ainda funciona, muitas vezes, como uma perfeita metáfora relacionada à situação de tal elemento em nosso imaginário cultural. Isso pode ser devido ao fato de que o uso ou a menção a tal figura, “a louca da casa”, quase sempre foi empregada com sentido depreciativo, numa tentativa de desqualificar essa ou qualquer materialização discursiva que pudesse divergir da construção de sentidos estritamente regida pelos preceitos do logos, da racionalidade. Essa figura, geralmente representada por algum membro da família geralmente acometido por alguma doença mental, frequentemente tinha seu papel social diminuído ou mesmo ignorado devido ao fato de que seu discurso, evidentemente por conta das marcas de patologias mentais, estar situado em um campo oposto àquele normalmente associado à clareza de pensamento e raciocínio lógico, pilares fundamentais do pensamento de essência cartesiana e que está fortemente enraizado no ocidente ainda nos dias de hoje. Acerca da trajetória da imagem como fruto da relação do homem e de suas leituras de mundo, o pesquisador Régis Debray aponta uma correspondência interessante entre as manifestações imagéticas e a humanidade ao longo da história: A imagem – primeiramente esculpida; em seguida, pintada – é, na origem e por função, mediadora entre os vivos e os mortos, os seres humanos e os deuses; entre uma comunidade e uma cosmologia; entre uma sociedade de sujeitos visíveis e a sociedade das forças invisíveis que os subjugam. Essa imagem não é um fim em si, mas um meio de adivinhação, defesa, enfeitiçamento, cura, iniciação. Integra a Cidadela na ordem natural, ou o indivíduo na hierarquia cósmica, “alma do mundo” ou “harmonia do universo”. De forma mais sucinta: um verdadeiro meio de sobrevivência. (DEBRAY, 1993, p. 33)

Talvez seja exatamente essa propriedade atribuída à imagem de servir como uma espécie de mediadora entre um pretenso mundo real e alguma outra instância distinta desse mesmo real, inapreensível por meio do pensamento racionalista, é que tenha levado parte da tradição ocidental a designá-la metafórica e depreciativamente como “a louca da casa”. Tal linha de pensamento, segundo se conclui, acabou contribuindo para mistificar e mitificar tal conceito em nosso imaginário cultural, reforçando o caráter antirracionalista atribuído à parte das manifestações artísticas de natureza imagética e que, todavia, perdura entre nós. Ainda no caminho de pensar o papel da imagem como estratégia não apenas para construir, mas também para interpretar o mundo ao longo da história da humanidade, Joly

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chama a atenção para a relação advinda entre imagem e sagrado; relação essa também contemplada na citação anterior de Debray. De acordo com Joly

[...] as religiões judaico-cristãs têm a ver com as imagens. Não apenas porque as representações religiosas estão presentes em massa em toda a história da arte ocidental, porém, mais profundamente, porque a noção de imagem, assim como sua condição, representa um problema-chave da questão religiosa. A proibição bíblica de se fabricar imagens e prosternar-se diante delas designava a imagem como estátua e como deus. Uma religião monoteísta tinha como dever, portanto, combater as imagens, isto é, outros deuses. (JOLY, 2012, p. 18)

A partir desse aspecto, fica claro que o papel da imagem enquanto constructo da percepção humana não compreendia apenas uma dimensão estética. À imagem, sob a perspectiva ocidental e não raramente de forma marginalizada, clandestina, coube o papel de personificar variadas visões de mundo. Um mundo, diga-se de passagem, predominantemente contraditório, zona tensa na qual muitas vezes o questionamento das fronteiras entre o real e o imaginário, entre o racional e o ilógico, entre o sagrado e o profano sofreu tentativas de solapamento em detrimento de um único projeto de cunho pretensamente civilizatório. No sentido do que foi apresentado até o momento, é perceptível que a imagem exerceu papel fundamental no desenvolvimento de várias instâncias culturais da humanidade. Tinha e continua tendo uma função, uma intenção, um objetivo que extrapola as fronteiras da dimensão estética. De acordo com Jacques Aumont, a “produção de imagens jamais é gratuita, e desde sempre, as imagens foram fabricadas para determinados usos, individuais ou coletivos” (AUMONT, 1993, p. 78). Destaca-se na fala do pesquisador a menção à intencionalidade que existe por trás da imagem, o que nos faz refletir sobre o papel importantíssimo de tal elemento em nossa cultura no que tange não apenas às manifestações estéticas, mas, sobretudo, às políticas e ideológicas. Aumont, além de pensar sobre a produção da imagem e seus possíveis objetivos, também refletiu sobre as relações desta com o real e o simbólico. Segundo o teórico, tal relação divide-se em três modos principais: o “modo simbólico”, no qual a imagem tinha o objetivo de “dar acesso à esfera do sagrado pela manifestação mais ou menos direta de uma força divina” (AUMONT, 1993, p. 80); o “modo epistêmico”, no qual “a imagem traz informações (visuais) sobre o mundo, que pode assim ser conhecido, inclusive em alguns de seus aspectos não-visuais” (AUMONT, 1993. p. 80), gerando um conhecimento acerca do

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mesmo; e o “modo estético”, no qual a “imagem é destinada a agradar seu espectador, a oferecer-lhe sensações (aesthésis) específicas” (AUMONT, 1993, p. 80). Mais uma vez evidencia-se a função geral da imagem no contexto sócio-histórico. Esse elemento, a imagem, afigura-se como uma espécie de intermediário praticamente ubíquo entre os homens e o mundo onde os primeiros erigem suas perspectivas de real, imaginário e simbólico numa tentativa de re/construir esse mesmo mundo que habitam e, em certa medida, a si próprios. Antes de encerrarmos nossas observações baseadas nas palavras de Aumont, cabe que se esclareçam, mesmo que rapidamente, quais são exatamente os parâmetros de “real”, “imaginário” e “simbólico” adotados nesta pesquisa. De acordo com François Laplantine e Liana Maria Sálvia Trindade no livro O que é imaginário? (2000), essa tríade, que a partir do século XX foi estudada por psicanalistas como Freud e Jacques Lacan9, pode assim ser definida: “O real é a interpretação que os homens atribuem à realidade. O real existe a partir das ideias, dos signos e dos símbolos que são atribuídos à realidade percebida” (LAPLANTINE, TRINDADE, 2000, p. 3). O segundo elemento dessa tríade, o “imaginário”, seria a

faculdade originária de pôr ou dar-se, sob a forma de apresentação de uma coisa, ou fazer aparecer uma imagem e uma relação que não são dadas diretamente na percepção. [...] Consideramos que a imagem é formada a partir de um apoio real na percepção, mas que no imaginário o estímulo perceptual é transfigurado e deslocado, criando novas relações inexistentes no real. (LAPLANTINE; TRINDADE, 2000, p. 8)

Ainda segundo os autores, o “simbólico”, terceiro e último elemento dessa tríade,

comporta um componente racional real e representa o real ou tudo aquilo que é indispensável para os homens agirem ou pensarem. O simbólico se faz presente em toda a vida social, na situação familiar, econômica, religiosa, política etc. Embora não esgotem todas as experiências sociais, pois em muitos casos essas são regidas por signos, os símbolos mobilizam de maneira afetiva as ações humanas e legitimam essas ações. A vida social é

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Segundo o “E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia”: “Embora o imaginário tenha uma conotação precisa em literatura; embora a teoria freudiana lhe tenha dado a dimensão da fantasia ainda que abrindo para a noção de ilusório; é com Lacan que este conceito é elaborado com rigor como registro fundamental da estrutura mental a par do real e do simbólico, constituindo o registro da ilusão e da identificação.” Disponível em: http://www.edtl.com.pt/. Acesso: 23 de julho, 2015.

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impossível, portanto, fora de uma rede simbólica. (LAPLANTINE; TRINDADE, 2000, p. 6)

Sob essa perspectiva, fica possível apontar que a existência de cada um desses constructos depende de sua relação com os outros. Sendo assim, a presença de pelo menos dois desses conceitos – real e imaginário – em nosso corpus será analisada tomando, sempre que possível, suas possíveis inter-relações. Ainda nesse sentido, percebe-se também uma relação intrínseca justamente entre a imagem e o espectador. Um não sobreviveria ou não faria sentido sem o outro10. Vale lembrar que o supracitado Aumont atribui grande importância ao espectador dessas imagens. Afinal de contas, assim como o artista criador, o espectador é quem mais pode ser capaz de construir algum sentido diante de uma manifestação de tal natureza. Para esse autor, tal “abordagem do espectador consiste antes de tudo em tratá-lo como parceiro ativo da imagem, emocional e cognitivamente” (AUMONT, 1993, p. 81). Com o advento das útimas décadas do século XIX e o subsequente fortalecimento dos estudos sobre a psiquê humana, a imagem, como não poderia deixar de ser, foi mais uma vez empregada como ferramenta no intuito de possibilitar novas ou renovadas maneiras da geração de sentido. Segundo Joly, “ainda se emprega o termo ‘imagem’ para falar de certas atividades psíquicas, como as representações mentais, o sonho, a linguagem por imagem etc.” (JOLY, 2012, p. 19). Cabe destacar que a imagem, mesmo com mudanças significativas ao longo dos últimos séculos, parece ter continuado a ser considerada como “a louca da casa”, uma vez que foi associada, novamente, a um campo de conhecimento humano que não necessariamente cultivava o racionalismo de viés tradicionalista entre suas premissas. Joly, logo adiante em seu trabalho, delimita mais claramente essa imagem associada ao inconsciente a partir do conceito de “imagem mental”. Segundo a pesquisadora, “uma representação mental é elaborada de maneira quase alucinatória, e parece tomar emprestadas suas características da visão. Vê-se” (JOLY, 2012, p. 19). Em Paranoia, conforme será demonstrado, as imagens parecem mais do que apenas tangenciar os domínios do “sonho”, das “representações mentais”, da “linguagem por imagem”. As imagens nesta obra de Piva e

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Sobre essa interdependência existente entre a obra de arte e seu espectador, Octavio Paz, tomando o texto poético como referencial para tal comparação, escreveu: “o poema jamais se apresenta como realidade independente; nenhum texto poético tem existência per se: o leitor confere realidade ao poema. Nesse sentido, o poeta não é senão o primeiro leitor de seu poema, o primeiro autor.” (PAZ, 1991, p. 101)

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Duke Lee, segundo nossa hipótese, afiguram-se como frutos de uma visão estética e “alucinatória” do mundo, ora tornando tênues, ora tornando tensas, as fronteiras entre o real e o imaginário. Com o advento da fotografia, a imagem, que até o século XVIII vinha sendo materializada no âmbito artístico predominantemente sob a forma pictural, ganha uma nova forma de registro que acabará por transformar para sempre a relação do homem com o mundo no século seguinte. A imagem de natureza fotográfica, além de garantir uma fidelidade maior enquanto representação, também popularizou uma nova figura do imaginário cultural: o fotógrafo. Na esteira dessas inovações, surgiu outra poderosa forma de imagem, responsável por ampliar as conquistas estéticas advindas da fotografia e encantar o mundo todo: a imagem fílmica. Sergei Eisenstein, cineasta, teceu suas considerações sobre essa poderosa imagem fílmica. O diretor e teórico soviético pensou a formação deste tipo de manifestação imagética partindo de um determinado viés: a montagem. O que se destaca nas formulações de Eisenstein, neste ponto, é a sua proposição de que, “para criar uma imagem, a obra de arte deve se basear num método idêntico, a construção de uma cadeia de representações” (EISENSTEIN, 2002, p. 22). Para Eisenstein, um mesmo método de criação de imagens, tal como a montagem, poderia ser aplicado a uma diversidade de manifestações artísticas, incluindo a literatura, destacando consequentemente uma inter-relação entre artes que caracterizaria, em certa medida, a práxis artística dos séculos XX e XXI. Entre as últimas décadas do século XX e os anos que abriram o século seguinte, a imagem passa por outra importante modificação tanto do ponto de vista de sua produção quanto de sua exibição. Ela passou a ser construída por meio de equipamentos digitais e veiculada também em aparelhos dessa mesma natureza. Segundo Joly, essas “novas imagens” são denominadas de “imagens de síntese”, “produzidas em computador” (JOLY, 2012, p. 25). Ainda conforme a autora,

programas cada vez mais potentes e sofisticados permitem criar universos virtuais, que podem se apresentar como tais, mas também fazer trucagens com qualquer imagem aparentemente ‘real’. Qualquer imagem passou a ser manipulável e pode perturbar a distinção entre ‘real’ e ‘virtual’. (JOLY, 2012, p. 26)

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Mais uma vez, destaca-se em relação à imagem uma tensão advinda da coexistência de duas perspectivas em seus domínios: a perspectiva real e a visada imaginária. Sob tal prisma, o virtual parece ter sido assimilado como uma espécie de substituto do imaginário, abrindo e ampliando outras frentes tanto na produção quanto na recepção de sentidos. O teórico Vilém Flusser construiu também seu conceito de imagem a partir desse contexto contemporâneo no qual a materialização desse elemento se dá por meio de tecnologias digitais. O autor problematiza sua interpretação do conceito baseado não apenas na recepção dessas imagens, mas, também, sob a perspectiva das atuais maneiras de produção e veiculação. Segundo o autor, as “imagens técnicas são pois produtos de aparelhos que foram inventados com o propósito de informarem” (FLUSSER, 2008, p. 34). Para Flusser, o criador dessas imagens não é mais o pintor, o escultor, o fotógrafo ou mesmo o cineasta. O demiurgo dessa nova categoria de imagem seria simplesmente um produtor, alguém que tomando como referencial sua própria imaginação ou a imaginação alheia, cria esse produto não a partir do gesto diretamente materializado sobre o suporte, tal como os pintores e escultores, artífices manuais stricto sensu, mas valendo-se da intermediação de tecnologia computacional. Se, para os pintores, apenas um pincel se interpunha entre eles e a tela/suporte, para os produtores da “imagem técnica” o aparato tecnológico é o responsável, por meio de hardware e softwares engendrados por terceiros, pela materialização e veiculação de tal categoria de imagem no mundo. Ainda segundo Flusser, esse “gesto”, no caso da produção de imagens, “não é transparente” (FLUSSER, 2012, p. 41). Essa “transparência”, segundo se pode concluir a partir do pensamento de Flusser, estaria sendo suplantada por uma espécie de opacidade materializada a partir dos aparatos digitais. Interessante notar que o autor, a despeito de destacar uma espécie de massificação da tecnologia digital vigente no contexto atual, colocase de maneira crítica em relação a tal fenômeno, atentando para a modificação da natureza da imagem. Dessa forma, pode ser menos difícil constatar que a imagem ainda continua a suscitar dúvidas e tensões que deságuam no conhecido embate entre o que é tomado por real ou definido como imaginário. Essa relação de traços dicotômicos entre instâncias reais e imaginárias, associada aos modos de produção e recepção da imagem ao longo da história, conforme visto até o momento, parece encontrar a sua força nesse terreno de indecibilidade. Paradoxalmente, essa condição de crise permanente, por um lado, dificulta qualquer tentativa de análise totalizadora

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do conceito devido a sua natureza múltipla. Por outro lado, justamente por conta dessa multiplicidade semântica, a partir do momento em que poucas variantes do conceito de imagem são tomadas como referência, como intenciona esta pesquisa, abre-se uma possibilidade mais concreta de apreensão do mundo tanto em sua perspectiva real quanto dos possíveis sentidos imaginários. Retomaremos brevemente à mirada léxico-semântica para que possa ser definida a variante do conceito a ser utilizada neste trabalho. A palavra imagem, desta vez de acordo com o professor Massaud Moisés (2013), teve sua origem no vocábulo latino “imago” e encerraria uma espécie de

instabilidade semântica não só porque empregado com frequência na linguagem cotidiana e na linguagem científica, filosófica, psicológica [...] como porque, no âmbito propriamente literário, exibe conotações variáveis, discutíveis e infensas a todo esforço de precisão e rigor. (MOISÉS, 2013, p. 241)

Mais uma vez fica evidente, sob tal entendimento, certa dificuldade em se atribuir apenas uma única definição geral a esse termo por conta de suas variadas possibilidades de uso nas instâncias linguageiras. Para superar tal empecilho e delimitar melhor o aparato teórico deste trabalho, a concepção de imagem a ser utilizada passará menos por uma leitura do que pode ser tomado por denotativo e de acento racionalista, e mais pela tentativa ou sugestão da formação de um sentido de natureza conotativa, próximo ao texto poético, lúdico em sua essência, e em cujos domínios esta palavra – imagem – pode adquirir uma enorme gama de sentidos. Georges Didi-Huberman, em texto sobre o conceito de imagem relacionado à história da arte, parece corroborar com essa perspectiva de multiplicidade de sentidos que converge à categoria de imagem pontuada até o momento. O professor e pesquisador francês expõe em seu trabalho a ideia de que “o ‘mundo’ das imagens não rejeita o mundo da lógica, muito pelo contrário. Mas joga com ele, isto é, entre outras coisas, cria lugares dentro dele [...], lugares nos quais obtém sua potência” (DIDI-HUBERMAN, 2013, pp. 188-189, grifo do autor). Segundo o visto até o momento, essa “potência”, inerente à multiplicidade da imagem, parece justamente advir do “jogo” entre o cartesiano e o irracional, surge do tensionamento entre o real e o imaginário. Mas, e como a imagem, por meio desse “jogo” tenso e que

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deságua em “potência” de natureza plástica conforme sugerido, se constituiria como algo apreensível pelos sentidos? Para Lucia Santaella, a manifestação da imagem no mundo sensível se daria a partir de uma representação tanto visual quanto mental. De acordo com as suas palavras e as do também professor e pesquisador Winfried Nöth,

o mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas pertencem a esse domínio. Imagens, nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam nosso meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens da nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais. Ambos os domínios da imagem não existem separados, pois estão inextrincavelmente ligados já na sua gênese. Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens da mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais. (SANTAELLA, NÖTH, 2012, p. 15)

Em Paranoia, supomos, a imagem estaria materializada e potencializada justamente a partir das representações sob a perspectiva do jogo entre o “duplo domínio” supracitado. As “representações visuais”, nesse caso, se dariam a partir das fotografias, enquanto as “representações mentais” seriam construídas a partir da palavra poética. Tais representações e relações serão investigadas no quarto capítulo desta dissertação. O momento, todavia, é o de continuarmos a desvelar algo mais desse elemento cuja presença se avulta e se mostra relevante a este estudo.

2.2 Imagem & palavra “Palavra e imagem permitem o acesso, em todas as sociedades, a universos diversos.” Anne-Marie Christin

A imagem no livro Paranoia, conforme sugerido até o momento, não se manifesta de forma única. Ela se afigura como estrutura basilar tanto à tessitura dos versos quanto, obviamente, à constituição dos registros fotográficos. Antes que se passe a uma revisão da fotografia como expressão artística e imagética que ainda reverbera nos dias atuais, faz-se

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necessário definir um pouco melhor como a imagem se materializaria, por intermédio da palavra, no texto poético. Para Octavio Paz

designamos com a palavra imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem um poema. Estas expressões verbais foram classificadas pela retórica e se chamam comparações, símiles, metáforas, jogos de palavras, paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc. Quaisquer que sejam as diferenças que as separam, todas têm em comum a preservação da pluralidade de significados da palavra sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto de frases. (PAZ, 1976, pp. 37-38)

Segundo o que pode ser inferido da afirmação do poeta e ensaísta mexicano, a materialização da imagem na trama textual, ou ainda, o uso dessa trama textual como uma espécie de fonte geradora de imagem, se dá por meio de processos análogos e/ou analógicos, tais como as “comparações”, os “símiles”, as “metáforas”, dentre outros. Essa relação de caráter analógico será investigada principalmente nos poemas e, se possível, de forma análoga, também nas fotografias. Ainda no sentido dos apontamentos de Paz, a imagem apresenta-se predominantemente a partir de uma relação, arquitetada pelo criador dos textos, entre elementos ou realidades que não necessariamente seriam harmoniosas, mas ainda apreensíveis por meio de uma construção discursiva. Para acrescentarmos mais subsídios aos conceitos apresentados até o momento, é pertinente que se mencione uma vez mais Lucia Santaella. Em outra de suas investigações sobre a relação entre palavra e imagem, a pesquisadora nos sugere que as

imagens verbais podem ser tratadas sob dois pontos de vista: 1) como linguagem figurada, metafórica ou 2) no sentido empregado pelo Wittgenstein do Tractatus, ao definir a proposição como um “retrato”, “figuração” (picture) da realidade, de um modelo da realidade [...] que tem em comum com essa realidade (o afigurado) “ a forma lógica da afiguração”. (SANTAELLA, 1994, p. 46)

Das duas proposições evocadas por Santaella, certamente a que mais se aproxima do sentido de imagem delimitado por Octavio Paz e, em grande medida, ao do corpus aqui investigado conforme será demonstrado, é a primeira delas, em que as “imagens verbais”

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(SANTAELLA, 1994, p. 46) são formadas no texto justamente por meio das figuras de linguagem associadas às operações metafóricas, intrínsecas ao texto de natureza poética. Quanto à definição desse elemento baseada nas teorias de Wittgenstein suscitada por Santaella, talvez a questão da “forma lógica da afiguração” (SANTAELLA, 1994, p. 46) a distancie do recorte aqui proposto, uma vez que o conceito de imagem utilizado ao longo deste trabalho, adiantamos, está fortemente enraizado na acepção tradicional de “louca da casa” conforme assinalado, variante aparentemente oposta à ideia lógica ou cartesiana de “afiguração”. Ainda segundo as investigações de Paz, “a imagem é uma frase em que a pluralidade de significados não desaparece. A imagem recolhe e exalta todos os valores das palavras, sem excluir os significados primários e secundários” (PAZ, 1976, p. 45). Importante destacar nessa afirmação do autor o caráter de “pluralidade de significados” que a imagem construída por meio da palavra encerra. Essa variante de imagem que se vale da palavra, a princípio, carrega múltiplas possibilidades de geração de sentido conforme aventado, associando-se dessa maneira à linguagem conotativa, característica do texto poético, em oposição à linguagem de cunho denotativo, na qual subsiste apenas uma única forma de apreensão e representação do factual. Santaella e Nöth, dialogando com outros teóricos, também deram mais algumas pistas sobre a relação imagem e palavra. Baseados na semiótica de Charles S. Pierce, os autores pensaram sobre tal relação a partir da classificação pierceana dos “ícones puros” e “hipoícones”. Segundo os pesquisadores, para Pierce, os “ícones puros” teriam uma “natureza mental”, sendo uma espécie de “flash de incandescência mental, quase-imagem interior, luz primeira de todos os insights” (SANTAELLA, NÖTH, 2012, p. 62). Do outro lado estariam os assim chamados e já mencionados “hipoícones”, “que se subdividem em imagem, diagrama e metáfora” (SANTAELLA, NÖTH, 2012, p. 62). Uma hipótese sugerida e que será verificada tanto nos poemas quanto nas fotografias é a de que a imagem em Paranoia gravitaria exatamente entre esses dois conceitos, ora flertando com essa “incandescência mental” de natureza quase irracional, ora com a “metáfora”, esta última categorizada por Pierce como um “hipoícone”. Os autores ainda atentam para o fato de que as “cintilações conotativas da metáfora produzem nítidos efeitos imagéticos, assim como a metáfora sempre engendra num processo de condensação” (SANTAELLA, NÖTH, 2012, p. 65).

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Esse efeito de condensação utilizado para a construção poética já era objeto de estudo do poeta e ensaísta norte-americano Ezra Pound logo na primeira metade do século XX. Para o autor de Os cantos, a condensação, mais do que um recurso utilizado na práxis poética, definia o próprio conceito de poesia: “é a mais condensada forma de expressão verbal” (POUND, 2006, p. 40). É justamente a partir desse movimento de condensação, levado a cabo por meio da metáfora e/ou da montagem, nas quais muitas vezes elementos díspares são aproximados ou sobrepostos, que surge uma das variantes da imagem na qual, segundo hipótese a ser comprovada, predomina no objeto de estudo desta pesquisa: a imagem poética. Entretanto, antes que se chegue a uma definição mais clara do que seria exatamente esse conceito de imagem poética, serão elencadas ainda outras variantes que mais se aproximam da acepção desse elemento fundamental ao constructo estético relativo ao livro de Piva e Duke Lee. Uma dessas variantes do conceito de imagem, formada a partir da trama textual, é aquela conhecida como “imagem verbal” (SANTAELLA, NÖTH, 2012, p. 69). Prosseguindo no caminho trilhado por Santaella e Nöth, os autores afirmam que foi “no campo da literatura que o conceito de imagem verbal disseminou-se” (SANTAELLA, NÖTH, 2012, p. 69). Eles salientam também que pouco a pouco, “a genérica noção de imagem foi substituindo as figuras de linguagem” sendo, no Romantismo,

sublimadas nas brumas mais misteriosas e refinadas da imaginação, até que, no Modernismo, a sublimação progressiva da imagem alcançou sua culminação lógica quando o poema inteiro ou texto passou a ser considerado como uma imagem ou ‘ícone verbal’. Esta imagem não mais concebida como impressão ou semelhança pictórica, mas como estrutura sincrônica num espaço metafórico, apresenta, segundo Pound, um complexo intelectual e emocional num instante de tempo. (SANTAELLA, NÖTH, 2012, p. 69)

De acordo com Santaella e Nöth, infere-se que a imagem verbal apresenta-se como um conceito ou operação verbal de cunho estético, construído a partir e para os domínios do texto literário. No Romantismo, e com grande força no Modernismo, consolidou-se como práxis que incorpora e recicla em novas contextualizações procedimentos de certa forma tão antigos quanto o são a própria linguagem, sendo a metáfora um desses procedimentos. Nesse sentido, percebe-se, para a formação de uma determinada trama poético-textual que privilegia a

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imagem surgida a partir de operações verbais, a importância do diálogo entre procedimentos muitas vezes com temporalidades distintas. Essa relação nos parece surgir a partir da apropriação e renovação de conceitos de origem clássica somados a elementos da cultura popular, ambos repaginados pelas exigências de um contexto moderno ou contemporâneo. E foi justamente a partir desses contextos que tal variante de imagem associada ao texto literário ou, no caso desta pesquisa, ao texto poético, notoriamente metafórico, tornou-se instrumento poderoso para a construção de uma renovada perspectiva de formulação e apreensão estéticas no imaginário cultural.

2.3 Da metáfora à montagem “[...] a montagem é uma metáfora, na medida em que se apresenta como a ‘ideia’ que salta da colisão de signos ou imagens justapostas.” Modesto Carone Netto

De acordo com o sugerido, a variante de imagem que irá delimitar o recorte de parte desta pesquisa, variedade gerada a partir da poesia e que doravante será denominada de imagem poética11, apresenta-se intrinsecamente ligada a dois movimentos que, na perspectiva apresentada, ajudaram a fundar justamente esse modelo de imagem. O primeiro desses movimentos que acreditamos ser gerador da imagem poética é constituído a partir da metáfora, figura de linguagem por excelência que, não raramente, é confundida com a própria noção de poético. O outro movimento, cuja análise também ajudará a delimitar a variante de imagem que compõe o tema do presente trabalho, é a montagem. Esse último elemento mencionado, vale salientar, será aqui basicamente entendido no sentido eisensteiniano. Conforme defendido pelo próprio cineasta, a montagem poderia ser aplicada não apenas ao cinema, mas também a outras instâncias artísticas tais como a própria literatura, por exemplo. (EISENSTEIN, 2002)

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Se na Antiguidade Clássica a palavra “poética” era associada à retórica e à normatização dos clássicos conforme observa Roberto Acízelo de Souza no livro Teoria da Literatura (2007), a partir do século XIX o “termo poética torna-se equivalente a expressão teoria da literatura, pois designa a modalidade contemporaneamente dominante de estudar a literatura (tanto composições em prosa como em verso), de cunho descritivo-especulativo e marcada pela preocupação de discutir seus próprios métodos e conceitos.” (SOUZA, 2007, p. 29).

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Mais uma vez retomaremos a algumas percepções de Aristóteles como ponto de partida referente a este esforço para definir, afinal, o que seria exatamente essa imagem poética que percebemos tomar conta das páginas do objeto desta pesquisa, o livro Paranoia. Um dos primeiros registros sobre o conceito de metáfora na cultura ocidental foi proposto exatamente pelo filósofo grego supracitado. Segundo o registrado em sua Poética, “a metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por analogia” (ARISTÓTELES, 2004, p. 83). Não seria demais sugerir que, sob o prisma aristotélico, percebe-se nitidamente um movimento de “transposição”, ação que muda as coisas de seu lugar, de seu contexto, cambiando dessa maneira seus sentidos. Movimento esse que entrevemos ser a fagulha necessária à combustão geradora da luminosidade poética da linguagem, nesses momentos, então rendida pela potência da operação metafórica. Novamente, para que se continue a percorrer um caminho que leve a uma definição mais apurada deste que é um dos conceitos chave do presente trabalho – a imagem poética – será emprestado de Massaud Moisés algum subsídio advindo de outro de seus verbetes. Sendo assim, por enquanto, continuará sendo jogada alguma luz sobre a ideia de metáfora. Ideia essa que, de acordo com o já entrevisto, também está intimamente ligada ao próprio conceito de imagem aqui perseguido. O vocábulo de origem grega (μεταφορά), em latim “metaphòra, ae”, inicialmente, é tomado como sinônimo de “transferência, translação, transporte” (MOISÉS, 2013, p. 290). Analisando rapidamente os possíveis sentidos advindos desse breve conjunto lexical, entrevêse, sob um prisma semântico e de cunho acentuadamente aristotélico, uma possível associação desse mesmo léxico a um movimento – o deslocamento12 – que, em certa medida, também ajudaria a materializar a imagem poética no texto literário. Esse movimento, quando usado na instância poética, costuma causar tensionamentos provavelmente advindos do uso de determinadas palavras ou expressões em um novo contexto, podendo surgir a partir daí renovadas maneiras de apreensão de sentido, inclusive o de base conotativa, de essência lírica. Esse movimento será oportunamente comentado a partir

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Por questões de ordem tática, alguns conceitos que julgamos secundários em relação aos que no momento estão sendo expostos serão apresentados somente no momento da análise do objeto.

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dos poemas e, também, das fotografias. Neste momento, entretanto, ainda convém continuarmos recolhendo e entrelaçando considerações que ajudem a definir melhor o conceito de imagem poética. Logo no início do extenso verbete destinado à metáfora, em seu Dicionário de termos literários, Moisés adverte seu leitor de que a

considerável parcela de complexidade apresentada pela metáfora advém de suas profundas ramificações com outros recursos estilísticos vizinhos, os tropos ou figuras de linguagem e pensamento, como a imagem, a alegoria, o símile, a metonímia, a sinédoque, o símbolo, o mito, etc. (MOISÉS, 2013, p. 291)

Importante salientar nessa passagem de Massaud Moisés a informação de que a metáfora é um recurso que se relaciona ou atua em conjunto com uma série de outros elementos, largamente utilizados na composição literária e nas artes de maneira em geral: a “alegoria”, a “metonímia” e o “símile”, por exemplo. Outros elementos citados pelo autor, ainda associados à operação metafórica, como o “símbolo” e o “mito”, também foram constituídos e veiculados, a despeito de suas idiossincrasias, sob os domínios da imagem. Massaud Moisés ainda chama a atenção para a abrangência desse elemento dentro dos processos linguageiros. Para o autor, a “universalidade da metáfora ainda se manifesta como processo básico de comunicação verbal” quando se busca “traduzir em palavras nossos sentimentos e sensações” (MOISÉS, 2013, p. 291). Nesse sentido, pode ser inferido que o uso da metáfora, mais do que um consagrado recurso para a construção do texto literário, está ancorado, sobretudo, na tentativa do ser humano em externar sua subjetividade por meio da linguagem, seja essa de natureza poética ou de intencionalidade comezinha. À metáfora, que sob algumas perspectivas é considerada e tomada literalmente como imagem, também se atribui uma proximidade com outra das figuras de linguagem consideradas fundamentais não apenas a uma grande parte da poesia, mas também a uma significativa parcela de manifestações picturais. Essa figura é a sua coirmã, conhecida como metonímia13.

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Segundo verbete do Novo dicionário da língua portuguesa, de Francisco Silveira Bueno, a metonímia é uma “figura que consiste em designar uma coisa com o nome de outra que com ela tem relação imediata: a causa pelo efeito e vice-versa.” (BUENO, 2015, p. 498)

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Roman Jakobson, proeminente linguista russo cujo trabalho buscou construir uma reflexão sobre a linguagem e o fenômeno poético, observou que “em poesia, onde a similaridade se superpõe à contiguidade, toda metonímia é ligeiramente metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico” (JAKOBSON, 2007, p. 148). A observação feita pelo linguista russo de que há traços de metáfora na metonímia e de que, no sentido inverso, subsistem rastros desta última na própria metáfora, de certa maneira, pode aguçar o olhar que está sendo construído neste trabalho sobre o conceito de imagem. Um olhar que, conforme já assinalado, busca gerar sentidos não somente a partir de uma visada na qual a imagem poética é tomada como espinha dorsal nos poemas escritos por Roberto Piva, mas também sob uma perspectiva em que certa composição de imagens possa caracterizar as fotografias tiradas por Wesley Duke Lee. Pode ser percebido, levando em consideração as colocações que até este momento foram apresentadas, que a metáfora, quando alçada à instância poética, apresenta-se não como recurso inquestionável ou autossuficiente, mas sim como elemento que frequentemente opera em associação com outras estratégias de natureza similar, sendo a metonímia um desses recursos. Outro desses recursos, já mencionado e que pode ser associado tanto à operação metafórica quanto à imagem poética ajudando a tecer justamente essa trama poético-imagética aqui investigada é a montagem14. Modesto Carone Netto, em seu estudo sobre a lírica do poeta Georg Trakl, teceu importantes reflexões sobre a presença não apenas da metáfora na obra do poeta austríaco, mas também desse outro elemento que finalmente será deslindado logo mais adiante: a montagem. No entanto, como o objetivo desta parte do trabalho é primordialmente o de coletar subsídios teóricos suficientemente sólidos para fundamentar a análise dos poemas e fotografias mais adiante, parece imprescindível que ainda se despenda mais algum tempo com a metáfora. Conceito esse que, conforme já suficientemente assinalado, muitas vezes confunde-se com a própria ideia de imagem. Carone aparentemente corrobora com esse entendimento de imagem e metáfora supracitada. Para o autor, o conceito de metáfora seria equivalente às imagens engendradas por Georg Trakl em seus versos. Segundo o pesquisador, justificando a escolha de seu

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Leone e Mourão chamam a atenção para a relação entre montagem e edição. Para os pesquisadores, “editar significa montar, escolher, selecionar e articular” (LEONE; MOURÃO, 1987, p. 8). É nesse sentido que pensamos o termo aplicado aos poemas de Roberto Piva em Paranoia.

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arcabouço teórico, decidiu-se “conservar o nome metáfora para as imagens do poeta de Salzburg” (CARONE, 1974, p. 12). Ciente do problema de se definir uma ideia unívoca de imagem que permitisse uma análise do objeto segundo sua proposta, o pesquisador optou por considerar as imagens poéticas de Trakl como sinônimo de metáfora. Em suma, nos versos do poeta austríaco, de acordo com Carone, a metáfora apresenta-se tanto como procedimento, quanto como produto final. A perspectiva adotada no trabalho de Modesto Carone sobre as operações metafóricas na poética de Trakl pode eventualmente apresentar pontos de contato com o recorte de estudo do livro Paranoia. Conforme será demonstrado mais adiante neste capítulo, a metáfora está intimamente associada ao conceito de imagem aqui proposto, especificamente àquele entendido como imagem poética. Entretanto, essa última não será tomada, como se depreende a partir do estudo em questão, como algo equivalente à metáfora, mas sim como uma consequência de seu uso particularíssimo. O pesquisador, ao propor uma análise da composição poética de Trakl a partir da metáfora, dirigiu sua atenção a esta última, sobretudo a partir de aspectos como a “constituição alógica, sua visualidade, sua padronização verbal, seu cromatismo etc.” (CARONE, 1974, p. 12). Chama a atenção nessa proposição principalmente os aspectos da “constituição alógica” e da “visualidade”, dois elementos que, entrevemos, apresentam-se fulcrais à constituição das imagens em Paranoia. Preliminarmente, a “constituição alógica” (CARONE, 1974, p. 12) poderia ser associada ao notório acento delirante dos versos de Roberto Piva. A “visualidade” (CARONE, 1974, p. 12), por sua vez, apresenta-se plasmada não somente nos poemas de Piva ao longo do livro, mas materializada de maneira inconteste no ensaio fotográfico de Duke Lee. Tais perspectivas serão devidamente apreciadas a partir do objeto de análise. Ainda na esteira das considerações acerca do poeta austríaco, porém tentando direcionar sua proposta de análise ao tema e objeto deste trabalho – a construção e a relação entre as imagens em Paranoia –, comentaremos nos próximos parágrafos algo sobre a montagem. Práxis inserida em várias instâncias da linguagem, a montagem, com o advento da imagem fotográfica e, principalmente, da imagem fílmica, desvela-se a partir do início do século XX como um modus operandi utilizado por correntes artísticas importantes, tais como as vanguardas europeias e até mesmo por parte do modernismo brasileiro.

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A montagem a partir de palavras não seria exatamente uma novidade em termos de uso no campo artístico. Segundo palavras do próprio teórico, “esse tipo de montagem vocabular, muito encontrado na poesia dos nossos dias, tem um precedente histórico importante, entre outros, na prosa de James Joyce” (CARONE, 1974, p. 100). Para ilustrar sua ideia, o pesquisador aponta na prosa joyceana a chamada “palavra-valise”, na qual a junção de vocábulos distintos como “silver”, “moon” e “lake”, através da montagem, gera um sintético e prismático verso, “silvamoonlake”, novo elemento vocabular no qual há uma “abertura de um amplo horizonte de significados”. (CARONE, 1974, p. 100) Antes que se prossiga, é necessário ressaltar que a perspectiva de montagem usada como exemplo no parágrafo anterior não corresponde exatamente a que está sendo investigada no objeto deste nosso estudo. Foi exemplificado um tipo de montagem que funciona baseado na aglutinação de palavras. A perspectiva a ser apresentada adiante tomará a montagem não exatamente a partir de um desmembramento lexical como o fez Pound, evocado no exemplo, mas privilegiará a investigação tendo como base as relações semânticas a partir das quais será levantada a construção das imagens que, desconfiamos, afiguram-se formadas a partir de um movimento metafórico originado na justaposição de elementos com características particulares, podendo ser até mesmo díspares ou distintas, ao longo dos versos. Ainda sobre a montagem, o professor discorre em sua tese sobre outra variedade dessa estratégia que se revela de grande valor na literatura de maneira geral. Segundo podemos inferir sob esse ponto de vista, a montagem também se dá nas manifestações literárias a partir da incorporação, ao texto, de trechos provenientes de outras fontes – citações que passam a agir no corpo mesmo do poema, ora como foco de contraste, ora como fator de sustentação semântica, ora realizando simultaneamente os dois desempenhos. (CARONE, 1974, p. 101)

A citação, recurso que possibilita a ação da montagem justamente a partir dessa “incorporação” ou justaposição de elementos externos ao texto, também parece ter sido utilizada em grau significativo na composição das imagens que cintilam nos versos de Paranoia e que se materializa de alguma maneira também a partir das composições fotográficas dessa obra.

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Evocando o filósofo Theodor Adorno em dado momento de sua análise, Modesto Carone continua a refletir sobre a montagem e outro elemento que, segundo também pode ser inferido a partir de diversos depoimentos de Piva15, afigura-se importante à constituição da poética de Paranoia. Segundo essas ideias emprestadas de Adorno, o “esquema que marca o procedimento artístico dos surrealistas é, sem dúvida, a montagem. Para o pensador alemão, a ‘justaposição descontínua de imagens, na poesia surrealista, tem o caráter de montagem’” (ADORNO apud CARONE, 1974, p. 102). Essa abordagem, que associa à práxis surrealista uma metodologia de cunho racionalista, representa um contraponto importante à ideia comumente difundida de que as manifestações desse movimento de vanguarda penderiam predominantemente apenas para uma vertente na qual o inconsciente, por intermédio da escrita automática, seria o ponto de partida para a construção das imagens surrealistas. Segundo o que se pode concluir das colocações de Adorno, as imagens no Surrealismo, a despeito de sua recepção tradicionalmente associada às instâncias do sonho, do subconsciente, da loucura ou dos estados alterados da mente, paradoxalmente teriam sido construídas a partir de uma metodologia de caráter bastante racional. Acerca da racionalização e da aplicação do procedimento de montagem à esfera estética, conforme já aventado, impossível que não se mencione, uma vez mais, o cineasta Sergei Eisenstein. Considerado um dos principais defensores desse procedimento como ferramenta de construção estética, debruçou-se de maneira apaixonada e metódica sobre o próprio fazer. Suas reflexões e proposições, a despeito das características inerentes à sua linguagem de origem, o cinema, ajudaram sobremaneira à construção de um pensar e de um fazer artísticos que definiram em grande parte a primeira metade do século XX, contexto tenso e fragmentado, tal qual uma imagem que, erigida pela montagem de elementos específicos – prenhes de potência metafórica – confunde o que se toma por real ou por imaginário. Eisenstein, dentre as várias considerações sobre a montagem reunidas no livro que intitulou como O sentido do filme (2002), destaca desse movimento uma das maneiras pela

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Segundo revelado em várias entrevistas, o Surrealismo, junto à “Beat Generation”, influenciaram a escrita dos poemas que integram a obra Paranoia. (COHN, 2009)

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qual esse mesmo recurso é materializado: a justaposição. Retoricamente, Eisenstein explicita seu pensamento sobre tal aspecto respondendo à própria pergunta:

O que esta compreensão da montagem implica essencialmente? Neste caso, cada fragmento da montagem já não existe mais como algo não-relacionado, mas como uma dada representação particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas. A justaposição desses detalhes parciais em uma dada estrutura de montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve participação e que reúne todos os detalhes num todo, isto é, naquela imagem generalizada, mediante a qual o autor, seguido pelo espectador, apreende o tema. (EISENSTEIN, 2002, p. 18)

Chama a atenção nas palavras de Eisenstein esse efeito advindo da justaposição, isto é, de uma aproximação planejada entre fragmentos distintos que, depois de submetidos a tal operação, propiciam a apreensão de um novo olhar, de um novo “tema”. Eisenstein arremata seu pensamento propondo que “com este critério de montagem, os planos isolados e sua justaposição atingem uma correta relação mútua” (EISENSTEIN, 2002, p. 18). Vale a pena relembrar que a metáfora, por vezes, associa-se ou carrega traços de outras figuras de linguagem conforme já comentado. Nesse sentido, poderia se pensar que o resultado da justaposição16, com vias à construção de imagens e/ou metáforas, conservaria em alguns momentos características próprias da metonímia, essa última também uma figura de linguagem na qual as partes podem representar um todo e vice-versa, ou, como a sua irmã metáfora, “designar uma coisa com o nome de outra que com ela tem relação imediata” (BUENO, 2015, p. 508). A montagem, por meio da justaposição, poderia legar aos elementos escolhidos exatamente esse caráter de representação e correspondência analógicas suscitadas na imagem. Quando se leva em consideração a afirmação feita anteriormente na qual Eisenstein aventa a possibilidade do uso da montagem não apenas no âmbito da composição fílmica, mas em outras artes, pode ser depreendido algo interessante. Essa prática, que parte da justaposição de “planos” distintos com vistas à formação de uma nova perspectiva de sentido, sob a orientação eisensteiniana, pode ser pensada como mais uma forma de leitura do processo de formação das imagens no texto literário. Tal proposição será demonstrada nos

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Para Eisenstein, a justaposição “assemelha-se ao produto, e não à soma, porque o resultado da justaposição difere sempre qualitativamente de cada um de seus elementos componentes tomados em separado” (EISENSTEIN, 1969, p. 72).

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poemas e fotografias que compõem nosso corpus, mas nos arriscamos a dizer inicialmente que a imagem nos versos pivianos apresenta-se materializada por meio de operações metafóricas, regidas pela analogia, nas quais se revelam justaposições que suscitam tensionamentos entre dados elementos ou instâncias a princípio percebidas como distintas. A propósito dessas imagens, geradas a partir da distinção ou dessemelhança entre seus elementos formadores, resgatamos a afirmação do filósofo Jacques Rancière. Segundo o teórico francês, “as imagens da arte são operações que produzem uma distância, uma dessemelhança” (RANCIÈRE, 2012, p. 15). Ora, parece ser justamente na montagem por meio da justaposição de elementos que cultivam certo grau de tensão entre si por conta de tal “dessemelhança” que aflora um tipo especial de imagem: a imagem poética. Rancière, refletindo ainda sobre a imagem, logo adiante em seu texto chama a atenção para a “dessemelhança” como uma característica inerente às manifestações artísticas: “[...] há o jogo de operações que produz o que chamamos de arte: ou seja, uma alteração da semelhança” (RANCIÈRE, 2012, p. 14). Sob tal perspectiva e com os argumentos apresentados até o momento, entrevemos que o conceito de imagem poética perseguido neste trabalho apresenta-se como oriundo do jogo de alteração de semelhanças. Jogo materializado por meio de operações metafóricas calcadas, por sua vez, na justaposição de elementos dessemelhantes. Operações dessa natureza não são exclusivas da literatura conforme podemos perceber pelas colocações de autores como Eisenstein ou Rancière. Nesse sentido, entendemos que tais operações podem ter sido elementos-chave para a construção da obra Paranoia. É a partir desse movimento empreendido por meio da metáfora, fruto de um processo análogo à montagem cinematográfica no qual se percebe uma espécie de justaposição de elementos cuja essência aparenta ser díspar é que surge a imagem poética.

