Uma análise história de \'Amor de perdição\', de Camilo Castelo Branco

October 4, 2017 | Autor: Pablo Rodrigues | Categoria: Historia, Literatura, Literatura Portuguesa, Burguesía, Camilo Castelo Branco
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, 2 de Novembro de 2014.
Aluno: Pablo Baptista Rodrigues – Turma: LED
Disciplina: Narrativa Portuguesa I
Professora: Tatiana Massuno

2ª AVALIAÇÃO DE NARRATIVA PORTUGUESA 1
Massaud Moisés, em A Literatura Portuguesa, assim entende a novela camiliana:

Por outro lado, a temperatura passional sobe à proporção que o ambiente ou a consciência formula obstáculos à consecução do que pretendem os protagonistas: a obsessão amorosa desenvolve-se nos apaixonados paralelamente à sensação de que vivem em uma sociedade burguesa, caracterizada pelo princípio de que o sentimento deve conduzir os amantes ao casamento sacramentado. Quanto mais a sociedade os coage, lembrando-lhes os costumes em uso, mais se abandonam, convictos e justificados, à paixão de que se nutrem e em que se consomem.
Desse modo, Camilo coloca frente a frente as "razões do coração" e as razões da sociedade burguesa oitocentista, temerosa de enfraquecer-se pela concessão de direitos éticos individuais que possam pôr-lhe em crise os dogmas, as convenções e as modas." (MOISÉS, 2008, p. 206.)

Discuta o trecho acima, tendo em mente a novela Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco:

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (BARTHES, 2014, p. 8)

As afirmações acima estão presentes no livro Aula, de Roland Barthes, texto proferido em sua aula no Collège de France. Compreendemos da citação que "todos os caminhos" podem ser encontrados no campo literário, das ciências ditas exatas, as mais humanas. Longe de ser um conjunto de partes que formam um todo, a literatura dialoga com as mais diversas áreas do conhecimento, ela faz "girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso."
A obra trabalhada em questão, Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, possibilita o diálogo com Barthes, justamente por nos dar um conhecimento literário, mas também histórico. O livro do autor português não é tomado apenas, como de base histórica, nos revelando os dilemas da sociedade burguesa portuguesa, sociedade essa metonímia do sistema burguês como um todo. O que temos é a literatura "girando" os saberes, nesse diálogo perpetuo com outras áreas do conhecimento.
No pensar filosófico na construção de uma obra, lembremos aqui de Gaston Bachelard com seu livro A poética do espaço. Utilizamos aqui do pensamento que o filósofo faz sobre a relação psicológica e o espaço, o autor diz:

Para um estudo fenomenológico dos valores da intimidade do espaço interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado, sob a condição, bem entendido, de tomarmos, ao mesmo tempo, a sua unidade e a sua complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental. (BACHELARD, 2014, p. 16)

Bachelard relacionando a construção do espaço físico ao espaço psicológico, muito influenciado pelas teorias psicanalistas do século XX, nos revela que o "ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo". A casa é o próprio indivíduo e a compreensão desse ser, se dá pela compreensão das imagens criadas da casa. A casa portanto, é preciosa pois nela seus atores demostram seus "devaneios", e o "sonhador é protegido", "sem ela [a casa], o homem seria um ser disperso".
É bem certo que o filósofo francês se aproxima de uma análise de cunho da psicanálise para o desvendamento de uma obra literária e contribui, especialmente com A poética do espaço, no fornecimento de uma metodologia ao estudo da topoanálise literária. Sua utilização aqui se justifica, pois no romance de Camilo Castelo Branco, vemos o forte diálogo da relação espacial com a conduta das personagens, seja para justificar tais procedimentos, sejam para ir contra eles. Sobretudo, na relação do surgimento do estado burguês.
O livro começa com o narrador que apresenta ao leitor os relatos lidos nos "livros antigos" do "assentamentos dos presos das cadeias da Relação do Porto". Encontramos ali a história de Simão António Botelho, "solteiro e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa". A obra, como pode ser vista já no primeiro capítulo, que se estrutura pela excessiva coordenação e subordinação, o que traz peso ao texto. São acrescentadas inúmeras informações, na medida que necessária, sobre a personagem camiliana:

Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem, e um dos mais antigos solarengos de Vila Real de Trás-os-Montes, era, em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro, António de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tão notável por sua jerarquia, como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte da Guerra. (BRANCO, 2014, p. 4)

As conjunções aditivas são abundantes e mostram ao leitor que a caracterização não é pela essência que as personagens possam ter. Seus valores estão ligados ao externo. O mundo exterior, nesse caso a hereditariedade, define muito mais o sujeito, do que um possível desejo próprio, apesar de todas as questões já levantas à época de Camilo, sobre a importância da individualidade. Temos ainda a questão de linhagem como forma de enobrecimento de Simão Botelho.
Sobre os pais do jovem da cidade de Viseu, a primeira colocação espacial que temos é a da mãe de Simão, D. Rita Preciosa, "dama do paço". Rita estava no palácio, bem como Domingos Botelho nele "recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão, com a qual o aspirante de juiz de fora se esqueceu de si, do futuro, e do ministro da justiça que, muito rogado, fiara das suas letras o cargo de juiz de fora de Cascais". (BRANCO, 2014, p. 5). Ambos as personagens vão, após o casamento, residir em Vila Rica, onde Rita ao opinar sobre sua ida à cidade, revela a oposição do espaço do palácio versus o espaço da vila.
A nobreza da cidade que a recebeu era "velha", "a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata", e o medo de ser "devorada" por ratazanas surgiu depois de decorridos alguns dias. Restou a Domingos Botelho "a fábrica de um palacete". Questões levantadas por Camilo Castelo Branco, logo no primeiro capítulo de sua obra, nos revela a oposição valorativa desses espaços pelos pais de Simão Botelho. E ainda a posição muito mais ativa da mãe de Botelho, do que seu pai, por exemplo.
O espaço domiciliar é o lugar de embate dessas personagens. É nele que a família se estabelece com seus dilemas internos, que resultam posteriormente, na própria constituição da nação:

Principal teatro da vida privada, a família no século XIX fornece-lhe seus personagens e papéis principais, suas práticas e rituais, suas intrigas e conflitos. Mão invisível da sociedade civil, ela é ao mesmo tempo ninho e núcleo. 
Triunfantes nas doutrinas e nos discursos em que todos, dos conservadores aos liberais e até aos libertários, a louvam como a cédula da ordem viva, a família, na verdade, é muito mais caótica e heterogênea. A família nuclear emerge penosamente de sistemas de parentescos mais amplos e persistentes, que apresentam múltiplas formas de acordo com as cidades e as áreas rurais, as regiões e as tradições, os meios sociais e culturais. 
Totalitária, ela pretende impor suas finalidades a seus membros. Mas estes frequentemente, e cada vez mais, se rebelam. Daí que, entre gerações, entre os sexos, entre indivíduos dispostos a escolher seus destinos, surjam tensões que alimentam seus segredos, conflitos que levam à sua eclosão. (PERROT, 2009, p. 78)