2.4 Analogia & imagem poética “A analogia é o nexo.” Octavio Paz

Antes que finalmente se chegue a uma definição mais precisa sobre o conceito de imagem poética, conceito esse que guiará parte significativa da análise do corpus em questão,

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ainda é necessário discorrermos sobre outro elemento que se coaduna justamente a esse tipo de imagem: a analogia. Esse elemento que junto à metáfora, à metonímia, acrescidas da condensação, da citação, do deslocamento e da montagem, estratégias já mencionadas nas páginas anteriores, afigura-se como mais uma dessas linhas de força que alimentam não somente a construção, mas que também se apresenta como mais um dos estratagemas de leitura no sentido de fomentar e multiplicar a possibilidade da recepção dessas imagens. Imagens que, de acordo com o recorte aqui em construção, podem ser associadas em maior medida ao texto poético e com algumas ressalvas ao registro fotográfico. A palavra analogia, do latim analogia, segundo Silveira Bueno (BUENO, 2015, p. 57) pode ser definida como “ponto de semelhança entre coisas diferentes”, ou, ainda, “influência assimiladora de uma forma sobre outra, habitualmente associadas ou aproximadas” (BUENO, 2015, p. 57). Ora, se forem levadas em consideração as operações que aqui já foram comentadas, operações essas que envolvem a criação da metáfora e, se seguida essa mesma linha de raciocínio, consequentemente da imagem poética, a analogia, certamente, configurase como mais um desses movimentos. O motivo disso talvez se deva ao fato de que a analogia encerre, em maior ou menor grau, assim como suas coirmãs, a característica importantíssima de jogar ou deslocar elementos e representações tanto reais quanto imaginárias, distintas a princípio, mas que a partir de uma aproximação consciente dessas instâncias, a despeito da tensão decorrente, materializam-se reorganizadas por meio da palavra poética ou, ainda, da imagem fotográfica. A analogia, junto à metáfora, também foi alvo das ponderações aristotélicas. Para o filósofo grego, a metáfora seria a “transposição” do sentido de uma coisa por outra por intermédio da analogia (ARISTÓTELES, 2004, p. 83). Pode ser depreendido a partir dessa argumentação de Aristóteles que, por meio de operações analógicas, a metáfora seria gerada. E o aparecimento de tal topos se daria justamente a partir desse movimento de caráter analógico, movimento que na linguagem cotidiana e, principalmente, na linguagem poética, é capaz de fazer com que se relacione as coisas por meio de semelhanças latentes. Esse movimento, cuja potência reside no deslocar, no deslizar de dado elemento de seu contexto denotativo, pragmático, racional, para outro contexto que privilegie uma visada estética, ainda que apenas com o objetivo de se efetuar uma comparação ou ilustrar uma oposição, acaba por legar à linguagem a possibilidade de outras leituras, de uma apreensão

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alternativa dos sentidos a primeira vista postos, possibilitando a partir desse jogo o aparecimento do poético. É importante ressaltar mais uma vez que tal procedimento, a analogia, não é também exatamente uma novidade em termos de uso nas artes, tendo sido empregada até mesmo com certa frequência a despeito das idiossincrasias contumazes das mais variadas manifestações estéticas ao longo da história. Entretanto, o recorte de tal estratégia no presente trabalho passa mais por uma tentativa da compreensão desse movimento sob a perspectiva de uma construção estética que desemboque na imagem, especificamente aquela associada ao metafórico, ao poético, do que qualquer outra relação comparativa com fins restritos à apreensão racional de um dado ou de um fenômeno sem qualquer relação com o artístico. Ao longo dos últimos séculos houve uma apropriação particularíssima dessa estratégia por uma parcela considerável de diversas correntes artísticas. Correntes que, de acordo com o apresentado, balizaram significativamente tanto a poética piviana quanto a imagética de Duke Lee conforme tem sido sugerido. Já em princípios do século XX, as vanguardas europeias valeram-se fartamente de tal modus operandi com vistas a compor uma parte significativa de suas produções. Tais procedimentos, já devidamente evocados e propostos como elementos constitutivos do fio condutor da análise de nosso corpus, orbitam próximos aos domínios da metáfora ou, especificamente, da imagem poética, frutos de uma operação analógica que se materializa com e entre linguagens. Tais estratégias, aparentemente, não permaneceram circunscritas a seu momento histórico e continuaram a reverberar em uma parte significativa da produção artística contemporânea. Das vanguardas europeias, algumas de suas correntes, como o Futurismo e o Surrealismo, ganham destaque significativo nesta análise quando pensamos a analogia como uma força propulsora de uma mirada estética na qual, a partir de operações metafóricas, surge a imagem poética. O Futurismo, capitaneado pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, tem seu marco inicial em 1909 com a publicação do “Manifesto Futurista” no jornal francês Le Fígaro, no qual o vanguardista italiano estabelece os principais pontos de sua visão “futurista” do século que então apenas começava.

Manifesto do Futurismo 1. Queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.

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2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia. 3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o salto mortal, o bofetão e o soco. 4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. [...] 7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostrar-se diante do homem. [...] (MARINETTI apud BERNARDINI, 1980, pp. 33-34).

Percebe-se nas proposições de Marinetti uma abordagem de leitura e reconstrução do sensível que problematiza poética e belicosamente o embate entre o sujeito e o mundo, atitude influenciada por conta do momento histórico no qual o próprio Futurismo veio à tona, contexto este em que se fez mortalmente onipresente a Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, as várias inovações científicas, apesar das enormes e brutais perdas humanas causadas por esse conflito, trouxeram novas possibilidades de expressão e recepção nos domínios artísticos, legando assim um pouco de alento a essa geração. Vale reforçar que o que interessa na perspectiva futurista rapidamente apresentada é a ideia de que a obra de arte, oriunda de um tempo de tensões, deveria retratar tais tensões tanto por intermédio de suas estratégias de composição quanto no resultado final. Sendo assim, podemos concluir que, para a estética futurista, a analogia se fazia indispensável não apenas para a formação de uma perspectiva de contornos artísticos, mas também para representar uma visão de mundo. Em outro dos diversos textos que ajudaram a compor o programa futurista intitulado “Manifesto Técnico da Literatura Futurista”, de 1912, o mais conhecido dos poetas futuristas italianos teceu considerações que se apresentam pertinentes neste momento. Para Marinetti, a analogia: [...] nada mais é do que o amor profundo que liga as coisas distantes, aparentemente diferentes e hostis. [...] As imagens não são flores para escolher e colher com parcimônia, como dizia Voltaire. Elas constituem o próprio sangue da poesia. A poesia deve ser uma sequência ininterrupta de imagens novas, sem as quais ela não é outra coisa a não ser anemia e

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clorose. Quanto mais as imagens contiverem relações vastas, tanto mais longamente elas conservam sua força de estupefação. (MARINETTI apud BERNARDINI, 1980, pp. 82-83)

Assim como nas operações metafóricas e em alguns procedimentos correlatos já elencados anteriormente, a potência da analogia para Marinetti advém justamente de um movimento que, por parte do poeta, do fotógrafo e, claro, do espectador, aproxima “coisas distantes aparentemente diferentes e hostis” (MARINETTI apud BERNARDINI, 1980, p. 82). Essa aproximação consciente, movimento que realoca elementos a princípio tomados como díspares, mas que trazem marcas latentes em comum, traços que à sensibilidade artística cabe sua detecção, afigura-se não apenas como um simples emprego da metáfora, mas parece ir um passo além, servindo como base para a criação do que aqui está tentando ser definido como imagem poética, esse elemento prenhe de “estupefação”. Marinetti, ainda nesse manifesto, chama a atenção para a importância da existência e de uma apreensão do mundo que fossem construídas sob essa perspectiva analógica. Segundo a proposta futurista, o “estilo analógico é pois dono absoluto de toda a matéria e de sua intensa vida” (MARINETTI apud BERNARDINI, 1980, p. 83). O que se pode depreender das afirmações do poeta italiano é que a analogia seria uma forma de reconstruir e reler o mundo sensível, ainda que de maneira um tanto quanto totalizante. Isso talvez possa ser explicado se levada em consideração a própria radicalidade dos movimentos de vanguarda, que surgiram para questionar e propor valores estéticos em substituição aos cultivados até aquele momento. Por outro lado, a postura ideológica de grande parte dos futuristas, que se uniram aos movimentos políticos totalitários do período, pode também ser considerada uma das razões para tal postura totalizante. Entretanto, não é intuito desta pesquisa se aprofundar nesses aspectos. O que nos interessa na proposta futurista é a sua proximidade com as táticas que, conforme temos sugerido ao longo do texto, contribuem para a construção de uma definição mais precisa do que seja o conceito de imagem poética. Antes que se passe a um breve, porém necessário comentário, sobre a presença da analogia no Surrealismo para delimitar definitivamente o conceito de imagem poética, serão evocadas mais algumas percepções ainda sobre a ideia de analogia. A primeira dessas percepções foi elaborada pelo já citado Octavio Paz. Segundo o ensaísta, a “poesia é uma das manifestações da analogia” (PAZ, 2013, p. 63).

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Pode ser inferido que o poema, ou um determinado tipo de poema, no sentido proposto por Paz, é construído por meio da analogia, isto é, o poema parte da aproximação ou deslocamento de elementos distintos. O poético da imagem perseguido nesta nossa pesquisa parece surgir exatamente desse movimento no qual são justapostas tais realidades díspares, conforme já foi largamente sugerido, e na qual subjaz uma relação de correspondências. Ainda sobre a correspondência entre poesia e analogia, o recebedor do prêmio Nobel de Literatura do ano de 1990, no ensaio Os filhos do barro, escreveu:

O poema é uma das manifestações da analogia; as rimas e aliterações, as metáforas e metonímias, nada são senão modos de operação do pensamento analógico. [...] Se a analogia transforma o universo em poema, em texto feito de oposições que se resolvem em consonâncias, também faz do poema um duplo do universo. (PAZ, 2013, p. 63)

O que se destaca nessa proposição de Octavio Paz é a constatação não apenas da existência de um pensamento analógico, mas da presença de uma forma de construção poética analógica, já que os elementos que normalmente são utilizados para esse tipo de composição textual, dentre eles as “rimas e aliterações, as metáforas e metonímias”, são materializações advindas exatamente a partir desse tipo de pensamento. O poema, arrisca o ensaísta mexicano, pode ser lido como um duplo do universo a partir do momento em que seja encontrada uma chave de leitura que permita fazer a associação. E tal chave, segundo o entendido, passa pela analogia. Paz, ainda associando a analogia aos textos de natureza poética e ampliando o alcance de formação de sentidos referentes a tal recurso, escreveu: “A analogia concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima. A analogia não é somente uma sintaxe cósmica: também é uma prosódia” (PAZ, 2013, p. 71). Importante salientar, ainda sob a visão de Paz, duas coisas. A primeira, essa correspondência existente entre analogia e ritmo. Em um dos procedimentos que, assim como a analogia, privilegia a justaposição de elementos, a montagem, essa noção de composição a partir do ritmo é muito importante. Basta que recordemos as proposições de Eisenstein sobre os processos de montagem fílmica nas quais o ritmo formado pelo encadeamento ou justaposição das imagens com durações e enquadramentos diferentes representa papel importantíssimo na produção de sentido (EISENSTEIN, 2002).

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Outro aspecto que pode ser comentado, à guisa de curiosidade ou mesmo de provocação, passa pela intenção de Paz em atribuir um caráter excessivamente totalizante à analogia. Apesar das diferenças de contexto, essa proposição totalizadora, que defende uma espécie de cosmovisão unificada da arte poética, ou do poema como duplo do universo, em alguma medida, pode se aproximar do tom assertivo dado por Marinetti a seus manifestos, nos quais apontava apenas uma única forma de construção e apreensão estética, a analogia, como alternativa unívoca. Nunca é demais lembrar que o objetivo desta pesquisa não é o de oferecer uma leitura totalizadora do objeto em estudo, mas sim o de sugerir algumas possibilidades de leitura ou formação de sentido ainda não devidamente exploradas a partir da obra Paranoia. A professora Vera Casa Nova pontua de forma interessante a questão da analogia e sua imediata relação com a construção da imagem por meio da trama textual:

Imitando ou não, os objetos, as imagens analógicas têm seus efeitos por menor ou maior a semelhança com o real. Em demanda frequente para serem reconhecidos, participando do universo do contínuo, do motivado, opondo-se ao universo do signo e do texto que são descontínuos, diferenciais, sucessivos, lineares. Essas imagens podem ser lidas e/ ou interpretadas a partir de suas referências, que estão no mundo real. (CASA NOVA, 2008, pp. 23-24)

Podemos depreender das palavras de Casa Nova que as imagens geradas a partir da analogia, ainda que em graus variados, guardam semelhança com o real. Dada a imensa variedade de referências quando se fala em mundo real, a analogia, nesse sentido, pode ser vista como uma maneira de resignificar ou multiplicar exatamente aquilo que se entende por real. Na esteira de pensar as implicações da analogia enquanto ferramenta de resignificação estética do real, serão evocados agora mais alguns argumentos para ajudar a fortalecer este momento inicial de nossa investigação. Estudioso das vanguardas com destacado apreço ao Surrealismo, o catalão Juan Eduardo Cirlot também teceu suas considerações acerca da analogia enquanto método de formação de sentido na instância artística e que se aproximam sobremaneira aos recortes de analogia relacionados à imagem poética que vêm sendo deslindados:

La analogía se produce cuando un sistema o un orden dados pueden intuirse en otra esfera distinta de la considerada, es decir, cuando el proceso

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mostrado por un tipo de fenómeno se deriva de un esquema que tiene valor aplicado a una faceta diferente de la realidad.17 (CIRLOT, 1953, p. 350)

A partir da definição de Cirlot, pode ser depreendido que a analogia é consequência não apenas de uma comparação entre coisas que guardam alguma semelhança aparente ou mesmo uma similaridade latente, mas de uma apropriação de certos elementos para uso em outro contexto, em uma “faceta diferente de la realidad.” (CIRLOT, 1953, p. 350) Tal afirmação de Cirlot se coaduna a praticamente todos os elementos que encerram algo de essência metafórica apresentados, dos conceitos de imagem e metáfora até as definições sobre a analogia. O impacto produzido pelo procedimento analógico, nesse sentido, parece advir da sensibilidade do artista, e claro, do leitor/espectador, que jogam, tanto na construção como na recepção das obras de arte de tal natureza, com elementos cujas origens ou realidades distintas, quando aproximadas, revelam compartilhar latências em comum. Já que foi mencionado o fato de Cirlot ter empreendido suas considerações sobre as operações analógicas muitas vezes tendo como objeto de estudo exatamente o Surrealismo, convém que a atenção seja direcionada, ainda que de forma rápida, a esse outro importante braço das vanguardas. O intuito é o de levantar indícios ou mesmo referências a partir dessa dita vanguarda sobre a presença da analogia ou de outros procedimentos de cunho metafórico em sua produção. Com tal abordagem, espera-se finalmente definir o conceito de imagem poética a ser utilizado nesta dissertação. O Surrealismo nasceu logo nos anos posteriores ao fim da Primeira Grande Guerra. Essa vanguarda teve como precursoras outras frentes como o Cubismo, o Futurismo e o Dadaísmo18, apesar de ter dividido com essas últimas praticamente o mesmo período cronológico. Alguns dos que integrariam as fileiras do Surrealismo logo em seu primeiro momento, como André Breton, Louis Aragon e Philippe Soupault, vieram do movimento Dadá capitaneado pelo poeta francês de ascendência judia Tristan Tzara.

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“A analogia se produz quando um sistema ou uma ordem determinados podem ser intuídos em outra esfera, distinta da primeira, isto é, quando o processo demonstrado por um tipo de fenômeno deriva de um esquema que tem valor aplicado a uma faceta diferente da realidade.” (CIRLOT, 1953, p. 350, tradução nossa) 18 Claudio Willer, em prefácio para uma das edições brasileiras dos manifestos surrealistas, problematiza essa visão historicista. Para o poeta e ensaísta, a “crítica apontando a historicidade das vanguardas é perfeitamente correta. No entanto, ela não se aplica ao surrealismo. Inseri-lo na mesma série cronológica das demais vanguardas é comparar coisas completamente distintas: de um lado, movimentos preocupados em revolucionar ou transformar a linguagem artística [...]; de outro, algo muito mais amplo, abrangente e ambicioso, uma expressão da busca da transformação do homem e da sociedade, na qual a manifestação mais especificamente artística é um dos aspectos.” (WILLER apud BRETON, 1985, p. 13)

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De acordo com o escritor e editor francês Maurice Naudeau, a ruptura de Breton e alguns de seus companheiros com o Dadaísmo de Tzara se deu ao longo do ano de 1922. Eles e Breton, então, lançaram-se na defesa e na divulgação de uma nova abordagem estética e existencial a qual intitularam Surrealismo. Segundo Naudeau,

o surrealismo é considerado por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas como um meio de conhecimento, particularmente de continentes que até então não haviam sido explorados: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, os estados de alucinação, em suma, o avesso do cenário lógico. (NADEAU, 2008, p. 46)

Os surrealistas, diferentemente dos dadaístas, defendiam não apenas mais uma abordagem estética que se restringisse ao campo da arte, mas sim uma renovação das relações entre o sujeito e o mundo. Tal renovação seria levada a termo por intermédio de algumas estratégias, inclusive artísticas, até então pouco exploradas ou mesmo ignoradas no imaginário cultural. De acordo com o que foi sugerido até este ponto, uma das variantes de imagem que demonstraremos estar presente em Paranoia, uma variante praticamente já definida aqui como imagem poética, apresenta-se como um fruto de interpretações analógicas ou consequência de montagens metafóricas e tangencia vários desses “continentes” inexplorados sobre os quais versaram o Surrealismo e outros movimentos consanguíneos. As possíveis relações da imagem poética com o “inconsciente”, com o “maravilhoso”, com o “sonho”, a “loucura” e os “estados de alucinação” serão apreciados adiante, em maior ou menor grau, tanto nos poemas quanto nas fotografias de nosso objeto. Em 1924, André Breton organiza e publica os preceitos que norteariam tal corrente vanguardista no célebre “Manifesto do Surrealismo” (1924). Nesse texto de caráter programático, o nome maior desse braço da vanguarda europeia elenca como fontes de inspiração justamente os elementos citados no parágrafo anterior, partindo do “inconsciente”, percorrendo o “maravilhoso”, passando pelo “sonho” e pela “loucura” ou ainda chegando aos “estados de alucinação”. O que mais chama a atenção em tal manifesto é exatamente uma das partes na qual Breton, discorrendo sobre a importância do “sonho” no fazer/viver surrealista, cita o poeta francês Pierre Reverdy, que ao lado de outro compatriota, Guillaume Apollinaire, teve papel importante para a instauração do Surrealismo como manifestação artística de vanguarda

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naquele início de século. O trecho mencionado por Breton foi retirado de um artigo escrito por Reverdy intitulado “A imagem”, editado na Revista Nord-Sud em março de 1918:

A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos remotas. Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto mais forte será a imagem – mais poder emotivo e realidade poética ela possuirá [...]. (REVERDY apud BRETON, 1985, p. 52)

Embora o termo imagem poética não esteja explicitado no trecho mencionado, subentende-se pelo restante do texto que a variante de imagem tratada se relaciona intimamente ao gênero lírico, logo, esse tipo de imagem pode ser adjetivada com alguma segurança como imagem poética. Mas qual a relação desta assim chamada imagem poética, apresentada pelo autor de Nadja por intermédio das ponderações de Reverdy, com as estratégias de construção de imagens mencionadas a esta altura? Ora, exatamente como a metáfora e a analogia – e também seus possíveis processos de materialização, tais como a justaposição, a montagem, a citação, a condensação ou mesmo o deslocamento – a imagem poética pode surgir sob tais condições de “aproximação” entre “realidades”, mesmo que tais “realidades” ou instâncias compartilhem “afinidades” consideradas “longínquas”. Importante destacar, em outro trecho desse mesmo texto de Reverdy, suas considerações sobre a analogia. Considerações que, segundo entendemos, aproximam esta última ainda mais à ideia de imagem poética que vem sendo delineada. Para o poeta francês:

L'Analogie est un moyen de création /- C'est une ressemblance de rapports; or de la nature de ces rapports dépend la force ou la faiblesse de l'image créee./ Ce qui est grand ce n'est pas l'image - mais l'émotion qu'elle provoque; si cette derniére est grande on estimera l'image à sa mesure./ L'émotion ainsi provoquée est pure, poétiquement, parce qu'elle est née dehors de toute imitation, de toute évocation, de toute comparaison. / Il u a la suprise et lajoie de se trouver devant une chose neuve./ On ne crée pas d'image en comparant (toujours faiblement) deux réalités disproportionnées. / On crée, au contraire, une forte image, neuve pour l'espirit, en rapprochant sans comparaison deux réalités distantes dont l'esperit seul a saisi les rapports./ L'esprit doit saisir et goùter sans mélange une image créée.19 (REVERDY, 1918, p. 4)

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“A analogia é um meio de criação, uma existência de relações; todavia, a natureza dessas relações depende da força ou da fraqueza da imagem criada. O importante não é a imagem e sim a emoção que a mesma é capaz de

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O conceito de analogia apresentado por Reverdy converge, na maior parte, na mesma direção das alternativas sobre o termo até o momento apresentadas. Destaca-se no viés proposto por ele a atenção dispensada não apenas à estratégia de composição, “uma comparação de relações”, mas à importância despendida em relação ao aspecto da recepção de tais imagens. Vale ressaltar também que Reverdy localiza tal tipo de imagem à margem dos conceitos clássicos de imitação, evocação, ou mesmo de comparação. Nesse sentido, pode ser entendido que o poeta deseja posicionar sua proposta de imagem poética um passo além das operações metafóricas corriqueiras que habitualmente são assimiladas de forma redutora na linguagem usada no cotidiano. Octavio Paz também contribuiu sobremaneira para uma reflexão que não apenas exaltasse a força de tal tipo de imagem conforme pode ser percebido no texto que Breton emprestou de Reverdy, mas que problematizasse tanto a sua construção quanto a sua recepção. O excerto a seguir pode ser considerado uma síntese de tudo o que tem sido apresentado sobre a analogia e a imagem poética até o momento nesta pesquisa. Segundo o poeta mexicano:

[...] nem em todas as imagens os opostos se reconciliam sem destruir-se. Algumas descobrem semelhanças entre os termos ou elementos de que se compõem a realidade: são as comparações, segundo Aristóteles as definiu. Outras aproximam ‘realidades contrárias’ e produzem assim uma ‘nova realidade’, como diz Reverdy. Outras provocam uma contradição insuperável ou um sem-sentido absoluto, que denuncia o caráter irrisório do mundo, da linguagem ou do homem [...]. Outras nos revelam a pluralidade e interdependência do real. Há, enfim, imagens que realizam o que parece ser uma impossibilidade, tanto lógica quanto linguística: as núpcias dos contrários. Em todas elas – apenas perceptível ou inteiramente realizado – observa-se o mesmo processo: a pluralidade do real manifesta-se ou expressa-se como unidade última, sem que cada elemento perca sua singularidade essencial. (PAZ, 1976, p. 49)

provocar; se esta última for significativa, a imagem será considerada da mesma forma. A emoção suscitada desta maneira é pura, poeticamente falando, porque nasce à margem de toda imitação, de toda evocação, de toda comparação./ Supõe-se estar surpreso e alegre ao se encontrar diante de algo novo./ Não se cria uma imagem ao comparar (mesmo que debilmente) duas realidades desproporcionais./ Pelo contrário, cria-se uma imagem forte, nova para o espírito, ao unir sem comparação duas realidades distantes cuja relação somente o espírito tenha captado.” (REVERDY, 1918, p. 4, tradução nossa.)

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O que se destaca nessas ponderações de Paz é a constatação de que existe a possibilidade de haver na criação da imagem um processo que pode levar à destruição ou à anulação dos sentidos comumente associados ao objeto. Esse solapamento de sentidos paradoxalmente converge e se contrapõe a outra constatação do próprio ensaísta de que algumas imagens provocam uma “contradição insuperável”, um “sem-sentido absoluto” (PAZ, 1976, p. 49). Mesmo sob tais condições extremas, o que se depreende dessa afirmativa é que a este tipo de imagem está outorgada uma potência estética capaz de realocá-la para além da geração de sentido limitada pelo cartesiano ou orientada pela racionalidade. Essa variante de imagem, embora parta da mesma linguagem utilizada no cotidiano, advém de um processo de recontextualização dessa linguagem que, se no âmbito denotativo tem a missão de oferecer uma descrição precisa do que se entende por real, quando atuando sob a perspectiva estética, se aproxima das mais variadas dimensões do imaginário, colocando-a nesse sentido em convergência à proposição de “pluralidade do real” (PAZ, 1976, p. 49). Os processos geradores da imagem poética – metafóricos e analógicos –, sendo assim, legariam ao produto final, que poderia ser uma sequência de versos ou até mesmo um poema inteiro, uma característica prismática de leitura por possibilitar exatamente o desvelar dessa pluralidade, libertando a linguagem de sua vala denotativa, do discurso unívoco, e alçando-a rumo aos vastos campos da conotação e do poético. A imagem poética, nesse sentido, pode ser definida como o fruto de uma estratégia de construção textual com fundo estetizante, expediente no qual a aproximação deliberada entre seus elementos constitutivos, a princípio sem qualquer relação imediata ou, ainda, encerrando características explicitamente antitéticas, desvela as possiblidades múltiplas de geração de sentido da linguagem que por ventura venha a ser materializada sob as premissas da tessitura poética ou, até mesmo, da trama fotográfica. Vale destacar em relação à imagem poética, ainda, um estado de permanente tensão provocado pelas estratégias de sua própria criação conforme suscitado nos parágrafos anteriores e que será devidamente demonstrado no quarto capítulo. O professor, pesquisador e poeta Wagner José Moreira, em tese sobre a poética de Luis Carlos Patraquim, Arnaldo Antunes e Ernesto Manuel de Melo e Castro – poetas contemporâneos de língua portuguesa –, destaca essa condição a partir do pensamento do filósofo francês Georges Didi-Huberman: “A imagem poética se dá em estado de crise, pois critica a si mesma assim como ao olhar que a perscruta, o que obriga àquele que observa a constituí-la, construí-la ativamente, sem se

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deixar levar pela passividade de uma leitura acomodada e confortável” (MOREIRA, 2005, pp. 93-94). Cabe salientar, antes que se passe definitivamente para a comprovação dos conceitos apresentados sobre o fenômeno da imagem poética no corpus formado pelo livro Paranoia, que ainda serão despendidos mais alguns parágrafos para trazer à tona subsídios sobre esta outra variante de imagem, a imagem fotográfica, caríssima à obra aqui em estudo. Além disso, também será apresentado algo sobre a relação existente entre o texto literário, inclusive o de contornos poéticos, e esse tipo de imagem aqui resgatada, fotográfica.

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CAPÍTULO 3: COM A PALAVRA, AS IMAGENS FOTOGRÁFICAS

“A fotografia é um tipo de hipérbole, uma cópula heroica com o mundo material.” Susan Sontag

A imagem fotográfica, assim como a imagem poética, é elemento que entrevemos importantíssimo à composição do livro Paranoia. Dividindo as páginas desta obra gestada e idealizada por Roberto Piva e Wesley Duke Lee no início da década de 1960 com a edição de Massao Ohno, duas vertentes da imagem, a poética e a fotográfica, configuram-se como a base de uma armação que sustenta e alça tais materializações a instâncias distintas daquelas na qual frequentemente predomina a linguagem do cotidiano, diferenciando-se exatamente desta última por encerrarem a possibilidade de apreensão e reconstrução do real de forma múltipla e que privilegia o olhar a partir de uma instância estética. Todavia, assim como foi necessário definir de antemão a variante do conceito de imagem que se aproxima, ainda segundo nossa hipótese, à construção dos versos do poeta paulistano, parece importante que se faça um levantamento, mesmo que pontual, sobre as origens e assimilações da imagem fotográfica – linguagem utilizada por Duke Lee em Paranoia – em nosso imaginário cultural. A intenção é a de lançar um olhar mais apurado sobre essa manifestação e, consequentemente, embasar da melhor maneira possível a análise de nosso corpus.

3.1 Fotografar: desenhar imagens com luz “Corpo de luz. Corpo de trevas.” Philippe Dubois

Designada para nomear esta que é uma das possíveis materializações da imagem relativa ao mundo sensível, a palavra fotografia originou-se a partir da junção de dois vocábulos gregos, φως [fós] (“luz”) e γραφις [grafis] (“estilo”, “pincel”) ou, ainda, γραφη [grafe], que significa “desenhar com luz e contraste”. Do ponto de vista etimológico, pode ser definida como “a arte de escrever com a luz” (FERREIRA, 1986, p. 805). Entrevemos nessa perspectiva características importantes que, em conjunto, fundamentam o registro fotográfico.

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A primeira dessas características refere-se ao viés artístico atribuído ao processo fotográfico. A fotografia, ainda que em um primeiro momento direcionada aos registros do cotidiano, carregaria o estatuto, não sem questionamentos, de manifestação artística. Já a segunda característica apresenta-se a partir da própria composição sui generis de seu método de gravação baseado na luz, essa energia que impulsiona e proporciona a existência de qualquer registro fotográfico cuja materialidade se apresenta, tensa e paradoxalmente, nos limites entre o palpável e o intangível, orbitando na zona fronteiriça do visível e do não visível, do real e do imaginário. Segundo mais um verbete, desta vez, cunhado por Silveira Bueno, o vocábulo fotografia apresenta várias definições, dentre elas, “retrato; processo ou arte de fixar numa chapa sensível, por meio da luz, a imagem dos objetos colocados diante de uma câmara escura dotada de um dispositivo óptico; cópia fiel; reprodução exata” (BUENO, 2015, p. 356). Sob tal perspectiva, o termo em questão designa, respectivamente, uma variante de suas distintas manifestações, o “retrato”; o processo pelo qual tal ou tais manifestações são ou foram empreendidas, via captação da imagem de um objeto em uma “câmara escura” fixada em dado suporte; além do resultado desse movimento, considerado algumas vezes como “cópia fiel” ou “reprodução exata” do objeto captado. Conforme já exposto rapidamente, a imagem fotográfica veio à tona no início do século XIX. A fotografia, nesse contexto, surgiu como consequência do aperfeiçoamento de várias técnicas de captação de imagens, além do desenvolvimento dos métodos de fixação e reprodução das mesmas, desenvolvidas por diversos nomes. Destacam-se entre eles os dos franceses Niépce e Daguerre, além do inglês Talbot segundo apresenta Gabriel Bauret no livro A fotografia (1992). De acordo com Bauret, a Joseph Niépce foi atribuído o primeiro registro fotográfico em 1826. A Louis Jacques Daguerre coube a invenção do daguerreótipo, processo a partir do qual foi possível aperfeiçoar a fixação da imagem fotográfica em 1837. Ao britânico William Talbot delegou-se o crédito pela revelação da imagem fotográfica a partir de negativos em 1839, processo que aperfeiçoado continuamente predominou até o advento das câmeras digitais no final do século XX20 (BAURET, 1992).

20 Impossível não situar o fotógrafo francês Hercule Florence entre os nomes responsáveis pelo advento da fotografia mencionados. Segundo Kossoy, o “Brasil, país periférico em todos os sentidos àquela realidade, seria

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Cabe salientar, porém, que a técnica para a captação de imagens por meio de uma camara obscura já era conhecida na Antiguidade Clássica e havia sido objeto de reflexões empreendidas por nomes como Aristóteles ou Euclides. Além disso, essa mesma técnica também foi engenhosamente apropriada, por alguns pintores renascentistas, como parte do modus operandi relativo à composição de suas imagens picturais. Definitivamente “inserida na história cultural” segundo constatação do pesquisador Boris Kossoy (2014, p. 153), a fotografia, nova techné instaurada no seio da modernidade europeia a partir do século XIX, revelou-se como poderosa e acessível manifestação de um imaginário cultural a princípio eurocêntrico. Imaginário esse que refletia uma visão de mundo a partir da qual se afirmavam explicitamente, não obstante ou talvez exatamente por conta das contradições e tensões advindas da época, forças como a ciência, o capital e a revolução industrial. Segundo Kossoy, com esta última

verifica-se um enorme desenvolvimento das ciências: surge naquele processo de transformação econômica, social e cultural uma série de invenções que viriam influir decisivamente nos rumos da história moderna. A fotografia, uma das invenções que ocorre naquele contexto, teria papel fundamental enquanto possibilidade inovadora de informação e conhecimento, instrumento de apoio à pesquisa nos diferentes campos da ciência e também como forma de expressão artística. (KOSSOY, 2014, p. 29)

O teórico alemão Walter Benjamin teceu várias considerações não apenas a respeito das origens históricas da fotografia, mas também sobre a recepção dessa nova forma de apreensão e manifestação estética no/do mundo. Algumas dessas observações convergem em grande parte com as palavras de Boris Kossoy, apresentadas no parágrafo anterior. Para Benjamin já se pressentia, no caso da fotografia, que a hora da sua invenção chegara, e vários pesquisadores, trabalhando independentemente, visavam ao mesmo objetivo: fixar as imagens da câmera obscura, que eram conhecidas desde Leonardo. Quando depois de cerca de cinco anos de esforços Niépce e Daguerre alcançaram simultaneamente esse resultado, o Estado interveio, em vistas das dificuldades encontradas pelos inventores para patentear sua

palco também, surpreendentemente, de experiências pioneiras e contemporâneas no campo da fotografia, graças à inventividade de Hercule Florence. Sua descoberta, porém, passaria despercebida no interior da Província de São Paulo, na Vila de São Carlos (Campinas), longe das ruidosas manifestações que se faziam em Paris diante da invenção de Daguerre ou das reivindicações de prioridade por parte de William Henry Fox Talbot (1800-1877) em Londres.” (KOSSOY, 2014, p. 157)

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descoberta, e, depois de indenizá-los, colocou a invenção no domínio público. Com isso, foram criadas as condições para um desenvolvimento contínuo e acelerado, que por muito tempo excluiu qualquer investigação retrospectiva. (BENJAMIN, 1994, p. 91)

Importante destacar tanto nas palavras do teórico e historiador brasileiro quanto na fala do filósofo e ensaísta alemão a quase imediata apropriação dessa nova técnica de construção de imagens pelo próprio contexto no qual se originou. Uma apropriação que, devido às condições do período, provavelmente visava atender a crescente demanda de consumo, inclusive das obras de arte, catapultada pelo aumento da industrialização e da mecanização do dia a dia, conforme aponta Cláudio Kubrusly logo nas primeiras páginas de seu livro O que é fotografia (1983). Segundo palavras do autor:

No momento em que a fotografia surgiu, os homens estavam em plena luade-mel com a Máquina. A indústria parecia ter vindo para resolver todos os problemas da humanidade. As linhas de montagem e o poder das máquinas a vapor surgiam como uma garantia de progresso e prosperidade para todos. A industrialização tornava tudo mais barato. Cada um podia ter acesso a um número de bens antes inatingíveis. Neste contexto, a fotografia emergiu quase que como uma forma industrial de imagem, que nascia apoiada na misteriosa “máquina de pintar”. Para uma humanidade apaixonada, os frutos da Máquina eram sempre bem-vindos. (KUBRUSLY, 1983, p. 10)

Assim como o conceito de imagem poética utilizado nesta pesquisa ganhou contornos expressivos em um contexto sócio-histórico no qual a presença da ciência e do maquínico avultava-se – os anos iniciais do século XX –, a fotografia se consolidou como recurso de apreensão do cotidiano e manifestação estética praticamente ao mesmo tempo em que surgiam cada vez mais em abundância esses “frutos da máquina” conforme observado por Kubrusly. Vale ressaltar que o advento da industrialização não trouxe apenas benefícios. Por um lado, a crescente mecanização das sociedades possibilitou uma maior geração de produtos, permitindo consequentemente um aumento no acesso e oferta dos mesmos. Por outro lado, o aperfeiçoamento dos expedientes mecânicos incrementou exponencialmente o número de mutilados e mortos como, por exemplo, nas batalhas travadas pela Primeira Grande Guerra. Sob o auspício de novas máquinas de destruição – aviões, bombas, gases letais, metralhadoras e tanques etc. – milhares de vidas humanas foram ceifadas sob os desígnios de um projeto fáustico massificador.

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Tanto a produção quanto a recepção dessa forma de expressão na qual a máquina se apresenta como mediadora entre o sujeito e o mundo, sob tal perspectiva, estão intrinsecamente ligados aos ditames de uma nova abordagem de produção e consumo em escala industrial, massificadora por natureza, consoante pontuado no parágrafo anterior. A fotografia, nesse sentido, pode ser pensada também como um dos “frutos” desse afã civilizatório fortemente baseado em processos maquínicos que ganharam contornos nítidos com a crescente industrialização europeia. Nos anos que compreenderam o ocaso do século XIX e o alvorecer do século XX, a imagem fotográfica consolidou sua presença tanto do ponto de vista das aplicações científicas assimiladas pela vida cotidiana, quanto da perspectiva da produção artística. A fotografia, dessa maneira, apresentava-se, de acordo com as palavras de Boris Kossoy, como um “novo processo de conhecimento do mundo, porém, de um mundo em detalhe, posto que fragmentário em termos visuais e, portanto, contextuais” (KOSSOY, 2014, p. 30). Vale ressaltar sobre o ato fotográfico, ainda de acordo com as considerações do parágrafo anterior, a presença de “um recorte espacial e uma interrupção temporal, fato que ocorre no instante (ato) do registro” (KOSSOY, 2009, p. 29). Entrevistas nas palavras do historiador e professor brasileiro, a fragmentação visual do tempo e do espaço, junto a um procedimento que reorganiza esses fragmentos, análogo à montagem cinematográfica ou vanguardista de tons surrealistas, interessa sobremaneira a esta pesquisa e será de alguma forma analisada nas imagens fotográficas de Paranoia. No próximo subcapítulo serão levantados mais alguns aspectos sobre a fotografia com o objetivo de fortalecer o arcabouço teórico deste nosso estudo. Antes, porém, é necessário que se faça mais uma observação. No Brasil, a fotografia também seduziu nomes significativos tanto no campo das artes quanto na seara dos registros documentais ainda na primeira metade do século XX. Wagner José Moreira, em estudo sobre a poética de Jorge de Lima, apresenta alguns desses nomes: Dentre eles, pode-se destacar Mário de Andrade, com fotos sobre o norte e o nordeste do Brasil, de caráter principalmente documental. Andrade estava familiarizado com a Nova Objetividade Alemã e seus fotógrafos autorais. Flávio de Carvalho e seu também interesse documental. Vicente do Rego Monteiro, que demonstra um domínio das técnicas fotográficas e com tendência a marcar o aspecto subjetivo das imagens, apesar de seu cunho factual. Athos Bulcão, artista plástico que no princípio da década de 1950 também produzira fotomontagens. E mais recentemente, Alberto da Veiga Guignard, renomado artista modernista que da mesma forma se dedicou à arte fotográfica (CHIARELLI, 2003). Ainda se deve destacar, por exemplo,

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a relação de Ismael Nery com Guignard que tinham como amigo em comum Murilo Mendes, o mesmo poeta e crítico que inicialmente experimentara a fotomontagem juntamente com Jorge de Lima e, depois, prefaciara o livro A pintura em pânico. (MOREIRA, 2015, p. 2)

Pode ser concluído, a partir desse breve levantamento empreendido pelo pesquisador, poeta e professor, que a fotografia, assim como outras estratégias de criação artística ou registro documental, foi assimilada e incorporada satisfatoriamente pelo imaginário cultural brasileiro. Nesse sentido, o ato fotográfico assinala algo de uma tradição que, guardadas às devidas idiossincrasias, também se materializa em nosso objeto de estudo, o livro Paranoia.

3.2 Uma práxis entre a arte & a reprodutibilidade “Depois de mergulharmos suficientemente fundo em imagens assim, percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico [...]”. Walter Benjamin

A disseminação da fotografia, apesar de sua popularidade, não se deu exatamente de maneira pacífica. A novidade foi atacada até mesmo por um dos nomes que figuram como referência basilar às poéticas vanguardistas do início do século XX. O poeta francês Charles Baudelaire, a quem frequentemente se atribui o papel de fundador da poesia moderna, teceu algumas considerações não necessariamente favoráveis sobre essa nova manifestação da imagem ainda nos meados do século XIX. Para o autor de As Flores do Mal, a fotografia não deveria ser considerada uma manifestação artística ao mesmo nível da pintura ou da escultura, cabendo-lhe nesse sentido apenas o papel de captar o cotidiano com fins de registro histórico, sem pretensões estetizantes: É preciso então que ela retorne ao seu verdadeiro dever, que é o de ser a serva das ciências e das artes, a mais humilde das servas, como a imprensa e a estenografia, que nem criaram e nem suplantaram a literatura. Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e devolva a seus olhos a precisão que faltava a sua memória, que ela ornamente a biblioteca do naturalista, amplie os animais microscópicos, ou mesmo, que ela acrescente ensinamentos às hipóteses do astrônomo, que ela seja enfim a secretária e o guarda-notas de quem quer que precise, em sua profissão, de uma absoluta precisão material, até aí, nada melhor. Que ela salve do esquecimento as ruínas decadentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma irá desaparecer e que pedem um lugar

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no arquivo de nossa memória, ela terá nossa gratidão e será ovacionada. Mas se lhe for permitido usurpar o domínio do impalpável e do imaginário, de tudo aquilo que apenas tem valor porque o homem lhe acrescenta alma, então, que desgraça a nossa! (BAUDELAIRE, 1859)

De acordo com o excerto da crítica feita por Baudelaire, a fotografia encerraria um forte caráter memorialístico, aproximando-se dessa maneira à função de registro, tanto de fatos históricos quanto das cenas do cotidiano. A tal tipo de manifestação de imagens caberia somente exercer o papel de “serva das ciências e das artes” (BAUDELAIRE, 1859). O precursor do simbolismo francês, no ensaio a qual pertence o trecho acima apresentado – “O público moderno e a fotografia”, relativo ao Salão de 1859 em Paris – expõe de maneira veemente, assim como sua poética, advertências contra a imagem fotográfica. Para o francês, se à fotografia fosse delegada o status de manifestação artística, tal movimento poderia usurpar “o domínio do impalpável e do imaginário” (BAUDELAIRE, 1859) tradicionalmente associado às Belas Artes. Em outras palavras: para Baudelaire, tanto o ato quanto a imagem fotográfica, se fossem consideradas também como operações geradoras de obras artísticas, trariam para as outras manifestações estéticas ainda vinculadas às proposições clássicas uma espécie de depreciação. O pesquisador Jean Marie-Schaeffer também destacou essa problematização referente à fotografia. De acordo com o autor, a

fotografia é com frequência qualificada como arte menor, expressão que designa seu caráter a um só tempo precário e canônico. Deve-se distinguir aqui: se a precariedade é intrínseca à foto, seu estatuto canônico considera antes as relações conflituosas que ela mantém com o pensamento estético dominante. (SCHAEFFER, 1996, p. 141)

Para Schaeffer, ainda que considerada “menor”, a fotografia seria uma expressão legitimamente artística. Entretanto, essa ideia não foi exatamente uma unanimidade, mesmo naquele contexto no qual fervilhavam tensões e descobertas. Esse aparente valor depreciativo, valor inferior dado àquelas imagens fotográficas que encerrassem alguma pretensão de serem apreendidas sob uma perspectiva estética, talvez, possa ter surgido por conta de sua rápida assimilação pelo imaginário cultural ocidental. Tal assimilação aparentemente se consolidou como consequência da quase imediata popularização da nova técnica tanto pelas classes abastadas quanto pelo grande público. Esse

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contexto maquínico, conforme já pontuado, ofereceu as condições ideais que facilitaram e impulsionaram exponencialmente a capacidade de reprodutibilidade da imagem fotográfica, isto é, a capacidade que um determinado produto ou obra tem para ser reproduzido. Walter Benjamin problematizou esse novo salto, acontecido no período moderno, relativo às obras de arte e suas respectivas maneiras de reprodução e distribuição. Para o autor de Passagens, o surgimento da fotografia enquanto manifestação imagética assinalou o desaparecimento de uma espécie de valoração, o esvanecimento de algo que ele definiu como “aura”21, percepção tradicionalmente associada a outras formas de obras de arte clássicas, tais como a pintura e a escultura. Para ilustrar sua tese de perda da aura na instância estética moderna, Benjamin tomou como exemplo a fotografia. Uma vez que o caráter maquínico da imagem fotográfica permitiu sua reprodução e disseminação em larga escala, sua demasiada utilização no campo das artes acabaria por ir de encontro à concepção tradicional que considerava cada objeto produzido pelo artista como um feito prodigioso e único, concebido a partir de um trabalho artesanal e meticuloso, impossível de ser reproduzido em massa segundo tal linha de raciocínio22. De acordo com as palavras do pensador alemão: [...] a autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde. [...] O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura. (BENJAMIN, 1994, p. 168)

Benjamin chama a atenção para a questão dessa perda de “autenticidade”, do arrefecimento da aura a partir da modernidade na qual surgiram as imagens fotográficas. Segundo o autor, “com a fotografia, o valor de culto começa a recuar, em todas as frentes, diante do valor de exposição. [...] Nas antigas fotos, a aura acena pela última vez na expressão

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Segundo Flavio R. Kothe, o conceito de “aura” cunhado por Walter Benjamin seria “a aparição única de algo distante. É exemplificada pela iridescência que se constitui em torno de um ramo ou cordilheira quando olhados contra o sol. É a essência mesma da obra de arte simbólica. Termo proveniente da esfera teológica, aponta para a origem religiosa da arte e o culto que lhe tem sido devotado.” (KOTHE, 1976, p. 107) 22 Vale ressaltar o fato de Benjamin considerar que “em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão de obras, e finalmente por terceiros, interessados no lucro.” (BENJAMIN, 2012, p. 180)

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fugaz de um rosto humano” (BENJAMIN, 1994, p. 189). Sob tal ponto de vista, é possível entrever a ideia de que a massificação do objeto artístico, a partir daquele contexto, praticamente sacramentou o início do fim de uma construção estético-ideológica que predominou por vários séculos. Para Benjamin, a radicalização de alguns fotógrafos, como a que foi característica do francês Eugène Atget, que vendia suas fotografias consideradas de alto teor artístico por alguns poucos trocados, permitiu a instauração de um novo quadro no qual o “valor de exposição supera pela primeira vez o valor de culto” (BENJAMIN, 1994, p. 189). Isso significa que, para Benjamim, o objeto artístico, naquele contexto, começou a ser pensado não mais a partir do “seu valor de culto” associado a sua “autenticidade”, mas sim em função do “valor de exposição”, ou seja, na possibilidade de se tornar acessível, logo, lucrativo sob a lógica do capital que inevitavelmente tem regido, com algumas exceções, todo o cenário sócio-histórico nos últimos dois séculos. A partir das observações de Benjamin, pode ser depreendido que, por um lado, a natureza da imagem fotográfica, cuja gênese está ligada a um aparelho de origem mecânica, condição facilitadora da sua reprodutibilidade, ajudou a disseminá-la assim como a prensa fez com o livro. Por outro lado, essa mesma natureza maquínica e sua respectiva capacidade de reprodutibilidade aparentam terem sido o motor dessa espécie de “desauratização” da arte, na melhor acepção benjaminiana do termo, e colocou em xeque os paradigmas que anteriormente guiavam e regulavam o que deveria ou poderia ser tomado por artístico. Tanto Kubrusly, citado anteriormente, quanto Benjamin, estavam atentos a essa dupla perspectiva relativa à imagem fotográfica no imaginário cultural moderno. Uma abordagem que, conforme observado, não se ateve exclusivamente à ligação guiada pelos preceitos da reprodutibilidade, aparentemente indelével, entre máquina e objeto, entre câmera e foto. Ligação que também foi apontada por Jean-Marie Schaeffer. Para esse último, a “imagem fotográfica é, em sua especificidade, a resultante de um uso do dispositivo fotográfico em sua totalidade. Resulta daí que a própria identidade da imagem só pode ser captada partindo de sua gênese” (SCHAEFFER, 1996, p. 13). Como se quisesse fazer uma espécie de contraponto à perspectiva que destacava o aspecto de submissão que a fotografia teria em relação ao seu dispositivo de produção cuja reprodutibilidade se apresenta inequivocamente mecanizada, Kubrusly destaca o caráter plástico da fotografia, além de sua relação com a percepção e manipulação de registro do real.

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Para o autor, fotografar “passa a ser o ato de parar o fluir de uma imagem já existente, não um processo de obtenção e reprodução dessa imagem” (KUBRUSLY, 1999, p. 7). Destaca-se nas palavras de Kubrusly a indicação de certo caráter artístico que a fotografia encerra, de recortar e interromper o fluxo do tempo de uma “imagem já existente”, calcada no real. É a partir da montagem advinda desses recortes fragmentados do real que, segundo nossa hipótese, forma-se parte significativa do corpus das fotografias de Duke Lee assim como as imagens poéticas dos versos de Piva. Nessa mesma direção de pensar a imagem fotográfica em outra perspectiva que não apenas a de sua reprodutibilidade técnica, ainda se valendo das fotografias de Atget como exemplo, Benjamin dá contornos um pouco mais imagéticos a seu conceito de aura:

O que é, de fato, a aura? É uma trama singular de espaço e tempo: a aparição única de uma distância, por mais próxima que esteja. [...] Mas ‘fazer as coisas se aproximarem’ de nós, ou antes, das massas, é uma tendência apaixonada do homem contemporâneo quanto a superação do caráter único de cada situação por meio da reprodução. A cada dia torna-se mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na imagem, ou melhor, na cópia. E a cópia, como ela nos é fornecida pelos jornais ilustrados e pelas atualidades cinematográficas, distingue-se inconfundivelmente da imagem. (BENJAMIN, 1994, p. 108)

O que mais uma vez chama a atenção, sobretudo para a perspectiva desta pesquisa, é a existência de um traço comum entrevisto tanto na tese de aura defendida pelo ensaísta alemão quanto no conceito de imagem poética. Em ambas as proposições, destaca-se justamente a questão do distanciamento aparente que precede um movimento de “aproximação”, movimento esse que, de maneira análoga, tais como os processos geradores da própria imagem poética conforme exaustivamente mencionado, pode ser considerado responsável tanto pela instauração dessa última quanto pela formação de uma das possibilidades de percepção da aura – ou de sua perda – nesse caso, associada à imagem fotográfica. Ao mencionar Atget, Benjamin também associa as imagens fotográficas concebidas pelo francês ao Surrealismo23, exatamente uma das correntes estéticas que se valeram amplamente do conceito de imagem poética com propósitos criativos e de percepção do mundo, de acordo com o exposto. Para o ensaísta alemão,

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Outros fotógrafos como os franceses Henry Cartier-Bresson e Brassaï também foram considerados precursores da fotografia dita surrealista.

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[...] as fotos parisienses de Atget são de fato as precursoras da fotografia surrealista, a vanguarda do único destacamento verdadeiramente expressivo que o Surrealismo conseguiu pôr em marcha. Ele foi o primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia tradicional, especializada em retratos, da época da decadência. Ele purifica essa atmosfera, ou mesmo a liquida: começa a libertar o objeto da sua aura, o mérito mais incontestável da moderna escola fotográfica. (BENJAMIN, 1994, p. 107)

Entrevê-se na observação que algumas dessas imagens fotográficas, supostamente fonte de inspiração para os surrealistas, não tinham como temática o rosto humano, elemento substituído por imagens em preto e branco das ruas e construções de uma Paris agora também quase extinta, mas que permanece paradoxalmente viva e espectral nesses registros. As fotos de Eugène Atget, o objeto que foi alçado à possibilidade de percepção artística nessa “era da reprodutibilidade” analisada por Benjamin, tiveram um espaço citadino como tema. Da mesma maneira, as imagens fotográficas da obra Paranoia, concebidas por Duke Lee a partir dos poemas de Piva, também compõem um registro histórico e estético da cidade de São Paulo. Conforme vem sendo sugerido, Walter Benjamin (1994) destacou nas fotografias de Atget algo mais do que apenas a sua função utilitarista, propondo que se fosse além do papel de mero registro histórico de alguns topônimos parisienses. Tal linha de pensamento demonstra a consciência crítica do ensaísta acerca da existência de uma linha de pensamento unívoco, capitalista e tecnicista, que já era perfeitamente reconhecível no contexto de então. Segundo o depreendido das palavras de Benjamin, a fotografia teve um grande impulso que direcionou e ampliou suas possibilidades de realização para o campo estético a despeito da mudança de parâmetros. E tal movimento parece ter se dado exatamente na aplicação ou na leitura dessa nova técnica sob uma perspectiva artística, dentre elas, aquela proposta pelo Surrealismo, que inclusive também foi campo fértil para que fosse desenvolvida outra estratégia estética neste trabalho apresentada: a imagem poética. Lembremo-nos de que esse braço das vanguardas europeias influenciou muito tanto o percurso poético de Piva quanto a construção de parte significativa da obra de Duke Lee. Nesse sentido, nunca é demais ressaltar que são justamente essas duas variantes de imagem, a poética e a fotográfica, é que formam o corpus referente à pesquisa neste momento apresentada.

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Ainda nessa linha de raciocínio, a imagem fotográfica, assim como a imagem poética cujos conceitos foram sistematizados e explorados por parte das vanguardas europeias no verso, na prosa, na pintura e, claro, na própria fotografia, poderia encerrar alguns traços dessas mesmas correntes estéticas de vanguarda. Se para uma parte dessas vanguardas as imagens, a partir de determinadas estratégias de composição, deveriam proporcionar novas apreensões ou construções do que se tomava por real, pode ser concluído que a fotografia, sob as mesmas diretrizes, também poderia oferecer uma leitura do sensível que fosse um passo além das imagens dadas ou captadas a partir de um ponto de vista estritamente cotidiano. Sob esse prisma, pode ser dito que a fotografia também encerraria uma força perfeitamente capaz de desvelar, em contraponto a um pretenso e único real, várias realidades, muitas vezes imaginárias. Realidades que, na perspectiva de alguns vanguardistas como os surrealistas Reverdy e Breton, quanto mais afastadas fossem originalmente, materializariam mais potência imagética quando aproximadas pela mão hábil ou pelo olhar sensível do artista. É justamente essa relação entre real e imaginário a partir da perspectiva fotográfica que será abordada de agora em diante. Relação que, assim como a conexão entre a arte e a sua reprodutibilidade, vista até o presente momento, carrega uma tensão que pode surpreender ou confundir.

3.3 Entre o real & o imaginário “Louca ou sensata? A fotografia pode ser uma ou outra [...].” Roland Barthes

Uma das questões centrais da fotografia e que, de certa forma, também foi problematizada ao longo do tempo em outras manifestações artísticas, advém da relação com o que se toma por real, de um lado, e do que se entende por imaginário, do outro. Nesse sentido, vale a pena evocar algumas palavras do pesquisador francês Philipe Dubois. O autor propõe, a partir da fotografia, três abordagens possíveis do real: ver a “fotografia como espelho do real”; considerar a fotografia como uma “transformação do real” e, por fim, apreendê-la como “traço de um real” (DUBOIS, 1993, p. 26). Na primeira das três proposições, Dubois defende que a fotografia é a “imitação mais perfeita da realidade” (DUBOIS, 1993, p. 27). Sob tal ponto de vista, “o efeito da realidade

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ligado à imagem fotográfica foi a princípio atribuído à semelhança existente entre a foto e seu referente” (DUBOIS, 1993, p. 26). Nesse sentido, a fotografia pode ser pensada a partir da ideia de mimese, isto é, como uma imitação ou representação de um referente, de uma cena ou de um objeto. Essa tentativa de “imitação perfeita da realidade”, a partir do advento da fotografia nos dois últimos séculos, passaria também a ser levada a cabo, nesse contexto, por meio de um dispositivo maquínico, a câmera fotográfica, e não mais apenas pela mão do pintor ou do escultor agindo diretamente sobre a tela ou a argila. A “imitação” da “realidade”, ou pelo menos a tentativa de captar o real a partir de imagens que se confundissem com o primeiro, nesse sentido, aperfeiçoou-se sobremaneira devido ao sucessivo incremento da qualidade e da precisão desse dispositivo, aliados a sua crescente difusão nos dois últimos séculos em nosso imaginário cultural. A segunda proposição do pesquisador francês defende que a fotografia pode perfeitamente ser tomada como uma “transformação do real” (DUBOIS, 1993, p. 26), estabelecendo um contraponto ao “ilusionismo do espelho fotográfico” subentendido anteriormente. Para ele, a “imagem fotográfica não é um espelho neutro” (DUBOIS, 1993, p. 26), podendo ser utilizada na apreensão ou para a transformação do real. Tal possibilidade de transformação da realidade atribuída à imagem fotográfica coaduna-se em muito ao conceito de imagem poética adotado neste trabalho. Talvez isso se deva ao fato de que as imagens dessa natureza, assim como as imagens poéticas criadas por Piva, seriam basicamente o produto de uma aproximação, de uma reorganização de diferentes fragmentos ou instâncias do real com vistas à criação de uma nova mirada, ainda que de cunho aparentemente delirante ou alucinatório. Esse modus operandi que joga com o real, sistematizado por uma parte das vanguardas do século XX conforme apresentado, aparentemente foi utilizado não somente por Piva, mas também por Duke Lee. O ensaio fotográfico, assim como os poemas, ademais de retratar alguns topônimos reconhecíveis, apresenta o tema – a cidade de São Paulo – a partir de uma visão fragmentada de instâncias díspares que, recombinadas, suscitam justamente o caráter alucinatório que acreditamos poder ser depreendido nas imagens de Paranoia. Na terceira e última proposição, Dubois apresenta a fotografia como um “traço do real” (DUBOIS, 1993, p. 26). Para o ensaísta, destaca-se nessa perspectiva o fato de que “subsiste, apesar de tudo na imagem fotográfica [...] um sentimento de realidade

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incontornável do qual não conseguimos nos livrar apesar da consciência de todos os códigos que estão em jogo nela e que se combinaram para a sua elaboração” (DUBOIS, 1993, p. 26). Depreende-se dessa afirmação que a imagem fotográfica, ainda que artística ou ficcional, encerraria, de uma forma ou de outra, “traços do real”. Nesse sentido, pode ser entrevisto que, em maior ou menor grau, o real como matriz do referente, assim como em determinados contextos linguageiros, pode se apresentar como elemento importante também para essa categoria de imagem. Conforme o que se entrevê e será demonstrado no quarto capítulo deste nosso estudo do livro Paranoia, suspeitamos que as imagens fotográficas que fazem parte desse último podem ser associadas, ao menos neste primeiro momento, a todas as proposições de Dubois, mas especialmente a segunda delas. Sob tal perspectiva, a fotografia é tomada

como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução). Logo se manifestou uma reação contra esse ilusionismo do espelho fotográfico. O princípio de realidade foi então designado como pura “impressão”, um simples “efeito”. Com esforço tentou-se demonstrar que a imagem fotográfica não é um espelho neutro, mas um instrumento de transposição, de análise, de interpretação e até de transformação do real, como a língua, por exemplo [...]. (DUBOIS, 1993, p. 26)

Destacam-se nessas palavras de Dubois algumas características atribuídas à fotografia e que são encontradas em outras linguagens segundo o autor, dentre elas, a possibilidade de ser utilizada como ferramenta de “transposição”, de “análise”, e também sua capacidade de “transformação do real”. Essa última, sobretudo, parece se coadunar às fotografias de Duke Lee uma vez que, a princípio, tais imagens, assim como as imagens poéticas, são oriundas de um jogo entre o real e o imaginário conforme salientado em parágrafos anteriores. Tais atribuições, ainda, revelam-se importantes à perspectiva desta pesquisa. Sendo assim, as imagens fotográficas, observadas a partir de tais aspectos, não serão apenas mais um objeto a ser analisado isoladamente, mas servirão de contraponto para a análise de alguns poemas. Ademais, suspeitamos haver neste nosso objeto duplo – poesia e fotografia –indícios significativos da capacidade de “transformação do real” levantada pelo pesquisador francês. Além de Dubois, outros pesquisadores teceram considerações sobre as relações entre o real e o imaginário representados a partir da imagem fotográfica e que, doravante,

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integrarão o aporte teórico desta pesquisa. Para Susan Sontag, as imagens fotográficas, muito mais do que tentar captar ou reconstruir o real

[...] são de fato capazes de usurpar a realidade, porque, antes de tudo, uma foto não é apenas uma imagem (como uma pintura é uma imagem), uma interpretação do real; é também um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária. (SONTAG, 2004, p. 170)

Destaca-se nas palavras da escritora e crítica de arte norte-americana justamente a questão do “vestígio”, do “traço do real” também apresentado por Dubois. Tanto para Dubois quanto para Sontag, a fotografia aparentemente não se resume apenas a uma imagem enquanto cópia ou mesmo a tentativa de registrar o real mimeticamente, mas abarcaria algo desse último, o que nos faz tecer a hipótese de que, se o real é apenas uma parte desse tipo de imagem, o irreal ou surreal poderiam ser perfeitamente considerados como o outro lado dessa moeda. Antes que se avance um pouco mais concretamente em direção a essa zona da fotografia na qual se encontram ou coabitam o real e o imaginário, faz-se necessário tomarmos emprestado mais algumas reflexões sobre o tema. Boris Kossoy apresentou de forma clara uma perspectiva na qual a fotografia é considerada técnica ou arte com o intuito de apreender e re/construir realidades e visadas imaginárias. A fotografia não está enclausurada à condição de registro iconográfico, isento dos cenários, personagens e fatos das mais diversas naturezas que configuram os infinitos assuntos a circundar os fotógrafos, onde quer que se movimentem. Há um olhar e uma elaboração estética na construção da imagem fotográfica. A imaginação criadora é a alma dessa forma de expressão; a imagem não pode ser entendida apenas como registro mecânico da realidade factual. A deformação intencional dos assuntos através das possibilidades de efeitos ópticos e químicos, assim como a abstração, montagem e alteração visual da ordem natural das coisas, a criação enfim de novas realidades têm sido exploradas constantemente pelos fotógrafos. (KOSSOY, 2014, pp. 52-53)

Segundo o que se pode entender a partir das observações do professor e ensaísta, a fotografia definitivamente não se restringe apenas à tarefa de captar a realidade com vistas a uma espécie de catalogação fiel do real com objetivo exclusivo de registrar os fatos históricos. Destaca-se nas ponderações do pesquisador a existência de “um olhar e uma elaboração estética na construção da imagem fotográfica” (KOSSOY, 2014, pp. 52-53), isto é, uma

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ampliação das possibilidades dessa forma de expressão para além do registro do cotidiano também associada à fotografia. Nesse sentido, a ideia de que “a imagem não pode ser entendida apenas como registro mecânico da realidade factual” (KOSSOY, 2014, pp. 52-53) ajuda a pôr em perspectiva esse elemento tão caro ao nosso estudo. Outro ponto ainda chama a atenção nas palavras de Kossoy supracitadas e que, de certa maneira, pode auxiliar a empreender um diálogo com algumas estratégias que entendemos estarem associadas à produção e à recepção das imagens de Duke Lee. A “deformação” empreendida por meio de processos “ópticos e químicos”, ou seja, na forma de criação dessa categoria de imagem fotográfica de contornos estéticos, além da montagem de elementos que se supõe fragmentados a partir de uma unidade anterior, possibilita justamente a criação de “novas realidades”. Realidades que, por sua vez, apresentam-se de maneira “deformada”, como se vistas sob uma ótica da “alucinação”. Nesse sentido, podemos inferir que as fotografias de caráter artístico, como as feitas por Wesley Duke Lee para o livro Paranoia, aparentemente, podem ser compostas baseadas em relações analógicas ou metafóricas advindas dessa recombinação de fragmentos. Relações essas que formam a engrenagem responsável por ajudar a construir também as imagens poéticas de Piva. Ambas as categorias de imagem, sob essa premissa, podem ser tomadas como frutos de uma aproximação entre elementos ou instâncias distintas que, mesmo geradas sob uma permanente tensão, são capazes de plasmar outras possibilidades de expressão estéticas perceptíveis tanto a partir da tessitura poética quanto por meio da trama fotográfica. É quase impossível falar de uma teorização da fotografia que também contemple essa reflexão entre o real e o imaginário sem mencionar Roland Barthes. O semiólogo e ensaísta francês dedicou algumas considerações que ajudam a refletir, ainda no campo de força emitido pelas imagens fotográficas, sobre este longo imbróglio entre real e imaginário. No livro A câmara clara, Barthes inicialmente propõe que a fotografia apresenta-se como uma linguagem que “se distinguia da comunidade das imagens” (BARTHES, 1984, p. 12). Pode ser depreendido na fala do ensaísta francês que tal manifestação imagética, a despeito de sua similaridade ou aproximação com outras formas de expressão visual como a pintura, anteriormente, e o cinema, num momento imediatamente posterior, conserva características próprias tornando-a, desse modo, distinta dessas outras manifestações visuais. Barthes também propôs dois conceitos interessantes que poderão ser utilizados mais adiante nesta pesquisa para analisar as imagens fotográficas: o “studium” e o “punctum”. O

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primeiro corresponderia ao apreensível pelos sentidos, pelo visível, que é o objeto de análise geral nas fotografias, materializado por meio de aspectos que determinam o contexto de época, a cultura, etc. O segundo deles, o punctum, poderia ser tomado como um detalhe, algo distinto e capaz de reter a atenção como que saltando da foto para provocar o espectador. Ainda de acordo com o autor de Mitologias, esse último

vem quebrar (ou escandir) o studium. [...] A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere). (BARTHES, 1984, p. 46)

Talvez possa ser dito, sob a perspectiva de Barthes, que o studium torna a imagem fotográfica como algo reconhecível se esse tipo de imagem for levada em consideração como possível representação do real. O punctum, por outro lado, pode ser visto como uma espécie de alavanca que proporciona o deslocamento para a dimensão do imaginário de uma fotografia que almeje encerrar qualquer caráter de representação imagética inicialmente calcada no real. Roland Barthes, ainda no mesmo texto, reflete sobre as imbricações e implicações advindas das relações entre real e imaginário. Para Barthes, a fotografia, assim como o teatro, poderia ser tomada como uma encenação, isto é, uma das representações artísticas de um real: “[...] a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (BARTHES, 1984, p. 22). De acordo com o semiólogo, ainda, a “fotografia dá um pouco de verdade, com a condição de retalhar o corpo” (BARTHES, 1984, p. 153). Entrevê-se nessa afirmativa justamente o caráter de fragmentação e falseamento do real já mencionado. Fragmentação e falseamentos dos quais, segundo o entrevisto até o momento, a própria imagem fotográfica parece se alimentar. Outro aspecto levantado por Barthes e que será verificado em nosso objeto de estudo no capítulo 4, parte da analogia entre a imagem fotográfica e a alucinação visual. Segundo o francês:

Ora, na Fotografia, o que coloco não é somente a ausência do objeto; é também, de um mesmo movimento, no mesmo nível, que esse objeto

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realmente existiu e que ele esteve onde eu o vejo. É aqui que está a loucura; pois até esse dia nenhuma representação podia assegurar-me o passado da coisa, a não ser através de substitutivos; mas com a Fotografia, minha certeza é imediata: ninguém no mundo pode me desmentir. A Fotografia torna-se então, para mim, um médium estranho, uma nova forma de alucinação: falsa no nível da percepção, verdadeira no nível do tempo: uma alucinação temperada, de certo modo, modesta, partilhada [...]: imagem louca, com tinturas de real. (BARTHES, 1984, p. 168)

Nas entrelinhas barthesianas, destaca-se o fato de a imagem fotográfica praticamente ser ainda apreendida a partir da velha e aparentemente indelével alcunha de “louca da casa”. Entretanto, chama-nos a atenção uma espécie de modalização feita por Barthes dessa “nova forma de alucinação” que, segundo o autor, deveria ser apresentada de maneira “temperada” e galvanizada com as “tinturas do real”. Entrevemos nisso um ponto de contato com as vanguardas, cujas imagens poéticas, mesmo que geradas a partir ou em direção às instâncias do irracional, davam a entender uma preocupação não apenas com o objeto artístico, mas com o modus operandi de sua materialização. Essa aparente contradição advinda entre o irracional que as obras de arte de natureza imagética – incluindo, algumas imagens fotográficas – pretensamente buscavam expressar e a racionalidade com a qual essas mesmas deveriam ser construídas se revela algo interessante e será, ainda que pontualmente, comentada mais adiante. Antes que se prossiga no sentido de apreciar mais alguns aspectos da fotografia que julgamos serem importantes para a análise do corpus, cabe ainda, com a intenção de arrematar o recorte proposto sobre as implicações entre real e imaginário, evocar mais algumas considerações de Susan Sontag. A ensaísta estadunidense destaca aspectos da fotografia que convergem em boa medida com as proposições até o momento vistas, entre elas, a multiplicidade do real e a fragmentação desse último. Tais elementos criariam as condições necessárias, sob essa perspectiva, para a ocorrência do artístico. Entretanto, o tom de Sontag apresenta traços acentuados de ceticismo quanto ao ato fotográfico e sua inserção no imaginário cultural. Segundo a autora:

a contingência das fotos confirma que tudo é perecível; a arbitrariedade da evidência fotográfica indica que a realidade é fundamentalmente inclassificável. A realidade é resumida em uma série de fragmentos fortuitos – um modo infinitamente sedutor e dolorosamente redutor de lidar com o mundo. (SONTAG, 2004, p. 95)

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Sontag deixa entrever, ao menos nesse excerto, uma visada não necessariamente otimista, bem distinta daquela que predominava há praticamente cem anos atrás. Ao contrário do entusiasmo compartilhado em relação às máquinas no início do século XX, as palavras da ensaísta apontam não apenas a incapacidade de a fotografia poder classificar o real, mas também indiciam que a própria realidade se apresenta demasiadamente “perecível” ou fragmentada para qualquer tentativa de apreensão satisfatória. Nesse ponto, divergimos da fala de Sontag não necessariamente em relação à questão da fragmentação, mas sim no aspecto redutor levantado pela autora. Apesar de a fotografia, sim, lidar com um real muitas vezes fragmentado e perecível, a escolha por registrar este ou aquele aspecto em particular não necessariamente reduz ou invalida a sua potência estética. As próprias fotografias que constituem a obra Paranoia podem servir como um exemplo que corrobora nosso contra-argumento relativo à Sontag. Ainda que fruto do registro de um lugar com tempo e espaços delimitados, a cidade de São Paulo nos anos iniciais da década de 1960, a natureza estética e o caráter universal dos temas relativos a tais imagens possibilita justamente que a fotografia possa atuar como uma linguagem que amplia as possibilidades de reconstrução do real, e não como forma de reduzi-lo como afirmou a ensaísta norte-americana. Ainda em relação ao aspecto maquínico da fotografia e a respectiva correlação com o imaginário e o real, Sontag problematiza: “A gênese mecânica dessas imagens e a eficiência dos poderes que elas conferem redundam numa nova relação entre imagem e realidade. [...] agora experimentamos a potência da imagem de um modo muito diferente” (SONTAG, 2004, p. 174). De acordo com o que se pode depreender a partir da fala da ensaísta norte-americana, as novas relações entre imagem e realidade seriam uma redundância do próprio ato fotográfico, por um lado. Por outro, seria exatamente o caráter maquínico da fotografia o responsável por potencializar imagens de tal natureza. Refletindo sobre as implicações entre real e imaginário relativos à fotografia, Susan Sontag aposta em “ver a realidade como um conjunto interminável de situações que se espelham mutuamente, extrair analogias das coisas mais díspares, é antecipar a forma característica da percepção estimulada pelas imagens fotográficas” (SONTAG, 2004, p. 176). No sentido da fala da ensaísta, a imagem, fruto de uma perspectiva na qual o real e o imaginário “se espelham”, surge exatamente da “analogia das coisas mais díspares”.

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Ora, a aproximação ou a analogia entre “coisas mais díspares” ou “realidades distantes”, segundo já enunciado por Marinetti, Breton, Reverdy e outros, é procedimento atribuído tanto à imagem poética quanto à imagem fotográfica conforme vem sendo sugerido ao longo destas páginas. Por esse ângulo, pode ser depreendido que ambas as formas de imagem – a poética e a fotográfica – não apenas se baseiam no real, mas vão além, pois jogam com suas representações e respectivos elementos que, mesmo fragmentados, ou talvez por isso mesmo, permitem a construção de novas realidades e percepções estéticas. Corroborando com tudo o que foi exposto até este ponto, a imagem fotográfica pode ser tomada, com razoável conforto, tanto como uma possível representação do real como uma transformação e multiplicação deste mesmo real, resultando daí o que poderia ser apreendido como imagens de caráter artístico e/ ou imaginário. Mencionada essa relação – entre real e imaginário – percebida nas imagens fotográficas de Paranoia, partiremos para um último comentário antes de analisarmos efetivamente nosso objeto. A intenção é a de levantarmos elementos para que possam ser percebidas de maneira satisfatória as possíveis inter-relações existentes quando se contrapõem essas duas instâncias distintas, a palavra poética e a imagem fotográfica.

3.4 Fotografia & literatura: interseções “Um lugar onde se deve, também como na literatura, efetuar uma experiência do pensamento e dos sentidos [...]” Vera Casa Nova

As interseções entre literatura e imagem são provavelmente tão antigas quanto o são esses próprios elementos. Basta lembrar a visualidade dos pergaminhos ou ainda a picturalidade dos códices e das iluminuras medievais, nos quais tanto a palavra quanto a imagem, ambas com marcas de literariedade ou, ao menos, de narratividade, ocupam lugar de destaque na composição dos mesmos a partir de seus respectivos suportes. Vale salientar que, com o advento da imprensa por conta da invenção de Johannes Gutenberg no século XV, toda uma tradição de produção dos livros que até aquele momento eram copiados e ilustrados um a um, manualmente, foi potencializada, aumentando tanto a qualidade do ponto de vista da fidelidade e da reprodutibilidade desse objeto quanto as suas possibilidades de geração de sentido por conta do uso simultâneo de texto e imagem.

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Nesse sentido, pode ser pensado que a aura comumente associada ao livro, objeto de difícil produção e acesso antes desse incremento tecnológico – a prensa –, não se perdeu exatamente. Esse “valor de culto” apontado por Walter Benjamin parece ter apenas se modificado, e até mesmo se potencializado, uma vez que a ampliação da circulação dos livros causou uma espécie de fetichismo cultural em relação a esse objeto, inserindo-o de forma cada vez mais ampla em nosso imaginário. Com a incorporação da fotografia ao imaginário cultural moderno, logo surgiram as primeiras tentativas para integrar imagens fotográficas e texto literário na mesma superfície do livro, isto é, a página. Durante praticamente três séculos a predominância do texto em relação às ilustrações foi quase absoluta nos livros, com algumas exceções. Às imagens cabiam principalmente o papel de ilustrar ou dar suporte à leitura do texto literário que ainda continuava a ser a principal linguagem materializada nas páginas de cada livro. Conforme já foi explanado, a fotografia, objeto artístico e/ ou registro do cotidiano no imaginário cultural moderno gozou um período de grande popularidade. Entre os séculos XIX e XX a imagem fotográfica foi gradativamente ocupando seu lugar como legítima forma de apreensão do mundo sensível, a despeito da chegada avassaladora do cinema ainda nos anos iniciais do século passado. Sendo assim, tal manifestação obviamente não poderia passar despercebida pelo olhar mais aguçado dos artistas da palavra, incluindo nessa categoria os respectivos editores. Ambos perceberam que a mescla entre texto literário e os subsídios inerentes à fotografia possibilitariam a ampliação estética de tais manifestações. Parte significativa das vanguardas europeias, de acordo com o visto até o momento, tomou a imagem não somente como referencial teórico, mas também como forma de materialização artística. Além de literatos como Pierre Reverdy e André Breton, que difundiram o conceito de imagem poética aplicado ao texto literário, fotógrafos como o já mencionado Eugène Atget, além de Man Ray24, Brassaï e Henry Cartier-Bresson foram associados, em maior ou menor grau, ao Surrealismo. Cabe ressaltar que a ideia relativa à

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Sobre a obra de Man Ray, destaca a pesquisadora Sheila Leirner: “Dentre a sua obra polimorfa – quadros, objetos, colagens, fotos e filmes que alargam de fato o horizonte dos pintores da época – os melhores exemplos desta poetificação são evidentemente os seus raiogramas do começo dos anos de 1920 [...] e, dez anos mais tarde, as solarizações, que ele inventa também acidentalmente”. (LEIRNER, 2008, p. 616)

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existência de uma fotografia categorizada estritamente como surrealista não é considerada ponto pacífico na academia. De acordo com Sheila Leirner em artigo que problematiza a existência de uma fotografia dita surreal25, é praticamente inegável o fato de que “a fotografia tem um lugar essencial na visão que temos hoje do movimento surrealista” (LEIRNER, 2008, p. 614). Entretanto, a pesquisadora ressalta que na produção bibliográfica do Surrealismo “não há texto ou imagem que deem à fotografia um lugar proeminente” (LEIRNER, 2008, p. 614). A constatação da pesquisadora, todavia, não excluiu a importância de obras de caráter literário nas quais a presença tanto do texto de matriz surrealista quanto a imagem fotográfica de tons assemelhados é deveras significativa. Ela cita, a título de ilustração, “os textos que Breton publicou na revista Minotaure, acompanhado das fotos de Man Ray e de Brassaï, assim como em L’amour fou (O Amor Louco) que, em 1937, trouxe ilustrações desses dois artistas, além dos trabalhos de Dora Maar e Henry Cartier-Bresson” (LEIRNER, 2008, p. 614). Ainda sobre a relação entre a fotografia e a literatura associadas a uma estética dita surrealista, a professora de arte moderna Rosalind Krauss, ao tecer alguns comentários sobre a obra de André Breton, também elencou uma série de trabalhos desse autor que podem ser lidos sob essa mesma perspectiva: [...] os três trabalhos seguintes de Breton foram efetivamente ‘ilustrados’ por fotografias. Nadja, de 1928, incluía imagens, quase todas de Boiffard; Les Vases communicants (Os Vasos comunicantes), de 1932, continha algumas imagens de filmes e diversos documentos fotográficos; quanto ao material destinado a ilustrar L’Amour fou, (O Amor Louco) em 1937, dividia-se essencialmente entre Man Ray e Brassaï. Na atmosfera profundamente onírica que impregnava esses livros, a presença das fotografias surpreende pela sua defasagem com relação ao texto – apêndices, cuja razão é tão misteriosa como são banais as próprias imagens. (KRAUSS, 2013, p. 113).

Não há como deixar de notar que, tanto nas palavras de Leirner quanto nas de Krauss parece ecoar o tom de “louca da casa” há muito atribuído às imagens em nosso imaginário cultural e neste trabalho já devidamente mencionado. Segundo o que pode ser concluído das

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Sheila Leirner também propõe a seguinte abordagem do tema: “Por que não pensarmos, então, na fotografia da época, sobretudo como uma atividade simultânea ao surrealismo (e não raro aproveitada por ele) cujo caminho ela cruza ou acompanha de tempos em tempos?” (LEIRNER, 2008, p. 615)

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observações de ambas as autoras, as imagens fotográficas, quando comparadas aos textos com os quais dividem o espaço da página, ainda estariam em uma posição hierarquicamente subalterna, orbitando ao redor das palavras. O grau advindo das relações entre a palavra e a imagem, grau entrevisto nas colocações acima, também será aferido nos poemas e fotografias de Paranoia no capítulo a seguir. No Brasil, uma das primeiras e mais significativas manifestações caracterizadas pela articulação entre texto literário e a imagem fotográfica se deu em alguns momentos do movimento modernista que, assim como as vanguardas europeias, também ditou as regras no âmbito artístico/ literário na primeira metade do século XX. O poeta modernista Jorge de Lima, por meio de seu livro A pintura em pânico, de 1943, colocou em evidência uma abordagem literária da fotografia que fora considerada novidade apenas alguns anos antes em Paris, berço do movimento surrealista. Concebidas a partir de um procedimento artístico ao qual foi atribuído o termo “colagem”, as fotomontagens de Jorge de Lima, segundo outro modernista, Mário de Andrade, eram feitas de uma maneira aparentemente prosaica. Segundo o autor de Paulicéia Desvairada, bastava “apenas [...] se munir de um bom número de revistas e livros com fotografias, recortar figuras e reorganizá-las numa composição nova que a gente fotografa ou manda fotografar” (ANDRADE, M. apud LIMA, 1987, p. 9). Murilo Mendes, prefaciador e profundo interlocutor dessa e de outras obras de Jorge de Lima, nota: “Seus elementos de organização são pobres e simples: figuras recortadas de velhas revistas, gravuras imprestáveis; uma tesoura e goma arábica” (MENDES, 1943, s.p.). O professor Teodoro Rennó Assunção, em artigo que investiga as influências de procedimentos surrealistas na obra do poeta modernista Jorge de Lima, destaca um aspecto que converge diretamente para a relação palavra e imagem, entre literatura e fotografia, cuja investigação está em curso nesta dissertação. Para o pesquisador, a maior parte das legendas que compõem as páginas ilustradas pelas fotomontagens de Jorge de Lima “é relativamente prosaica e só adquire um sentido surpreendente (e muitas vezes irônico) ao iluminarem discursivamente e por contraste uma imagem ou cena monstruosa e incongruente 26” (ASSUNÇÃO, 2004, p. 61).

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Ainda sobre a relação entre a instância imagética e a literária nesse livro de Jorge de Lima, o autor do artigo comenta: “Se o que unifica a coleção é apenas um estilo reconhecível de montar e legendar, este livro de

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Pode ser entendido que a função textual, nessa perspectiva, caberia a essas legendas que sugeririam ou potencializariam os possíveis sentidos apreendidos das fotomontagens. Nesse caso, há uma inversão baseada na primazia da imagem sobre a palavra, justamente o oposto do que foi detectado nos livros de Breton analisados por Leirner e Krauss. Cabe salientar que esse trabalho de Jorge de Lima provavelmente teve como referência as obras de outro surrealista importantíssimo, o pintor Max Ernst. Esse representante das vanguardas levou adiante suas investigações sobre a palavra e os desenhos/ imagens fotográficas, como a collage27, em livros como La femme 100 têtes, de 1929. Outro ponto importante desta obra de Jorge de Lima e que vai ao encontro do conceito de analogia e também ao das imagens poéticas, além de obviamente manter uma clara aproximação com algumas obras do Surrealismo, ganhou destaque no artigo do pesquisador Luciano Marcos Dias Cavalcanti. O autor, refletindo sobre o “fotomontagista”, isto é, aquele que se vale dos procedimentos de fotomontagem para construir seu objeto, caracteriza a “criação imagética” referente a essa perspectiva:

[...] o fotomontagista tem em suas mãos uma técnica de forte criação imagética, a partir da união de elementos muitas vezes simples que por causa de sua combinação se tornam inusitados, fornecendo uma atmosfera mágica, muitas vezes enigmática e até mesmo insólita – o que nos dá a sensação de estar em contato com uma imagem nova. (CAVALCANTI, 2012, p. 6)

Pode ser destacada nas palavras de Cavalcanti, pensando na “técnica de forte criação imagética” (CAVALCANTI, 2012, p. 6), uma semelhança com alguns procedimentos aqui já mencionados, principalmente o de imagem poética. Nessa técnica, com o objetivo de criar uma “imagem nova”, são combinados de forma inusitada elementos que despertam nas obras construídas a partir desse modus operandi justamente uma “atmosfera mágica”, “enigmática e até mesmo insólita” (CAVALCANTI, 2012, p. 6). Atmosfera essa que, mais do que elemento característico de algumas obras da vanguarda, apresenta-se no texto poético ou nas imagens

fotomontagens funciona como um livro de poemas autônomos em que se reconhece porém uma autoria única através da maneira de compor” (ASSUNÇÃO, 2004, p. 56). 27 Segundo o estudioso do Surrealismo no Brasil e na Europa Sérgio Lima, o termo collage, como designação de expressão determinada, foi colocado em circulação por Max Ernst desde 1918/19. Antes, como material apenas e num sentido diverso, tanto Picasso como os cubistas e os futuristas já haviam utilizado o material colado em suas obras (aliás, denominavam isto de “papiers-collés”, pois a expressão de Ernst só foi surgir após Dada), põem sempre em torno de material, com preocupações gráficas ou de textura. E não no sentido como na expressão collage, inaugurada assim por Max Ernst nas artes plásticas. (LIMA, 1995, p.358).

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fotográficas contidas em Paranoia exatamente a partir da tensão advinda das relações entre o real e o imaginário. Obviamente as técnicas de colagem ou de fotomontagem utilizadas tanto pelos vanguardistas europeus quanto pelos modernistas brasileiros não se associam stricto sensu à composição das imagens fotográficas do livro Paranoia. Interessa no recorte apresentado levantar, a partir das relações advindas entre literatura e fotografia materializadas nesses exemplos, referências que possam ajudar a ler melhor o objeto escolhido tanto em relação ao seu passado quanto ao seu momento presente. É importante ressaltar que após o lançamento quase despercebido de A pintura em pânico, na década de 1940, ou da edição do livro Paranoia, duas décadas após, houve algumas tentativas mais ou menos bem sucedidas de se vincular ambas as instâncias, texto literário e imagem fotográfica, na mesma superfície da página. Alguns desses trabalhos, todavia, apresentam particularidades que os diferenciam uns dos outros. Destaca-se nesse sentido, um trabalho como o empreendido pelo poeta paranaense Paulo Leminski e o fotógrafo paulista Jack Pires. A parceria de ambos foi concretizada com a edição da obra Quarenta clics em Curitiba, lançada em 1976. Poemas de Leminski se somam às fotografias das ruas da cidade de Curitiba feitas por Pires. Entretanto, há de se destacar que tanto as fotografias como os poemas foram feitos separadamente e só foram reunidos em outro momento. Mais um destaque relativo a esse trabalho é o fato de que os poemas e fotografias em preto e branco28 não estarem agrupados exatamente sob a forma de um livro, mas sim impressos em formato de álbum, com as folhas soltas e sem numeração. Ainda sob essa perspectiva, não há como deixar de mencionar o trabalho da fotógrafa Maureen Bissiliat (1984). Inspirada no poema “O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto, a inglesa, estabelecida no Brasil desde a década de 1950, efetuou uma série de registros fotográficos com a intenção de propor um diálogo com esse poema cabralino. Diferentemente dos poemas de Leminski e das fotografias de Pires acima mencionadas, as imagens fotográficas de Bissiliat vieram a posteriori, ou seja, foram concebidas depois de alguns anos da feitura dos poemas. A junção do trabalho de ambos

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Apesar da absoluta predominância das imagens em preto e branco nesta obra, há uma fotografia em cores neste trabalho de Leminski e Pires.

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resultou em um livro no qual os versos de João Cabral dividem o livro com as imagens coloridas e em preto e branco de Maureen Bissiliat. Vale destacar também o trabalho do mineiro Sebastião Nunes. Segundo o crítico e poeta Fabrício Marques, “no final da década de 1980, Sebastião Nunes reuniu todo o seu trabalho poético nas Antologias mamalucas, volumes 1 e 2, que conta do que produziu de 1968 a 1989” (MARQUES, 2008, p. 12). Ainda segundo Marques, “toda a programação visual – fotos, ilustrações, colagens e montagens – foi realizada pelo próprio Sebastião Nunes, também editor independente de seus trabalhos” (MARQUES, 2008, p. 13). Nessa recolha de trabalhos poéticos do autor mineiro, sobressai uma poesia que traz lautas porções de ironia e generosas doses de humor negro. Além disso, o poeta se vale da imagem fotográfica para potencializar sua visão crítica às estruturas de poder e convenções sociais. As fotografias nestes trabalhos de Nunes, entretanto, além de terem sido feitas por ele e por outros autores em momentos anteriores aos da composição do texto literário, suscitam efeitos de ironia e fragmentação a partir de variadas intervenções gráficas do próprio poeta. Já no século XXI, dois trabalhos que unem poesia e fotografia podem ser destacados. O primeiro deles é o livro feito a quatro mãos pelo poeta e músico Arnaldo Antunes em parceria com a fotógrafa Marcia Xavier. No livro ET Eu Tu, lançado em 2003, a poética concisa de Antunes estabelece diálogo com as fotografias minimalistas de Xavier. O que se destaca em relação aos outros trabalhos comentados é o fato de que em algumas páginas desse livro os poemas se apresentam sobrepostos às fotografias, e não de forma espelhada em relação às mesmas. Nuno Ramos também experimentou essa aproximação entre imagem e palavra no seu livro Junco, de 2008. Encadeando uma série de poemas com imagens fotográficas feitas a partir dos registros de troncos e cães mortos à beira de praias e rodovias, esse livro do poeta e artista paulista, talvez, seja o que mais se aproxime à obra Paranoia dentre todas as outras já mencionadas no tocante ao aspecto editorial. Isso se deve ao simples fato de que todas as fotografias desse trabalho serem em preto e branco e, obviamente, estarem coligidas sob a forma de brochura junto a uma série de poemas. A intenção, ao apresentar alguns exemplos de convergência entre literatura e fotografia, não é a de sugerir ou instituir qualquer tipo de cânone. O propósito é o de apenas esclarecer que, mesmo no Brasil, esse procedimento não começou a ser utilizado a partir da publicação da obra Paranoia em 1963 nem tampouco se encerrou com a publicação do livro.

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Além disso, tal levantamento busca oferecer ao leitor curioso outros exemplos um pouco mais recentes dessa forma de manifestação artístico-literária. Apesar das diferenças rapidamente comentadas entre tais obras, o que se destaca é justamente a semelhança que há entre elas: o uso da palavra poética e da imagem fotográfica dividindo o mesmo suporte. Segundo Walter Moser, tal “interação pode se situar nos níveis da produção, do artefato em si mesmo (a obra) ou ainda dos processos de recepção e conhecimento” (MOSER, 2006, p. 43). Essa articulação entre duas instâncias linguageiras distintas, a imagem e a palavra, feita pelos seus respectivos autores tendo por suporte um objeto em comum, o livro, é o que interessa a esta pesquisa. Os aspectos editoriais inicialmente levantados até o momento serão apreciados com mais profundidade tendo não apenas uma, mas duas edições da obra Paranoia como objeto de análise no quinto capítulo desta dissertação. Assim como a literatura e a fotografia ainda continuam sendo objeto de apreciação e estudo, as possíveis relações advindas do encontro entre essas duas linguagens imagéticas, cada qual a sua maneira, tomaram vulto não apenas do ponto de vista da sua materialização, mas também a partir da perspectiva de sua recepção. Nesse sentido, tem crescido o interesse pelo estudo das relações entre artes distintas tais como a literatura e a fotografia, que é exatamente o que motiva esta pesquisa em seu aspecto mais geral. Um dos primeiros estudos que tiveram como objeto de análise especificamente as relações entre formas de expressão artística distintas foi feito pelo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1998). A partir de sua célebre análise da escultura grega “Laocoonte”, de 1766, Lessing começou a evidenciar que essa relação entre artes a princípio distintas, como a pintura, a escultura e a poesia, já estava inserida no imaginário cultural do ocidente pelo menos desde a Antiguidade Clássica. Na esteira de Lessing, vários outros nomes também voltaram sua atenção para essas novas possibilidades de emissão e recepção advinda das inter-relações artísticas. Novalis apontara, em plena época de efervescência do Romantismo Alemão, a existência de uma relação tácita entre a linguagem falada e a linguagem musical.

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O simbolista Baudelaire, à sua maneira, também dirigiu sua atenção para as relações ou correspondências29 não exatamente da perspectiva de comparação entre artes, mas sob uma mirada na qual a aproximação entre instâncias ou realidades distintas se efetiva como modus operandi artístico. Segundo tese de Claudio Willer: As correspondências de Baudelaire foram um pilar do que houve de inovador na criação poética que o sucedeu. Basta lembrar que os então jovens Verlaine e Mallarmé, ao se declararem seus discípulos em 1865, adotaram essa poética; que Lautrèamont a refez nos 'belo como'; que Rimbaud a incorporou à 'Alquimia do verbo'; que foi invocada por Marinetti em seu manifesto sobre 'palavras em liberdade'; e que seria o fundamento da noção de imagem poética como aproximação de realidades distantes em Reverdy e na lírica surrealista. (WILLER, 2010. p 317. Grifos nossos.)