Pela família se descobre a nação, justamente porque em uma sociedade pós-revolução Francesa, que visa o indivíduo, somente por ele, teremos a compressão do social. Vale ressaltar que após a queda do Antigo Regime todos os olhos se voltam para família, pois será nela que os novos ideais se materializam culminando nessa nova sociedade. Camilo Castelo Branco então, nos fornece em seu romance uma ideia de sociedade de ideias burguesas, que se organizando na vida privada, isto é, na casa, busca a regulação dos seus conflitos externo.
A novela de Camilo nos mostra o amor de dois jovens, Simão Botelho e Teresa Albuquerque, que enfrentam a oposição das suas famílias, aos moldes do casal shakespeariano, Romeu e Julieta, da peça homônima. Na narrativa o dilema entre as duas famílias é bem anterior ao amor dos dois jovens, é resultado da causa dada como perdida ao pai de Teresa. O herói romântico camiliano terá seus erros redimidos pelo amor à Teresa, também firme na devoção ao amado. A esse amor temos ainda Mariana que nega a si mesma, por Simão. Esse amor entre Simão e Teresa será sempre mediado pelo espaço da casa pois, "Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira vez" (BRANCO, 2014, p. 13). Espaço esse do oculto, que será revelado ao leitor como crítica a sociedade burguesa.
Sobre as questões familiares Martin-Fugier (PERROT, 2009), em seu texto "Os Atores", revelam os papeis da família burguesa surgida no mundo pós-Revolução Francesa. Com a evidência do indivíduo, questionar esse grupo emergente é evidentemente importante para a construção da nação. A família é "a garantia da moralidade natural" (PERROT, 2009, p. 80). E uma das questões não é somente a do sujeito, mas também as patrimoniais: o "patrimônio é, a um só tempo, necessidade econômica e afirmação simbólica", o que justifica os casamentos "arranjado". A família portanto, é uma construção nacional e não fruto das paixões que são profundamente perigosas.
O pai é o chefe da família, assim como o rei era o chefe do Estado. A mãe é destinada à devoção familiar. Os filhos como indivíduos da família só serão verdadeiramente livres com a morte do pai, para que futuramente sejam novos pais e novas mães. Até aqui o conceito de sociedade civil se aproxima mais dos conceitos de Hegel, com sua observação as três instâncias: o indivíduo, a sociedade civil e o Estado. Para o filósofo não é importante a linhagem carregada de feudalidade, como mostra nos Camilo na abertura da obra, a exemplo "Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses", mas sim a família como pedra angular da sociedade.
O que faz de Amor de perdição o mais celebrado romance de Camilo não é só o caráter passional de sua obra, mas é a sua análise profunda da sociedade portuguesa, como correlação a todas as sociedades burguesas. A caracterização das personagens camilianas estão se desviando lentamente desse ideal burguês que resultará na sociedade contemporânea. O autor português nos fornece uma mãe mais ativa que o pai, "Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças e estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado desenrugou a serenidade postiça da testa, e confessou tacitamente que era brutal e estúpido juiz". (PERROT, 2009, p. 30)
Diferentemente, para Kant, a família não seria uma "disposição macrossocial do público e do privado", mas sim um "micro espaço" para entendimento do Estado. A casa portanto, "é o fundamento da moral e da ordem social. É o cerne do privado, mas um privado submetido ao pai, o único capaz de refrear os instintos, de domas a mulher. Pois a guerra doméstica constitui uma ameaça constante". (PERROT, 2009, p. 81). Tais afirmações ficam evidentes no trecho abaixo:

– Hás de casar! Quero que cases! Quero… Quando não, serás amaldiçoada para sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr um pé nas alcatifas de meus avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha filha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra nesse quarto, e espera que daí de arranquem para outro, onde não verás um raio de sol. (BRANCO, 2014, p. 24)

Algumas observações podem ser tecidas do trecho acima. A primeira seria a forte relação que podemos estabelecer entre a sociedade prevista pela ideal burguês, o equilíbrio da casa como o equilíbrio do Estado. O pai como agente de autoridade sobre a vida da filha. E a questão já mencionada, anteriormente, sobre a questão patrimonial, aqui presente na figura do primo Baltasar Coutinho, também interessado em Teresa.
As "razões do coração" são colocadas por Camilo como os dilemas dos sujeitos de sociedade regida pelo casamento sacramentado. Não é possível pensar na quebra dos direitos éticos individuais, pois isso poderia resultar no final dessa comunidade. Todas as vezes que os personagens se retiram do lugar simbólico, e burguês, da casa, desastres acontecem. É na casa que se tem a segurança, e no lugar mais secreto ainda, o quarto. É na rua, como descreve Camilo Castelo Branco, que a morte acontece:

– Você é cruel, Senhor João – disse o acadêmico.
– Não sou cruel – disse o ferrador –, o fidalgo está enganado comigo; é que, diz lá o ditado, morrer por morrer, morra meu pai que é mais velho. Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar um alqueire como três. As obras devem ser acabadas, ou então o melhor é não se meter a gente nelas. Agora levo a justiça sossegada. A justiça que prove, se quiser; mas não há de ser porque lho digam aqueles dois que eu mandei de presente ao diabo. (BRANCO, 2014, p. 44)

A primeira morte da narrativa se dá no espaço escuro da floresta e não do espaço claro iluminado pelas luzes da casa. É o desejo de Simão Botelho de ver Teresa Albuquerque que gera toda essa problemática. Outro ponto importante de crítica levantado por Camilo Castelo Branco é o da religião:

– Mas nossa madre – disse Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual – a senhora disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem.
– É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem-disposto. Ora vê aí. Mas em comparação com o que vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui não há paixões, nem pensamentos que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor! Vivemos umas com as outras, como Deus com os anjos. O que uma quer, querem todas. Más-línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina e volto já. Aqui a deixo com a senhora madre organista. (BRANCO, 2014, p. 49)

O trecho destacado da obra de Camilo é o momento em que Teresa, já está no convento de Monchique. Por decisão de seu pai e após a recusa de se casar com seu primo Baltasar Coutinho, a menina recebe o destino desejado, o confinamento na comunidade religiosa. Logo na entrada diz: "Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo". (BRANCO, 2014, p. 48) A reação das freiras, como pode ser lido na citação, é repreensão à menina. O ambiente religioso, acima de tudo, é o local de negação do "eu" em nome da fé. Em questões da relação sacramental na sociedade burguesa sabemos que tal sociedade tinha como prática o "isolamento imposto aos filhos e filhas da burguesia, cuidadosamente afastados da convivência popular e marginalizados nas relações mundanas, extremamente codificadas". (PERROT, 2009, p. 477). A relação do convento pede portanto, a amiga íntima, já que a confissão é extremamente importante.
Percebe-se então, a profunda crítica da sociedade burguesa feita por Camilo Castelo Branco. Pois na mediação do espaço burguês, seja o da casa e da floresta, seja da casa e do convento, esses espaços configuram-se como espaços do equilíbrio e da perfeição, o que Camilo nos revela é uma sociedade emblemática. É no ambiente familiar que temos os dilemas pessoais da família Albuquerque e Botelho descortinado, bem como a realidade imoral do ambiente religioso.
Apesar da ausência de uma relação sexual entre os principais protagonistas da obra, Simão e Teresa, ou ainda de Mariana, terceiro elemento importante dessa trama, vemos a ascensão da sexualidade, que culminará no século XX. É justamente em torno de 1860 que começa a história contemporânea da sexualidade. Temos o abalo da cultura tradicional burguesa, tendo a mudança do imaginário erótico: "Encerrado na esfera privada, o burguês começa a sofrer com sua moral. A miragem de uma sexualidade popular, bestial e livre, aviva a tentação". (PERROT, 2009, p. 508)
Ao casal só restaria o amor impossível, vivido apenas na eternidade: "Que mal fariam a Deus os nossos inocentes desejos?". Vemos então, as "questões do coração" e o ambiente da sociedade burguesa oitocentista sendo questionamento pela pena literária de Camilo Castelo Branco.

















BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, G. A poética do espaço. Biblioteca de Filosofia da PUC, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 02 dezembro 2014.
BARTHES, R. Aula. Copyfight, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 02 dezembro 2014.
BRANCO, C. C. Amor de perdição. Biblioteca Virtual do Instituto Camões, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 02 dezembro 2014.
PERROT, M. História da vida privada. Tradução de Denise Bottmann e Bernardo Joffily. São Paulo: [s.n.], v. 4, 2009.






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