Podemos inferir, ainda que previamente, que as relações entre percepções ou leituras do real construídas a partir de um viés com objetivos estéticos, de certa maneira, também orientaram uma parcela expressiva da própria produção artística ocidental dos últimos séculos. Produção cuja característica, de acordo com o apresentado, ganha destaque no sentido de se prestar, por meio da versatilidade do artista, às mais diversas experimentações, inclusive àquelas que privilegiam a coexistência de mais de uma manifestação plástica em um mesmo suporte ou mídia. A propósito desse último termo mencionado, o professor alemão Claus Clüver empreende pesquisa importante na qual investiga as origens dos estudos que tomaram por objeto justamente as possíveis relações entre artes ou mídias distintas. Para Clüver, tal perspectiva teve como origem o Comparativismo, que nos anos finais da década de 1960, procurava “discutir a iluminação mútua das artes” (CLÜVER, 2006, p. 12). Nas décadas seguintes, a Literatura Comparada, simultaneamente aos Estudos Interartes e, logo a seguir, junto às pesquisas sobre intermidialidade, se prestaram à função de campo de reflexão no qual

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Segundo o “E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia”: o sintagma “correspondência das artes” remete ao intertexto que as artes travam entre si, mesmo se cada arte estrutura uma linguagem peculiar, que expressa, no entanto, o mesmo ser humano, que a produz e a recebe. A interatividade entre as artes encontra no poema “Correspondances”, de Baudelaire, o paradigma, de onde derivam, igualmente, o poema sobre as vogais, de Rimbaud, e a descrição do órgão dos licores, efetuada por des Esseintes, protagonista do romance À rebours, do francês decadentista Joris-Karl Huysmans. Remonta à noite dos tempos, a utopia de uma arte total, aquela que englobasse todas as artes-irmãs: o Romantismo de Wagner e o Barroco erigiram a ópera como a arte suprema, eleição confirmada, desde o começo do século XIX, quando a música recebe o cetro de arte-rainha. Disponível em: http://www.edtl.com.pt/. Acesso: 24 de junho, 2015.

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pudessem ser comparadas, a partir de suas especificidades e/ ou semelhanças, obras artísticas e de mídias distintas. De acordo com Clüver, o termo “mídia”, na perspectiva adotada pelos Estudos Interartes ou mesmo aqueles voltados à intermidialidade, “refere-se [...] a uma categoria de textos e classes textuais, às quais pertence o livro enquanto texto” (CLÜVER, 2006, p. 23). Ainda segundo Clüver, algumas dessas classes representadas “são todas potencialmente formas de arte” (CLÜVER, 2006, p. 23). Ora, se for levada em consideração a ideia de que tanto o livro quanto a imagem fotográfica são “textos” ou “mídias” no sentido proposto pelo pesquisador alemão, pode ser dito que na obra Paranoia, pela presença de ambas as manifestações artísticas, poesia e fotografia, há indícios mais do que concretos para que se ateste em tal livro a existência de uma relação entre mídias, atribuindo-lhe consequentemente um caráter de intermidialidade. As relações entre tais constructos serão demonstradas a partir de análises do texto poético e da imagem fotográfica – mídias distintas – ao longo do quarto e próximo capítulo. Sobre as relações entre as materializações textuais e estéticas analisadas sob a ótica da intermidialidade, conclui Clüver: Independente dos tipos de textos e formas de relacionamentos envolvidos e dos interesses de estudo, a inclusão direta ou indireta de mais de uma mídia com diversas possibilidades de comunicação e representação e de vários sistemas sígnicos, bem como códigos e convenções a eles associados, lança continuamente questões sobre a base comparativa e as relações analógicas nas funções e efeitos dos meios encontrados. (CLÜVER, 2006, p. 14)

Interessante notar que, mais uma vez, a analogia, tanto a partir da perspectiva de seu uso para a construção artística quanto do ponto de vista de sua apropriação para aplicação como ferramenta analítica, apresenta-se como uma espécie de salvaguarda razoável quando há a necessidade de se refletir sobre objetos de matrizes estéticas a princípio distintas. É nesse sentido que uma perspectiva analógica pode ser considerada como peça importante para um mapeamento efetivo das relações até o momento especuladas na obra Paranoia. Ainda sobre a intermidialidade, a pesquisadora Irina Rajewsky propõe que tal conceito “pode servir antes de tudo como um termo genérico para todos aqueles fenômenos que [...] de alguma maneira acontecem entre as mídias” (RAJEWSKY, 2012, p. 18). Entretanto, Rajewsky assinala que o termo em questão é muito amplo e, para “cobrir manifestações

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midiáticas específicas e para teorizar uniformemente sobre elas, várias concepções de intermidialidade, concebidas de modo mais restrito [...] têm sido introduzidas” (RAJEWSKY, 2012, p. 18). Segundo a pesquisadora, tanto nos Estudos Literários quanto nas pesquisas interartes “existe um foco recorrente numa enorme quantidade de fenômenos qualificados como intermidiáticos” (RAJEWSKY, 2012, p. 22). Ela cita como exemplos a “escrita cinematográfica, écfrase e musicalização da literatura, assim como fenômenos como adaptações cinematográficas de obras literárias” (RAJEWSKY, 2012, p. 22). Por conta dessa variada gama de manifestações, a autora propõe a “intermidialidade como uma categoria para a análise concreta de textos ou de outros tipos de produtos das mídias” (RAJEWSKY, 2012, p. 23). Desenvolvendo sua argumentação, ela define três categorias de intermidialidade: a intermidialidade “no sentido mais restrito de transposição midiática”; a intermidialidade “no sentido mais restrito de combinação de mídias” e a intermidialidade “no sentido restrito de referências intermidiáticas” (RAJEWSKY, 2012, pp. 24-25). Na primeira categoria, a questão intermidiática se circunscreve ao “modo de criação de um produto, isto é, com a transformação de um determinado produto de mídia (um texto, um filme etc.) ou de seu substrato em outra mídia” (RAJEWSKY, 2012, p. 24). Na segunda categoria, esse conceito se debruça sobre fenômenos como “ópera, filme, teatro, performance, manuscritos com iluminuras, instalações em computador ou de arte sonora, quadrinhos etc.” (RAJEWSKY, 2012, p. 24). Na terceira e última categoria, o foco é dirigido, por exemplo, às “referências, em um texto literário, a um filme, através da evocação ou da imitação de certas técnicas cinematográficas como tomadas em zoom, dissolvências, fades e edição de montagem” (RAJEWSKY, 2012, p. 25). Dessas três categorias, as que mais se aproximam, ao menos preliminarmente, às mídias entrevistas no livro Paranoia são as duas últimas. Na segunda, entrevê-se uma atenção para com a análise específica das relações entre palavra e imagem no mesmo suporte. A existência de poemas e fotografias comungando o espaço do livro por si só já valida uma tentativa de análise sob tal abordagem. Na terceira, a questão das referências intertextuais, além do uso de procedimentos análogos como estratégia de construção estética, parecem ser exatamente algumas das estratégias que Piva e Duke Lee lançaram mão para compor os poemas e imagens fotográficas do livro.

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Antes que avancemos efetivamente à análise do corpus no intuito de confirmar – ou não – as hipóteses apresentadas até o momento, cabe ainda destacar, mesmo que sucintamente, uma última abordagem teórica sobre a relação entre a palavra e a imagem, entre texto poético e a ilustração. O objetivo é o de pensar melhor nosso objeto não apenas a partir da perspectiva de suas linguagens poética e fotográfica conforme exaustivamente sugerido, mas também de analisá-lo sob a ótica de algumas de suas materializações editoriais, uma vez que o livro é o suporte no qual se tornou possível o encontro entre essas instâncias imagéticas distintas. Luís Hellmeister de Camargo, ilustrador de livros infantis e pesquisador, em estudo sobre a relação entre poemas e ilustrações de algumas edições do livro Ou isto ou aquilo, de autoria da poeta Cecília Meireles, trouxe à tona algumas reflexões interessantes sobre o tema. Em sua dissertação, Camargo reflete sobre as implicações decorrentes quando ilustração e texto poético coabitam o mesmo espaço, isto é, o conjunto de páginas desse objeto chamado livro. Para Camargo, “a ilustração estabelece com o texto uma relação semântica. Nos casos ideais, uma relação de coerência, aqui denominada coerência intersemiótica pelo fato de ocorrer entre dois códigos diferentes, o visual e o verbal” (CAMARGO, 1998, p. 74, grifos do autor). O ilustrador e pesquisador continua seu argumento propondo a ideia de que “ao contrário, porém, do código verbal, em que a coerência é um fator de constituição da textualidade [...] na relação entre texto e ilustração, a coerência intersemiótica pode assumir as modalidades de convergência, desvio e contradição, ou seja, coerência propriamente dita, incoerência localizada e incoerência, respectivamente” (CAMARGO, 1998, p. 74, grifos do autor). Pode ser depreendido das considerações do pesquisador que, em situações consideradas ideais, a imagem convergiria em direção ao texto e vice-versa, estabelecendo assim uma coerência que preferimos entender como uma espécie de equivalência entre ilustração e texto. Ademais, Camargo também destaca que há diversos graus de coerência entre tais elementos. Tal fato, segundo entendemos, pode possibilitar uma análise um pouco mais acurada do nosso objeto. A existência ou não de tal convergência, especificamente a relativa ao poema e à fotografia, além de suas gradações no sentido cunhado por Camargo, também serão averiguadas no capítulo 4.

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O pretendido neste trabalho até o presente momento foi apresentar a linha dorsal do arcabouço teórico a ser utilizado para a análise de nosso objeto, o livro de poemas e fotografias Paranoia, de Roberto Piva e Wesley Duke Lee. Conforme já pontuado, além dos conceitos de imagem poética e imagem fotográfica, apresentados como base necessária para empreendermos nossa pesquisa, conceitos auxiliares como os de analogia, metáfora e montagem, dentre outros, serão evocados em seu devido tempo. A intenção é a de arrematar melhor a análise de nosso corpus. Entrevemos tanto nos poemas de Piva quanto nas imagens fotográficas de Duke Lee a existência de uma relevante articulação imagética. Articulação essa que, a despeito das particularidades das linguagens ou mídias pelas quais a imagem se manifesta no corpo do livro, apresenta-se como um modelo de constructo estético. Sendo assim, nos valeremos das teorias apresentadas para compor da melhor maneira possível essa lente que julgamos necessária para vislumbrar um pouco mais claramente uma poética cuja força reside, segundo entendemos, na multiplicidade do imagético.

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CAPÍTULO 4: A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS EM PARANOIA “[...] daqui em diante não há mais realidade, apenas imagens?” Jacques Rancière

De acordo com o apresentado até o momento, entendemos haver no livro Paranoia uma presença acentuada da imagem, esse elemento que, segundo entrevisto nos primeiros capítulos desta dissertação, está inserido de forma praticamente indelével no imaginário cultural. A imagem, que ampliou suas vertentes e se consolidou definitivamente como matéria-prima de uma parte expressiva dos artistas a partir do advento do Modernismo europeu, apresenta-se materializada nas páginas de nosso objeto sob duas perspectivas: a primeira delas está baseada nas imagens poéticas que, logo veremos, podem ser apreendidas nos versos; a segunda perspectiva se ancora na materialidade histórica e artística das imagens fotográficas. Em nosso estudo, objetivamos privilegiar tanto a investigação do texto poético quanto a análise das fotografias. Entretanto, para deixarmos mais organizada a análise a ser aplicada ao corpus, dividiremos este momento da pesquisa em três partes. Na primeira parte deste quarto capítulo, o foco será dirigido exclusivamente aos poemas de Roberto Piva. Na segunda parte, a atenção será direcionada apenas para as imagens fotográficas de Wesley Duke Lee. Na terceira e última seção, partiremos para uma comparação entre poemas e fotografias com vistas a tecer reflexões sobre as semelhanças e as diferenças por ventura existentes entre tais categorias de imagens investigadas e que constituem a obra Paranoia como um todo.

4.1 Das imagens poéticas “As imagens poéticas têm a sua própria lógica [...].” Octavio Paz

Conforme apresentado no capítulo 2, a imagem e a palavra, elementos que ilustram e explicam em grande medida o próprio ser humano e o imaginário cultural no qual esse último está inserido, desde os primeiros registros, têm sido alvo de variados experimentos e perquirições, tanto do ponto de vista temático quanto da perspectiva de construção de linguagem. Nesse sentido, acreditamos que uma das categorias de imagem deslindada no

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terceiro capítulo, a imagem poética, apresenta-se como possível estratégia de construção textual utilizada por Piva no livro Paranoia. Para comprovarmos se tal hipótese se sustenta de maneira plausível, mapearemos, em alguns dos poemas dessa obra, a presença do conceito de imagem poética, já devidamente definido no subcapítulo 2.4 (ver p. 76), a partir dos pontos de vista temático e estratégico, aspectos fundamentais à construção e geração de sentido, relativos não somente ao nosso objeto de estudo, mas a qualquer outra expressão artística.

4.1.1 Paranoia como tema

Para iniciarmos esta análise da obra Paranoia, partiremos exatamente do título deste nosso objeto, isto é, o vocábulo “paranoia”. Acreditamos que a natureza sintética desse elemento paratextual possa nos proporcionar uma entrada rápida, embora não menos eficiente, relativa ao tema. Nunca é demais ressaltar que o recorte investigado tomará a imagem poética, em que pese suas variantes e particularidades já comentadas, como alvo principal em nossa alça de mira. De acordo com o Dicionário Houaiss (2009), a palavra paranoia tem origens gregas – παράνοια – e latinas – paranoea. Tal vocábulo foi associado basicamente ao “turvamento da razão, loucura” (HOUAISS, 2009). Ainda segundo o mesmo verbete, o termo paranoia, a partir do século XIX, foi “introduzido na psiquiatria para designar os problemas psíquicos que tomam a forma de um delírio sistematizado. A paranoia engloba, sobretudo, as formas crônicas de delírios de relação, ciúmes e perseguição e a chamada esquizofrenia paranoide” (HOUAISS, 2009). Nessa primeira perspectiva, podemos associar esse vocábulo – que encerra ideias de “loucura”, “turvamento da razão” e “delírio sistematizado” –, à própria condição de “a louca da casa” (ver capítulo 2, p. 45) imputada à imagem e às suas manifestações estéticas dentro do imaginário cultural. Assim como a fotografia e a imagem poética, categorias de imagem que se relacionam sob os domínios da aesthésis ou “modo estético” (AUMONT, 1993, p. 80), psicologia, psiquiatria e psicanálise ganharam contornos expressivos exatamente no mesmo período em que essas manifestações imagéticas afloraram. Além disso, a alcunha de “a louca da casa” supracitada estabelece uma ligação metafórica com o termo paranoia uma vez que, em ambas as expressões, entrevê-se um caráter de interdição social por conta da loucura e/ou delírio, ocasionando a distorção do que habitualmente se entende por real.

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Lucia Maria de Lima Mello, em dissertação sobre os conceitos de “paranoia”, “psicose” e “psicose ordinária” – todos sob a perspectiva da psicologia – delimita as origens desse primeiro termo na cultura ocidental exatamente a partir do século XIX conforme anunciado. Segundo Mello: R. Von Krafft-Ebing, em 1879, define a paranoia como uma síndrome de delírios crônicos sistematizados, na qual as representações apresentam coerência interna, diferenciada das formas agudas. Em 1899 - essa data é variável segundo as edições de seu Tratado de psiquiatria - Emil Kraepelin propõe uma delimitação precisa do termo paranoia, separando-a definitivamente das formas agudas, dentre as quais era confundida com manifestações diversas da esquizofrenia. (MELLO, 2006, p. 18)

Ainda na tentativa de esclarecer um pouco mais as origens do uso da palavra paranoia na psicologia e áreas correlatas, a pesquisadora, continuando a se valer das considerações de um precursor do campo – Emil Kraepelin – circunscreve o termo a um: [...] grupo de casos segundo os quais se desenvolve, precoce e progressivamente, um sistema delirante inicialmente característico, permanente e inquebrantável, mas com total conservação das faculdades mentais, e da ordem dos pensamentos da vontade e da ação. (MELLO, 2006, p. 60)

Destaca-se nas colocações supracitadas a frequente associação das manifestações paranoicas ao delírio, ou seja, a um estado de distorção do que é interpretado como real. Ademais, chama a atenção em relação à paranoia, tomada como manifestação ou sintoma de estados patológicos, o fato de tal fenômeno se apresentar de maneira sistematizada. Essa marca de racionalidade em um fenômeno comumente associado às instâncias do subconsciente foi decisiva na opção pela apropriação de tal conceito por um nome significativo das vanguardas conforme veremos logo adiante. Lucia Maria de Mello, ainda em sua dissertação, salienta que após as investigações iniciais conduzidas por Kraepelin e seguidores, tal conceito foi alvo das inquirições de dois nomes basilares da psicanálise moderna: Sigmund Freud e Jacques Lacan. Segundo Mello, a manifestação paranoide ocupou espaço bastante significativo nos estudos psicanalíticos freudianos. De acordo com a pesquisadora: O primeiro registro da paranoia em Freud (1977) surge no Rascunho H, de 1895, no qual a paranoia é descrita por Freud como um modo patológico de

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defesa do aparelho psíquico, diante de representações inconciliáveis com o eu e que são projetadas para o mundo exterior. Esse modo patológico de defesa foi encontrado por Freud também na histeria, na neurose obsessiva e na confusão alucinatória. No Rascunho K (1977), de 1896, examina o sintoma primário que é formado pela desconfiança. O elemento básico é o mecanismo da projeção, mas na paranoia a repressão se faz após um pensamento complexo e consciente que implica a recusa da crença. (MELLO, 2006, pp. 26-27)

Salientamos que não é objetivo desta pesquisa investigar a poética de Piva e Duke Lee partindo de uma perspectiva estritamente clínica ou psicanalítica, o que não impede necessariamente que algum pesquisador devidamente qualificado, em momento oportuno, o faça. A própria natureza dos tipos de imagens investigadas neste trabalho – a poética e a fotográfica –, que por vários momentos tiveram subsídios extraídos das zonas do inconsciente e do onírico validaria uma abordagem de maior fôlego desse aspecto na obra piviana. Entretanto, sendo a presente pesquisa uma investigação sobre as linguagens poética e fotográfica, linguagens que tangenciam essa zona do inconsciente, vamos nos ater apenas ao sentido mais geral do vocábulo como uma chave de leitura para as imagens que visualizamos em nosso objeto. Retornando às reflexões de Mello do penúltimo parágrafo, chama a atenção, em suas considerações sobre as pesquisas empreendidas pelo pai da psicanálise, a presença de um tensionamento. Tensionamento que, conforme entrevemos, advém do embate entre o “eu” e o “mundo exterior”, relação que se evidencia inerente ao fenômeno paranoico cuja manifestação funcionaria então como um mecanismo de defesa do sujeito perante o mundo. Nunca é demais lembrar que é exatamente o tensionamento causado pela aproximação entre instâncias ou elementos distintos que propicia o aparecimento da imagem poética. Se tais elementos – o “eu” e o mundo – forem tomados como análogos às instâncias ou realidades distintas, próprias das imagens poéticas, a escolha da palavra paranoia, segundo tal linha de raciocínio, poderia emprestar ao corpo de poemas e fotografias do livro aqui em estudo algo dessa carga semântica proveniente dos apontamentos psicanalíticos. O título adotado pelo autor da obra, nesse sentido, seria um indício ou mesmo uma boa síntese da ideia de que, no livro Paranoia, tanto a imagem poética quanto a imagem fotográfica, de forma análoga à manifestação paranoica sistematizada pela psicanálise, representariam uma espécie de insurreição do “eu”, sujeito lírico piviano, ante o mundo, no caso, a cidade de São Paulo.

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Para Jacques Lacan, citado anteriorme, o termo paranoia era aparentemente problemático porque encerrava uma “significação mais vasta e pior definida” (LACAN apud MELLO, 2006, p. 35) e que, por conta disso, deveria ser usado com critério na perspectiva clínica. De acordo com o psicanalista francês, a “paranoia seria representativa de uma das manifestações da psicose” (LACAN apud MELLO, 2006, p. 35). Nessas palavras, Lacan propõe a ideia de que a paranoia, em convergência ao pesquisado por Freud e outros precursores, seria uma consequência de estados psicóticos nos quais são confundidas noções de real e imaginário. Ainda em seu estudo, a pesquisadora Lúcia Maria de Mello também diferencia a paranoia de outras patologias da mente, arrematando o que foi comentado sobre as relações entre o “eu” e o mundo. Valendo-se da taxonomia lacaniana para embasar sua argumentação, de acordo com a autora, “[...] na paranoia, diferente da esquizofrenia, há uma relação de alienação imaginária do eu” (MELLO, 2006, p. 35). Ainda segundo as proposições de Lacan evocadas pela estudiosa “tomar o imaginário pelo real é o que caracteriza a paranoia” (LACAN apud MELLO, 2006, p. 35). Ora, segundo tudo o que foi levantado nos dois capítulos anteriores, essa aparente e até mesmo insistente não distinção entre real e imaginário pode ser apreendida no livro Paranoia não somente como uma práxis da insurgência ante o real, mas também como uma espécie de estética da alucinação, cuja materialização passa inequivocamente pela imagem. Conforme já explicitado, foi ao longo dos últimos séculos que a imagem, em suas variadas manifestações artísticas, trouxe à tona de forma significativa a expressão desse embate entre instâncias díspares como uma das marcas de nosso imaginário cultural. Nesse sentido, entrevemos que o título Paranoia também pode ser tomado como um indicativo de que nos versos há uma tensão entre instâncias e/ou elementos díspares que esboroa as fronteiras entre o real e o imaginário. É justamente esse movimento de contraposição de instâncias, muitas vezes materializado a partir do embate entre o “eu” e o mundo proporcionando consequentemente o aparecimento de um tipo de imagem com acento delirante construída por meio da palavra – poética – é que acreditamos ter sido empreendido para a construção dos poemas de Piva. Vejamos um primeiro exemplo: Paranoia em Astrakan Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci

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onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com lágrimas invulneráveis onde crianças católicas oferecem limões aos pequenos paquidermes que saem escondidos das tocas onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados estéreis e incendeiam internatos onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam a descarga sobre o mundo onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha no seu hálito onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua última janela onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte branco onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe escurecendo a página onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorroidas das beatas onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos arranhados onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas penas onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da imaginação (PIVA, 2000, pp. 27-30)

A palavra “Astrakan”30, que compõe o título do poema, nomeia uma cidade russa próxima ao Mar Cáspio. Isso seria um indicativo de que o texto trata da manifestação do fenômeno paranoico nessa metrópole da antiga União Soviética? Acreditamos que não exatamente. Uma vez que o livro Paranoia traz como espaço predominante nos versos – e fotografias – a cidade de São Paulo, a menção a uma metrópole distinta, localizada em um ponto geográfico longínquo, evidencia uma analogia que faz surgir de pronto uma confusão, uma tensão, um embate entre real e imaginário do qual surge a imagem poética. Como se estivesse sob os efeitos da paranoia, o eu lírico desse poema nega e ao mesmo tempo reconstrói o real – transforma São Paulo em Astrakan – sob um viés alucinatório, nesse caso, a partir de uma rememoração fragmentada: “Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci” (PIVA, 2000, p. 27). Vale lembrar a observação de Georges DidiHuberman sobre a multiplicidade do real, que não necessariamente negaria a lógica, mas

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Glaucia Pimentel, em sua tese sobre a poesia de Piva intitulada Ataques e utopias: espaço e corpo na obra de Roberto Piva, assinala que “Astrakan é uma cidade no Oriente, mas ela carrega uma história de luxo e morte: o uso de peles feitas de fetos de carneiros caracul. Eles são arrancados e mortos assim que nascem. A mãe pode morrer nessa violência, o que torna a pele mais cara, pois se mata a matriz”. (PIMENTEL, 2012, p. 143)

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brinca com ela, criando lugares dentro do mesmo (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 189). Nesse poema, a transformação de uma cidade real em topônimo imaginário converge em grande medida às palavras do pesquisador francês. O caráter alucinatório que se percebe nesse poema, ainda, além de ser uma possível analogia para a manifestação do fenômeno paranoico, também foi associado à construção da própria noção de imagem em nossa cultura. Sendo assim, vale relembrarmos as considerações de Martine Joly apresentadas no segundo capítulo desta dissertação, que apontam ser a “imagem mental” – a partir da qual acreditamos também surgir a imagem poética – um constructo que, muitas vezes, parece ser elaborado a partir de premissas alucinatórias (JOLY, 2012, p. 19). Essa cidade fruto da alucinação, “Astrakan-São Paulo”, seguindo a linha de raciocínio até o momento apresentada, desvela-se, aparentemente, a partir de imagens mentais – e poéticas, por conseguinte – nas quais é possível perceber a visão alucinada do eu lírico. Olhar delirante esse que, conforme já visto, também surge do estranhamento, da contradição decorrente de uma sobreposição de elementos e/ou realidades que, apesar de serem díspares, encerram uma latência comum que se apresenta como o cerne da metáfora e da própria analogia, duas operações que possibilitam o aparecimento da imagem poética. Em versos que prenunciam “um anjo de fogo” cuja missão aparente é a de iluminar “cemitérios em festa” (PIVA, 2000, p. 29), percebe-se a ideia de oposição ou mesmo de deslocamento a partir da figura angelical que, neste contexto, não faz o que normalmente se esperaria – guardar e velar os mortos em seus túmulos –, mas “ilumina” esse mesmo local em plena comemoração, como numa espécie de profanação ou uma desauratização desse espaço, entendido no sentido benjaminiano mencionado no capítulo anterior. A cena poética criada por tal jogo de elementos, nesse sentido, pode ser entendida como análoga às visões despertadas pelo estado paranoico no qual o “eu” confunde as noções de real criando todo um novo mundo imaginário. A partir dessa temática paranoica, a imagem poética continua a ganhar contornos cada vez mais nítidos na estrofe seguinte, “onde o sono de verão” toma o sujeito lírico “por louco” fazendo com que o mesmo decapite o “Outono de sua última janela” (PIVA, 2000, p. 29). Real e imaginário, uma vez mais, con/fundem-se ante a mirada delirante do eu lírico piviano sob a qual as estações do ano, marcas indeléveis do transcorrer do tempo, ganham vida e morte por meio da estratégia da personificação. Novamente, instâncias distintas, o homem e o

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tempo, são contrapostas à maneira analógica para a construção dessa variante de imagem aqui investigada. Ao longo do poema, o eu lírico desenovela uma série de lembranças regidas pela relação nada pacífica entre seus elementos constituintes. Em “Paranoia em Astrakan”, uma espécie de revolta apresenta-se de forma marcante, por exemplo, nas figuras dos “adolescentes maravilhosos” que “fecham seus cérebros para os telhados estéreis e incendeiam internatos” (PIVA, 2000, p. 27) ou nas “borboletas de zinco” que “devoram as góticas hemorroidas das beatas” (PIVA, 2000, p. 30). No primeiro dos versos citados, a imagem dos “adolescentes”, imagem praticamente colada à imagem da escola no imaginário ocidental, rebela-se contra a ordem estabelecida pelo espaço escolar, “fechando” seus “cérebros” a ele, isto é, recusando todo um conjunto de regras endossado por instituições dessa natureza. E tal recusa é radical, pois não permite sequer que os “internatos” – espaço onde tais ideologias são criadas e impostas – fiquem de pé, acabando “incendiados” na trama do poema, destruídos física e simbolicamente. Entrevêse nessa imagem a combinação de “ícones puros” com sua “incandescência mental” junto às “cintilações conotativas da metáfora” própria dos “hipoícones” pierceanos (2012, p. 65) apontadas por Santaella e Nöth. No segundo verso, a imagem das “borboletas de zinco”, que por si só já traz uma oposição flagrante entre a delicadeza das primeiras e a rigidez metálica do segundo elemento, contrapõe-se à imagem das “beatas” que, provavelmente por passarem tempo demais nos bancos de igreja tecendo novenas e orações segundo a imaginação do poeta, desenvolveram “hemorroidas” de plasticidade análoga ao lugar que mais frequentam. Percebe-se, mais uma vez, um flagrante esquema de oposições entre o sujeito lírico e o espaço, entre o “eu” e o “mundo”, oposições que deságuam sob a forma de uma torrente de imagens poéticas perpassadas por um tom cáustico e delirante. O último verso do poema ratifica bem essa tensão existente entre real e imaginário, captada e reformulada na trama poética como se a partir do olhar de um paranoico. Para esse sujeito lírico, construído pelo poeta Piva, a urbe é o lugar “onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da/ imaginação” (PIVA, 2000, p. 30). O elemento “cabeça”, normalmente associado à lógica e à racionalidade, no verso em questão, surge em posição de embate, “digerindo”, isto é, se alimentando e processando os “aquários desordenados da imaginação” (PIVA, 2000, p. 30).

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A relação entre “cabeça” e “imaginação”, a princípio, apresenta-se de forma antitética no poema uma vez que a ação da primeira objetiva ordenar a segunda. Entretanto, assim como a analogia, a metáfora, a metonímia, e, sobretudo o elemento que mais nos interessa – a imagem poética –, essa mesma relação também encerra semelhanças latentes entre seus elementos constituintes, uma vez que a imaginação é suscitada pelo que se vê por meio dos olhos, órgãos que estão localizados exatamente na cabeça. Citada no segundo capítulo (p. 60), a proposição de Roman Jakobson (2007) de que, na poesia, metáfora e metonímia encerrariam em maior ou menor grau elementos uma da outra, pode ser entrevista como algo característico a essa imagem poética uma vez que “cabeça” e “imaginação” partilham relações metafóricas e metonímicas. É justamente esse movimento de aproximação tensa entre o racional e o ilógico, entre o real e o imaginário, entre o sujeito e o mundo, demonstrado no exemplo analisado é que propicia, segundo entendemos, o surgimento de um exemplo substancioso da imagem poética nas páginas da obra Paranoia. Nesse sentido, uma vez mais evocaremos a definição desse conceito cunhado pelo poeta Pierre Reverdy no intuito de resumir e arrematar esta nossa análise. Conforme vimos na segunda parte desta dissertação, para o surrealista francês, esse tipo de imagem deveria nascer não da comparação, mas da “aproximação de duas realidades mais ou menos remotas” (REVERDY apud BRETON, 1985, p. 52). Sob tal prisma e de acordo com o analisado, podemos concluir que essa “aproximação” entre “realidades remotas”, esse movimento prenhe de tensão que coloca em perspectiva análoga instâncias distintas, é o que se vê em “Paranoia em Astrakan”. E o que é visto nos versos desse poema pode ser visto melhor, de maneira mais pujante, quando apreendido a partir de suas imagens poéticas. Em suma, acreditamos que no poema “Paranoia em Astrakan”, seu título, assim como o do livro, anuncia nas imagens poéticas a representação de um real reconstruído porque perpassado pelo alucinatório a partir dos olhos de um eu lírico em estado paranoico. Segundo o próprio Piva em entrevista na qual comenta a gênese dos poemas de seu livro de estreia, “o paranoico se fixa num detalhe e constrói um mundo alucinatório, imaginário, a partir daquele detalhe” (PIVA apud COHN, 2009, p. 126). No exemplo apresentado, o “detalhe” é a lembrança de um topônimo imaginário, uma “linda cidade cujo nome” (PIVA, 2000, p. 27) o sujeito lírico esqueceu.

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Vimos no poema “Paranoia em Astrakan” a manifestação estetizada de uma patologia que, nas mãos de Piva, foi transformada em tema e, sobretudo, em imagens poéticas. Vale ressaltar que esse tema, além de nomear o livro e um dos poemas de Paranoia conforme apresentado, também pode ser percebido, de maneira fragmentada ou multifacetada, em outros versos ao longo da obra. No poema “Visão 1961”, por exemplo, um dos sintomas mais característicos da paranoia, a alucinação, continua evidenciando a mesma temática: “minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de matéria/ plástica eriçando o pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes/ de lábios apodrecidos” (PIVA, 2000, p. 8). Claudio Willer destaca esse traço como algo característico aos poemas pivianos: “Designado por Piva em diversas ocasiões como visão alucinatória de São Paulo, Paranoia expressa a gama de relações de afinidade e antagonismo entre o “eu” e o mundo, o poeta e a metrópole” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 153). Na estrofe em questão, as “alucinações”, materialização distorcida da “imagem mental” tanto no sentido proposto por Joly (2012, p. 19) quanto no exposto por Santaella e Nöth (2012, p. 15) e já apresentados no segundo capítulo pendem para “fora da alma” do sujeito lírico. Sob essa perspectiva, percebe-se o deslocamento de elementos a princípio internos – as alucinações que pendem para fora da “alma” do eu lírico – em direção a uma dimensão externa, representada pelas “ruas iluminadas” e “arrabaldes de lábios apodrecidos”. Tal recurso pode ser tomado como uma metáfora da própria paranoia uma vez que a mesma apresenta como marca não apenas o embate entre o “eu” e o mundo, mas também a confusão entre o real e o imaginário. E tal confusão, no poema, aparentemente se dá exatamente por conta desse deslocamento feito pelo autor. Nunca é demais ressaltar que a operação metafórica alimenta-se da tensão advinda entre a aproximação de elementos a princípio díspares e que, uma vez deslocados e reorganizados em novo contexto, acabam gerando consequentemente a imagem poética. Ainda sob a perspectiva temática, a paranoia continua a ser elemento apreensível em outros poemas. Tomemos, como outro exemplo, um trecho do “Poema submerso”: Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror, quando os cílios do anjo verde enrugavam as chaminés da rua onde eu caminhava E via tuas meninas destruídas como rãs por uma centena de pássaros fortemente de passagem

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[...] Eu caminhava pelas aleias olhando com alucinada ternura as meninas na grande farra dos canteiros de insetos baratinados (PIVA, 2000, pp. 22-25)

Nesses versos, o sujeito lírico piviano se expressa por meio de uma espécie de monólogo memorialístico, mas não menos delirante, estabelecido com o personagem Maldoror31, da obra Os cantos de Maldoror, escrita no final do século XIX pelo uruguaio Isidore Ducasse, mais conhecido pelo pseudônimo Conde de Lautrèamont. O recurso do deslocamento, neste caso a incorporação ao poema de um personagem pertencente a uma obra de autoria distinta, evidencia a paranoia como temática já que uma das propriedades da alucinação paranoide é a da “aparente percepção de objeto externo não presente no momento” (BUENO, 2015, p. 49). O eu lírico piviano, ao rememorar junto à figura de Maldoror uma de suas caminhadas empreendidas com “alucinada ternura” pelo ambiente citadino, reconstrói sua realidade a partir de detalhes, de estilhaços, de fragmentos. Lembramos uma vez mais que a imagem poética, que já demonstramos estar materializada nos versos analisados e acreditamos estar presente em outros poemas do livro, é fruto de operações analógicas e/ou metafóricas. Operações que permitem o surgimento de outras formas de geração de sentido advindas do deslocamento ou da justaposição de elementos díspares, mas com latências em comum. Após esta primeira análise de nosso corpus, vimos que o conceito de paranoia, a despeito de ser uma noção oriunda da psicanálise, foi livre e amplamente utilizado como tema artístico e definiu em grande medida a feitura das imagens poéticas que, plasmadas a partir dos versos de Piva, constituem os poemas do livro Paranoia. Entretanto, surge outra pergunta que também julgamos ser pertinente, neste momento, a esta pesquisa. A ideia de paranoia poderia ser apreendida de uma forma diversa da que foi até o momento apresentada? Sendo mais específicos em nossa questão: ao conceito de paranoia caberia outra função além a de apenas tematizar a obra aqui em estudo?

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Maldoror é um dos principais personagens do livro Os cantos de Maldoror, escrito pelo Conde de Lautrèamont e uma das obras que influenciaram o Surrealismo e o próprio Roberto Piva.

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4.1.2 Paranoia como tática

Acreditamos que a pergunta levantada no fim da última seção pode ser respondida afirmativamente. A paranoia, conceito surgido para definir manifestações de determinadas patologias mentais de acordo com o que foi demonstrado, também serviu de inspiração para a criação de uma metodologia artística que, segundo tentaremos demonstrar, foi aplicada, em maior ou menor grau, à construção das imagens poéticas e, de certa maneira, também às imagens fotográficas no livro Paranoia. Para comprovarmos tal hipótese partiremos de alguns relatos fornecidos por um dos autores do objeto aqui em estudo. Em um desses depoimentos, Roberto Piva comenta sobre as táticas das quais teria se valido para a escrita dos poemas: Paranoia é um imenso pesadelo. Transformei São Paulo em uma visão de alucinações. Apliquei o método paranoico-crítico criado por Salvador Dali: o paranoico se detém num detalhe e transforma aquilo numa explosão de cores, de temas, de poesia. Fiz isso, mas apenas seguindo a intuição e a inspiração. (PIVA apud COHN, 2009, p. 120)

Fica um pouco mais confortável afirmar que o conceito de paranoia, ainda que “seguindo a intuição e a inspiração” (PIVA apud COHN, 2009, p. 120), foi utilizado pelo poeta na construção de seus versos não exatamente com vistas a uma abordagem psicanalítica ou mesmo para exercer uma crítica a esse ramo do conhecimento por meio da tematização de tal patologia. A paranoia piviana, embora apresente um nítido fundo de inspiração nos estados de alucinação, delírio e loucura associados aos desvios psíquicos, pode fazer sentido quando tomamos esse conceito não apenas como uma doença sintomática da sociedade moderna – uma atualização do spleen de Baudelaire? – mas como estratégia de criação poética. Todavia, qual seria exatamente esse método “paranoico-crítico” do qual o poeta confessamente se apropriou? Maurice Nadeau, em suas investigações sobre o movimento surrealista, evoca os estudos dos já citados Freud e Lacan para apresentar uma descrição mais geral da ideia de paranoia, conceito que foi a base para a criação da metodologia “crítico-paranoica”: Sabe-se o que é a paranoia. Consiste no sujeito que está possuído dela, num delírio da interpretação do mundo, e de seu eu ao qual dá uma importância exagerada. Mas o que distingue esta doença dos outros delírios é uma sistematização perfeita e coerente, a obtenção de um estado de onipotência que conduz, aliás, frequentemente o doente à megalomania ou ao delírio de

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perseguição. Naturalmente, tem uma multidão de formas, coerentes a partir de seu ponto de partida, e é acompanhada de alucinações, de interpretações delirantes de fenômenos reais. O paranoico goza fisicamente de uma saúde normal, não possui qualquer distúrbio orgânico, e contudo vive e age num mundo estranho. Longe de submeter-se a este mundo como a maioria das pessoas “normais”, ele o domina ao contrário, molda-o por seu desejo. (NADEAU, 2008, p. 138)

Nessa definição do pesquisador francês, chama a atenção o caráter de “alucinação” e a menção à “interpretação delirante de fenômenos reais” (NADEAU, 2008, p. 138) por meio de uma “sistematização perfeita”, todos associados à paranoia. Também se destaca na fala de Nadeau a existência de uma espécie de inconformismo já mencionado na análise anterior do poema “Paranoia em Astrakan” (ver p. 113). Inconformismo característico do sujeito paranoico que, recusando as imposições do real, “molda-o por seu desejo” (NADEAU, 2008, p. 138). Nesse sentido, o título Paranoia pode ser lido como uma espécie de síntese programática e inconformista contra o mundo; síntese vaticinada por um sujeito lírico que, conforme visto nessa primeira amostra do corpus, esgarça mais ainda as fronteiras entre real e o imaginário como forma de insubmissão. Esse inconformismo ante o real, erigido por meio da linguagem poética, afigura-se como uma das linhas de força que alimentam o método crítico-paranoico supostamente utilizado por Piva na composição dos versos integrantes de seu primeiro livro. Tal estratégia, segundo mencionado pelo poeta paulistano, foi criada por outro nome de destaque do movimento surrealista capitaneado por André Breton32, o pintor espanhol Salvador Dali. De acordo com as palavras de seu criador, a “atividade crítico-paranoica” se define como delírio da associação interpretativa, comportando uma estrutura sistemática, [...] método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação crítico-interpretativa dos fenômenos delirantes. A presença dos elementos ativos e sistemáticos próprios da paranoia garante o caráter evolutivo e produtivo à atividade crítico-paranoica (DALI, 1974, p. 19).

Depreende-se das palavras de Dali que sua proposta metodológica tomou por base uma forma de interpretar artisticamente o real como se visto pelo olhar de um “paranoico delirante”. Mas o artista fez questão de pontuar alguns aspectos de sua metodologia que 32

“Dali doou ao surrealismo um instrumento de primeira grandeza, através do método crítico-paranoico, método este que ele mostrou, desde o começo, capaz de aplicar tanto à pintura, à poesia ou ao cinema, à construção de objetos surrealistas típicos, às modas, à escultura, à história da arte e até, em caso de necessidade, a qualquer tipo exegético” (BRETON apud DALI, 1974, p. 5).

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serviriam para diferir os produtos oriundos de tal abordagem de uma simples representação paranoide. Longe de constituir um elemento passivo, o delírio paranoico constitui já, por si próprio, uma forma de interpretação. [...] Toda a preocupação crítica dos surrealistas está precisamente ativa em querer fazer valer o sonho, fora de qualquer paradoxo fácil, assim como todos os estados passivos e automáticos do próprio plano da ‘ação’, fazendo-os intervir, em particular, ‘interpretativamente’ na realidade dentro da vida. (DALI, 1974, p. 32)

Vale salientar ainda que Dali, por meio dessa proposta de abordagem crítica e criativa, baseou-se não apenas nas visões imagéticas fornecidas pelos “delírios interpretativos”, mas também nos pressupostos científicos e psicanalíticos que Jacques Lacan, supracitado, publicou em sua tese33. O pintor espanhol ofereceu, ademais, um importante contraponto à ideia de um fazer artístico surrealista que inicialmente se orientava principalmente pelo automatismo, pelo inconsciente e pelo sonho, elementos ante os quais o sujeito normalmente apresenta uma atitude de passividade conforme observado. Maurice Nadeau comenta essa problematização suscitada pelo artista surrealista: Digamos apenas que, para ele, o automatismo e o próprio sonho são estados passivos, e tanto mais quanto mais são isolados do mundo exterior onde deveriam foliar em plena liberdade; tornam-se refúgios, “evasões idealistas”, enquanto a paranoia é atividade sistematizada que visa a uma intrusão escandalosa, no mundo, dos desejos do homem, de todos os homens. (NADEAU, 2008, p. 140)

Depreende-se das palavras do pesquisador francês que, para Dali, mesmo as forças do inconsciente deveriam ser abordadas de uma maneira sistemática. Em consequência, haveria uma maximização dos efeitos de tal elemento no processo e no produto final da criação artística. Entretanto, tal preocupação com o rigor metodológico defendido pelo artista não se converteu exatamente no descolamento total da ideia do irracional como subsídio criativo. Mesmo que racional, a estratégia não exclui os subsídios fornecidos pelas manifestações irracionais. Na esteira desse raciocínio estão situadas as observações de Nadeau, para quem a “paranoia-crítica” daliniana se apresenta como “método espontâneo de conhecimento

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A tese em questão foi intitulada De la psychose paranoiaque dans ses rapports avec personalité (Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade).

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irracional ‘baseado na objetivação crítica e sistemática das associações e interpretações delirantes’” (NADEAU, 2008, p. 139). Dali, que discorreu ampla e apaixonadamente sobre esse assunto em um conjunto de ensaios que formam o livro Sim ou a paranoia, editado pela primeira vez no ano de 1971, leva adiante seus esclarecimentos sobre a questão metodológica relativa à “atividade críticoparanoica”: A presença desses elementos ativos e sistemáticos não pressupõe a ideia do pensar dirigido voluntariamente, nem de um compromisso intelectual qualquer porque, como se sabe, na paranoia a estrutura ativa e sistemática é consubstancial ao fenômeno delirante em si – todo fenômeno delirante de caráter paranoico, mesmo instantâneo e repentino, comporta já “no seu todo” a estrutura sistemática e nada faz senão se objetivar a posteriori pela intervenção da crítica. A atividade crítica intervém unicamente como líquido revelador de imagens, associações, coerências e finezas sistemáticas, graves e preexistentes no momento em que se produz a instantaneidade delirante, e que, nesse momento, nesse grau de realidade tangível, só a atividade críticoparanoica permite devolver à luz objetiva [...] a atividade crítico-paranoica organiza e tem por objetivo, de maneira exclusivista, as possibilidades ilimitadas e desconhecidas das associações sistemáticas dos fenômenos subjetivos e objetivos que se nos apresentam sob a forma de solicitações irracionais, em favor exclusivo da ideia obcecante. A atividade críticoparanoica descobre, por esse método, ‘significados’ novos e objetivos do irracional, fazendo passar, de maneira tangível, o próprio mundo do delírio ao plano da realidade. (DALI, 1974, pp. 19-20)

A proposta de Salvador Dali, em suma, é uma metodologia, “um líquido revelador de imagens” (DALI, 1974, p. 19) já que tenciona organizar, revelar alguma coisa a partir de um determinado conjunto de regras. Esse algo a ser revelado aparentemente se refere às manifestações advindas do inconsciente, manifestações que, uma vez associadas a partir de suas afinidades latentes, poderiam ser apreendidas sob uma perspectiva plástica. Partindo das proposições do artista catalão, retomamos o questionamento levantado nos parágrafos anteriores: de que maneira Roberto Piva poderia ter utilizado nos poemas da obra Paranoia o método crítico-paranoico daliniano, fazendo consequentemente passar o “mundo do delírio” ao “plano da realidade” para trazer à tona as imagens poéticas anunciadas e impressas nas páginas de seu livro? Se considerarmos o fato de o método crítico-paranoico se basear na livre associação de elementos ou instâncias distintas – como, por exemplo, o subconsciente transladado ao real –, arriscamo-nos a dizer que essa práxis se configura na trama textual de Paranoia exatamente

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por meio das mesmas estratégias capazes de gerar a imagem poética. Recordemos que a metáfora e a analogia, dentre outros procedimentos consanguíneos, apresentam-se como estratagemas linguageiros regidos por esse movimento de correlações entre elementos ou realidades aparentemente equidistantes. Segundo Octavio Paz, esses procedimentos e o próprio poema são “manifestações da analogia” (PAZ, 2013, p. 63). Uma vez que tanto a natureza da estratégia daliniana quanto a essência das operações que geram a imagem poética baseiam-se notadamente na analogia regida pela livre associação de elementos inicialmente díspares configurando muitas vezes um esquema de oposições34, o levantamento desse último aspecto pode nos ajudar a desvelar algo dessa metodologia crítico-paranoica em nosso objeto. Lancemos mão de outro poema do livro Paranoia para nos ajudar a demonstrar e confirmar mais essa hipótese: Boletim do Mundo Mágico Meus pés sonham suspensos no Abismo minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios eu queria plantar um taco de snooker numa estrela fixa na porta do bar eu estou confuso como sempre mas as galerias do meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos colégios e carros fúnebres estão desertos pelas calçadas crescem longos delírios punhados de esqueletos são atirados no lixo eu penso nos escorpiões de ouro e estou contente os luminosos cantam nos telhados eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens mas o céu roxo é uma visão suprema minha face empalidece com o álcool eu sou uma solidão nua amarrada a um poste fios telefônicos cruzam-se no meu esôfago nos pavimentos isolados meus amigos constroem um manequim fugitivo meus olhos cegam minha mente racha-se de encontro a uma calota

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O organizador da edição da obra completa de Roberto Piva, Alcir Pécora, comentando sobre a primeira fase da poesia de Piva, destaca que “alguns aspectos da poesia explosiva do juveníssimo autor [...] diz respeito ao sistema de oposições manifestamente esquemático proposto nos poemas” (PÉCORA apud PIVA, 2005, p. 10). Segundo Pécora, “tal esquematismo não deve de modo algum ser atenuado, ou sequer contextualmente justificado [...]. A escolha sem nuances é condição desta escrita libertina, no sentido forte do termo: aquele no qual está em jogo assinalar interditos e investir decididamente contra eles, num gesto cujo valor fundamental é o da transgressão, e nenhum outro.” (PÉCORA apud PIVA, 2005, p. 11)

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minha alma desconjuntada passa rodando (PIVA, 2000, pp. 71-75)

No poema “Boletim do mundo mágico”, tal esquema de oposições destacado e que, segundo entendemos, é a essência da analogia, da metáfora, da imagem poética e até mesmo do método crítico-paranoico, dá a tônica dos versos. No primeiro deles, os “pés” do eu lírico “sonham suspensos no Abismo” (PIVA, 2000, p. 72). Há uma nítida tensão entre materialidades distintas, geradora da imagem poética nos melhores moldes vanguardistas, sugerida pela concretude dos “pés” postos em contraponto à instância etérea característica dos “sonhos” ou mesmo do “abismo”, termos que frequentemente são tomados como metáfora do subconsciente. No verso subsequente, no qual as “cicatrizes” do sujeito lírico se “rasgam na pança cristalina” (PIVA, 2000, p. 72), percebe-se o esquema de oposições construído a partir de fragmentos, de detalhes, tal qual preconizado pelo modelo paranoico-crítico daliniano. Os detalhes em questão, as “cicatrizes” – consequências da regeneração de vários tipos de trauma, inclusive aqueles que dilaceram o tecido biológico –, nesse poema de Roberto Piva, surgem de maneira deslocada, isto é, não como resultado de uma regeneração, mas como o início de uma nova ferida, fruto de um movimento tenso a partir do qual, mais uma vez, irrompe a imagem poética. O eu lírico continua a emitir seu relatório fantástico, seu “boletim” de um “mundo mágico” conforme anunciado pelo título do poema, “órfão” – Orfeu descendo aos infernos? – de “olhos vidrados” que percebe haver nos “subúrbios” um “fluxo de flores doentes” (PIVA, 2000, p. 72). O esquema de oposições nesse verso se destaca por conta da tensão semântica oriunda da adjetivação das “flores” como elementos “doentes”. No imaginário cultural, predominantemente, as flores simbolizam a primavera, estação do ano na qual ocorre a renovação da vida. Entretanto, a adjetivação pouco usual desse detalhe na trama poética suscita um efeito oposto da falta de esperança ou, ainda, de morte. O embate entre o “eu” e o mundo, oposição característica das manifestações paranoides inspiradoras da paranoia-crítica segundo apresentado, pode ser entrevisto em outro verso deste mesmo poema no qual o sujeito lírico, em sua delirante caminhada, intenta “plantar um taco de snooker numa estrela fixa” (PIVA, 2000, p. 72). O movimento de “plantar”, no texto, pode ser lido como uma metáfora da ação de golpear algo. Sendo assim, a

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intenção do eu lírico seria a de dar uma tacada numa estrela fixa como se ela fosse uma bola na mesa de snooker, nesse caso, o céu noturno. Isso se relaciona a mais uma das proposições de Octavio Paz para quem a poesia, surgida da analogia, “transforma o universo em poema” (PAZ, 2013, p. 63). E foi justamente essa analogia entre poesia e universo que o poeta levou a termo, fazendo emergir, consequentemente, outra de suas imagens poéticas. Ainda pensando sob a perspectiva das relações analógicas, tal embate entre realidades distintas, embate gerador da imagem poética e marca da metodologia daliniana, também pode ser apreendido mais adiante no poema, no qual “fios telefônicos cruzam-se” no “esôfago” do sujeito lírico (PIVA, 2000, 75). Nesse verso, há uma evidente oposição entre dois elementos: os “fios telegráficos” e o “esôfago”. Ao primeiro elemento normalmente cabe a função de transmitir informações por meio de impulsos elétricos; ao segundo, órgão que liga a boca ao estômago, passando internamente pelo pescoço e plexo solar, é atribuído o papel de ajudar na alimentação e na propagação da voz, tornando audível a palavra. A justaposição desses dois fragmentos faz surgir uma imagem poética que pode ser lida como uma crítica à relação entre o “eu” e o mundo, crítica metaforizada a partir do sufocamento da voz do sujeito lírico, do estrangulamento da sua subjetividade, ações exercidas por dispositivos35 e discursos tecnológicos que impõem de forma massificadora o que se entende por real. A velha dicotomia entre real e imaginário, condição de crise permanente que, segundo entendemos, possibilita o aparecimento da imagem poética, também é entrevista ao final desse mesmo poema: “nos pavimentos isolados”, os “amigos” do eu lírico piviano “constroem um manequim fugitivo” (PIVA, 2000, p. 75). Mais uma vez o efeito de alucinação, que muitas vezes é característico das variantes de imagem aqui investigadas, é levado a cabo por meio da oposição entre o “eu” e o mundo. O “manequim”, objeto sem vida construído no espaço isolado dos pavimentos e desprovido de qualquer subjetividade, paradoxalmente, é o único dos elementos da cena poética que assinala alguma possibilidade de abertura ou fuga do “eu” em relação ao mundo exterior por conta de sua adjetivação como “fugitivo”.

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O filósofo Giorgio Agamben, baseado em Michel Foucault, definiu o termo “dispositivo” como: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., [...] também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares – e por que não – a própria linguagem”. (AGAMBEN, 2008, pp. 40-41)

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Nos versos que fecham o poema, o esquema de oposições entre o real e o imaginário, entre o “eu” e o mundo, atinge seu paroxismo. O sujeito lírico, após uma sucessão de elucubrações delirantes, fragmenta-se em “corpo”, “mente” e “alma”: “meus olhos cegam minha mente racha-se de encontro a uma calota/ minha alma desconjuntada passa rodando” (PIVA, 2000, p. 75). É o ápice do embate entre o sujeito lírico paranoico e o mundo. O primeiro, na impossibilidade de apreender e estar pacificamente no segundo, é vitimado por uma espécie de dissolução. Nessa fragmentação do sujeito lírico, apreende-se a materialização da imagem poética como uma leitura estetizante do real, estetização que pode advir sob os preceitos da mirada crítico-paranoica. Os versos de “Boletim do mundo mágico”, no sentido de tudo o que foi proposto até o momento, revelam-se como uma bela síntese da aplicação do método daliniano e, consequentemente, da construção da imagem poética. Percebe-se nesse recorte tanto o movimento de aproximação entre elementos fragmentados e díspares de forma similar à apreendida na analogia e na metáfora – estratégias que permitem justamente a instauração da imagem poética – quanto uma tentativa de associação e interpretação de fenômenos subjetivos e objetivos sem abrir mão de um posicionamento crítico ante o real, ainda que norteado pelo olhar de acento delirante. Todavia, após analisarmos em nosso objeto a materialização do conceito de paranoia como temática e como estratégia, surge mais um aspecto que, acreditamos, relaciona-se intimamente aos procedimentos de construção textual/ imagéticos aqui levantados. Percebe-se nos poemas de Paranoia que o fluxo vertiginoso responsável por plasmar o discurso poético se caracteriza por um encadeamento de versos no qual a justaposição das imagens poéticas, além de ajudar a emular uma visada de contornos delirantes conforme demonstrado, lembra procedimentos muito utilizados na feitura de narrativas fílmicas. Esse recurso, que entendemos potencializar a imagem poética no corpo do poema e, em consequência, o próprio poema, aparentemente foi levado a termo como se Piva – e também Duke Lee, segundo veremos no próximo subcapítulo – efetuasse uma montagem de versos análoga à montagem de planos para uma sequência cinematográfica. Rosa Maria Martelo, no ensaio “Poesia: imagem, cinema”, pertencente ao livro O cinema da poesia (2012), destaca a imagem como matéria-prima comum à poesia e ao cinema, além das possíveis relações advindas entre tais manifestações artísticas: “Será de realçar, então, que, para a poesia moderna, como para o cinema, o foco de interesse nunca está

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em pensar a imagem, uma imagem, mas sim em potenciar o fluxo das imagens e as relações que estas mantêm entre si” (MARTELO, 2012, p. 22). Segundo o depreendido das palavras da pesquisadora portuguesa, tanto as imagens relativas à poesia quanto as relacionadas ao cinema foram construídas privilegiando não uma imagem isoladamente como na fotografia, mas sim destacando o efeito causado por tal elemento quando organizado junto a outros. Daí a importância do fluxo imagético destacado pela autora que, de acordo com o percebido, é materializável justamente a partir da montagem. Susana Dobal, em artigo que busca analisar as relações entre a poesia, a fotografia e o cinema a partir do livro Paranoia, destaca a presença desse recurso: Uma das estratégias nesse livro que aproximam a sua edição da montagem cinematográfica é a utilização de recursos para reunir imagens e palavras, unidades distintas que devem se juntar para anunciar determinados temas e assim alinhavá-las em uma só sequência – lembremos que Eisenstein referiuse à montagem como um recurso comum em outras áreas que não apenas o cinema. (DOBAL, 2011, p. 83)

Na fala de Dobal, destacamos dois pontos que são pertinentes à nossa pesquisa e que serão foco de atenção nas páginas a seguir. O primeiro se refere ao uso da montagem para “reunir imagens e palavras”. Tal perspectiva será abordada com mais profundidade no subcapítulo 4.3, no qual trataremos exatamente da relação entre as imagens poéticas e as imagens fotográficas de Paranoia. O segundo ponto a ser destacado – que tratará da montagem como estratégia de construção artística – será investigado em nosso corpus tomando algo das proposições eisensteinianas sobre esse expediente artístico. Conforme apresentado no capítulo 2 (p. 50), para o cineasta Sergei Eisenstein, o procedimento de montagem poderia ser utilizado não apenas no âmbito cinematográfico, mas também em outras manifestações artísticas, entre elas, a literatura. Para o cineasta, uma “obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentido e na mente do espectador. É isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada” (EISENSTEIN, 2002, p. 21). Nesse sentido, sugerimos que, a partir do encadeamento de versos formados pelas imagens poéticas – imagens construídas por operações de natureza analógica e metafórica, segundo demonstrado – percebem-se traços dessa estratégia de caráter universal em nosso objeto. Antes de comprovarmos essa hipótese, há de se definir melhor qual exatamente o tipo de montagem que entendemos ser apreensível nas páginas da obra Paranoia.

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De acordo com verbete escrito por Jacques Aumont e Michel Marrie no Dicionário teórico e crítico de cinema (2003) a “definição técnica da montagem é simples: trata-se de colar uns após os outros, em uma ordem determinada, fragmentos de filme, os planos, cujo comprimento foi igualmente determinado de antemão” (AUMONT; MARIE, 2003, pp. 195196). Nesse tipo de montagem, a sobreposição de fragmentos distintos – materializados em planos ou quadros – é utilizada com vistas a formar uma sequência de imagem fílmica. Essa colagem ou justaposição de fragmentos, que entendemos ser sinônimo de montagem, é capaz de gerar a imagem poética quando tomamos versos do poema como elementos análogos aos planos e quadros próprios da narrativa cinematográfica. Para ajudar a corroborar com mais essa nossa hipótese, vale destacar mais algumas observações do ensaísta Claudio Willer sobre as relações entre colagem, montagem e cinema na obra Paranoia: Imagens não são um território homogêneo. As de Paranoia variam, em cada poema, de um verso para outro. Alterna-se um registro mais descritivo e outro mais alucinatório, o mais lírico e o mais veemente. Os poemas desse livro equivalem, portanto, a colagens. [...] Têm uma sintaxe cinematográfica, que justifica tudo o que Piva já declarou sobre a importância do cinema e das histórias em quadrinhos em sua formação. (WILLER apud PIVA, 2005, p. 152)

Segundo as palavras de Willer e também de acordo com o já apresentado em certa medida nesta pesquisa, as imagens do livro Paranoia não se apresentam de forma homogênea, mas sim de maneira heterogênea, variando entre a descrição e a alucinação, entre o lirismo e um tom mais blasfematório, entre o registro escrito e a materialização fotográfica. Destaca-se também nas ponderações do ensaísta e tradutor que os versos de “sintaxe cinematográfica” (WILLER apud PIVA, 2005, p. 152) são equivalentes às “colagens” – ou montagens, conforme preferimos nomear tal operação –, uma vez que em ambos os procedimentos é patente o movimento de realocação de elementos díspares, mas com latências em comum, exatamente como ocorre na imagem poética. Vale recordar que a collage, consoante apresentado no capítulo 3 (p. 100), foi uma das técnicas que os surrealistas, especialmente Max Ernst, além de nomes expressivos do modernismo brasileiro como Jorge de Lima, lançaram mão para conceber parte significativa de suas obras. Conforme levantado no capítulo 2 (p. 63), o filósofo Theodor Adorno atribuiu à estética do Surrealismo exatamente essa “justaposição descontínua de imagens” (ADORNO

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apud CARONE, p. 102) que, sob tal prisma, teria o caráter de montagem. Sergei Eisenstein, no livro A forma do filme (1990) dedicou um capítulo inteiro à montagem. É importante ressaltar que Eisenstein não foi o criador desse modus operandi, que nasceu concomitantemente ao próprio cinema. Essa técnica, como objeto de reflexão teórica e crítica, teve como precursor o cineasta norte-americano David W. Griffith e sua “montagem paralela”, na qual a alternância entre planos de duas sequências se destina a revelar um significado latente da imagem. Por outro lado, de acordo com o cineasta e teórico soviético, os métodos de montagem poderiam ser divididos em 5 categorias: “montagem métrica”, “montagem rítmica”, “montagem tonal”, “montagem atonal” e a “montagem intelectual”. Das variantes acima elencadas, a que interessa a esta pesquisa é a “montagem intelectual”, quinta e última categorização eisensteiniana para a técnica em questão e que foi definida pelo russo como a “montagem não de sons atonais geralmente fisiológicos, mas de sons e atonalidades de um nível intelectual, isto é, conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas” (EISENSTEIN, 1990, p. 83). O “conflito” e a “justaposição”36 destacados, linhas de força alimentadoras de procedimentos geradores das imagens que, conforme já visto em nossas análises, estão fortemente baseadas na livre associação de ideias norteadas por um sistema de oposições, aproximam de forma análoga essa última categoria de montagem à imagem poética. É importante ressaltar que o objetivo dessa aproximação às teorias da montagem não é o de afirmar peremptoriamente que os poemas de nosso objeto de análise foram construídos exatamente a partir desse recurso. Diferentemente da imagem poética ou mesmo do método crítico-paranoico, cuja presença e/ ou uso de fato foram confirmados em maior ou menor grau pelo próprio Roberto Piva em diversos depoimentos, ou mesmo por alguns de seus comentadores, as variantes de montagem aqui já brevemente elencadas não serão foco de atenção, mas servirão parcialmente como referência para lançarmos mais uma perspectiva sobre as imagens na obra Paranoia. Tomemos um poema que nos permita apresentar satisfatoriamente este nosso intento:

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De acordo com Carlos Canelas em artigo sobre os fundamentos históricos e teóricos da montagem cinematográfica: “A montagem, na perspectiva de Eisenstein, é a arte de expressar e de significar, por relações de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição origina uma ideia ao expressar algo (ao produzir um sentido) que não está presente em nenhum dos dois planos separadamente”. (CANELAS, 2000, p. 10)

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Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas acende velas no meu crânio há místicos falando bobagens ao coração das viúvas e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes chupando-se como raízes Maldoror em taças de maré alta na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas definitivamente fantásticas há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo a lua não se apoia em nada eu não me apoio em nada sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas teorias simples fervem minha mente enlouquecida há bancos verdes aplicados no corpo das praças há um sino que não toca há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios reino-vertigem glorificado espectros vibrando espasmos beijos ecoando numa abóbada de reflexos torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos enlouquecidos na primeira infância os malandros jogam ioiô na porta do Abismo eu vejo Brama sentado em flor de lótus Cristo roubando a caixa dos milagres Chet Baker ganindo na vitrola eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas partidas do meu cérebro eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror disparo-me como uma tômbola a cabeça afundando-me na garganta chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha, correrias de maconha em piqueniques flutuantes vespas passeando em volta das minhas ânsias meninos abandonados nus nas esquinas angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto e o Estrondo (PIVA, 2000, pp. 33-45)

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Mais uma vez, a temática da “visão”, intimamente ligada ao próprio conceito de “imagem mental” no qual a última é “elaborada de maneira quase alucinatória” (JOLY, 2012, p. 19), configura-se como título e, consequentemente, síntese do que será apresentado ao longo do poema. Como não poderia deixar de ser, a “visão” anunciada pelo elemento paratextual é caracterizada pelos efeitos de caráter alucinatório, próprios de um sujeito lírico tomado por perturbações mentais. Entretanto, as visões paranoicas desse eu lírico aparentemente não foram construídas apenas como se espelhadas nas manifestações psicopatológicas conforme tem sido demonstrado. Desta vez, o poeta parece ter buscado inspiração também na imagética decorrente do uso de substâncias alteradoras dos estados de consciência. O subtítulo do texto, “Poema antropófago sob narcótico”, comprova por si tal hipótese. Não levaremos adiante de forma mais aprofundada a investigação de tal perspectiva por uma questão tática, mas a alusão aos efeitos alucinatórios provocados pelo uso de determinadas drogas pode ser claramente percebida em versos nos quais surgem imagens poéticas suscitadas pelas “correrias de maconha” (PIVA, 2000, p. 45) no poema anterior; pelos “porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos” (PIVA, 2000, p. 17); pela “estátua de Álvares de Azevedo” que “é devorada lentamente pela paisagem de morfina” (PIVA, 2000, p. 57), pelas “drogas” que “davam movimento demais aos olhos” (PIVA, 2000, p. 65) entre vários outros exemplos. Entendemos que o uso dos narcóticos por parte do sujeito lírico piviano converge no sentido de emular a própria paranoia uma vez que em ambas as circunstâncias se destaca, de forma voluntária ou não, o embate entre o “eu” e o mundo, a tensão entre o real e o imaginário. Voltemos ao recorte apresentado em parágrafo anterior. De acordo com a hipótese levantada, seria possível perceber nos poemas de Paranoia, guardadas as devidas idiossincrasias de cada um dos gêneros – literário e fílmico –, vestígios de uma espécie de narrativa cinematográfica com traços predominantemente delirantes? E se tal dúvida puder ser respondida de maneira afirmativa, surge outra questão intrinsecamente ligada a ela e cuja resposta também ajudaria a responder a esse primeiro questionamento. De que forma tal manifestação poderia estar sugerida ou mesmo ser comprovada no corpus em questão? A montagem, segundo já mencionado (p. 60), faz-se mediante a “seleção e organização dos planos” (LEONE; MOURÃO, 1987, p. 15). E o que seriam exatamente esses

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“planos”, elementos a serem organizados, sob a perspectiva da sétima arte? Novamente o Dicionário teórico e crítico de cinema nos dá a definição: Em um certo número de expressões, a palavra “plano” é considerada substituto aproximativo de “quadro” ou “enquadramento”. É o caso em todo o vocabulário da “escala dos planos”, ou na expressão “plano fixo”, que designa uma unidade de filme durante a qual o enquadramento permanece fixo em relação à cena filmada. (AUMONT; MARIE, 2003, p. 230)

Ora, na montagem cinematográfica há nitidamente uma organização dos planos. Tal organização é comumente empregada com o intuito de construir uma sequência de imagens que encerrem um mínimo de forma e sentido característicos a esse tipo de manifestação estética. Sendo assim, se cada uma das imagens poéticas que compõem os poemas de Paranoia for tomada como análoga aos planos que constituem uma sequência cinematográfica, essas mesmas imagens poderiam ser percebidas, no corpo do texto, como engendradas pela justaposição levada a cabo por meio da montagem com a intenção de proporcionar não exatamente um encadeamento lógico, mas sim com o objetivo de acrescer uma espécie de narratividade com tons delirantes à trama poética. Seguindo essa linha de raciocínio, no poema supracitado, “Visão de São Paulo à Noite”, por exemplo, cada um dos 46 versos poderia ser tomado como um frame, como uma unidade mínima análoga a um plano ou quadro. De Modesto Carone, estudioso da poética de Georg Trakl (ver cap. 2, p. 60) conforme já exposto, tomamos emprestadas algumas reflexões que podem nos ajudar a consolidar mais essa hipótese sobre nosso objeto: [...] as imagens isoladas do poema se comportam como as “tomadas” ou os fotogramas montados num filme, articulando planos e cenas cujo significado seria aferível pela forma em que essas unidades colaboram ou colidem umas com as outras na consciência de quem lê o poema (como ocorre na mente de quem vê o filme). É nesse momento que se pode pensar na afinidade entre a metáfora e a montagem, pois não só a primeira é, em certo sentido, uma junção de elementos incongruentes que aponta para um “terceiro termo” que deles se diferencia, como também a montagem é uma metáfora, na medida em que se apresenta como a “ideia” que salta da colisão de signos ou imagens justapostas. (CARONE, 1974, p. 15, grifos do autor.)

Sob essa perspectiva, o primeiro verso do poema, “Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas acende velas no meu crânio” (PIVA, 2000, p. 34), seria o equivalente a uma primeira “tomada”. Nela, a cena poética começa a ser desenvolvida com a apresentação de um topônimo real da cidade de São Paulo. Entretanto, como já depreendido

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das análises de outros poemas, o topônimo não é colocado exatamente em situação de harmonia com o sujeito lírico piviano. Nessa esquina citadina retratada imageticamente, o eu lírico, em estado paranoico, vê passar sob seu olhar alucinado uma “procissão de mil pessoas” (PIVA, 2000, p. 34) que acende “velas” em seu “crânio”. Tal verso, além de encerrar uma metáfora referente ao efeito que as luzes das velas de uma procissão podem provocar na visão humana, inflama mais uma vez o combustível da imagem poética em Paranoia, refinado a partir da oposição “eu” versus mundo. O poeta continua a tecer sua trama lírica de tons alucinatórios justapondo dois versos com o objetivo de formar outra de suas imagens nas quais se destacam metáforas e metonímias conduzidas pelo regime de oposições e associações livres. Mais alguns elementos, personagens destacados como se enquadrados num close, ajudam a incrementar a cena inicial: “místicos” que dizendo “bobagens” consolam ou seduzem “viúvas”, uma vez que seu discurso se dirige metonimicamente ao “coração”, considerado muitas vezes como um elemento metafórico relativo aos sentimentos amorosos. Tudo isso emoldurado por um “silêncio de estrela partindo em vagão de luxo” (PIVA, 2000, p. 34). Nesse verso, percebe-se na tensão advinda da contraposição entre o “silêncio de estrela” e o barulho implícito “de um vagão de luxo” – de trem – mais uma imagem poética. No verso subsequente, “fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes chupando-se como raízes” (PIVA, 2000, p. 34), além de mais uma metáfora – o “fogo azul de gim” provavelmente se refere à embriaguês, uma vez que o vocábulo “fogo”, na linguagem popular, caracteriza tal estado no indivíduo que consome quantidade significativa de bebidas alcoólicas – há uma nítida justaposição de elementos que, sob o olhar paranoico, surgem numa personificação às avessas: são os “amantes” que surgem “como raízes”. Tal transformação, que pode ser associada à “constituição alógica” da metáfora observada por Modesto Carone na poesia de Georg Trakl (CARONE, 1974, p. 12), prossegue atingindo o eu lírico, que se declara alucinadamente como uma “ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas” (PIVA, 2000, p. 38) alguns versos ou planos adiante. O elemento “ponte de granito”, estrutura viária responsável por fazer fluir o tráfego por cima de outros topônimos citadinos, é apresentado em contraponto às “garagens” classificadas como “subalternas”, uma metáfora de sua localização inferior relativa às pontes e que também faz surgir de pronto mais um exemplo de imagem poética.

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A anáfora, que consiste na “repetição de uma palavra ou grupo de palavras no início de duas ou mais frases sucessivas, para enfatizar o termo repetido” (HOUAISS, 2009) pode ser considerada não apenas um simples recurso sintático utilizado em alguns dos poemas de Paranoia. Tal elemento se afigura como mais uma das estratégias que Piva aparentemente lançou mão para encadear seus versos como se montasse, para um filme, uma sequência de planos cinematográficos: “há bancos verdes aplicados no corpo das praças/ há um sino que não toca/ há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios” (PIVA, 2000, p. 38). Vale ressaltar que o verbo haver é o elemento textual que demarca a presença de tal estratégia nos versos em questão, pois é a partir de sua repetição que se desenrola a sucessão de imagens poéticas. O fluxo imagético nessa parte do texto também deve sua origem aos cortes rápidos entre um verso e outro, tal qual a montagem de planos fílmicos, aplicados à trama poética. No primeiro e segundo planos, um cenário prosaico é apresentado a partir de seus detalhes, de seus fragmentos, com “bancos verdes” nas “praças” e um “sino” imóvel, “que não toca”, em silêncio. Em seguida, num corte abrupto, mas que paradoxalmente sugere uma duração temporal mais longa, o olhar sempre alucinado do sujeito lírico anuncia a visão de “anjos de Rilke” tendo relações sexuais dentro de um banheiro. Piva, em entrevista, confessou a estratégia utilizada para a construção desse verso: “Fiz o seguinte: tirei os anjos de Rilke daquele pedestal metafísico e os coloquei no mictório, quase numa interpretação shivaísta do anjo de Rilke.” (PIVA apud COHN, 2009, p. 131). Pode ser percebido, no deslocamento que Piva levou a termo neste verso em questão, um movimento a partir do qual o poeta “tira” os anjos rilkeanos para apresentá-los – montálos? – numa cena de forte carga erótica, criando as condições para, uma vez mais, o surgimento da imagem poética. Essa categoria de imagem se dá exatamente por meio da aproximação entre elementos ou instâncias a princípio distintas, sem qualquer ligação externa aparente. Depreende-se, nessa operação poética, o esquema de oposições também já comentado (ver nota da p. 124) e que se afigura como estratégia plausível relacionada ao modus operandi adotado pelo poeta paulistano. A estratégia de montagem atinge picos significativos em vários outros momentos desse mesmo poema, permitindo em consequência o surgimento de outras imagens poéticas. Conforme se apreende dos próximos versos, mais uma vez em paranoia, o eu lírico piviano transforma o real a partir de seus detalhes, de seus fragmentos, e vê “putos putas patacos torres chumbo chapas chopes/ vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e/

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abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos/ colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror”. (PIVA, 2000, p. 38) A enumeração de fragmentos é empreendida de maneira vertiginosa, intensificando consequentemente o acento delirante próprio da imagem poética, gestada a partir da aproximação desses fragmentos díspares e que terminam unidos por algo em comum, latente, o espaço da cidade. Além disso, destaca-se novamente a oposição radical entre o “eu” e o mundo, oposição que é levada ao paroxismo quando esses mesmos fragmentos da urbe passam a não mais fazer parte da paisagem, mas, assimilados, “abrem-se”, como em uma alucinação, a partir do próprio corpo do sujeito lírico. Vale lembrar mais algumas das palavras de Eisenstein sobre a montagem que arrematam esse movimento: “cada fragmento da montagem já não existe mais como algo não relacionado, mas como uma dada representação particular do tema geral”. (EISENSTEIN, 2002, p. 18) Tal fluxo imagético continua sendo levado adiante por meio dessa estratégia de montagem que privilegia aproximações entre elementos distintos. Esses elementos, justapostos e personificados sob as premissas de um olhar orientado pelo delírio, desvelam-se em mais versos ou planos de cortes rápidos, nos quais ganham destaque “torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos/ enlouquecidos na primeira infância” (PIVA, 2000, p. 41). A 5ª categoria de montagem proposta por Eisenstein (2002), a “montagem intelectual”, caracterizada pelo “conflito-justaposição” entre elementos distintos – assim como a metáfora e a imagem poética – pode ser entrevista nessa sequência de versos. O acento delirante da primeira parte do verso, no qual objetos da sociedade moderna e industrial são antropomorfizados, faz contraponto, na segunda parte, ao “registro mais descritivo” conforme observado (p. 129), mas sem perder de vista as nuances de delírio ou alucinação, uma vez que os “adolescentes” mencionados foram caracterizados como “enlouquecidos”, tal como o são os indivíduos acometidos pela paranoia. Nesse e em outros poemas de Paranoia, o processo de montagem aplicado pode também ser entendido a partir de outra observação do trabalho supracitado de Susana Dobal (p. 128) que, assim como esta dissertação, tomou como foco alguns aspectos da relação entre as imagens e as palavras como objeto de análise:

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Em termos poéticos isso significa que prevalece a sobreposição de sons, palavras, frases cuja continuidade não seguiria a lógica sequencial de causa e efeito, porém, seria mais adequada para exprimir a complexidade de sensações simultâneas provenientes do cenário em volta, a fusão de imagens e palavras, ou ainda a fusão de consciência e de mecanismos inconscientes que povoam a percepção. (DOBAL, 2011, p. 79)

Essa “sobreposição” desprovida de “lógica sequencial de causa e efeito” (DOBAL, 2011, p. 79) conforme sugerido pela autora, sobreposição utilizada como estratégia de montagem segundo entendemos, por exemplo, é notada em alguns dos versos que compõem o “Poema porrada”: [...] uma noite destruída cobre os dois sexos minha alma sapateia feito louca um tiro de máuser atravessa o tímpano de duas centopeias o universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus-Cadela (PIVA, 2000, p. 128)

Nesse trecho do poema, acreditamos que cada um dos versos funciona da mesma maneira que os planos fílmicos uma vez que a sequência revela ao leitor uma série de acontecimentos. Acontecimentos que, num primeiro momento e lidos de forma similar a qualquer filme, não guardam nenhuma espécie de relação de lógica sequencial uns com os outros. No entanto, há algo que se configura latente entre tais elementos. Percebe-se que os mesmos foram construídos justamente a partir da aproximação intencional por conta de suas naturezas distintas e/ou antitéticas, fato que se configura como indício significativo da materialização da imagem poética. Nos dois primeiros versos desse excerto, tal variedade de imagem surge a partir da contraposição entre o espaço externo representado pela “noite destruída” e a “alma”, elemento simbólico que normalmente é associado à interioridade, por conseguinte, análogo ao espaço interno. A alusão aos estados paranoicos ou mesmo a menção à velha alcunha de “a louca da casa” também podem ser entendidas como operações metafóricas uma vez que a “alma” do eu lírico é apresentada sapateando “feito louca”. A “alma”, nesse contexto, pode ser lida como uma metáfora da subjetividade ou, ainda, metonímia de um eu lírico explicitamente caracterizado pela loucura. Tal perspectiva dupla confirma mais uma vez a estreita relação entre essas duas figuras de linguagem apontada por Roman Jakobson (2007, p. 148).

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Já nos dois últimos versos do recorte em análise, as imagens poéticas, mesmo desprovidas da “lógica sequencial de causa e efeito”, apresentam-se como devedoras tanto da montagem que privilegia a justaposição de elementos díspares conforme sugerido, quanto do teor escatológico emprestado a esses mesmos elementos. Nesse sentido, a aparente ausência de lógica encontra eco na observação de Octavio Paz, para quem nas imagens “nem todos os opostos se reconciliam sem destruir-se” (PAZ, 1976, p. 49). No penúltimo verso, a cena poética, mais uma vez sem qualquer relação de “causa e efeito”, traz a morte de “duas centopeias” personificadas – artrópodes peçonhentos – cujos “tímpanos” imaginários são atingidos por um tiro de arma de fogo utilizada pelas forças alemãs na Segunda Guerra Mundial. A justaposição de elementos tão radicalmente opostos no corpo do mesmo verso – um par de “centopeias” de um lado; armamentos antigos, do outro – faz eclodir uma vez mais a imagem poética cuja latência entre seus elementos constituintes pode neste caso ser entendida a partir da periculosidade que lhes é característica. Davi Arrigucci Jr., no texto “O cavaleiro do mundo delirante” (2009), chama a atenção para a importância desses aspectos para a composição das imagens em Paranoia: Como que tomado pela inspiração, Piva mergulha numa associação desconcertante de imagens visionárias em fluxo contínuo, aproximando-se de um ritmo oratório de prosa, cuja eloquência elevada serve, paradoxalmente, para dar vazão a um arsenal de virulências, muitas vezes da mais baixa extração. (ARRIGUCCI apud PIVA, 2009, p. 10)

As “virulências” de “baixa extração”, segundo nosso entendimento, também são estratégias que se coadunam ao sistema de oposições. Sistema esse que, conforme apresentado, norteia a construção das imagens poéticas em Paranoia. No último verso, “o universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus-Cadela” (PIVA, 2000, p. 128), o poeta logra aproximar, em uma mesma cena, quadro ou frame, elementos antitéticos referentes ao “sagrado” e ao “profano”

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. Tal justaposição improvável e tensa, desta vez, foi levada a

termo partindo da zoomorfização da figura de “Deus” – considerada sagrada no imaginário religioso – em um animal do cotidiano citadino, uma “cadela” capaz de gerar o universo como se eliminasse seus dejetos sob o olhar paranoico do eu lírico. Sob essa perspectiva, os

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Para maiores informações sobre a relação entre o sagrado e o profano na poesia de Piva, ver a dissertação intitulada Niilismo versus corpo na poesia de Roberto Piva (2014), de Pedro Henrique Rodrigues da Silva.

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excrementos desse animal funcionariam como metáfora de um universo em ruínas ou, ainda, metonímia de um real fragmentado e exaurido. Assim como os versos construídos a partir da cena de “anjos de Rilke dando o cu nos mictórios” (PIVA, 2000, p. 38), Piva erigiu mais esse exemplo de imagem poética se valendo do deslocamento de um elemento simbólico, fragmento cultural pertencente à esfera do sagrado, para outra instância, a do cotidiano, propondo uma ressignificação radical na qual se percebe o inconformismo do sujeito lírico ante os valores impostos no mundo em que habita. Nesse sentido, podemos entender o uso de tal estratégia por Roberto Piva como uma forma de potencializar, por meio de procedimentos estéticos, sua crítica às formas dominantes de pensamento de viés racionalista e que agem no sentido de solapar totalmente as diferenças. Tentamos demonstrar, nesta primeira parte da análise, que o conceito de imagem poética, cristalizado pelas vanguardas europeias nas décadas iniciais do século XX, pode ser apreendido na construção dos versos constituintes dos poemas de Paranoia. A temática relativa ao livro, emprestada da psicanálise e materializada de forma delirante a partir da linguagem poética, apresenta fortes indícios do uso de procedimentos analógicos e metafóricos. Por outro lado, na segunda parte da análise, pôde ser entrevista no objeto em questão a presença de estratégias como o método crítico-paranoico de Salvador Dali e a montagem fílmica de Sergei Eisenstein, regidos por algo bastante próximo a um esquema de oposições. Esquema que permite a leitura dessa obra a partir do conceito de imagem poética conforme demonstrado, além de também possibilitar a apreensão da ideia de linguagem cinematográfica ao longo dos seus versos justamente por conta de alguns traços narrativos, ainda que de cunho predominantemente alucinatório. Uma vez terminada a análise de uma das partes do nosso corpus – os poemas e suas respectivas imagens poéticas –, é chegada a hora de continuarmos a avançar em nossa pesquisa. Todavia, conforme anunciado no princípio deste capítulo, dirigiremos nosso olhar a partir deste momento para outra variante de imagem tão instigante quanto a primeira categoria analisada e que, além disso, apresenta-se plasmada de maneira inconteste ao longo das páginas do livro Paranoia: a imagem fotográfica.

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4.2 Das imagens fotográficas “Fotografia é vestígio, mas também revelação.” Lucia Santaella; Winfried Nöth

Após a análise dos poemas de Paranoia, surge outra dúvida relacionada tanto à produção quanto à recepção dessa obra. Seria possível fazer uma leitura do ensaio fotográfico de Wesley Duke Lee partindo dos mesmos conceitos utilizados para o estudo dos versos de Roberto Piva? Sendo mais específicos em nossa indagação: poderia ser apreendido, a partir das fotografias em questão, o conceito de imagem poética balizado por operações analógicas e/ ou metafóricas? E mais do que isso. As fotografias, assim como demonstrado a partir dos poemas no subcapítulo anterior, poderiam ser lidas tomando como lente a metodologia crítico-paranoica de Salvador Dali ou mesmo algo da montagem fílmica eisensteiniana? Para verificarmos a possível – ou não – veracidade de tais hipóteses, passemos então para a análise de algumas das imagens fotográficas a partir dos pontos de vista tático e temático, em um primeiro momento, para depois concluirmos esta parte da pesquisa com algumas reflexões sobre o real e o imaginário relacionadas ao nosso objeto de estudo.

4.2.1 Táticas & Temáticas

Junto aos 20 poemas de Roberto Piva, 76 fotografias de Wesley Duke Lee compõem a quase totalidade das 152 páginas do livro Paranoia38, oferecendo aos leitores dessa obra uma apresentação eminentemente lírica e imagética daquela cidade de São Paulo situada cronologicamente nos anos iniciais da década de 1960. O artista plástico Duke Lee recebeu não apenas a tarefa de diagramar, mas também a missão de ilustrar fotograficamente esse primeiro trabalho solo de Piva, a partir dos poemas escritos pelo autor. Em depoimento publicado no livro Os dentes da memória (D’ELIA; HUNGRIA, 2011), o jornalista Thomaz Souto Correia, prefaciador de Paranoia, revela como se deu essa parceria:

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Vale lembrar que a edição de Paranoia utilizada como referência bibliográfica para estas análises é a 2ª edição publicada no ano 2000, fac-similar à 1ª edição de 1963.

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Na verdade, eu era amigo do Wesley, então aproximei os dois quando o Piva começou a ideia do livro. O Wesley – que não era fotógrafo, mas sim artista plástico – preparou aquele ensaio fotográfico belíssimo que está longe de ser uma simples ilustração dos poemas. Era o olhar do próprio Wesley casando com o olhar do Piva sobre a cidade (CORREIA apud D’ELIA; HUNGRIA, p. 57, 2011).

A maneira escolhida pelo artista plástico para realizar a incumbência atribuída por Piva e pelo editor da obra, Massao Ohno, conforme exposto por Thomas Souto Correia, foi por meio da criação de um ensaio imagético. Ensaio cujas peças fotográficas, com o objetivo de aparentemente manter a coesão e a coerência com os versos de Piva – preservando desta maneira as unidades estética e temática em Paranoia –, oferecem uma amostra sensível, a partir do registro em preto & branco, de um espaço urbano tensionado por imagens que se nutrem tanto da beleza quanto da decadência, apresentando uma São Paulo que oscila no tempo e no espaço, como em um delírio paranoico no qual se turvam as fronteiras entre o real e o imaginário. Para que tal empreitada fosse levada a cabo com algum êxito, parece-nos que o modus operandi empregado por Duke Lee, além de recorrer a estratégias comuns a qualquer ato fotográfico – jogos de luz e sombra, enquadramentos, zooms, closes e planos, dentre outros – partiu da mesma perspectiva tática adotada pelo próprio Piva para a composição de grande parte dos versos constituintes dos poemas de Paranoia. A hipótese é a de que o fotógrafo, assim como o poeta, em maior ou menor grau e guardadas as devidas idiossincrasias de cada manifestação, teriam se valido de operações analógicas e/ ou metafóricas – perfeitamente sintetizadas no conceito de imagem poética – somadas a traços da metodologia críticoparanoica ou mesmo de algo da montagem fílmica eisensteiniana. Lembremo-nos de que ambos os métodos foram considerados por seus criadores como ferramentas aplicáveis à crítica e à construção de grande parte das expressões artísticas. Além disso, a metodologia concebida pelo pintor espanhol baseava-se no “delírio de associação interpretativa” (DALI, 1974, p. 19) em que o real, remontado a partir de seus próprios fragmentos a princípio equidistantes, explode em multissignificações imagéticas dignas de uma sequência viabilizada pela montagem intelectual guiada pela justaposição de “sensações intelectuais associativas” (EISENSTEIN, 1990, p. 83). Nesse sentido, poderíamos ler/ ver nas fotografias, ainda que por analogia – ou justamente por conta dela – a presença da imagem

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poética quando associamos as fotos de Wesley Duke Lee ao método crítico-paranoico de Salvador Dali ou à montagem fílmica eisensteiniana. Dali, tecendo considerações sobre sua proposta de esquematização crítica, elucida a relação advinda entre seu método e a criação de imagens em uma frase que indicamos ser uma espécie de epígrafe ou mesmo uma síntese desta nossa tentativa de analisar as imagens fotográficas de Duke Lee sob essa perspectiva: “A atividade crítica intervém unicamente como líquido revelador de imagens, associações, coerências e finezas sistemáticas, graves e preexistentes no momento em que se produz a instantaneidade delirante” (DALI, 1974, p. 19). É a partir dessa visada crítica, “líquido revelador” segundo o pintor catalão, que será feito um breve mapeamento, nas fotografais, de tais “coerências” – ou seriam incoerências? – e das latências existentes e entrevistas sob um viés de livre associação imagética. Para complementar as proposições anteriores e reforçar nossa proposta de análise, vale evocar mais uma vez André Breton. O surrealista chamou a atenção para a versatilidade da metodologia daliniana, aplicável a várias manifestações artísticas como a pintura, a poesia, o cinema e outras (BRETON apud DALI, 1974, p. 5) conforme assinalado. Nunca é demais ressaltar que o método crítico-paranoico daliniano, além dessa funcionalidade aplicável às mais diversas esferas estéticas, destacada por Breton, pressupunha a “presença dos elementos ativos e sistemáticos próprios da paranoia” (DALI, 1974, p. 19), ou seja, proporcionaria uma espécie de emulação das imagens do real a partir do prisma da patologia paranoide, alucinatória em sua essência. Nesse sentido, tal qual um crítico-paranoico, vamos nos ater apenas a alguns detalhes, fragmentos a princípio díspares e que chamam a atenção dentro da composição fotográfica. O objetivo é o de compreender melhor o todo do objeto: a imagem fotográfica. Tomemos como foco desta nossa análise uma das fotografias tiradas pelo artista plástico brasileiro para o debut poético de Piva:

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Fig. 1 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Observando essa imagem (fig. 1), vemos se tratar do registro fotográfico diurno – um plano geral – de uma rua da capital paulistana, com seu trânsito sempre fervilhante, coalhado por um sem-número de veículos e transeuntes. O primeiro detalhe que chama a atenção nessa fotografia é o emaranhado formado pelos fios e postes de iluminação acima da via pública. A imagem dessa confluência caótica de fios pode ser comparada a de uma rede 39, uma teia eletrificada da qual nem veículos, nem pedestres, encobertos por essa armação, conseguem se desvencilhar. Uma forma de armadilha sutil que enreda, inebria e tensiona maquinaria e carne. Nos flancos superiores da mesma fotografia se destacam dois letreiros: o primeiro, com a palavra “farroupilha” em disposição vertical; o segundo, traz grafada a expressão “el

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O vocábulo rede é uma alusão ao conceito de Gestell, ou Armação, cunhado por Martin Heidegger: “Armação significa a reunião daquele pôr que o homem põe, isto é, desafia para desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência. Armação significa o modo de desabrigar que impera na essência da técnica moderna e não é propriamente nada de técnico. Ao que é técnico pertence, em contrapartida, tudo o que conhecemos como sendo estrutura, camadas e suportes, e que são peças do que se denomina como sendo uma montagem. Esta, contudo, com todo o seu conjunto de peças, recai no âmbito do trabalho técnico, que sempre corresponde apenas ao desafio da armação, mas nunca perfaz esta ou mesmo a efetua.” (HEIDEGGER, 2007, p. 385).

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greco” 40 em posição horizontal. A interseção, no mesmo espaço físico da cena fotográfica, de culturas e temporalidades distintas, dá a entrever mais uma vez em nosso corpus uma relação de confronto, de tensão – tal como ocorre na imagem poética – advinda justamente do embate entre elementos relacionados a instâncias e temporalidades equidistantes cujo olhar do fotógrafo, em sintonia com a mirada imagética e delirante do autor dos poemas, intentou registrar. Vale lembrar que Baudelaire, crítico feroz da imagem fotográfica conforme pontuado, nos ensaios reunidos no livro Sobre a modernidade (BAUDELAIRE, 1996, p. 24), sugeriu que as fronteiras entre passado e presente, daquele momento em diante, apresentar-seiam de maneira mais flexível, fazendo com que, muitas vezes, distintas temporalidades pudessem ser apreendidas como se coexistindo paradoxalmente no mesmo espaço, tal qual ocorre nos estados de alucinação. Continuemos a análise dos elementos supracitados. O primeiro deles, provavelmente o letreiro de algum comércio representante da cultura gaúcha, pode ser uma alusão a Revolução Farroupilha, movimento separatista empreendido por parte da população do Estado do Rio Grande do Sul na primeira metade do século XIX quando o Brasil, à época recentemente liberto do jugo lusitano, continuava sendo regido pelo sistema monárquico. Ainda que esse elemento se apresente como uma referência associada a um tempo cronológico ancorado ao passado, pode ser também situado em uma temporalidade do presente ligado ao cotidiano de qualquer grande cidade, resgatando e resignificando uma experiência já ocorrida, mesmo que por modo alusivo, em um contexto no qual tempo e espaço se apresentam de forma convergente. O segundo elemento, também materializado na imagem fotográfica em outro anúncio relacionado a mais uma casa comercial, é uma expressão em castelhano que significa em nossa língua algo como “o grego”. Vale salientar que tal vocábulo traz uma forte carga semântica ainda no sentido da tensão oriunda da associação entre temporalidades equidistantes, pois vários elementos das culturas moderna e contemporânea, das quais evidentemente a obra Paranoia é devedora, remetem à Grécia clássica de Sócrates e Platão,

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Esse vocábulo também pode ser uma alusão a “El Greco”, pintor, escultor e arquiteto do século XVI, associado ao Maneirismo. Foi considerado precursor de escolas modernas como o expressionismo. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2015. Vale lembrar que a referência a imagens picturais e a seus respectivos artistas foi também um recurso adotado por Piva na construção das imagens poéticas dos versos de Paranoia.

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civilização que nos legou valores éticos e estéticos a partir de uma perspectiva dita urbanizada e que está presente na poesia de Piva, mas, muitas vezes, como alvo de crítica. Bem, e por que a aproximação desses dois vocábulos, na imagem fotográfica, poderia ser tomada como uma espécie de combustível necessário ao surgimento de um pathos análogo ao que se dá no aparecimento da imagem poética? Segundo nossa hipótese, por conta da capacidade de fazer convergir referências culturais e temporalidades distintas a partir da livre associação de fragmentos. Sobreposição de citações, de referências, de significantes que pertencem, sim, ao mesmo espaço da página, mas nem sempre estão ancorados a uma mesma temporalidade cronológica ou acoplados sincronicamente a um mesmo espaço. Essa convergência de elementos aparentemente díspares, talvez por isso mesmo, erija uma tensão, esse elemento tão caro, insistimos, não apenas à criação das imagens poéticas nos versos de Piva, mas, percebemos cada vez mais, também às fotografias de Duke Lee. Walter Benjamin, em ensaio intitulado “A modernidade e os modernos” (BENJAMIN, 2000) a propósito da poética e da modernidade de Baudelaire, reforça a nossa impressão de que esta última, enquanto instância calcada no real – assim como as imagens poéticas e fotográficas – pode ser entendida como uma construção. Construção que parte de uma conjunção entre elementos que, mesmo se remetendo a períodos históricos transcorridos, são capazes de gerar sentido no tempo-espaço da página, na imagem fotográfica, a partir de uma sobreposição de épocas, como uma espécie de montagem feita a partir de referenciais de temporalidades distintas, justapondo presente e passado. Para Benjamim: “Entre todas as relações que a modernidade possa ter a relação com a antiguidade é a melhor” (BENJAMIN, 2000, p. 16). Ainda, a tensão surgida da relação entre esses elementos associados a cronologias díspares, ao passado e aquele então momento presente da década de 1960, no caso das imagens de Paranoia, entre o moderno e o antigo, encontra eco mais uma vez nas palavras de Walter Benjamin: “A modernidade é o que fica menos parecido consigo mesmo; e a antiguidade – que deveria estar nela inserida – apresenta, em realidade, a imagem do antiquado” (BENJAMIN, 1994, p. 88). É nesse sentido que entendemos haver, a partir da aproximação de elementos de naturezas e cronologias diferentes, uma tensão plástica advinda dessa e de outras sobreposições. Tensão que ao longo das fotografias de nosso objeto de estudo se resolve em força plástica resultante da livre associação, como se numa montagem de

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um plano fílmico, de significantes díspares cujas temporalidades por vezes são antagônicas, mas não excludentes entre si. Conforme tem sido sugerido ao longo deste subcapítulo, desconfiamos que as fotografias que ajudam a constituir o livro Paranoia, devido a flagrante constituição imagética, tangenciariam alguns dos procedimentos que aparentemente foram usados por Piva de maneira particular como, por exemplo, o método crítico-paranoico do surrealista Salvador Dali. Tal constatação, sugerimos, poderia também corroborar outra ideia de Walter Benjamin ainda em relação à fotografia. Segundo Benjamin: [...] a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a seu mundo ambiente. Ela liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores (BENJAMIN, 1985, p. 102).

O ensaísta alemão, ainda discorrendo sobre o mesmo tema, leva adiante seu raciocínio: A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela o inconsciente pulsional. [...] Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos sonhos diurnos (BENJAMIN, 1985, p. 102).

Ora, na montagem eisensteiniana, no método crítico-paranoico daliniano e, principalmente, na imagem poética, há justamente uma deliberada aproximação e consequente valorização dos detalhes díspares, dos pormenores inusitados, das coisas minúsculas, dos fragmentos. Nesse sentido, acreditamos subjazer nas fotografias uma configuração na qual justamente os detalhes se tornam os protagonistas a gerar a força plástica e que constitui tais imagens fotográficas – e poéticas –, esses “sonhos diurnos” aos quais Benjamin se referiu. É o olhar delirante, paranoia emulada a partir de closes e panorâmicas registradas em preto & branco, resultante de um movimento que em alguns momentos poderia ser tomado como análogo ao de montagem intelectual de Eisenstein na qual reina a livre associação que busca captar não a totalidade, mas trazer à tona a emoção de alguns aspectos registrados em cenas prosaicas nas quais pessoas e lugares da cidade são flagradas a partir de pequenos detalhes. Tal detalhamento, se considerarmos essa perspectiva, dotam as imagens fotográficas com um acento delirante, imagético, por vezes onírico, aproximando o objeto em questão

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ainda mais dessas estratégias que ganharam força e ajudaram a constituir parte significativa da arte moderna e contemporânea. Em outra fotografia (fig. 2), a tensão advinda do confronto entre presente e passado também se revela plausível. O deslocamento, e mais ainda, a reapropriação de alguns elementos que se referem a épocas distintas, quando transladados a um mesmo espaço físico, provoca o leitor no sentido de fecundar seu olhar com uma espécie de estranhamento. Estranhamento que ocorre, segundo sugerimos, a partir da aproximação entre elementos díspares e que, a despeito disso, coabitam, não sem tensionamentos, em um mesmo contexto construído e registrado pelas lentes do fotógrafo. Fig. 2 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Na fotografia em questão, parece-nos haver a representação imagética de um espaço que, na superfície da página fotográfica, apresenta-se fendido em dois campos, respectivamente associados às esferas do público e do privado: à esquerda, salta à vista a presença de uma estátua com características clássicas, representando uma figura feminina; à direita, apresenta-se outro espaço, de natureza doméstica, uma espécie de átrio onde elementos do cotidiano – dois vasos de plantas e uma gaiola para pássaros entre outras coisas menos nítidas –, a princípio, coexistem.

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Conforme já aventado, a tensão imagética que atribuímos à Paranoia também se deve, entre outras coisas, à sensível representação artística de São Paulo levada a termo por meio das fotografias de Duke Lee. Tal proposta estética parece ter sido construída exatamente a partir do registro de cenas, objetos e pessoas cuja aproximação suscitasse um tensionamento entre o passado e o presente. Nesta zona de interseções temporais, a imagem fotográfica pode ainda ser apreendida como se tivesse sido submetida previamente a um processo de composição e/ ou montagem no qual são destacados determinados elementos, aparentemente antitéticos, com vistas a fazer surgir algo análogo à imagem poética. Cabe salientar também que esses elementos, se analisados em seus detalhes a partir do olhar por sobre o espaço citadino, potencializam a recepção da obra na qual o leitor é invitado a perscrutar outras dimensões temporais utilizando como referência uma operação de natureza artística, de matriz estetizante. A imagem da estátua, cujas formas as deixam semelhante às estátuas esculpidas no contexto da cultura clássica greco-romana, faz contraponto, por um lado, ao cosmopolitismo tecnológico de uma cidade como São Paulo, mesmo nos anos 1960. Por outro, essa presença pode ser entendida como referência a uma temporalidade e a uma espacialidade distintas, ancoradas a um passado cronológico e que faz saltar aos olhos, na superfície em preto & branco do registro fotográfico, a tensão com os outros elementos, flagrantemente associados ao cotidiano dos lares, das casas que constituem o espaço urbano não apenas em contextos sócio-históricos remotos, mas também na instância temporal hodierna, contemporânea. Neste momento, tomamos emprestada uma proposição do filósofo e arquiteto francês Paul Virilio sobre o espaço urbano e o tempo. Afinal, tempo e espaço41 são também instâncias mais do que presentes na seara fotográfica. Segundo Virilio: o espaço construído não o é exclusivamente pelo efeito material e concreto das estruturas construídas, da permanência de elementos e marcas arquiteturais ou urbanísticas, mas igualmente pela súbita proliferação, a incessante profusão de efeitos especiais que afetam a consciência do tempo e das distâncias, assim como a percepção do meio (VIRILIO, 1993, p. 16, grifo do autor).

Essa “profusão de efeitos especiais” (VIRILIO, 1993, p. 16, grifo do autor) no espaço dos grandes centros urbanos sugerida pelo autor nos parece dizer algo sobre nosso objeto de

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Para Susan Sontag, a “foto é uma fina fatia de espaço bem como de tempo.” (SONTAG, 2010, p. 33)

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análise uma vez que as imagens são registro da capital paulista nos anos de 1960. Entendemos que, uma vez que essa mistura, essa mescla de elementos cujas referências temporais distintas, ao gerar determinada tensão plástica – ou “efeitos especiais”, no sentido proposto por Virilio – por agirem em um mesmo espaço, acabam por deslocar o olhar do sujeito em relação àquela percepção de viés racionalizante, usualmente associada ao cotidiano, oferecendo-lhe uma nova perspectiva de reconstrução do real advinda justamente dessa confluência de objetos que, a princípio, são tomados como referências a épocas e espaços distintos uns dos outros. Tal fato iluminaria a possibilidade da existência de uma espécie de percepção que operaria no sentido de metaforizar, via imagem fotográfica, estados de alucinação, de delírio, de paranoia, exatamente como o indicado em relação às imagens poéticas. Tal percepção potencializaria o olhar do sujeito, sugerindo para esse o valor da diferença e a força da perspectiva alternativa com vias a uma apreciação estética como superação a grande massa de imagens que se projeta atualmente como verdade indevassável sobre os objetos e o mundo sensível. Vejamos mais uma foto tirada por Duke Lee para pensarmos de forma mais clara essa nossa proposição. Antes, cabe ressaltar que, nesta próxima análise, deixaremos em segundo plano a perspectiva advinda das relações entre as temporalidades referentes aos elementos que compõem as fotografias tomadas como corpus para propor um olhar com lentes um pouco mais focadas nos aspectos referentes à construção da imagem, nesse caso, fotográfica.

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Fig. 3 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

A fotografia acima (fig. 3), aparentemente, registra mais um momento cotidiano, prosaico, que normalmente acontece na maioria dos espaços urbanos. Na foto em questão, é possível ver de perfil a cabeça e parte dos ombros de uma mulher. A figura de uma jovem senhora se apresenta cercada por uma série de embutidos, o que denota a mesma estar em um espaço, também citadino, correspondente a alguma feira ou mercado de produtos alimentícios. Mas, como se daria exatamente a manifestação dos “efeitos especiais” observados por Virilio nas grandes cidades, nessa imagem fotográfica? Se dispendermos um pouco mais de atenção na observação da figura feminina e dos alimentos que circundam sua cabeça – capturada pelas lentes sensíveis de Duke Lee –, percebemos que ambos guardam uma nítida semelhança: o formato. Tanto a forma dos embutidos pendurados quanto a do penteado da mulher são cilíndricos, o que faz com que a silhueta desse mesmo penteado, formado a partir dos cabelos dessa mulher, possa também ser visto como um dos embutidos pendurados na barraca da feira. Aqui, o fotógrafo proporciona ao leitor uma alucinação visual correspondente aos estados paranoicos já que há uma

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confusão entre as silhuetas de ambos os elementos, legando à imagem fotográfica a condição de imagem poética. É nesse sentido que a proposição de Virilio quanto à capacidade de o espaço citadino ter de fazer com que sua presença seja percebida e experenciada sob a perspectiva de “efeitos especiais” converge com a nossa análise das fotografias de Duke Lee. A mulher se torna mercadoria e a mercadoria sofre antropomorfização, tensionando as fronteiras entre real e imaginário. Tais “efeitos”, análogos aos efeitos conseguidos nos enquadramentos fílmicofotográficos, mais uma vez aqui sugerimos, operariam no sentido de construir, evidentemente sob uma perspectiva estética, uma representação do olhar de um indivíduo que estivesse sob a influência da alucinação paranoide, procedimento que a imagem poética, por meio de recursos como a montagem fílmica ou a metodologia crítico-paranoica, aparenta ser devedora. Em Paranoia, o ensaio fotográfico de Wesley Duke Lee pode ser interpretado tanto a partir de suas estratégias de feitura, próximas às técnicas de enquadramento e composição de cenas apresentadas como se oriundas do pensamento que rege a montagem fílmica, quanto pela metodologia crítico-paranoica daliniana, afeita ao mapeamento e justaposição de fragmentos com latências em comum. Tal constatação, segundo entrevemos, ganha corpo se levado em conta o tipo de relação existente entre alguns elementos visualizados nas fotografias. Elementos que, referindo-se diretamente ou fazendo alusão a temporalidades distintas e seus detalhes inusitados, ainda que cotidianos, foram captados pelo olhar atento do fotógrafo e contribuíram para moldar, com a ajuda dessa tensão advinda das diferenças, uma força plástica que potencializa a percepção do leitor sobre as representações do espaço urbano registrado ao longo das páginas desse ensaio fotográfico. Uma vez analisada em algumas fotografias de Duke Lee – como já efetuado no corpus constituído pelos poemas de Piva no livro Paranoia – a possível utilização das estratégias supracitadas, avancemos. Outro aspecto fundamental à composição do ensaio ainda em questão passa pela sua construção temática. Assim como poeta e fotógrafo aparentemente comungaram das mesmas táticas de composição estética segundo sugerimos e tentamos demonstrar, a temática, a seguir tal linha de raciocínio, certamente se apresenta a mesma tanto nos versos quanto nas fotos: o espaço urbano, materializado na cidade de São Paulo, sob uma perspectiva delirante. Ao longo das fotografias anunciadas no início deste subcapítulo, closes e panorâmicas de uma São Paulo captada e desvelada em preto & branco – detalhe importante que empresta

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ao ensaio uma espécie de aura no sentido benjaminiano ou, ainda, um caráter de atemporalidade, própria desse tipo de registro42 – são apresentadas a partir da apreensão de fragmentos da urbe, seus topônimos e habitantes. Entretanto, ainda que o tema geral das imagens fotográficas – e também dos poemas – seja a capital paulista, podem ser percebidas outras temáticas interligadas entre si e também a esse mesmo tema geral, pertinentes não apenas à cidade em questão, mas a grande parte das metrópoles modernas, o que propicia à obra em análise, sob esse prisma, certo caráter de universalidade. Para entendermos melhor a organização do ensaio, foi feito um levantamento, a partir das 76 imagens fotográficas, de elementos em comum a todas as suas peças constituintes. Após o escrutínio de cada uma das fotografias, foram apreendidas cinco categorias recorrentes, divididas entre as imagens de vários topônimos paulistanos e, em grande parte, associáveis a qualquer outra cidade de características semelhantes conforme pontuado no parágrafo anterior: rua; circo; parque; praça e ambientes internos. Em cada uma dessas categorias, alguns elementos e instâncias, fragmentos próprios desses espaços citadinos, também podem ser verificados. Na primeira delas, exemplificada na foto a seguir (fig. 4), a rua surge como registro indelével e imagético de seus transeuntes anônimos, de suas fachadas, das vitrines e anúncios luminosos, das feiras de víveres, das árvores, placas e postes, dos becos e viadutos, todas metonimicamente variantes dela mesma ou, ainda, da urbe.

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Para o teórico Vilém Flusser: “Não pode haver, no mundo lá fora, cenas em preto e branco. Isto porque o preto e o branco são situações “ideais”, situações-limite. O branco é presença total de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total. O preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da Ótica. De maneira que cenas em preto e branco não existem. Mas fotografias em preto e branco, estas sim, existem. Elas “imaginam” determinados conceitos de determinada teoria, graças à qual são produzidas automaticamente” (FLUSSER, 2002, p. 22).

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Fig. 4 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Nesse exemplo, o enquadramento conseguido por Duke Lee faz com que diversos anúncios comerciais expostos ao longo da rua possam ser vistos como se sobrepostos, lembrando em muito a collage das vanguardas ou, ainda, alguma coisa das fotomontagens de A pintura em pânico (1987), do modernista Jorge de Lima. Tal justaposição, privilegiada pelo enquadramento do plano empreendido pelo fotógrafo, também faz com que as placas em foco se pareçam, de maneira análoga, aos balões de diálogos dos quadrinhos, nesse caso, expressando os dizeres ou pensamentos dos personagens-transeuntes que percorrem a rua captada. Não seria totalmente descabido sugerir que tal cena poderia ocorrer a partir do olhar de um indivíduo paranoico, uma vez que a principal característica do mesmo, segundo apresentado, é transitar, sem perceber a diferença, entre o real e o imaginário. Ora, se por analogia essa visualização pode ser lida nos poemas de Piva como imagem poética – conforme demonstramos no subcapítulo 4.1 – apresenta-se razoavelmente plausível a ideia de que essa e outras imagens fotográficas também possam ser apreendidas sob o mesmo

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conceito. Tomemos outra fotografia (fig. 5) para continuarmos a exemplificar esta nossa proposta de análise e categorização. Fig. 5 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

A temática circense se afigura como outra das categorias aqui sugeridas em relação às fotografias de Paranoia. Ela pode ser claramente percebida em, no mínimo, nove das imagens do ensaio. No exemplo acima, as mãos, braços e torsos de uma provável família de equilibristas aparece de maneira destacada em primeiro plano. Nesse registro, cujo enquadramento e recorte lembram em muito o recurso do close, as partes dos fotografados, assim como na metonímia, estratégia importante à construção das imagens poéticas conforme apresentado no capítulo 2, sugerem o todo. Mais uma vez, a imagem poética, que segundo as palavras do pesquisador Wagner José Moreira “aparece como esse instantâneo ao se deixar apanhar pela página” (MOREIRA, 2006, p. 160), pode ser apreendida positivamente a partir dessa composição fotográfica de Wesley Duke Lee uma vez que na primeira, assim como nesta imagem, os elementos se apresentam a partir de uma sobreposição de fragmentos, típica da variante imagética evocada.

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Os parques e praças também são topônimos que se destacam tanto nos poemas, quanto no ensaio que constitui nosso objeto de pesquisa. Nas imagens fotográficas relativas à categoria dos parques, predomina o registro prosaico de grupos formados por jovens conversando e jogando sob a luz diurna. A escolha de tal tema poderia ser lida como uma referência à notória homossexualidade de Roberto Piva que, ao longo de sua vida e obra, foi proclamada de maneira libertária e poética. A figura do “garoto”, nesse sentido, é ententida por nós apenas como uma referência à relação afetiva, evidentemente de cunho homossexual, e sem relação alguma com qualquer desvio patológico de fundo sexual. Sob esse ponto de vista, os garotos registrados nas fotografias poderiam ser apreendidos como uma versão moderna, uma alusão ou mesmo uma analogia aos efebos, adolescentes andróginos mencionados no Banquete43 de Platão (1986, p. 131).

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Aristófanes, nessa obra de Platão, tece uma narrativa acerca do “mito do andrógino”, e, por conseguinte, das relações homoeróticas entre homens e garotos, nas quais: “[...] todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante”. (PLATÃO, 1986, p. 131)

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Fig. 6 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Se levarmos a observação anterior um pouco mais adiante, outra vez a noção de imagem poética pode ser entrevista a partir da fotografia acima (fig. 6). Conforme explanado, a justaposição de culturas e temporalidades distintas como traço da modernidade, observada por Baudelaire, possibilitaria, segundo nosso entendimento, uma leitura dessa imagem fotográfica como a variante de imagem mencionada uma vez que, entre as principais características dessa última, destaca-se o tensionamento provocado pela livre associação entre elementos, instâncias e temporalidades dissonantes afastadas no tempo e no espaço. Na fotografia em questão, o tempo presente do Parque do Ibirapuera – que também nomeia um dos poemas de Paranoia (2000, p. 115) – pode coexistir, mas não sem tensionamento, com a temporalidade cronologicamente recuada no passado, referente à Antiguidade Clássica. Nas praças, outra categoria dos topônimos que integram a série de registros temáticos do urbano captados a partir das objetivas do fotógrafo e artista plástico brasileiro, as estátuas se afiguram como elemento central à composição de várias imagens. Vale lembrar, a propósito, que o segundo livro de Roberto Piva lançado em 1964, um ano após a sua estreia

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com Paranoia, foi intitulado Piazzas44 – vocábulo oriundo do idioma italiano que pode ser traduzido como “praças” em língua portuguesa – e parece ter levado essa tematização do urbano ao paroxismo. De acordo com Claudio Willer, “há relações de continuidade, e também de complementaridade” (2005, p. 157) entre os livros Paranoia e Piazzas. Entretanto, a análise desse último ficará para outra oportunidade. Voltemos o olhar para mais um dos registros imagéticos de Duke Lee. Fig. 7 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Na fotografía em questão (fig. 7), o elemento estátua aparece duplicado na cena por meio de uma mescla entre as técnicas de zoom e de desfocagem do plano de fundo: no primeiro plano, temos a representação da cabeça de um leão. No segundo plano, ao fundo, um pouco acima da primeira cabeça, apresenta-se desfocada a figura de outra estátua, desta vez, o que parece ser uma cabeça humana. Lembremo-nos de que o aparecimento da imagem poética é propiciado pelo avizinhamento entre elementos díspares. Nesse caso em específico, apesar

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A 2ª edição desse livro, lançado pela Editora Kairós em 1980, trouxe na primeira e quarta capas um ensaio fotográfico de Wesley Duke Lee sobre as praças da capital paulista.

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de as estátuas serem representações de figuras distintas, o fato de ambas pertencerem à mesma categoria de escultura imagética descortina a latência que as aproxima. Latência essa que, mais uma vez, propicia o surgimento da imagem poética – a partir da lente do fotógrafo e sob o olhar do espectador –, materializada por meio do registro fotográfico. Embora a maioria absoluta das imagens fotográficas de Paranoia se manifeste por meio do registro de topônimos urbanos exteriores, algumas fotografias do corpus em análise vão a contrapelo dessa sistematização, revelando consequentemente espaços de natureza distinta, materializados em toponímia interior. As cafeterias e auditórios, seus frequentadores e respectivos utensílios e aparatos, apresentam-se de maneira sensível em algumas das fotos. E nesses topônimos de cunho reservado, mas ainda inscrustrados nas instâncias do cotidiano, personagens e objetos ganham contornos alucinatórios, aparecendo registrados como figuras fantasmagóricas ou, ainda, máquinas saídas diretamente de algum filme de ficção científica. Analisemos, pois, outra amostra do ensaio fotográfico para comprovarmos – ou não – mais essa nossa hipótese.

Fig. 8 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

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O que chama a atenção nesse objeto fotografado por Duke Lee (fig. 8) – provavelmente uma máquina de café expresso – é justamente a possibilidade de ser percebido como algo além de sua representação no real, tal como uma alucinação suscitada pela paranoia. A paleta cromática de preto & branco, somada à iluminação utilizada, embora mantenham reconhecíveis os contornos máquinicos do objeto, dá margem a outras visualizações desse elemento, como por exemplo, a de uma cabeça robótica ou, ainda, a torre de um tanque de guerra ou mesmo um satélite. Vale lembrar que os soviéticos haviam lançado o primeiro satélite no espaço em 1957, poucos anos antes da feitura do ensaio. As diversas possibilidades de apreensão de uma mesma imagem, que confundem e tensionam as fronteiras entre o que se entende por real e o que é tomado por imaginário, nesse sentido, poderiam legar a mais essa foto que compõe o livro Paranoia o estatuto de imagem poética. Na fotografia a seguir (fig. 9), a técnica da contraluz utilizada por Wesley Duke Lee – na qual o objeto a ser fotografado fica localizado entre a câmera e a fonte de luz, fazendo com que a iluminação permaneça na parte de trás do elemento e não a sua frente, como é feito normalmente – lega aos personagens registrados o aspecto fantasmagórico observado. Novamente, o efeito advindo dessa estratégia empresta uma vez mais à imagem fotográfica a possibilidade de ser lida como imagem poética, uma vez que, assim como nessa última variante, entrevê-se na fotografia analisada um tensionamento entre elementos de instâncias distintas: a máquina de café, à esquerda, e os vultos que ocupam quase a totalidade do registro em questão.

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Fig. 9 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Nessa mesma fotografía, ainda, o embate entre tais elementos também pode ser lido como uma crítica às correntes do pensamento de base racionalista. Correntes que tomaram vulto com a consolidação da ciência e da tecnologia, formas modernas de conduzir o pensar e o agir sobre o mundo e que continua relegando à imagem, mesmo nos dias de hoje, a condição de “a louca da casa”. Sob tal prisma, a melhor iluminação da máquina contrasta com o esmaecimento das figuras humanas fazendo surgir, na imagem fotográfica, uma metáfora, combustível da imagem poética e síntese perfeita do afã fáustico que indelevelmente tem regido as sociedades modernas e do qual a poética de Piva, e agora também sugerimos, as imagens fotográficas de Duke Lee, operam em nítido contraponto, tal qual o sujeito paranoide que encontra potência e subterfúgio no delírio para negar e reconstruir o mundo a sua maneira. Demonstramos nesta parte da análise que as fotografias integrantes do ensaio editado no livro Paranoia, tal como os poemas da obra em questão, podem ser lidas a partir de

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algumas estratégias. Tais estratégias, cuja aplicabilidade por meio da palavra criou as condições para o aparecimento da imagem poética nos versos de Piva conforme aponta nossa hipótese, aparentemente proporcionam a construção de um olhar sob o qual também a imagem fotográfica, como se pensada e composta levando em consideração estratégias crítico-paranoicas ou da montagem fílmica, pode ser apreendida como poética. Por outro lado, a temática urbana, construída a partir dos registros de vários topônimos da capital paulista e seus respectivos habitantes, pode ser constatada nas fotografias analisadas de maneira quase inapelável. Entretanto, mais uma vez, surge outra questão que se relaciona intimamente a categoria de imagem investigada neste ponto de nossa pesquisa – a fotográfica – e cujo esclarescimento certamente contribuirá para refinarmos ainda mais o nosso olhar por sobre essa faceta ainda pouco estudada do trabalho de Wesley Duke Lee. A questão proposta é a seguinte: como a relação entre o real e o imaginário, apresentada no capítulo 3 e que foi sutilmente mencionada há pouco nesta nossa análise, relação que perpassa grande parte dos versos de Paranoia conforme analisado (ver subcapítulo 4.1), poderia ser apreendida no ensaio do artista plástico? Ou ainda, as imagens fotográficas desse ensaio poderiam ser lidas por uma dupla perspectiva, isto é, analisadas tanto sob o ponto de vista do real quanto do imaginário? Vejamos as respostas nas próximas páginas.

4.2.2 Do real ao imaginário Se, por um lado, nas fotografias de Paranoia é percebido nitidamente o registro de topônimos e habitantes reais da cidade de São Paulo – o que atribui a essas imagens um caráter praticamente documental, por conseguinte – em outras fotos do mesmo ensaio, a abordagem empregada por Wesley Duke Lee aparentemente agiu na direção oposta. Essa visada que privilegia o imagético acaba por deixar no leitor a impressão de que, em algumas dessas imagens, o real se transmuta, podendo ser apreendido inequivocamente sob uma multiplicidade de perspectivas, inerente ao viés artístico. Sob tal prisma, continuaremos o estudo de nosso corpus fotográfico resgatando alguns conceitos apresentados no terceiro capítulo tentando pensá-los em relação às imagens do ensaio de fotos ainda em questão. Para que seja realizado mais esse percurso, começaremos com a análise de algumas imagens nas quais a ideia de real (ver capítulo 2, p. 48) se apresente de maneira clara. Em seguida, a atenção será voltada para fotografias em que a noção de imaginário (capítulo 2, p.

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48), nesse caso específico, de acento delirante ou com tons alucinatórios – indícios da imagem poética, segundo apresentado –, consiga ser apreendida. Por último, imagens fotográficas nas quais tanto traços do real quanto rastros do imaginário possam ser percebidos se tornarão objeto de escrutínio. Fig. 10 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Para analisarmos a fotografia acima (fig. 10) e algumas das próximas, recordemos algumas palavras de Philippe Dubois apresentadas no capítulo 3 (p. 88). O estudioso francês propôs que a imagem fotográfica poderia materializar o real a partir de três perspectivas: como “espelho do real”; como “transformação do real” e, por último, como “traço do real” (DUBOIS, 1993, p. 26). Voltemos à imagem fotográfica anunciada. Nela, percebe-se nitidamente um grupo de jovens à beira de uma calçada na rua, pois um deles, aparentemente, entrega uma espécie de panfleto45 a um motorista do qual se vê apenas um fragmento de seu veículo. Uma cena absolutamente prosaica em qualquer metrópole, inclusive a São Paulo dos

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A pessoa que distribui o panfleto provavelmente é o próprio poeta Roberto Piva.

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anos de 1960. Essa imagem, cujo enquadramento põe na mesma perspectiva as figuras captadas, pela sua clareza e objetividadade na apresentação do factual, poderia estar nas páginas de qualquer jornal ou revista de grande circulação. Nesse sentido, a fotografia em questão, talvez pela qualidade de ser apreendida como um documento com indícios de materialidade histórica uma vez que apresenta um registro factual associado a coordenadas específicas no tempo e no espaço, poderia ser lida, sob a proposição de Dubois, como um “espelho do real” (DUBOIS, 1993, p. 26). Se o espelho é aquele objeto ou superfície “capaz de refletir a luz e as imagens de objetos e pessoas” (HOUAISS, 2009), por analogia, à fotografia, ou ao menos àquelas passíveis de serem inclusas nessa sistematização, poderia ser imputado o caráter ou a função de refletir, da forma próxima ao verossímel, imagens do mundo devido à semelhança, também pontuada por Dubois, entre foto e referente (DUBOIS, 1993, p. 26). Vejamos mais uma fotografia de Duke Lee que ajude a confirmar, mesmo que em parte, essa primeira proposição de Dubois: Fig. 11 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

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No registro anterior (fig. 11), uma vez mais, outra cena tipicamente corriqueira – pessoas comprando peixes em alguma barraca de feira, que supomos se localizar na cidade de São Paulo – é posta diante do leitor. Nesse exemplo, ainda que o enquadramento e o zoom aplicados à composição da imagem sejam praticamente os mesmos utilizados na feitura das fotos com acento mais delirante conforme veremos logo a seguir, o factual do tema se impõe de maneira quase inapelável, emprestando a essa imagem exatamente o aspecto documental suscitado na fotografia anterior, ou, ainda, de “imitação da mais perfeita realidade” (DUBOIS, 1993, p. 26). Entretanto, vale lembrar que essa primeira proposição de Dubois acerca da fotografia e suas implicações com o imaginário e o real não é unívoca. Ela opera em conjunto com outras duas abordagens, segundo apresentado. Vejamos se ou como essas outras duas perspectivas podem ser utilizadas para a análise de mais algumas amostras de nosso corpus. Fig. 12 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

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Nesta fotografia (fig. 12), o jogo de luz e sombras empreendido por Duke Lee foi levado às últimas consequências46. Entrevê-se algo parecido a uma figura humana que, dissolvendo-se em pura luz – seria mais uma estátua? – segura um objeto de formato oblongo acima da suposta cabeça. Tal artefato, pelas formas e texturas percebidas, lembra bastante uma espada. Nessa composição fotográfica, a “transformação do real” em imaginário, assinalada por Dubois (1993, p. 26), apresenta-se de maneira plausível. A manipulação com fins estetizantes de um registro que poderia pertencer à ordem do cotidiano e/ ou histórico – a imagem de uma estátua – por meio de técnicas de enquadramento, foco e iluminação, sem dúvida, transporta esse objeto dos domínios do real para as intâncias do imaginário uma vez que o resultado não corresponde exatamente à outra imagem espelhada do real, exatamente o oposto do observado a partir das duas fotografias anteriores. Nunca é demais ressaltar que, para a construção da imagem poética, muitas vezes o autor desloca elementos distintos com vistas a suscitar novos efeitos de sentido, desvelar novas realidades, fazendo com que essas útimas acabem por adquirir muitas vezes um viés delirante. Sendo assim, diferentemente das duas imagens fotográficas analisadas anteriormente, poderia ser imputada à foto em questão a condição de imagem poética. Verifiquemos se essa condição apontada pelo filósofo francês e exemplificada no último objeto analisado poderia ser apreendida em outra das imagens fotográficas que compõem o livro Paranoia. Para isso, concentremos nossa atenção na próxima foto.

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A técnica utilizada nessa fotografia remete a uma mistura das “solarizações” com os “raiogramas” do surrealista Man Ray.

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Fig. 13 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Em mais esse registro, a condição de “tranformação do real” (DUBOIS, 1993, p. 26) levantada por Dubois também se revela plausível, mas de uma forma peculiar. O que a princípio e com certo esforço pode ser percebido como o registro do tráfego noturno de alguma rua paulistana, por conta dos efeitos utilizados por Duke Lee – a longa exposição da captação da imagem e o seu foco difuso – acaba por deixar no leitor a impressão de que este não está exatamente diante de uma imagem fotográfica, mas sim de uma pintura impressionista em preto & branco na qual a luz parece ter sido plasmada na superfície da foto/ tela a partir de pinceladas rápidas que emprestam uma sensação de movimento à cena registrada. Nesse sentido, podemos ainda associar essa imagem à ideia de Susan Sontag apresentada no capítulo 3. Para a ensaísta, as imagens fotográficas, muito mais do que objetivar captar ou reconstruir o real, seriam elas mesmas vestígios desse último (SONTAG, 2004, p. 170). No exemplo em questão, o modus operandi empregado pelo fotógrafo acabou por destacar, na imagem capturada, os vestígios de um real fragmentado, propiciando em

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consequência sua apreensão por uma perspectiva mais próxima ao imagético de tons alucinatórios, exatamente como se dá não apenas no delírio paranoico conforme pontuado, mas também na construção e no aparecimento da imagem poética. A terceira proposição de Dubois, que possibilita a apreensão da imagem fotográfica como um “traço do real” (DUBOIS, 1993, p. 26) converge com a ideia de “vestígio” (SONTAG, 2004, p. 170) defendida por Sontag e apresentada no parágrafo anterior. Para ambos, o real, mesmo nos registros fotográficos de natureza artística, apresentar-se-ia, em maior ou menor grau, de forma praticamente indelével. Sob tal perspectiva, vale lembrar que o delírio paranoico ou, ainda, a imagem poética, por mais traços imagéticos que apresentem, sempre tomam como referente inicial algo ancorado à realidade, mesmo que seja para negá-la, destruí-la ou transformá-la. Vejamos mais algumas fotografias do ensaio de Wesley Duke Lee que possam ajudar a comprovar essa proposição, proposição na qual as manifestações fotográficas são tomadas não como registro exato da realidade, mas como elementos que atestam a presença do real ainda que sob uma visada imaginária. Fig. 14 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

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Na fotografía em questão (fig. 14), percebe-se de pronto a figura de um elefante. Entretanto, se dedicarmos um pouco mais de atenção à imagem, poderá ser percebido que o registro captou não apenas um, mas dois elefantes. O enquadramento em close, somado ao recorte provavelmente dado à foto em momento posterior, faz com que a tromba do paquiderme em primeiro plano consiga ser vista como pertencente ao animal que está no plano de fundo e que, paradoxalmente, ocupa a maior parte da superfície da foto. Tal imagem, por conta da temática circense – que joga com o real e o imaginário – e, principalmente, pela composição metonímica, isto é, com as partes sugerindo o todo, encerra mais características de uma foto com traços do imaginário do que algumas variantes que primam pelo registro factual. Por conta disso, pode ser atribuída ao exemplo evocado justamente a condição de “traço de um real” suscitada por Dubois já que o resultado final, apesar de intentar representar uma totalidade, é levado a termo por meio de estratégias que privilegiam e jogam com o detalhe, com o fragmento, com o “traço”. Ainda nos detendo sobre a questão dos “traços” e “vestígios” que, conforme apresentado, podem determinar se o sentido produzido por uma imagem fotográfica se liga mais ao real ou, pelo contrário, ancora-se ao imaginário, mesmo encerrando traços do primeiro, evocamos dois conceitos de Roland Barthes já devidamente apresentados no capítulo 3 (ver p. 93): “studium” e “punctum” (BARTHES, 1984, p. 46). Recordemos que o primeiro está associado, na fotografia, ao que é apreensível de forma geral, levando em conta o contexto, a época ou a cultura. Já no segundo, há a ideia do detalhe inusitado, do fragmento inesperado que, na composição fotográfica, teria a capacidade de transformar um registro cotidiano em expressão artístico-imagética. Tomemos mais uma imagem do ensaio de Duke Lee (fig. 15) para verificarmos se essa perspectiva barthesiana se coaduna de alguma forma às últimas considerações sobre o real e imaginário – fotográficos – anteriormente apresentadas.

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Fig. 15 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Nessa imagem, a cena de um espetáculo circense apresenta-se registrada de forma bastante constatável. Em que pese a iluminação da fotografia, provavelmente advinda do ambiente na qual a performance se desenrolou, apreende-se, até com bastante nitidez, os semblantes e boa parte dos corpos dos artistas. Sob esse prisma inicial, a ideia de “studium” (BARTHES, 1984, p. 46) revela-se plausível na medida em que o registro em questão aparentemente foi composto com a intenção de representar o real da forma mais reconhecível ou clara possível. Entretanto, há algo nessa imagem fotográfica que segue na contramão desta percepção inicial, algo capaz de pungir, conforme anunciado nas palavras do ensaísta francês, o olhar do espectador mais atento. Os membros da jovem contorcionista erguida pelo seu partner, talvez pelo enquadramento e recorte47 dados pelo fotógrafo à cena, parecem se multiplicar. Esse

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Sobre essa questão da fragmentação do elemento corporal na composição fotográfica, vale mais uma vez citarmos Barthes. Para ele, “a fotografia dá um pouco de verdade, com a condição de retalhar o corpo” (BARTHES, 1984, p. 153).

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estranhamento – alucinação visual emulada que faz surgir mais uma vez a imagem poética –, causado tanto pela pose da fotografada quanto pelo olhar do fotógrafo, suscita exatamente a noção de “punctum” (BARTHES, 1984, p. 46) retomada no parágrafo anterior. Ainda sobre o efeito de alucinação suscitado, efeito que turva as fronteiras entre o real e o imaginário, tomemos mais algumas palavras de Barthes, também apresentadas no cap. 3 (p. 66), para arrematarmos a análise dessa imagem. Para o semiólogo francês, a fotografia, “nova forma de alucinação” (BARTHES, 1984, p. 168), poderia ser considerada “falsa no nível da recepção”, mas “verdadeira no nível do tempo: uma alucinação temperada, [...] imagem louca, com tinturas de real” (BARTHES, 1984, p. 168). Essa impressão de falseamento da percepção do que se entende por real aparentemente foi o objetivo de Duke Lee – e também de Roberto Piva quando pensamos na construção das imagens poéticas relativas aos versos do livro – já que, por meio de algumas estratégias, o artista conseguiu justamente transformar referentes caucados na realidade em manifestações de contornos predominantemente imagéticos. Para encerrarmos definitivamente mais essa parte da análise de nosso corpus, tomemos emprestadas outra vez algumas palavras do pesquisador Boris Kossoy. Para o estudioso, a “imagem não pode ser entendida apenas como registro mecânico da realidade factual” (KOSSOY, 2014, pp. 52-53). Muitas das fotografias que integram o livro Paranoia, a despeito do caráter de registro histórico, consequência do flagrante e explícito registro de topônimos e habitantes da cidade de São Paulo, podem ser apreendidas, conforme observado, sob outro viés, artístico e/ ou alucinatório. Os recursos técnicos utilizados por Duke Lee, de forma sensível, fizeram com que grande parte das imagens possa transitar, sob o olhar do leitor-espectador, entre as instâncias do real e do imaginário. Mais algumas palavras de Kossoy sobre o ato fotográfico arrematam em grande medida esse nosso argumento: A deformação intencional dos assuntos através das possibilidades de efeitos ópticos e químicos, assim como a abstração, montagem e alteração visual da ordem natural das coisas, a criação enfim de novas realidades têm sido exploradas constantemente pelos fotógrafos. (KOSSOY, 2014, pp. 52-53)

O que Duke Lee parece ter feito para realizar o ensaio fotográfico que compõe nosso objeto de pesquisa foi se valer dos recursos elencados por Kossoy, isto é, lançou mão de uma grande quantidade de “efeitos ópticos”, “abstração”, “montagem” e “alteração visual da ordem natural das coisas” (KOSSOY, 2014, pp. 52-53) com vistas à criação de “novas

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realidades” (KOSSOY, 2014, pp. 52-53). Todas essas estratégias, em grande parte, puderam ser identificadas nas últimas fotografias analisadas e, segundo entendemos, são perceptíveis ao longo de todo o ensaio que, junto aos poemas de Piva, inundam as páginas com um fluxo imagético e vertiginoso de imagens fotográficas e, sim, poéticas. Neste ponto, chegamos ao fim da análise da segunda parte integrante de nosso corpus – o livro Paranoia –, parte formada, de acordo com o apresentado, pelo ensaio fotográfico do artista plástico Wesley Duke Lee. Ao longo desse percurso, investigamos, em um primeiro momento, a temática urbana e paulistana materializada a partir de registros em preto & branco nos quais podem ser entrevistos não apenas os recursos comumente utilizados na composição fotográfica, mas também técnicas emprestadas de outras instâncias artísticas como a montagem eisensteiniana ou a crítica-paranoica. No segundo momento, foram exploradas as relações entre o real e o imaginário, relações baseadas nas perspectivas de autores cujas ideias convergem no entendimento de que o primeiro é constituído com traços do segundo e viceversa. Para ampliarmos e consolidarmos as análises feitas até o momento, um movimento que contemple simultaneamente os poemas e as fotografias, a partir de agora, faz-se necessário. Vejamos, então, se ou de que maneira mais essa proposição analítica poderia ser aplicada ao nosso objeto de estudo.

4.3 Poesia versus fotografia? “O fotógrafo tem a mesma função do poeta: eternizar o momento que passa.” Mario Quintana

O livro Paranoia, por conta da presença inconteste, no mesmo suporte, de duas manifestações artísticas a princípio distintas – a poesia e a fotografia –, mas com latências em comum, segundo demonstrado nos subcapítulos anteriores (4.1 e 4.2), afigura-se como objeto de análise, consoante entendido, também a partir das interrelações entre seus elementos constituintes. Apresentado no subcapítulo 3.2.4 (p. 107), algo do conceito de “coerência intersemiótica”, ao lado do conceito de imagem poética e o barthesiano “studium/ punctum”, serão utilizados para constituir uma lente analítica no sentido de tentar compreender um pouco melhor se ou como a relação – intermídia e interartes – entre os poemas de Roberto Piva e as fotografias de Wesley Duke Lee se daria. Para isso, será analisado no primeito

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momento um recorte de fotografias e versos no qual possa ser constatada uma maior convergência técnica e/ ou temática. Logo após, serão apresentados exemplos que façam uma espécie de contraponto à proposta da análise inicial, isto é, amostras que indiquem divergências entre temas e táticas nos versos e fotos plasmados ao longo das páginas de nosso corpus.

4.3.1 Convergências

Em Paranoia, tanto na primeira edição, lançada em 1963, quanto na segunda edição, que veio à luz no ano 2000 e com formato fac-similar ao da estreia solo de Piva, há uma alternância perceptível entre o texto poético e a imagem fotográfica sob o ponto de vista da editoração ou, para sermos mais específicos, da paginação. Para cada página na qual se visualiza um conjunto de versos impressos, outra página, na sequência anterior ou posterior, traz estampada em sua superfície uma fotografia. Vale lembrar que aspectos editoriais mais específicos da obra serão comentados no próximo e último capítulo desta dissertação sob a perspectiva da intermidialidade. A questão a ser analisada, sob uma mirada interartes de forma geral, a partir deste momento, diz respeito à convergência – ou não – entre a palavra poética e a imagem fotográfica em seus níveis temático e estratégico conforme assinalado. Para esclarescer algo sobre uma das categorias de estudos acima referida, tomamos emprestado novamente mais algumas palavras do professor Claus Clüver. Segundo o pesquisador germânico: O leque dos Estudos Interartes parte dos estudos de fontes, passa por questões de periodicidade, problemas de gênero e transformações temáticas, até alcançar todas as formas possíveis de imitação que ocorrem através de fronteiras entre mídias (em formas e técnicas estruturais, tendências estilísticas, e outras mais). Os Estudos Interartes abrangem, além disso, aspectos transmidiáticos com possibilidades e modalidades de representação, expressividade, narratividade, questões de tempo e espaço em representação e recepção, bem como o papel da performance e da recitação (CLÜVER, 1998, p.19).

Devido à quantidade de dados apresentados nesta pesquisa, não investigaremos de maneira aprofundada todas as possíveis relações apreensíveis sob a perspectiva interartes indicada na citação anterior. Nosso percurso já se afigura um pouco extenso e as normas sinalizam que o movimento deve ser o de suspender, talvez por hora, a discussão sobre o

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objeto. Entretanto, caberá tecermos ainda pelo menos algumas considerações sobre possíveis aspectos interartes detectáveis em Paranoia para, logo em seguida, no último capítulo, averiguarmos algo dos conceitos da intermidialidade também mencionada. Para iniciarmos esse movimento, coloquemos sob o foco de nossa lente o poema “A Piedade”, logo em seguida acrescido de mais algumas das fotos que entremeiam os versos desse texto.

A Piedade Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema paliçada os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida as senhoras católicas são piedosas os comunistas são piedosos os comerciantes são piedosos só eu não sou piedoso se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda? eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes eu não sou piedoso eu nunca poderei ser piedoso meus olhos retinem e tingem-se de verde Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos (PIVA, 2000, pp. 46-53)

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Fig. 16 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

No poema em questão, o sujeito lírico piviano, uma vez mais, apresenta-se insurrecto ante o real e suas normatizações massificadoras. A revolta do eu lírico já se explicita pelo verbo “urrar”48, ação geralmente associada aos animais ou seres humanos postos em alguma situação limite ou que estejam submetidos à dor. Os “poliedros da Justiça”, topônimo de onde o eu lírico profere em alto e bom som toda a sua revolta, afigura-se como uma metáfora das intituições judiciárias ou, mais especificamente, da coerção social. O texto poético de Piva, prenhe de tensionamentos e construído a partir dos antagonismos condensados na imagem poética conforme demonstrado em outros poemas, nesse sentido, também pode ser entendido como uma espécie de urro simbólico a favor de uma poiesis que possibilite transpor tanto os limites impostos pela linguagem racionalista quanto superar as modulações comedidas do discurso comezinho.

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Vale lembrar que o poeta norte-americano Allen Ginsberg, um dos principais nomes da “Geração Beat”, outra influência notória de Piva não apenas em Paranoia, mas em toda sua travessia poética, escreveu o seminal poema “The howl”, (“O uivo”), alvo de censura ferrenha no final da década de 1950.

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Na fotografia ainda em análise (fig.16), que antecede os primeiros versos do poema, percebe-se uma multidão agitada fazendo explodir fogos de artifício, talvez em comemoração, talvez em protesto, mas em estado de efervescência tal como se apresenta o eu lírico piviano. O poema nos dá pistas sob os integrantes dessa multidão. Segundo o sujeito lírico, nesta cena poética, “os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida” (PIVA, 2000, p. 46). Entretanto, o inconformismo do eu lírico paranoico que, a princípio, dava-se por meio de um “urro”, vocalização ancorada aos instintos e manifestações instintivas, irracionais portanto, logo se manifesta, racional e sistematicamente, em desacordo contra qualquer forma de autoridade e sua respectiva “piedade”: “as senhoras católicas são piedosas/ os comunistas são piedosos/ os comerciantes são piedosos/ só eu não sou piedoso” (PIVA, 2000, p. 51). Na sequência, o eu lírico tece uma vertiginosa enumeração de motivos pelos quais ele se recusa a ser “piedoso”, encerrando seu libelo poético com uma série de visões delirantes, próprias do sujeito paranoico. Ora, se dedicarmos um pouco mais de atenção à sequência fotográfica que entremeia os versos do poema em análise perceberemos exatamante alguns dos elementos citados nos versos do parágrafo anterior. A convergência entre as temáticas e as linguagens nas páginas de Paranoia, nesse sentido, atesta aquilo que o pesquisador Luís Hellmeister de Camargo, citado no capítulo 3 (p. 107), categorizou como “coerência intersemiótica” (CAMARGO, 1988, p. 74), ou seja, uma confluência, no caso, entre instâncias estéticas cujas semioses, no sentido peirceano, apresentam-se inicialmente distintas. Passemos para outra das imagens fotográficas que integram o recorte analítico neste momento proposto.

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Fig. 17 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

A foto acima (fig. 17), por exemplo, aparentemente é o registro de uma escola católica, pois são percebidas na imagem figuras humanas típicas desse ambiente. As freiras focalizadas ao centro – professoras nesse tipo de instituição de ensino –, trajadas com seus hábitos escuros, fazem um contraponto às jovens – supostas alunas – localizadas no primeiro plano e no plano de fundo, todas vestidas com roupas de tons mais claros. Se a imagem poética é formada pela aproximação entre elementos com natureza distinta, à fotografia em questão também caberia a mesma condição uma vez que, em sua construção, uma leitura mais atenta identifica exatamente a tensão entre peças contrastantes – a juventude da adolescência e a maturidade das “piedosas senhoras católicas” –, mas com latência comum, nesse caso, o espaço educativo e religioso, dispositivos de controle social conforme observado pelos filósofos Michel Foucault e Giorgio Agamben (AGAMBEN, 2009). O segundo elemento contra o qual o eu lírico diverge por conta de sua incapacidade de ser “piedoso”, isto é, de comungar com os mesmos valores impostos e que delimitam e censuram, em grande parte, o que é considerado real ou imaginário, surge na próxima

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fotografia (fig. 18). Nela, há o registro de um cartaz no qual se lê a sentença “Eu sou o comunismo” (PIVA, 2000, p. 49). Já foi dito no capítulo 2 que a imagem poética, em grande parte, deve sua existência e potência aos procedimentos analógicos, dentre eles, a metáfora. O aparecimento da imagem poética, nesse caso, pode ser entendido como consequência de uma operação metafórica advinda da correspondência latente entre a palavra e a imagem, no caso, entre o verso de Piva e a frase captada pelo registro fotográfico de Duke Lee, contra/postas no mesmo suporte. Fig. 18 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Se no poema de Piva, diferentemente dos “comunistas”, o eu lírico vaticina não ser “piedoso”, na fotografia de Duke Lee a oração em primeira pessoa transforma esse próprio sujeito lírico não apenas em um “comunista”, mas no próprio “comunismo”. A relação aqui percebida não é exatamente de convergência ou “coerência intersemiótica” (CAMARGO, 1988, p. 74), mas de divergência entre uma parte do texto poético e a informação encerrada na fotografia. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, essa tensão empresta um caráter de

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alucinação, de confusão entre o real e o imaginário, situações de indecibilidade e turvamento que possibilitam justamente o surgimento luminoso da imagem poética. Antes de prosseguirmos em nossa análise comparativa, cabe destacar mais um detalhe. Segundo depoimento de Claudio Willer intitulado “Inéditos de Piva: o último da série”: “Observei em outras ocasiões que o Piva que se declarava marxista e se apresentava em público declarando “eu sou comunista” na década de 1970 e o monarquista ou anarcomonarquista a partir dos anos de 1980 foram o mesmo” (WILLER, 2013)49. A opção ideológica naquele momento adotada pelo poeta – o início da década de 1960 – alguns anos antes do estabelecimento da ditadura no Brasil, saltou do real para o imaginário pelas lentes de Duke Lee. Nesse sentido, cabe pensarmos que tanto o poema de Piva quanto a foto de Duke Lee convergem – guardando visadas análogas ao Surrealismo – em técnica e temática, pois além de fazer entrever a imagem poética por conta da tensão sugerida, resgatam a premissa defendida por André Breton de que, no Surrealismo, arte e política seriam indissociáveis. Lidos em conjunto, poema e fotografia recuperam algo desse engajamento preconizado por nomes significativos da vanguarda mencionada. Passemos à próxima foto (fig. 19) para verificarmos se a linha de raciocínio apresentada até o momento, linha que privilegia as relações interartes, ou seja, as ligações possíveis quando, no mesmo espaço de materialização, são postas duas linguagens distintas tais como a poesia e a fotografia, ainda se sustenta.

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Disponível em: https://claudiowiller.wordpress.com/2013/09/29/ineditos-de-piva-o-ultimo-da-serie/. Acesso: 13 out. 2015.

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Fig. 19 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

O terceiro elemento posto em xeque no poema se refere aos “comerciantes”. Assim como as “senhoras católicas” e os “comunistas” enumerados no corpo do texto e já analisados, ele também se apresenta caracterizado pela “piedade”, que sob o olhar alucinado e inconformado do sujeito lírico piviano, encerra uma forte carga irônica. Mas, assim como nas outras fotografias, haveria algum detalhe, alguma espécie de “punctum” capaz de associar a imagem anterior não apenas ao poema de Piva, mas ao próprio conceito de imagem poética? Se observarmos com atenção, a fachada da loja apresenta uma placa com os dizeres “um presente para você”. Até aí, identificamos o que Barthes chamou de “studium”, isto é, um elemento capaz de referenciar com dados do real um determinado elemento dentro da perspectiva fotográfica (BARTHES, 1984, p. 46). Entretanto, um detalhe “punge” a mesma cena: a escuridão do estabelecimento percebida a partir da entrada, escuridão que suscita solidão e abandono, parece contrastar com os pedestres na calçada do lado exterior que, de maneira apressada, passam pela loja sem dar a mínima atenção para os produtos oferecidos e que estão expostos nas vitrines. O antagonismo entre a vida exterior, luminosa e apressada, e

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o ambiente interior, mal iluminado, zona de sombra estática e vazia, cria as condições, uma vez mais, para o surgimento da imagem poética, que já sabemos ser apreensível tanto nos versos de Piva quanto nas fotografias de Duke Lee a partir da aproximação deliberada ou mesmo da associação livre entre elementos e instâncias equidistantes. A relação entre verso e foto – interartes quando a imagem fotográfica é considerada, assim como a poesia o é, arte – se estende de maneira prismática pelas páginas de Paranoia. A fotografia a seguir (fig. 20), por exemplo, pode ser tomada como síntese perfeita do seguinte verso, pertencente ao “Poema porrada”, em parte analisado no subcapítulo 4.1 (p. 138): “trago o mundo na orelha como um brinco imenso” (PIVA, 2000, p. 133).

Fig. 20 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

A bela imagem, ressaltada pelo contraste sensível entre o preto, o branco e todo um matiz de cinzas, traz o registro de uma figura feminina de perfil, pose a partir da qual pode ser percebido, como um “punctum” barthesiano, um imenso brinco. Tal acessório, também evocado no poema como análogo ao mundo, na foto em questão, leva formato esférico e

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pontiagudo. Esse detalhe poderia ser tomado não apenas como metáfora de um mundo hostil e obsedante, sempre a atormentar a consciência do eu lírico como o fazem as vozes típicas da alucinação paranoide, mas como uma síntese imagética do próprio conceito de “punctum”, que é justamente aquilo que “punge”, que pica, que perfura de forma sutil e paradoxalmente intensa. No poema “Visão 1961”, analisado no subcapítulo 4.1 (p. 190), o verso “Porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando/ a sangria diurna de olhos fundos e neblina enrolada na voz/ exaurida na distância” (PIVA, 2000, p. 17) encerra elementos que por sua vez podem ser percebidos na composição fotográfica da próxima imagem.

Fig. 21 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

O registro em questão traz exatamente a figura de um mendigo, evocada no poema, deitada em um topônimo que aparenta ser uma praça. O veículo ao fundo, um fusca, indica também a presença de uma alameda ou rua, outro dos elementos mencionados no recorte

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analisado. O fato de o mendigo estar deitado sob a luz do dia em um lugar público suscita e converge com a ideia, apresentada nos versos, de que o mesmo estaria em um estado de torpor alcoólico, ou ainda, sob o feito de “porres” conforme anunciado no poema. A relação temática entre poema e fotografia, nesse exemplo, apresenta-se de forma praticamente indubitável. A presença de elementos comuns às duas manifestações – poética e fotográfica –, fazendo com que haja uma espécie de dialogismo tácito entre os textos que também desvela a mencionada “coerência intersemiótica” (CAMARGO, 1988, p. 74), evidencia por sua vez o caráter interartes da obra Paranoia. Assim como na penúltima fotografia analisada (fig. 20), pode ser entrevisto algo do “punctum” bartesiano quando direcionamos o olhar para um detalhe que se destaca entre os elementos que contribuem para a composição dessa imagem. No primeiro plano da fotografia em questão (fig. 21), entrevê-se uma planta ornamental de formato espinhoso. Se o “punctum” na imagem fotográfica é aquilo que “punge”, esse elemento, assim como o brinco analisado em outra fotografia (fig. 20) poderia também ser lido como analogia ao conceito barthesiano já que seu formato e posicionamento de destaque em relação aos elementos dos planos subsequentes da imagem chama a atenção do espectador mais atento. Ainda sob a perspectiva interartes/ intermídia, em nosso objeto, outro aspecto chama a atenção devido à composição editorial que privilegia, no espaço em comum das páginas, a relação entre poesia e fotografia. Os poemas e as imagens fotográficas poderiam ser lidos como uma sequência cinematográfica, assim como demonstrado em relação aos versos de Piva na primeira parte deste capítulo? Acreditamos que sim. Lembremo-nos de que uma das características da intermidialidade apontadas por Irina Rajewsky no capítulo anterior (p. 105) é a apropriação, por parte do artista, de técnicas advindas de formas distintas de manifestação estética como o cinema, das quais se originaram as “tomadas em zoom, dissolvências, fades e edição de montagem” (RAJEWSKY, 2012, p. 25). Susana Dobal, citada anteriormente, observa algo em sua pesquisa que acreditamos ser apreensível nas linguagens artísticas plasmadas no livro Paranoia e que pode ajudar a responder afirmativamente às nossas questões: A recusa da mímese como meta para o cinema identifica o projeto das vanguardas, embora a diversidade de soluções para isso represente uma dificuldade em colocar tantas opções sob um só rótulo. A negação da mímese, entendida aqui como cópia, implica em outra forma de gerenciar a

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montagem, longe das sequências lineares de causa e efeito. (DOBAL, 2011, p. 79)

Essa “recusa da mímese”, assinalada por Dobal, pode ser entrevista tanto nos poemas quanto em algumas das fotografias de Paranoia devido à natureza flagrantemente imagética dos versos e das imagens fotográficas, materializações linguageiras que muitas vezes turvam a percepção do leitor em relação ao que pode ser interpretado como real ou visto como imaginário na obra em questão. Um dos recursos que acreditamos ter sido utilizado para levar adiante essa estética da alucinação e que já foi analisado nos subcapítulos anteriores é a montagem, especificamente, a “montagem intelectual”. É sob essa variante de montagem, na qual o “conflito-justaposição” (EISENSTEIN, 1990, p. 83) de fragmentos propicia um jogo tenso no qual as relações de “causa e efeito” já não são apreendidas exatamente de forma lógica ou racional, que tentaremos analisar mais alguns versos e fotos que constituem nosso corpus. Para nos auxiliar na construção e na aplicação de mais esta visada analítica, evocamos novamente mais algumas palavras de Susana Dobal. Segundo a pesquisadora: Uma das estratégias nesse livro que aproximam a sua edição da montagem cinematográfica é a utilização de recursos para reunir imagens e palavras, unidades distintas que devem se juntar para anunciar determinados temas e assim alinhavá-las em uma só sequência. (DOBAL, 2011, p. 83)

Tomemos o poema “Paisagem em 78 R.P.M.” para verificarmos a validade dessas hipóteses que a princípio comungamos:

Paisagem em 78 R.P.M.

A criança abaixa as sobrancelhas e o sorvete sobre a cabeça de lata de Camões esquecida atentamente nos estofos normais de um Packard Eu sou naquela tarde um ritmo sabendo de antemão um coração ferido Sem ser necessariamente elogiado pelos plátanos ou saltar das fronteiras de São Paulo para abraçar as redondilhas da vida pastoral Os filantropos entraram com o pé direito na Casa da Avenida Lansquené

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e os pardais urravam nos ninhos feitos com cabelos de Trotski as latas de compota riam com as línguas de fora o Sol se punha nos meus planos e a nossa amante ruiva bota no pescoço um lenço verde de Tolstoi No alto do viaduto o louco colava pedacinhos de céu na camisa de força destruindo o horizonte a marteladas a Morte é um REFRÃO NO CRÂNIO SEM JANELAS (PIVA, 2000, pp. 110-113)

A fotografia (fig. 22) que abre o poema de Piva antecede não o primeiro verso, mas o próprio título do texto. Esse detalhe é atribuído à diagramação feita por Massao Ohno, e foi repetido sistematicamente por todo o livro. A primeira das imagens a serem analisadas com o poema se apresenta como o registro visual de um quadro de força ou uma placa de circuitos – em close – o que dificulta sua identificação e proporciona, a partir da fragmentação dessa imagem, o vislumbre da problemática indistinção entre o real e o imaginário, condição propícia ao surgimento da imagem poética segundo exaustivamente pontuado. A temática eletro-mecânica da fotografia talvez possa ser lida como síntese do próprio título do poema, que é uma alusão à rotação de toca-discos elétricos e que foi aplicada, através da analogia, não à música, mas sim à imagem, reforçando entre o poema e a imagem uma sensação de aproximação entre instâncias distintas.

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Fig. 22 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Na sequência dessa foto, os primeiros 14 versos do poema se apresentam sob uma diagramação espaçada e desuniforme que além de sugerir uma sensação de velocidade justificando o título do texto, faz com que pareçam dançar sobre a superfície da página branca. Esse recurso de diagramação textual afigura-se característico da obra piviana e foi adotado em outros livros, como por exemplo, o sucessor de Paranoia, o livro Piazzas, de 1964. A próxima fotografia a ser analisada – que vem na página imediatamente após a primeira parte do poema em que a figura de Camões, no terceiro verso, é mencionada como sendo “de lata” – traz, ainda que parcialmente encoberta por uma faixa com uma palavra a princípio não reconhecível50, a estátua do autor de Os lusíadas. Se entendermos os versos como uma voz narrativa em off, poderia ser apreendida uma ligação com características de montagem, ainda que de forma alusiva ou analógica, feita a partir dessa aproximação técnica e temática que percebemos haver entre os versos de Piva e a foto de Duke Lee.

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A sequência de letras em questão – “sind” – pode ser associada à palavra “sindicato”.

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Fig. 23 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Os últimos 16 versos do poema, que seguem o mesmo padrão errático de diagramação apontado, são antecedidos pela próxima fotografia (fig. 24). Há de se destacar que a sequência dos versos nesse mesmo poema, pelo nonsense do conteúdo, lembra em muito as sequências feitas a partir dos procedimentos de montagem no qual fragmentos de sons e imagens, com planos e temas aparentemente opostos, são justapostos com vistas a potencializar o efeito de ambos os elementos aproximados, exatamente como o ocorrido na imagem poética. Nesse sentido, a fragmentação e a aproximação de elementos a princípio díspares materializados nos poemas e nas imagens fotográficas são levadas a termo em Paranoia por meio da montagem, análoga à cinematográfica, entre imagem e palavra.

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Fig. 24 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Nesse registro fotográfico (fig. 24), o uso da técnica do zoom fez com que fossem apreendidos, no mesmo plano ou enquadramento, o Viaduto do Chá, reconhecido topônimo da capital paulista, e a figura de um homem encapotado que cruza o logradouro. Ora, na segunda parte do poema, a menção à figura retratada na foto pode ser claramente percebida nos seguintes versos: “No alto/ do Viaduto o louco colava pedacinhos de céu/ na camisa de força/ destruindo o horizonte a marteladas” (PIVA, 2000, p. 113). A imagem fotográfica, nesse ponto, complementa de forma elíptica e condensada, como em uma montagem cinematográfica, os versos em questão. A sensação é a de que o fotógrafo flagrou o personagem em fuga logo após o último ter cometido seu delito. Há de se ressaltar ainda que, no poema, a descrição dessa figura, como não poderia deixar de ser, se dá sob o ponto de vista de um eu lírico paranoico, delirante, e que toma não a si como louco, mas o outro, no caso, o senhor encapotado, sob esse prisma, por uma “camisa de força”. Poema e fotografia aparentemente também trazem em comum a perspectiva da observação, baseada em um olhar que se constitui de baixo para cima, em “contra-plongée”. No poema, a sua diagramação em

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escada é o que provoca, de maneira análoga, esse recurso/efeito óptico que pode ser perfeitamente apreendido nessa fotografia de Duke Lee. A “montagem intelectual”, da perspectiva dos objetos analisados, pode ser razoavelmente apreendida quando consideramos cada verso e cada fotografia exatamente como um fotograma, um quadro, um frame. Exibidos conjuntamente, os elementos citados, organizados em sequência apesar de contrastantes em

essência, emprestam ao

leitor/espectador a sensação de estar diante de uma sequência fílmica eisensteiniana como “O encouraçado Potemkin”, de 1925. Nesse trabalho fulcral do teórico e cineasta, a Revolução Russa de 1905 foi encenada e captada a partir de uma sequência vertiginosa de imagens e diálogos – as falas do narrador e de algumas das personagens são exibidas de maneira escrita entre as cenas –, submetidos exatamente aos processos de montagem difundidos por Eisenstein. O encadeamento dessas imagens, regido por uma lógica que objetiva suscitar no espectador nem tanto uma sensação de narratividade, mas sim a percepção de novas realidades por meio da aproximação ou justaposição de instâncias distintas, por analogia, seria capaz de fazer surgir algo como a imagem poética. E é exatamente ela, a partir de um processo no mínimo análogo à montagem fílmica, que parece surgir da sequência de fotografias e versos editados por Massao Ohno em Paranoia. Vimos que a aproximação entre os poemas de Roberto Piva e as fotografias de Wesley Duke Lee pode ser entendida como fruto de um movimento de convergência entre as miradas de ambos os artistas. Segundo apresentado no início deste capítulo, Duke Lee soube ler de maneira mais do que apropriada os versos de Piva para a elaboração e concretização do ensaio fotográfico que permeia e complementa os poemas. Entretanto, apesar de a convergência entre as linguagens poética e fotográfica ter sido comprovada em nosso objeto tanto pelos temas quanto pelas estratégias utilizadas, outra pergunta, uma das derradeiras nesta pesquisa, ainda se apresenta: haveria algum indício de divergência entre os poemas e as fotografias, ao contrário do que até o momento foi demonstrado?

4.3.2 Divergências

Embora a maioria absoluta das fotografias do ensaio de Duke Lee apresente pontos em comum com os versos de Piva conforme demonstrado, percebe-se que, em algumas passagens do livro, imagem fotográfica e poema não compartilham a mesma temática. Esse fenômeno,

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de uma maneira mais ampla, também foi observado por Luís Hellmeister de Camargo e classificado dentro da “coerência intersemiótica” mencionada no subcapítulo anterior como “desvio” ou “contradição” (CAMARGO, 1998, p. 74). Vejamos um exemplo que nos ajude a visualizar algo dessas proposições.

Fig. 25 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Nessa fotografia (fig. 25), provavelmente captada por Duke Lee em uma feira de rua, topônimo que integra uma das categorias de registros frequentes em Paranoia conforme demonstrado no subcapítulo 4.2 (p. 140), o formato das lonas das barracas sobre as quais incide uma luz intensa, contrastando com o plano escuro ao fundo, lembra algo como velas de barcos, ou ainda, o próprio mar em um dia tempestuoso repleto de ondas agitadas. Passemos ao poema que acompanha, no livro, a foto. Visão 1961 as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva

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o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de chuva fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários dos manequins minhas alucinações pendiam fora da alma protegida por caixas de matéria plástica eriçando o pêlo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes de lábios apodrecidos na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu que renascem nas caminhadas noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos visionários da Beleza já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela Noite os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar asilo na tua face? no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas engorduradas E a Bolsa de Valores e os Fotógrafos pintaram seus lábios com urtigas sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha verteram monstros inconcebíveis ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos das Catedrais sem Deus arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas adolescentes numa Apoteose de intestinos porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando a sangria diurna de olhos findos e neblina enrolada na voz exaurida na distância cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos agonizantes minhas tristezas quilometradas ir pela sensível persiana semi-aberta da Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras cruzadas no olhar as névoas enganadoras das maravilhas consumida ir sobre o arco-íris

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de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das portas sofrendo nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno da noite no coração seco do amor solar meu pequeno Dostoiévski no último corrimão do ciclone de almofadas furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno estende até O Mar no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores pulam no Caos (PIVA, 2000, pp. 7-20)

Basta uma leitura do poema para que se constate não haver nenhuma associação direta entre a fotografia em questão e os versos que compoem o primeiro. Isso confirma a observação anterior sobre a existência do “desvio” e/ ou da “contradição” na assim chamada “convergência semiótica” (CAMARGO, 1998, p. 74). Em “Visão 1961”, não há indícios concretos que possam associá-lo, ao menos sob a perspectiva temática, à foto. Nem mesmo nos versos que ocupam a página que espelha a imagem fotográfica51 pode ser percebida qualquer alusão ou menção relativa a essa última. É nesse sentido que entendemos também haver divergências na construção do ensaio de Wesley Duke Lee em Paranoia. Em algumas fotografias, o tema apresentado não estabelece qualquer relação imediata com o texto poético. Vejamos mais um exemplo em que esse detalhe possa ser novamente apreendido.

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“[...] minhas alucinações pendiam fora da alma protegida por caixas de matéria / plástica eriçando o pêlo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes/ de lábios apodrecidos/ na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um/ Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu/ que renascem nas caminhadas/ noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando/ aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos/ visionários da Beleza” (PIVA, 2000, p. 8).

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Fig. 26 Foto de Wesley Duke Lee

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

A fotografia acima (fig. 26), mantendo a sensível brincadeira de fazer contrastar o preto & branco por meio da iluminação e do enquadramento – recursos comuns a todas as fotografias do ensaio, nunca é demais ressaltar – traz no primeiro plano a figura de dois cães, um deles, aparentemente fantasiado. Ainda, o ângulo conseguido por Duke Lee ao registrar a cena fez com que os dois animais pudessem ser apreendidos como se estivessem em cópula, reforçando o efeito de parecerem apenas um ser, metáfora perfeita – imagem poética – que ilustra algo da relação tensa e confusa entre o real e o imaginário, relação essa já devidamente levantada junto ao nosso corpus nos subcapítulos anteriores. Passemos agora ao poema que divide a sequência de páginas com a foto apresentada.

Os anjos de Sodoma Eu vi os anjos de Sodoma escalando um monte até o céu E suas asas destruídas pelo fogo abanavam o ar da tarde

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Eu vi os anjos de Sodoma semeando prodígios para a criação não perder seu ritmo de harpas Eu vi os anjos de Sodoma lambendo as feridas dos que morreram sem alarde, dos suplicantes, dos suicidas e dos jovens mortos Eu vi os anjos de Sodoma crescendo com o fogo e de suas bocas saltavam medusas cegas Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e violentos aniquilando os mercadores, roubando o sono das virgens, criando palavras turbulentas Eu vi os anjos de Sodoma inventando a loucura e o arrependimento de Deus (PIVA, 2000, pp. 105-106)

Após a leitura dos versos, mais uma vez, o elemento principal da fotografia – neste caso, os cães – não se apresenta no texto de forma explícita, talvez nem mesmo alusiva, o que acaba por desvincular as possíveis leituras do poema de algum sentido apreendido na imagem fotográfica e fazendo surgir, uma vez mais o “desvio/contradição” teorizados por Luís Hellmeister Camargo (1988, p. 74). Entretanto, há mais um detalhe a ser mencionado acerca das relações entre a imagem e a palavra em Paranoia. Ainda que nos últimos exemplos demonstrados se destaque de maneira nítida a divergência entre os temas e táticas de poemas e imagens fotográficas, as temáticas das últimas podem ser nitidamente percebidas em versos de outros poemas. No poema “A Piedade”, por exemplo, o verso “Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas” (PIVA, 2000, p. 53) evoca o mesmo elemento presente na foto. O verso iconoclástico do “Poema Porrada” – “o universo é cuspido pelo cu sangrento/ de um Deus-Cadela” (PIVA, 2000, p. 128) – assim como o supracitado, certamente poderiam ser associados a última das fotografias esquadrinhadas. No “Poema de ninar para mim e Bruegel”, no qual o sujeito lírico percorre “todas as barracas/ atropelando anjos da morte chupando sorvete” (PIVA, 2000, p. 69), a menção às barracas pode ser uma alusão à penúltima fotografia analisada (fig. 25), que registra exatamente um conjunto de barracas. Nesse sentido, cabe dizer que mesmo as divergências não são exatamente divergências em Paranoia. Ainda que uma fotografia não corresponda ao poema com o qual esteja dividindo as páginas, ela ainda pode ser associada a outros versos, transformando o livro em uma espécie de puzzle, um quebra-cabeça cujas peças, fragmentos

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poéticos e fotográficos, apresentam-se passíveis de serem montados, como proposto por Eisenstein ou Salvador Dali, a partir da livre associação regida por uma tensão advinda justamente do embate entre instâcias distintas, embate que também pode ser tomado como algo intrínseco às manifestações interartes e gerador da imagem poética. Tal movimento, ainda vale destacar, pode dar a ver que essa perspectiva funcionaria não apenas no nível da composição do poema ou da fotografia, mas também no âmbito da produção do livro. Certamente poderiam ser apresentados outros exemplos substanciosos nos quais a imagem fotográfica não corresponderia exatamente ao tema proposto no poema. No entanto, há mais alguns aspectos em nosso corpus, constituído pelos poemas e fotografias do livro Paranoia, que merecem atenção e serão abordados logo adiante no quinto e último capítulo, o que consequentemente põe término a mais esta etapa de nossa análise.

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CAPÍTULO 5: PARANOIA EM DOIS TEMPOS

“O mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo imagem do mundo [...]”. Gilles Deleuze, Félix Guattari

Depois de explorarmos algumas das possíveis relações entre os poemas de Roberto Piva e as fotografias de Wesley Duke Lee – tanto do ponto de vista temático quanto das perspectivas táticas –, entendemos que o suporte no qual ambas as linguagens foram plasmadas, isto é, o livro, também se afigura como elemento importante não apenas no sentido de ajudar a consolidar nosso movimento de análise do corpus escolhido, mas também à própria recepção da obra em questão. Sendo assim, faz-se necessário mais uma série de análises, a última, no intuito de trazer à luz alguns aspectos que por ventura não foram contemplados nos estudos apresentados em capítulos anteriores. Mais uma vez, a intenção é a de continuar a tecer um olhar crítico que possa dar conta tanto do texto poético quanto das imagens fotográficas, a despeito de suas peculiaridades. Ainda nesse sentido, dividiremos este momento de nossa pesquisa em quatro partes sucintas. Na primeira parte deste último e quinto capítulo, serão retomadas algumas considerações sobre o objeto livro em nosso imaginário cultural, importantes para a contextualização do nosso trabalho. Em seguida, depoimentos e observações sobre a gênese do livro Paranoia serão apresentados para solidificar o primeiro movimento supracitado. Nas seções seguintes, serão analisados e contrapostos alguns aspectos editorais referentes a todas as três edições que o livro já teve até o momento. Por último, serão tecidas mais algumas observações para arrematar esse derradeiro movimento de análise.

5.1 Livro & imagem “Tudo, no mundo, existe para acabar num livro.” Stéphane Mallarmé

A materialização do livro como um suporte no qual a palavra divide espaço com

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outras formas de linguagem como a imagem, há algum tempo, tem adquirido corpo significativo dentro do imaginário cultural. Desde as iluminuras medievais, passando pelas inovações que a prensa de Gutenberg proporcionou em relação à edição e à distribuição, desaguando no atual contexto em que o próprio conceito deste objeto tem sido questionado, a imagem, como um duplo da palavra, tem ajudado a consolidar o papel do livro não apenas como um meio de potencializar e multiplicar por meio dele as possibilidades de expressão artística, mas também de constituí-lo como produto diferenciado sob a ótica comercial do mercado. Em pleno século XX, período em que a imagem fotográfica atingiu seu apogeu conforme apresentado no terceiro capítulo, o livro tornou-se um dos suportes no qual a fotografia encontrou espaço para a construção de um diálogo no mínimo instigante. No contexto das vanguardas modernas, as quais os autores de nosso corpus certamente tomaram por referência, houve exemplos marcantes que ilustraram e solidificaram a relação entre literatura e imagem fotográfica consoante apresentado ao longo do terceiro capítulo. No já citado romance Nadja (1999), do surrealista André Breton, lançado no ano de 1928, o texto apresenta-se entremeado por fotografias que, muito mais do que apenas ilustrar as páginas do volume, contribuem para a construção da narrativa. No livro A pintura em pânico (1943), do modernista Jorge de Lima, a fotografia, materializada sob a forma de collage, ganha destaque em relação ao texto, constituído por vários fragmentos poéticos muitas vezes tomados por simples notas de rodapé com teor nonsense. No Brasil, 35 anos após a narrativa em prosa do surrealista Breton ter sido editada, a experiência de unir no espaço em comum da página a palavra e a imagem, especificamente, o poema e a fotografia, foi concretizada de maneira singular, um pouco diversa a do trabalho do poeta e fotomontagista Jorge de Lima. No livro Paranoia, a relação por vezes harmoniosa, por vezes tensa, advinda entre o verso e a foto, entre a palavra poética e a imagem fotográfica, afigura-se como fio condutor de um discurso e de uma plasticidade fortemente imagéticas que, a despeito do aparente caráter de invenção, filia-se a uma tradição estética razoavelmente sólida segundo atestam as referências apresentadas. Vejamos como tal objeto vem se materializando, sob o ponto de vista editorial, desde sua concepção.

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5.1.1 A gênese de Paranoia

A primeira edição de Paranoia foi preparada pela Editora Massao Ohno. O pequeno, mas importante empreendimento foi criado em meados dos anos 50 para editar inicialmente material didático destinado a atender aos estudantes de cursinhos pré-vestibulares. No entanto, a editora passou a se destacar no cenário cultural de então quando começou a incorporar a seu catálogo a fina flor da nova poesia brasileira produzida a partir dos anos iniciais da década de 1960. O fundador da editora, o nissei Massao Ohno, nasceu na capital paulista em 1936. Veio a falecer, assim como Piva e Duke Lee, no ano de 2010, conforme já apresentado ao longo do primeiro capítulo. Além de editor, Massao também foi artista gráfico e agitador cultural. Ele foi responsável por editar, além de Piva e de outros “Novíssimos”, grande parte da obra da escritora Hilda Hilst. Por meio de sua editora, Ohno conseguiu estabelecer uma grande interlocução com as artes plásticas, incorporando vários trabalhos dessa natureza aos seus projetos editoriais. Entre 1961 e 1962, período em que se deu a criação dos poemas do livro, o jornalista Thomaz Souto Corrêa, que viria a ser o prefaciador da primeira edição de Paranoia, apresentou o poeta Piva ao artista plástico Wesley Duke Lee. Segundo Corrêa em depoimento no livro Os dentes da memória (D’ELIA; HUNGRIA, 2011): “eu era amigo do Wesley, então aproximei os dois quando o Piva começou com a ideia do livro. O Wesley – que não era fotógrafo, mas sim artista plástico – preparou aquele ensaio fotográfico belíssimo que está longe de ser uma simples ilustração de poemas” (2011, p. 57). Além de preparar o ensaio fotográfico que foi agregado aos poemas na primeira edição de Paranoia, Wesley Duke Lee também foi o responsável pela diagramação do livro. De acordo com Cacilda Teixeira da Costa, estudiosa da obra de Duke Lee, tal experiência, ocorrida logo após o retorno do artista de uma temporada no exterior, foi deveras intensa. [...] outra experiência desse período que lhe revolvia a alma e as entranhas era a ilustração dos poemas de Paranoia, de Roberto Piva, e o leiaute do livro. Passou sete meses percorrendo ruas, praças, becos, parques de diversão e o mundo homossexual de São Paulo em companhia do poeta, à procura de imagens. [...] O livro hoje é um cult, e, apesar de as fotos que Wesley usou como ilustração terem sido mal reproduzidas, as imagens mostram a energia de Piva e a grande força de seu homossexualismo (COSTA, 2005, pp. 57-58).

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Outro detalhe curioso sobre a gênese editorial de Paranoia foi relembrado pelo próprio Piva, em uma de suas entrevistas: “Foi o primeiro lançamento sem livro de que se tem notícia, no Teatro Oficina, em abril ou maio de 1963. O Massao não conseguiu aprontar pro dia” (PIVA apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 55). Antonio Fernando de Franceschi, poeta e um dos companheiros de Piva na assim chamada “Geração 60”, que inclui além dos próprios Piva e Franceschi poetas como Claudio Willer, Rodrigo de Haro e Roberto Bicelli, dentre outros na cena literária paulistana de então, lembrou-se de que na época era “comum fazer lançamento sem livro” (DE FRANCESCHI apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 55) eximindo de certa maneira a responsabilidade do editor Massao Ohno: “[...] jamais poderíamos culpar o Massao, que era o único editor com disposição e temeridade de publicar autores jovens. Ele fazia tudo por conta própria, sem cobrar dos escritores e transferindo recursos de seus outros trabalhos” (DE FRANCESCHI apud D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 55). Deve ser ressaltada, antes de procedermos a uma efetiva análise do corpus no recorte aqui proposto, a possível dificuldade encontrada na edição e circulação dessa e de provavelmente outras obras literárias da mesma natureza naquele período. Tanto a figura do coautor, nesse caso representada pelo fotógrafo e designer do leiaute de Paranoia, Wesley Duke Lee, quanto o responsável por outras etapas dos processos editoriais relacionados ao mesmo livro, no caso, o editor Massao Ohno, encontraram obstáculos que não necessariamente deixaram de existir nas últimas décadas. A ocorrência de tais dificuldades e obstáculos, então no contexto em que Piva debutava na cena literária brasileira, e aqui apontada como algo ainda corriqueiro, pode ser relacionada a falhas em duas operações fundamentais no processo editorial no sentido apontado por Aníbal Bragança em trabalho que oferece um panorama histórico da edição no Brasil (BRAGANÇA, 2002): a edição e a distribuição. Sugere-se neste ponto que tais operações, em maior ou menor grau, passaram pelas mãos de certas tipologias de editores levantados por Bragança52. Editores que, assim como os artistas cujas obras editavam, são frutos do seu próprio tempo, sujeitos às idiossincrasias e vicissitudes discursivas e

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Segundo Aníbal Bragança, há na tradição editorial três categorias de editor: o “impressor-editor”, que a partir de Gutenberg “centraliza o processo de seleção dos livros a editar”; o “livreiro-editor”, que nascendo na loja tem o “saber do empresário mercantil que sabe como atender a sua clientela potencial, de forma lucrativa para sua empresa” e o simplesmente “editor”, que utiliza seu “conhecimento do mercado de bens culturais para criar uma política editorial e estabelecer as linhas de atuação para realizá-la” (BRAGANÇA, 2002, p. 62).

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mercadológicas inerentes a sua época. O primeiro empecilho se deu por conta da dificuldade da própria edição do objeto enquanto livro de uma possível “má reprodução” das fotografias usadas no projeto gráfico, suscitada na pesquisa de Cacilda Teixeira da Costa (2005, p. 58) citada no primeiro capítulo desta dissertação. Nesse sentido, a despeito da competência dos autores, caberia questionar se houve alguma perda de qualidade do livro53, o que poderia ter afetado assim a recepção dessa obra. O segundo empecilho diz respeito à dificuldade de distribuição do objeto. Conforme comentado na página anterior, a primeira edição sofreu um atraso na impressão impedindo que os exemplares ficassem totalmente prontos para o evento de lançamento54 (D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 55). Naquela ocasião, tal acontecimento pode ter levado a algum prejuízo na divulgação e circulação do livro. Tanto no contexto da década de 1960 quanto na atual conjuntura em que certos livros são tão desejados como qualquer outra obra de arte, podendo ser também valiosos ou rentáveis da mesma forma, esses e outros entraves afetaram e continuam a afetar, por um lado, os processos de criação e recepção literárias, inclusive a poética. Por outro, as estratégias de circulação e divulgação editorial também são prejudicadas, acabando por gerar perdas não apenas no sentido financeiro, mas também no aspecto cultural dificultando ou impedindo o acesso dessa obra pelo grande público. Uma vez examinados os personagens envolvidos na concepção e veiculação da primeira edição do livro Paranoia, além da breve consideração tecida sobre o contexto a partir do qual esta obra começou a ser veiculada enquanto produto cultural começará a análise sobre esse objeto. Antes, porém, cabem alguns breves esclarecimentos. A primeira edição do livro encontra-se atualmente esgotada. Tornou-se um artigo raro, genuína peça de colecionador, dada à escassez de exemplares dessa primeira tiragem. Lembremo-nos de que essa obra, pela particularidade do sistema editorial disponível à época, além de uma censura velada pelo tom transgressivo da poética de Piva, acabou repercutindo menos do que poderia, o que justificaria em certa medida a ausência de fontes documentais atualmente.

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Depois de compararmos exemplares da 1ª e da 2ª edição de Paranoia, foi possível concluir que a qualidade das fotografias da edição de 1963 não deve em nada à qualidade das fotografias que integram as duas edições posteriores. 54 Claudio Willer ainda comenta sobre o evento: “No final, o Massao conseguiu levar um pacote de livros que foram distribuídos pra todo mundo que estava lá. [...] Foi uma espécie de não-lançamento. Durou duas horas. E tinha muita gente, mas não lembro mais quem estava lá” (WILLER apud, D’ELIA; HUNGRIA, 2011, p. 56)

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Entretanto, tal fato, apesar de ter sido aqui apontado, não prejudica esta proposta de trabalho, uma vez que a análise a ser construída nas próximas linhas será feita a partir de outras duas edições posteriores à primeira edição do livro de Piva e Duke Lee. No ano de 2000, o Instituto Moreira Salles, entidade relacionada à divulgação cultural no Brasil, por meio de uma empresa de serviços editorais intitulada Jacarandá, trouxe à luz, trinta e sete anos depois, o livro Paranoia em edição fac-similar, respeitando o leiaute original da primeira edição, idealizado por Duke Lee. Desta vez, houve exemplares do livro no lançamento, que está registrado em vídeo no documentário Uma outra cidade55, do cineasta Ugo Giorgetti. Uma terceira edição do livro foi lançada no mercado, ainda pelo Instituto Moreira Salles, no ano de 2009. No entanto, essa terceira edição trouxe diferenças significativas em relação às duas primeiras edições de Paranoia. Tais diferenças, e também as semelhanças, serão o foco desta investigação a partir daqui. Para tal, o percurso será o de levantar determinados aspectos editoriais de cada uma das edições mencionadas para tentarmos pensar um pouco melhor os processos aos quais a obra foi submetida, além de intencionarmos empreender uma visão, ainda que em perspectiva, de algumas possíveis consequências advindas dessas modificações.

5.1.2 A segunda edição

Conforme já posto, a segunda edição de Paranoia, lançada em 2000, manteve o projeto gráfico original idealizado por Wesley Duke Lee para a primeira versão do livro que marcou definitivamente o debut de Roberto Piva no cenário da poesia brasileira. Para estruturar este momento da pesquisa, analisaremos os seguintes aspectos nessa e na outra edição que, juntas, delimitam o corpus desta etapa de nosso trabalho: formato e dimensões; capa, quarta capa e orelhas; folha de rosto e correlatos; o papel e a tipografia escolhida; paratextos, além das relações entre o espaço da mancha textual e as imagens fotográficas.

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Nesse trabalho, o cineasta, através de depoimentos de Piva e outros poetas da “Geração 60”, tenta resgatar um pouco da atmosfera daquela cidade de São Paulo no início da década de 1960, época em que a primeira edição de Paranoia foi concebida e publicada.

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Fig. 27: Capa da 2ª edição de Paranoia

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

O formato “oblongo”, também conhecido como “paisagem”, aspecto característico do projeto gráfico desta segunda edição, seguindo o plano original, isto é, a primeira edição, foi mantido. O uso de um formato tão específico como o “oblongo”, distinto do tradicional formato “francês”, retangular e vertical, que é o padrão seguido na produção editorial ainda nos dias de hoje, afigura-se a princípio como uma boa aposta estética do editor, ainda que arriscada, se for levada em conta esta tese de Richard Hendel, designer gráfico editorial e autor de livros da área: “Mudar a forma física de um livro – torná-lo mais largo do que alto – também envolve situações de risco, que agregarão tanto um custo extra quanto problemas de manufatura” (HENDEL, 2006, p. 35). Neste caso, o formato retangular horizontal de 23x15 cm, com a base maior do que a altura favorece a leitura das cento cinquenta e duas páginas da edição, dando-lhe maior fluidez visual já que o leiaute empregado alterna páginas que espelham poemas e fotografias, sugerindo uma espécie de sequência fílmica em que cada página corresponderia a um quadro ou frame. A capa (fig. 27) da segunda edição de Paranoia é ilustrada inteiramente pela imagem

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de uma fotografia em preto & branco de autoria de Duke Lee. A esta altura, já está mais do que evidente o fato de a imagem, nas variantes anteriormente analisadas, ser um dos pilares fundamentais à construção da obra Paranoia. Sobre essa imagem fotográfica, margeado da esquerda para a direita, está impresso em fontes em itálico na cor branca o nome do autor dos poemas do livro, Roberto Piva56. Logo abaixo, com o mesmo alinhamento e tom de cor, vem impresso o nome do livro, porém em fonte, ainda em itálico, de tamanho maior e também com um formato diferente, em caixa alta. Na lombada, com a mesma fonte utilizada ao longo das outras páginas, estão grafados os nomes do autor e do livro, de baixo para cima. A quarta capa leva um tom branco gelo, talvez para combinar com os tons de cinza da ilustração da capa, e traz, além do tradicional código de barras com o número do ISBN no alto à esquerda, outros elementos. Ainda na esquerda, só que abaixo, é apresentado o logotipo do programa de “Lei de Incentivo à Cultura”, do Ministério da Cultura. No centro da capa, ainda na parte inferior, está estampada a marca do Instituto Moreira Salles e, logo mais à direita da quarta capa, um número de lei referente também ao incentivo à cultura, patrocinado pela Prefeitura do Município de São Paulo. Interessante apontar que, mesmo contando com o apoio editorial de uma instituição notadamente de destaque no cenário cultural do país, o projeto desta edição só parece ter sido concluído com a ajuda de subsídios advindos de programas federais e municipais, o que apenas faz com que se constate mais uma vez a dificuldade recorrente em se editar poesia no Brasil. O formato do livro, além do que já foi comentado, também suscita outro aspecto de um elemento fulcral a qualquer livro no formato tradicional: o tipo do papel. Na segunda edição, o papel utilizado para compor o miolo parece se assemelhar57 ao papel couchê de tom branco, caracterizado, segundo o autor de A construção do livro, Emanuel Araújo, pelo fato de ser “praticamente sem poros e rugas”, com “sua folha” apresentando-se como “quase sempre lisa e brilhante, indicada em particular para impressão em cores ou meios-tons” (ARAÚJO, 2008, p. 348). Certamente o tipo de material escolhido tem a ver com o fato de que, além de poemas, fotografias em preto & branco, isto é, com várias nuances de cinza, fazem parte do volume. Esse tipo de papel se presta muito bem à impressão desta forma de

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Na primeira edição de Paranoia, o nome da editora de Massao Ohno, homônimo, aparece impresso logo abaixo dos nomes do livro e do autor. 57 Não existe nenhuma referência, na 2ª ed. de Paranoia, do tipo de papel usado ou mesmo das fontes escolhidas para compor o volume.

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elemento já que as imagens fotográficas impressas apresentam nitidez mais do que satisfatória. Para finalizar mais esta parte da análise e passar aos elementos do miolo do livro, cabe ainda um comentário: é sobre o tipo de papel usado na confecção das capas e quarta-capas. Assim como não há informações sobre a gramatura do papel utilizado nas páginas do miolo, também não há especificações que esclareçam algo disto nesta segunda edição. Tanto a capa quanto a quarta capa parecem ter sido compostas com uma variedade de papel semelhante ao chamado “papel cartão” da categoria “laminado fosco” assim como o foram ambas as orelhas que, nesta edição, não trazem impressa nenhuma informação relevante, além de mais um logotipo da “Lei de Incentivo a Cultura”.

Fig. 28: Folha de rosto da 2ª ed. de Paranoia com carimbos e autógrafo do autor (coleção Sergio Cohn)

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Na folha de rosto (fig. 28), segundo definição de Araújo, “é onde verdadeiramente se faz a apresentação essencial do livro” (ARAÚJO, 2008, p. 401). Nesta edição em análise, tal elemento traz o nome do poeta e o do livro divergindo levemente do design estampado na

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capa. Ao invés de alinhados à direita, os elementos estão alinhados à esquerda, além de a fonte utilizada para descrever o título do livro não se apresentar em versão caixa alta como na capa. Outro detalhe importante é a informação de que o livro foi fotografado e desenhado por Wesley Duke Lee. Como não há nenhuma espécie de desenho nas páginas de Paranoia, o termo “desenhado” pode se referir à concepção do design, do desenho, do leiaute do livro. Complementando essas informações, no lado direito da folha de rosto há uma foto de apresentação do autor do livro, o poeta Roberto Piva, descendo, talvez, as escadas do metrô no Largo Santa Cecília, em São Paulo, citadas no poema “Stenamina Boat”: “Eu vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília” (PIVA, 2000, p. 88). Mais uma vez, a imagem, esse elemento tão caro a Piva e Duke Lee, precocemente se faz notar. No verso da folha de rosto, sem imagens, constam os dados de catalogação do volume. O sumário apresenta-se na sequência, contendo a indicação exata das páginas dos 20 poemas do livro. As 76 imagens fotográficas não estão indexadas nesta edição. Nas duas páginas posteriores, estão os agradecimentos do autor ao editor e, depois, um paratexto, um prefácio curto, de apenas sete linhas, que o jornalista Thomaz Souto Corrêa, o responsável por apresentar Piva a Duke Lee, escreveu para a ocasião. Esse texto é o que antecede a primeira foto que se pode dizer relacionada a algum poema, no caso, o que abre o livro Paranoia, intitulado “Visão 1961” (PIVA, 2000, p. 7), devidamente analisado no capítulo anterior. No decorrer das páginas, a alternância entre fotografias e poemas é constante, mas não exatamente sequencial. Em 48 casos, as fotografias estão posicionadas à esquerda da página em que está impresso o poema. Nos outros 24 casos, os poemas é que estão em páginas localizadas à esquerda das impressões fotográficas. As páginas que abrigam as fotografias apresentam-se “sangradas”, isto é, tiveram seus limites extrapolados pelo maior tamanho das imagens, que tomam a extensão de toda a folha. Por esse motivo, apenas as páginas que abrigam a mancha do texto apresentam numeração. Cabe salientar mais uma vez que esse recurso da alternância entre imagem e texto confirma tanto o caráter interartes quanto a característica intermídia levantadas anteriormente, permitindo que o leitor possa empreender, em um mesmo suporte, o livro, leituras de elementos artísticos de naturezas distintas: a fotografia e a poesia. Ainda a propósito das relações entre a linguagem verbal e a linguagem visual, o pesquisador Luís Hellmeister de Camargo, citado anteriormente, escreveu: “Muito mais do que apenas ornar ou elucidar o texto [...] a ilustração pode além de enfatizar sua própria

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configuração, chamar atenção para o seu suporte ou para a linguagem visual” (CAMARGO, 1998, pp. 59-60). Sob esse ponto de vista e se for levado em consideração que, em essência, as imagens são ilustrações, e os poemas obviamente são materializações textuais, pode ser inferido que as fotografias de Duke Lee não apenas têm o papel de “ornar” ou “elucidar” os poemas, conforme pode ser concluído nas análises anteriores, em Paranoia. Nesta obra, o projeto editorial permite que as imagens potencializem os versos e que os poemas, em contrapartida, reforcem a plasticidade visual das fotografias através de uma desestabilização ou um solapamento de qualquer hierarquia entre as categorias verbal e visual. A disposição das páginas na segunda edição de Paranoia, em que há a alternância entre imagem e texto, sem hierarquias aparentes, consoante hipótese, favorece a percepção de uma espécie de jogo. Um jogo que se dá numa perspectiva paradoxalmente harmônica e tensa, advindo do embate proposto entre o excesso e a escassez, entre e denso e o rarefeito, entre a imagem que extrapola as margens, explodindo na página em tons de cinza, e os poemas, cuja imagem das palavras impressas em delicadas letras de tonalidade escura parece flutuar sobre o fundo branco da folha, a despeito das limitações impostas pela própria natureza estrutural do texto em verso. Sobre a abordagem tipográfica utilizada em Paranoia e que delimita a mancha textual impressa nas páginas que compõem o miolo do livro: as fontes, da variedade garamond, tanto da capa e seus elementos correlatos, quanto as fontes do miolo, são serifadas. No verso da folha de rosto a variedade da fonte, serifada, ainda é a romana. Na frente da folha de rosto e a partir do sumário do livro, outra variante da mesma fonte, em itálico, foi utilizada. De acordo com Richard Hendel em seu Design do Livro, há “estudos que mostram que o tipo serifa é mais fácil de ler do que o sem serifa [...]” (HENDEL, 2014, p. 39).

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Fig.29: Trecho do poema “A piedade” (PIVA, 2000, p. 47), impresso em fonte Garamond Itálico.

Fonte: Paranoia, 2ª ed. IMS, 2000

Pode depreender-se então, a partir da afirmativa anterior, que a escolha da fonte serifada e predominantemente em itálico por parte do editor Massao e/ ou do designer gráfico Duke Lee age no sentido de facilitar, de proporcionar maior ritmo e fluidez à leitura dos poemas ao longo das páginas. Vale ressaltar que o formato em itálico aproxima-se da escrita feita manualmente pelo ser humano, caligráfica. Nesse sentido, o uso intencional de tal recurso empresta um aspecto ainda mais orgânico aos versos, como se escritos pela própria mão do poeta, e não impressos por algum dispositivo maquínico.

5.1.3 A terceira edição

A terceira edição de Paranoia foi lançada, no ano de 2009, ainda por intermédio do Instituto Moreira Salles, instituição essa que já havia ficado a cargo da segunda edição do livro. Entretanto, conforme pontuado, mudanças significativas ocorreram em relação ao projeto editorial e ao leiaute pensados e aplicados originalmente por Massao Ohno e Wesley Duke Lee na primeira edição em 1963 e que foram mantidos praticamente sem alterações na segunda edição, fac-similar, publicada no ano 2000. Uma das alterações mais perceptíveis é a mudança no formato do livro. Ao invés do formato “oblongo” das duas primeiras edições, no novo projeto editorial optou-se pelo tradicional formato “francês”, um retângulo vertical cujas dimensões nesta edição em análise são as de 17 x 23,5 cm. Neste ponto, vale a pena evocar novamente outra reflexão de Richard

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Hendel. De acordo com o autor, uma razão pela qual não é tão simples mudar o formato de um livro 6 x 9 para 9 x 6 é que uma forma mais larga exige que se dobre o papel contra o sentido da fibra (na contrafibra). As fibras que formam a folha de papel alinham-se numa certa direção quando o papel é fabricado. Chama-se isso sentido da fibra, e o papel dobra-se melhor nessa direção. Os papeis para livro são fabricados sob a presunção de que o formato do livro seja o de um retângulo vertical. Para evitar problemas na encadernação, os formatos mais largos exigem papeis especiais, com a fibra na direção contrária (HENDEL, 2006, p. 35). Fig.30: Capa da 3ª edição de Paranoia, Instituto Moreira Salles, 2009

Fonte: Paranoia, 3ª ed. IMS, 2009

Ora, se forem levadas em consideração as informações sobre a questão dos custos, poderia ser dito que a alteração de formato entre as duas primeiras e a terceira edição de Paranoia se relaciona de alguma maneira às questões dos custos de produção editorial. De acordo com o inferido, os custos da produção de uma edição, nos moldes como os adotados na primeira e na segunda versão, seriam mais elevados. O papel retangular vertical, sendo

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menos dispendioso que a sua variedade retangular horizontal, reduziria os valores empregados na impressão do material. Mais uma vez, a questão da edição e da distribuição acena entre os dados desta análise. Nesta terceira edição, algumas informações técnicas que foram omitidas na edição anterior aparecem. Uma delas é a variedade do papel empregado na impressão das páginas do livro. O papel usado no miolo é o da variedade Gardat Pat Kiara 135 g/m2 e se assemelha bastante ao papel couchê de matiz branco usado na edição do ano 2000. Sob essa perspectiva, nota-se que a impressão das fotografias neste tipo de papel, impressão felizmente mantida ainda em preto & branco na última edição comercializada, continuou mantendo o equilíbrio entre as manchas textuais, o espaço que as circunda e as imagens fotográficas. Antes que se passe aos elementos contidos no miolo como foco da análise sobre o objeto da presente investigação, é preciso comentar também sobre o papel empregado para compor a capa, as orelhas e quarta capa do livro. O papel utilizado é o Supremo Duo Design 250 g/m2. Assim como o papel não identificado na segunda edição, esta variedade apresenta características semelhantes em textura, brilho e espessura. As semelhanças entre as características das capas, contudo, parecem terminar por aqui. A adoção do formato “francês” para a composição do volume acabou impondo mudanças na disposição dos elementos da capa, das orelhas e da quarta capa. Em relação à capa, a fotografia de Duke Lee utilizada como ilustração foi mantida, porém, com o tamanho reduzido, na parte inferior da capa desta edição. Acima da fotografia, que traz sobreimpressa desta vez apenas o logotipo do Instituto Moreira Salles em cor branca, estão dispostos, em quatro linhas horizontais sobre um fundo de tonalidade azulada, alguns vocábulos em caixa alta que informam a denominação e as autorias do objeto em questão: “Piva” e “Duke Lee”, na cor preta; o título “Paranoia”, que entremeia as palavras anteriores em tom branco, além das fontes também na cor preta indicando a existência de um novo prefaciador do livro, “Davi Arrigucci Jr.”. O tom de azul está mantido na quarta capa, local para onde o prefácio das edições anteriores, escrito por Thomaz Souto Corrêa, foi deslocado, impresso em fontes de cor preta. Para essa parte também foi transferida, recortada, a fotografia de apresentação em preto & branco do poeta Piva, que constava na folha de rosto das edições anteriores. O código de barras do ISBN foi mantido no mesmo espaço, embaixo à direita, perto da lombada, que traz, desta vez, de cima para baixo, respectivamente, o nome do poeta, o título da obra, o nome do

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fotógrafo e da editora. Nas orelhas desta terceira edição há um paratexto, uma espécie de apresentação ou editorial, que contextualiza e comenta brevemente a obra Paranoia. Ainda na segunda orelha, foram incluídos outros paratextos: duas pequenas biografias de Roberto Piva e Wesley Duke Lee, respectivamente. Fig. 31: Folha de rosto “falsa” de Paranoia 3ª ed.

Fonte: Paranoia, 3ª ed. IMS, 2009

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Fig. 32: Folha de rosto “verdadeira” de Paranoia 3ª ed.

Fonte: Paranoia, 3ª ed. IMS, 2009

Na terceira edição, uma “falsa folha de rosto” (fig. 31) foi inserida antes da “verdadeira” (fig. 32). Nesta, estão impressos os nomes completos de Piva e Duke Lee, que, na capa, tiveram apenas os sobrenomes estampados, ainda que em tamanho maior. Naquela, apenas o título “Paranoia”, alinhado à direita em tom cinza. A menção ao prefácio de Arrigucci também foi preservada, seguindo o padrão adotado de informações disponibilizadas ao leitor a partir da capa. Apesar de Tschichold, valendo-se de sua experiência editorial, ter aventado a ideia de que “muitas folhas de rosto não tem esta convincente afinidade com as páginas seguintes do livro” (TSCHICHOLD, 2014, p. 91), este não parece ser o caso, apesar das mudanças substanciais já levantadas. Na sequência, o sumário da obra é apresentado. Neste ponto, emerge mais uma diferença entre esta e a edição anteriormente analisada: distribuído pelo espaço de duas páginas, o sumário, apesar de indicar o número exato das páginas em que estão localizados o prefácio e outra parte que adiante será comentada, não traz corretamente o conteúdo que está no livro. No sumário da terceira edição de Paranoia, constam enumerados apenas dezenove

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poemas, ao contrário dos vinte que integram a obra desde a sua primeira edição 58. Entretanto, apesar de o poema “Paranoia em Astrakan” não constar do sumário desta edição, o texto felizmente foi mantido no miolo do livro e ocupa as páginas 55 a 59, entremeadas, ainda, por uma imagem fotográfica. Outra novidade em relação às primeiras edições foi o acréscimo de mais um paratexto logo após a página que ainda traz os agradecimentos do autor ao editor. O texto, um ensaio crítico de 21 páginas, é de autoria de David Arrigucci Jr., pesquisador, professor de literatura e estudioso da obra de Piva. Intitulado “O cavaleiro do mundo delirante”, numa referência ao poeta Murilo Mendes, uma das declaradas influências de Roberto Piva e de quem um verso serve de epígrafe ao texto de Arrigucci – e também ao “Poema de ninar para mim e Bruegel” (PIVA, 2000, p. 61) –, ao longo de cinco partes, nas suas linhas apresenta-se um roteiro de leitura à guisa de prefácio, cumprindo assim a função de situar autor e obra no contexto literário. A alternância entre fotografias e poemas ao longo das 208 páginas, consistente nas duas primeiras edições de Paranoia, sofreu perceptíveis alterações, mais uma vez segundo pode ser constatado, por conta da mudança de formato do livro da penúltima para a edição atual. Nesta edição, em um total de 76 imagens fotográficas, incluindo as da capa e da quarta capa, 18 delas ocupam dupla página, isto é, uma única imagem foi impressa na superfície formada pela sequência de duas folhas. As outras 58 imagens fotográficas da edição, ainda, podem ser dividas em mais duas categorias: a primeira, a das 50 fotografias que, ampliadas, mas recortadas em relação às fotos de edições anteriores, ocupam apenas uma página ao lado de outra com mancha gráfica textual. A segunda, a das oito imagens que, para se adequarem ao formato “francês”, no qual a altura tem privilégio sobre a largura, tiveram as dimensões reduzidas dividindo o espaço com grandes áreas de página em branco. Um comentário se faz necessário acerca dessas alterações acima mencionadas. Se, por um lado, a ampliação de algumas fotografias proporciona maior nitidez em relação à qualidade da imagem, por outro, o processo de recorte, exigido para que a imagem fotográfica

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Na edição das obras completas de Roberto Piva, levada a cabo pela Editora Globo em três volumes, apenas os vinte poemas do livro Paranoia, sem as fotografias de Duke Lee, aparecem coligidos. Junto a eles, no volume intitulado Um estrangeiro na legião (2005), foram acrescentados os poemas do segundo livro de Piva, intitulado Piazzas, lançado em 1964 também pela editora de Massao Ohno, além de alguns manifestos assinados por ele e outros integrantes da “Geração 60”.

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se adequasse melhor aos limites da página pode trazer perdas significativas na leitura desta parte da obra. Da mesma forma, o artifício usado em 18 das fotografias, que foram impressas em dupla página, também prejudica a visualização das mesmas uma vez que a parte central das fotos torna-se ilegível por conta da encadernação formato brochura, também padrão nas duas primeiras edições e que nesta terceira edição, por conta desse corte no meio das imagens, acaba por restringí-las a um caráter meramente ilustrativo. Todas essas constatações corroboram com a proposição de Tschichold, para quem “de modo geral, mas, sobretudo, quando se trata de obras de arte, é preciso conservar as proporções da imagem original. Seria um equívoco alterá-las apenas para preencher totalmente a mancha.” (TSCHICHOLD, 2014, p. 175). Sob esse ponto de vista, a alteração das imagens fotográficas de Duke Lee para a terceira edição de Paranoia não seria considerado algo razoável e ressoa no sentido oposto a mais esta premissa: “Desfigura-se uma obra de arte ao apresentá-la de forma incompleta” (TSCHICHOLD, 2014, p. 176) segundo o tipógrafo e designer gráfico alemão. Para retomar a relação entre imagem e texto, comentada anteriormente sobre a segunda edição, será citada mais uma colocação de Tschichold. Segundo o mesmo, “há dois tipos de livros com ilustrações: aqueles em que as estampas se espalham por todo o texto, e o outro tipo, em que o texto e imagens formam duas partes do mesmo livro” (TSCHICHOLD, 2014, p. 173). Dentro da perspectiva apontada, em que a imagem e o texto apresentam por conta da intercalação um equilíbrio na divisão territorial das páginas, pode ser dito que na terceira edição de Paranoia, apesar das singularidades advindas das características do projeto editorial, esta inter-relação entre verbal e visual se deu de forma satisfatória, embora com algumas perdas conforme salientado. Outra diferença que quase passa despercebida, mas destaca de certa maneira a terceira edição das anteriores é a presença, nas páginas finais do livro, de todas as fotografias, impressas em 15 páginas com fundo preto, em tamanho reduzido e no formato paisagem, aludindo ao formato em que foram impressas na primeira e na segunda edição de Paranoia. Tal recurso, talvez, tenha sido empregado no sentido de compensar as mutilações impostas pelo novo projeto editorial às imagens que constituem o ensaio fotográfico de Duke Lee nesta terceira edição, aqui ainda sob análise e que confirma uma concepção equivocada sobre a independência dos dois trabalhos, verbal e visual. Antes de terminarmos este último capítulo de nossa dissertação para avançarmos rumo

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às considerações finais, um último comentário, ainda acerca do aspecto tipográfico do objeto de estudo, faz-se necessário. Nesta terceira edição, as fontes utilizadas, com serifa e que são bastante semelhantes às fontes Garamond dos projetos anteriores, são da variedade Walbaum. O padrão foi mantido tanto na área da capa quanto no texto impresso no miolo. Mais uma diferença, entretanto, chama novamente a atenção. Se nas edições anteriores a variedade dominante da fonte era o itálico, nesta atual edição, o que predomina são as fontes romanas. Ao itálico, desta vez, coube a sua função tradicional de ser usado para indicar citações e palavras em língua estrangeira. Nesse sentido, aquele aspecto de organicidade presente nos poemas das versões anteriores por conta de uma tipografia de caráter caligráfico acabou sendo perdido na terceira edição. Evidencia-se, desse modo, a face maquínica dessa edição na qual se privilegia o aspecto mercantil em detrimento das concepções artísticas. Fig.33: Trecho do poema “A piedade” impresso em fonte Walbaum Romano

Fonte: Paranoia, 3ª ed. IMS, 2009

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5.1.4 Algumas observações

Após as análises e considerações tecidas ao longo deste breve e último capítulo de nossa pesquisa, foi demonstrado que as relações propostas entre a palavra e a imagem, desenvolvidas tendo como suporte a página do livro com fins de expressão estética, vêm sendo exploradas antes mesmo do advento das modernas técnicas de edição e impressão. A atualização de tais técnicas, entretanto, não significou que as condições de circulação das obras concebidas sob os parâmetros correspondentes se desse sem entraves corriqueiros, tais como problemas na distribuição ou até mesmo a alteração de alguns aspectos fulcrais de determinadas obras por conta de imposições de motivação comercial. Por outro lado, a possibilidade de se registrar, em um mesmo objeto, linguagens de matrizes a princípio distintas, palavra e imagem, desvelou para alguns artistas mais sensíveis um vasto campo a ser explorado. No entrecruzamento de manifestações artísticas que guardam mais diferenças que semelhanças entre si, como a literatura e a fotografia, as peculiaridades de cada uma delas ganham força significativa justamente por conta desse atrito. Nesse embate entre foto e poema, ampliam-se as possibilidades de significação não apenas dos seus respectivos conteúdos, mas também as do meio no qual tais conteúdos são veiculados. Nesse sentido, a obra Paranoia, de Roberto Piva e Wesley Duke Lee, em suas três edições, configura-se como exemplo das alternativas sobrevindas de um movimento que, apropriando-se dos recursos técnicos disponíveis, precários em dados momentos, permitiu que as letras, os versos, as estrofes, enfim, os elementos constitutivos dos poemas, a despeito das possibilidades semânticas do código escrito, ganhassem também uma dimensão visual. Na outra ponta, a sequencialização das fotografias também poderia ser pensada sob o ponto de vista de uma narratividade nem sempre linear e de cunho alucinatório, aproximando-se da ideia de uma sequência de fotogramas, elemento fundamental a uma arte nascida da justaposição entre imagem e palavra que, como não poderia deixar de ser, também foi cara tanto a Piva quanto a Duke Lee: o cinema. Para Tschichold, “mesmo visto de fora, um livro verdadeiramente belo não pode ser uma novidade. Pelo contrário, deve afirmar-se como simples perfeição” (TSCHICHOLD, 2014, p. 33). Em Paranoia, a relação entre a imagem e a palavra, apesar de não ser exatamente uma novidade em termos de operação cuja natureza passa pela estetização da

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linguagem, de acordo com o que foi visto ao longo deste trabalho, ainda assim permite que o olhar do leitor mais atento se renove a cada leitura, caso este seja capaz de apreender tais manifestações não apenas nos poemas e nas fotografias de inegável valor estético, mas também de lançar uma visada plástica em busca da “simples perfeição” (TSCHICHOLD, 2014, p. 33) do objeto que os encerra.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A obra de arte é um sinal de inteligência que o sentido e o sem-sentido trocam entre si.” Octavio Paz

Chegando ao término desta nossa travessia pelas páginas da obra Paranoia, concluímos que a imagem, esse elemento indelével de nosso imaginário cultural segundo exaustivamente destacado, desvela-se como sustentáculo de uma estética da alucinação que transpassa tanto a poesia quanto a fotografia – em que pese suas respectivas idiossincrasias – potencializando de forma sui generis cada uma dessas manifestações no corpo do livro. Fazendo convergirem verso e imagem fotográfica, o conceito de “imagem poética”, cujo cerne está na aproximação de realidades ou elementos distintos com vistas a formar algo novo conforme proposto originalmente pelo poeta francês Pierre Reverdy (1918), pôde ser apreendido como resultado de uma série de operações que, por analogia, apresenta-se passível de ser verificada tanto na construção textual a partir da palavra poética quanto na composição de matriz fotográfica. Esse percurso teve início, no primeiro capítulo, com a apresentação dos três artífices responsáveis pela materialização do objeto de estudo desta pesquisa: o poeta Roberto Piva, o fotógrafo e artista plástico Wesley Duke Lee e o editor Massao Ohno. Apesar das especificidades próprias de seus ramos de atuação – a poesia, a fotografia e a edição –, vimos que esses artífices, por conta de influências em comum, acabaram por comungar visadas estéticas bem próximas e que, sem sombra de dúvida, refletiram positivamente no resultado final: o livro de poemas e fotografias Paranoia. A predileção por alguns procedimentos consolidados pelas vanguardas, além da permanente insurreição contra os discursos de fundo moralizante ou mesmo de caráter racionalizante, também acabaram por irmanar Piva, Duke Lee e Ohno nessa empreitada. No segundo capítulo, passamos em revista o conceito de “imagem” e alguns de seus desdobramentos que foram utilizados como aparato crítico para o empreendimento desta investigação. A imagem, que desde as reflexões platônicas e aristotélicas vem trazendo junto a si um caráter de desconfiança, passou mais alguns séculos associada à ideia racionalista de “a louca da casa”. Na virada do século XIX para o século XX, ainda sob suspeição, ganhou

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novo fôlego por conta dos avanços técnicos e estéticos trazidos pela consolidação da industrialização, ademais de ter sido objeto de atenção para figuras importantes na psiquiatria e psicanálise, ciências que abarcaram as zonas do sonho e do inconsciente como matéria de suas inquirições. Ainda nesse mesmo capítulo, foram apresentadas algumas reflexões sobre as relações entre a palavra e a imagem, essas duas instâncias linguageiras que são a matriz da tessitura imagético/textual plasmada ao longo das páginas da obra literária Paranoia. Para Octavio Paz, qualquer forma verbal dita pelo poeta e que compõem um texto poético pode ser entendida como imagem (PAZ, 1976). Nesse sentido, os poemas, junto às fotografias, podem ser considerados não somente texto, mas também imagem, aproximando consequentemente esses elementos oriundos de instâncias a princípio distintas. Os procedimentos utilizados para a construção das imagens que tentamos sistematizar em nosso corpus também foram alvo de considerações teóricas. A metáfora, que já era objeto das ponderações aristotélicas ainda na Antiguidade Clássica (2004), segundo o linguista Roman Jakobson, encerraria características de outros topoi, como por exemplo, a metonímia (JAKOBSON, 2007). Da relação entre poemas e fotografias pôde ser percebida essa correspondência metafórico-metonímica destacada, já que muitas vezes a palavra poética e a imagem fotográfica compartilhavam traços ou temas em comum. A “montagem fílmica”, que a partir das concepções do cineasta russo Sergei Eisenstein poderia ser utilizada como um procedimento de construção estética em outras manifestações artísticas (EISENSTEIN, 2002), também foi arrolada como uma das possíveis estratégias utilizadas por Piva e Duke Lee para a composição dos poemas e fotografias que integram o corpus avaliado. A analogia, evocada por Marinetti em seu “Manifesto Técnico da Literatura Futurista” como “o amor profundo que liga as coisas distantes” (MARINETTI apud BERNARDINI, 1980), é o movimento-chave que parece desencadear toda a imagética de Paranoia. Tal constatação corrobora com mais uma das ideias de Octavio Paz apresentadas ainda no segundo capítulo, na qual a própria analogia, concebida tomando o mundo como um ritmo, materializar-se-ia a partir da palavra poética (PAZ, 2013). Vera Casa Nova pôs em perspectiva os frutos da analogia, isto é, as imagens analógicas – poéticas – destacando o fato de que sua potência poderia advir da sua maior ou menor semelhança com o real (CASA NOVA, 2008).

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A imagem poética, que entendemos ser fruto das estratégias anteriormente mencionadas, extrai sua potência exatamente desse tensionamento entre real e imaginário arquitetado e conduzido pelos autores. Em Paranoia, o uso de tal expediente, algumas vezes, leva o seu produto, a imagem poética, a uma situação de “sem sentido absoluto” conforme também foi observado por Octavio Paz (1976). Esse “sem-sentido”, ainda de acordo com nossa leitura, anuncia exatamente a “pluralidade do real” (PAZ, 1976) apontada pelo ensaísta mexicano. Em algumas das imagens poéticas, o que aparentemente muitas vezes é considerado em um primeiro momento como destituído de qualquer sentido, pode ser entrevisto, sob tal linha de raciocínio, como mais uma das múltiplas facetas do mundo apreensível pelos sentidos e pelo subconsciente, também matéria-prima desses artistas. O terceiro capítulo traz em linhas gerais algumas considerações sobre essa outra variante de imagem – a fotográfica –, que também encerra papel fundamental à constituição do nosso objeto de estudo. Da desconfiança de nomes importantes do pensamento estético como Charles Baudelaire (1859) à presença praticamente ubíqua potencializada pelos meios digitais nos dias de hoje observada por Vilém Flusser (2002), a fotografia transitou, por um lado, entre os conceitos de “arte e reprodutibilidade”, levantados por Walter Benjamin (1994). Se para Benjamin a fotografia assinalou a perda da “aura” em relação às Belas Artes, pode ser dito que sua assimilação fez uma atividade que a princípio não era considerada artística, pudesse ser investida com algo desse mesmo caráter ‘aurático’ defendido pelo teórico alemão. Por outro lado, ainda tendo a imagem fotográfica como um dos alvos em nossa alça de mira, a velha dicotomia entre “real” e “imaginário” não deixou de ser problematizada segundo indicaram os escritos de Philippe Dubois (1993) e Susan Sontag (2004) que tomamos emprestados. Se para o primeiro, a fotografia poderia ser apreendida tanto como transformação, quanto como traço do real (DUBOIS, 1993), para a segunda, esse mesmo elemento, apesar de ser também um vestígio do real, apresentar-se-ia de maneira fragmentada (SONTAG, 2004). Isso, segundo concluímos, pode ser percebido na obra Paranoia a partir dos fragmentos que constituem o mosaico dos versos e o panorama das imagens fotográficas. Inspirados e/ou retirados de referentes calcados no real por meio das estratégias já comentadas como o deslocamento e a justaposição, o enquadramento e a montagem, dentre outras, possibilitam uma leitura múltipla desse real apreendido, estetizando-o consequentemente. As considerações de Roland Barthes sobre a imagem fotográfica também foram apreciadas, ainda que de maneira breve, nesse capítulo. Os conceitos de “studium” e

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“punctum” (BARTHES, 1984), que possibilitaram uma leitura das imagens, sobretudo as fotográficas, a partir de perspectivas distintas – documental e artística – assinalam um caráter de alucinação galvanizada com “tinturas do real” (BARTHES, 1984, p. 168). Sob tal perspectiva, real e imaginário poderiam ser tomados como duas faces de uma mesma moeda. Nas imagens de Paranoia, há uma persistente confusão entre essas instâncias, imbróglio que segundo nosso entendimento, evidencia o caráter artístico mesmo dos registros mais prosaicos. Algo das interseções entre a imagem e a literatura, especificamente, entre fotografia e poesia, foi resgatado para encerrar este capítulo terceiro. No momento inicial, uma breve, porém necessária revisão de tais manifestações – que ganharam força nos movimentos de vanguarda do século XX – foi empreendida. Obras que privilegiaram, cada uma a sua própria maneira, a presença da fotografia e do texto de natureza poética no mesmo suporte, o livro, foram rapidamente elencadas. Trabalhos iniciais como La femme 100 têtes, de Max Ernst, ou, ainda, as fotomontagens de Jorge de Lima no livro A pintura em pânico, foram apresentadas ao lado de outros exemplos mais recentes, como os Quarenta clics em Curitiba, de Paulo Leminski e Jack Pires ou o volume ET Eu Tu, de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier. O objetivo foi o de inserir nosso objeto de estudo dentro de uma vertente, notoriamente mais explorada em relação ao universo editorial dos livros infantis, que associa texto literário e ilustração, no caso específico, fotográfica. No segundo momento, discorremos resumidamente sobre os conceitos de “interartes” e “intermídia” a partir das problematizações de Claus Clüver (2006) e Irina Rajewsky (2012). Em ambas as perspectivas, nota-se a tentativa de instituir uma taxonomia que dê conta de lidar com as especificidades de tais manifestações quando linguagens distintas são utilizadas para a instauração do poético. Em Paranoia, a visada interartes pode ser obviamente percebida pelo simples fato de duas linguagens artísticas distintas – a poesia e a fotografia – operarem em um quase uníssono no mesmo suporte, as páginas do livro. Já a questão da intermidialidade mostra-se aplicável a nosso corpus uma vez que fotografia e livro, a princípio mídias distintas, operam uma dentro da outra em nosso objeto, ampliando significativamente a recepção de cada um desses elementos. No quarto capítulo, o de maior extensão, poemas e fotografias foram perscrutados no sentido de se confirmar as hipóteses levantadas a partir do aparato teórico compilado nos capítulos anteriores. O primeiro movimento de análise, ao qual intitulamos Das imagens

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poéticas, voltou-se aos poemas de Roberto Piva como objeto. Neles, o conceito de “paranoia”, emprestado dos estudos psicanalíticos de Freud e Lacan (MELLO, 2006) e que nomeia a obra analisada, além de poder ser entendido como uma chave de leitura, foi levantado considerando duas perspectivas: a temática e a tática. Sob a perspectiva temática, averiguamos e concluímos que o próprio conceito de paranoia pode ser lido nesta obra como uma analogia à imagem poética. E isso se deve ao fato de que, tanto no delírio paranoico, quanto na construção e recepção das imagens poéticas, consoante apresentado, a tensão entre o real e o imaginário, o embate entre o “eu” e o mundo, as contradições advindas do uso simultâneo da linguagem comezinha e o discurso delirante, constituem uma linha de força que alimenta essa estética da alucinação, anunciada no início destas nossas últimas considerações. Em grande parte dos poemas, o eu lírico piviano, como se acometido pela patologia ainda em questão, perambula, tal qual um “cavaleiro do mundo delirante”59 do poema “Overmundo” de Murilo Mendes (2001), por uma série de topônimos reais e imaginários da cidade de São Paulo, locus preponderante e que também tematiza o livro. Nesse sentido, constatamos que os topônimos em Paranoia oscilam entre o real e o imaginário por conta da descrição delirante e extremamente imagética empreendida pelo poeta. Valendo-se de referentes assumidamente calcados na realidade – ruas, praças, viadutos, edifícios e outros lugares da capital paulista – sob uma mirada delirante, o autor acaba por imputar a esses lugares e espaços um véu alucinatório que fragmenta e reconstrói o real, o que corrobora com a ideia de multiplicidade desse elemento observada por Georges Didi-Huberman (2013) ainda no capítulo 4 (ver p. 162). A paranoia também pôde ser apreendida em nosso corpus, segundo concluímos, como estratégia de construção textual. De acordo com entrevista, Piva (apud COHN, 2009) teria lançado mão do “método crítico-paranoico” (DALI, 1974), idealizado pelo pintor surrealista Salvador Dali, para a construção dos poemas de seu livro de estreia. Nessa metodologia, por sua vez baseada no conceito psicanalítico de distúrbio paranoide, o “crítico-paranoico”, a partir da livre associação de fragmentos distintos, mas com latências em comum – assim como ocorre na formação da imagem poética – reconduz o que a princípio pertenceria aos

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O verso em questão foi utilizado por Roberto Piva como epígrafe do “Poema de ninar para mim e Bruegel” (PIVA, 2000, p. 61).

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domínios do real às instâncias do imaginário, esboroando as fronteiras entre eles. Em vários poemas de Paranoia, observamos essa tensão entre o eu lírico e o mundo, fomentada a partir da contraposição de fragmentos advindos de realidades afastadas. Outro procedimento que tentamos visualizar a partir dos versos de Roberto Piva foi a assim intitulada “montagem intelectual” (EISENSTEIN, 1990). Conforme exposto em parágrafo anterior, seu criador defendia que tal metodologia poderia ser perfeitamente aplicada não apenas ao cinema, mas também às artes de forma geral. Ao longo dos poemas de Paranoia, essa variante de montagem, por também trabalhar sob os ditames da aproximação de elementos díspares tal como ocorre na imagem poética, faz-se perceptível, ainda que de maneira análoga. Na perspectiva apresentada, a justaposição de versos, a princípio sem aparente conexão temática e suscitando consequentemente uma antinarrativa desprovida de lógica apreensível, aproxima bastante os poemas a uma sequência fílmica que por ventura tivesse sido construída sob a égide desse modus operandi. Isso converge, ainda, com a tese defendida por Modesto Carone Netto em relação à poesia do austríaco Georg Trakl na qual as imagens isoladas de cada poema se comportariam como as tomadas de um filme (CARONE, 1974). Cada verso de Paranoia, sob tal linha de raciocínio, poderia ser considerado análogo a um quadro, plano ou frame cinematográfico de acento eminentemente delirante. O segundo momento deste quarto capítulo, intitulado como Das imagens fotográficas, traz análises dessas variantes de imagem que foram concebidas por Wesley Duke Lee para ilustrar e, assim também entendemos, dialogar com os poemas da obra Paranoia. Alguns expedientes e tematizações relativos à construção do artístico, de acordo com o demonstrado nesta pesquisa, foram apreendidos a partir dos poemas escritos por Piva e também podem ajudar a constituir algumas possibilidades de formação de sentido quando tomamos a fotografia como objeto de inquirição. As estratégias supracitadas de Dali e Eisenstein, por exemplo, afiguram-se plausíveis de verificação nas fotografias de nosso corpus no qual se destaca a fragmentação do cenário urbano. Os recursos de enquadramento, zoom e os jogos de luz e sombra imputaram à lente sensível de Duke Lee algo da metodologia crítico-paranoica daliniana (DALI, 1974) uma vez que, assim como os operadores desse método, o fotógrafo e artista plástico paulista construiu seu ensaio imagético, ainda que dirigido pelos poemas, a partir da captura e livre associação dos detalhes, dos fragmentos e dos “sonhos diurnos” – muitas vezes apreendidos e

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aproximados a partir de realidades distintas assim como a imagem poética –, conforme assinalado por Walter Benjamin (1985) exatamente em relação à fotografia de viés surrealista. Ainda no sentido de analisar mais acuradamente as imagens fotográficas de nosso objeto, uma série de elementos recorrentes, próprios do ambiente citadino, foi levantada ao longo do ensaio fotográfico, fazendo-o convergir, uma vez mais constatamos, com a temática urbana dos poemas. Ruas, circos, parques, praças e ambientes internos da capital paulista se revezam ao longo das páginas de Paranoia a partir de cenas fragmentadas do cotidiano que também revelam, de maneira quase voyeurística, algumas figuras anônimas ou mesmo o próprio poeta Piva, em périplo pelas ruas evocadas em seus versos. Nessa perspectiva, ainda vale ressaltar, pôde ser percebido certo caráter de modernidade pontuado por Baudelaire (1996) – crítico contundente à fotografia nos anos de seu advento – uma vez que a indistinção entre presente e passado, próprio desse constructo e reforçado pela atemporalidade características do registro fotográfico em preto & branco, apresenta-se de maneira plausível em vários momentos, turvando as fronteiras entre o real e o imaginário, algo inerente ao delírio paranoico ou, melhor, à imagem poética. Foi justamente o embate entre as instâncias supracitadas, real e imaginário, que dirigiu esse outro momento da investigação. Partindo das considerações de Philippe Dubois (1993), que indicam a fotografia como uma forma tríplice de materialização do real – “espelho do real”, “transformação do real” e “traço do real”, respectivamente (DUBOIS, 1993) –, foram analisadas algumas das imagens do ensaio feito por Wesley Duke Lee a partir do qual pôde ser apreendida, em certa medida, a taxionomia do filósofo francês. Se na maior parte dos registros fotográficos do livro Paranoia a perspectiva de cunho delirante se destaca, em um menor número de exemplos, desvelando em consequência sua face documental por conta da explícita referência à lugares e pessoas reais, apresenta-se com nítidos contornos. Pode ser acrescentado, ainda nesse sentido, que os estratagemas relativos à composição fotográfica, retomados nos parágrafos anteriores, é que permitiram a instauração dessa vertente do poético, fortemente imagética, de acordo com o que também podemos concluir. O “studium” e o “punctum” barthesianos (1984), que foram anunciados no terceiro capítulo conforme indicamos no início desta conclusão, também foram emprestados à nossa lente crítica. Em algumas fotos do ensaio de Duke Lee, detalhes comezinhos ou inusitados puderam ser associados a esse par conceitual sistematizado pelo semiólogo francês. Além disso, a nossa proposta de que tanto os poemas quanto as fotografias de Paranoia foram

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concebidos sob a égide de uma espécie de estética da alucinação, isto é, uma visada artística que se vale de estratégias análogas aos estados de alteração dos sentidos com o objetivo de emular essa operação na recepção da obra de arte, corrobora com outra constatação de Barthes, para quem a fotografia poderia ser considerada “uma alucinação temperada, [...] imagem louca, com tinturas de real” (BARTHES, 1984). Para encerrar a terceira e última parte do quarto capítulo desta dissertação, a qual intitulamos com uma pergunta – Poesia versus fotografia? –, decidimos contrapor, sob as perspectivas táticas e, sobretudo, temáticas, os poemas de Roberto Piva e as fotografias de Wesley Duke Lee. No primeiro momento, foram levantadas algumas latências em comum existentes entre os versos e as imagens fotográficas. Pudemos concluir que, na maior parte do corpus analisado, houve, além da coerência temática, isto é, uma concordância entre o que está escrito no poema e o que é demonstrado na fotografia, a assim chamada “coerência intersemiótica”, conceito problematizado por Luis Hellmeister Camargo (1988). Sob essa visada, duas linguagens a princípio distintas – imagem e palavra –, no livro Paranoia, podem ser apreendidas sob uma perspectiva de convergências. No segundo e último momento do quarto capítulo, tentamos mapear o oposto do que foi apresentado anteriormente. Assim, nos debruçamos mais uma vez por cima das fotos e versos de nosso objeto de estudo e acabamos por identificar, em uma quantidade significativamente menor, há de se destacar, divergências entre os temas e os poemas na sequência proposta pelo processo de editoração do livro. Essa divergência, ainda segundo entendemos, seria uma espécie de recusa da mimese que poria por terra as relações de causa e efeito nos versos e fotografias da obra analisada conforme observado por Susana Dobal (2011). Apesar de também haver divergências entre os elementos constituintes de Paranoia segundo concluímos – e o que mais uma vez corroboraria com a ideia de Hellmeister Camargo de “desvio” e “contradição”, facetas próprias da “coerência intersemiótica” (CAMARGO, 1988) –, esses mesmos desvios não podem ser considerados como contradições de fato considerando o contexto mais amplo do livro. E isso ocorre porque, mesmo nos casos em que a temática de um poema não converge exatamente no sentido proposto pelas fotografias que ilustram o texto, elas acabam compartindo outras latências e tecendo correlações com outros poemas ainda no mesmo livro. Mesmo na divergência, também chegamos à conclusão, subsiste um caráter de coerência entre as linguagens distintas

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trabalhadas pelos artífices da obra em questão o que, por sua vez, permite que esse objeto também possa ser apreendido a partir das supracitadas relações “interartes” (CLÜVER, 2006) e “intermídia” (RAJEWSKY, 2012) nas quais, a partir da velha analogia, os procedimentos de uma instância podem ser aplicados a outras manifestações ou linguagens. No quinto e último capítulo deste trabalho – nomeado como Paranoia em dois tempos – recuamos a nossa lente “crítico-paranoica”, como em um movimento de zoom out, para analisarmos especificamente o suporte no qual toda essa explosão imagética foi plasmada. Em um primeiro momento, resgatamos algo das relações entre o livro e a imagem no imaginário cultural. A seguir, foram apresentadas informações sobre a gênese do livro Paranoia. Pudemos entrever nesse movimento as dificuldades e peripécias às quais os personagens envolvidos na elaboração da obra, Piva, Duke Lee e Ohno, foram submetidos. Constatamos que as dificuldades encontradas pelos autores deste nosso objeto de estudo ainda na década de 1960 do século XX, tais como os problemas de impressão, lançamento, distribuição e recepção crítica, continuam a atormentar autores e editores nos dias atuais. Pouco adiante, ainda no mesmo capítulo, levamos a cabo uma comparação entre duas edições da obra perscrutada: a 2ª edição, editada pelo Instituto Moreira Salles no ano 2000 e que se apresenta fac-similar à 1ª edição de Massao Ohno lançada em 1963, e a 3ª edição, trazida à luz pelo mesmo Instituto, mas com mudanças significativas entre essas duas últimas edições do livro. A mais flagrante foi a alteração do formato do livro. Originalmente impresso a partir de um leiaute oblongo, nesta edição, tal característica foi suprimida pelo fato de a nova versão do livro vir impressa sob as medidas do tradicional formato francês, predominante no universo editorial. Vale lembrar que outros elementos paratextuais também foram analisados e contrapostos nessas duas das edições. Concluímos que essas mudanças, embora proporcionem uma visada um pouco diferente dos poemas e fotografias, faz perder algo da potência receptiva original dessa obra uma vez que, aparentemente, os critérios editoriais, ou melhor, de mercado, foram sobrepostos ao conceito inicialmente arquitetado, no qual o formato paisagem escolhido aproximaria os poemas e fotografias a um plano-sequência cinematográfico, metaforizando perfeitamente a dinâmica imagética, cinematográfica e explosiva advinda das palavras e imagens no livro Paranoia. Por fim, esperamos que este nosso estudo possa acrescentar alguns subsídios não apenas aos Estudos de Linguagens, campo que privilegiando exatamente as relações entre

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manifestações linguageiras distintas – tais como a poesia e a fotografia –, orientou toda a perspectiva proposta e utilizada ao longo desta dissertação. Para encerrar, cabe dizer ainda que o propósito desta pesquisa, iniciada a partir de um projeto no qual apenas intuíamos alguns dos resultados aqui apresentados, foi o de contribuir para uma ampliação tanto da leitura deste livro quanto do restante da obra de cada um dos seus artífices, além de intentar despertar um maior senso crítico sobre o que nos é imposto por real e o que tomamos por imaginário.

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