UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LEGAL SOBRE A PROTEÇÃO DA CAPACIDADE CIVIL E DA CULTURA DOS POVOS INDÍGENAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

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SUGESTÃO DE REFERÊNCIA: JONGH, L. P. P.; MELLO NETO, J. B. Uma Análise Histórico-Legal Sobre a Proteção da Capacidade Civil e da Cultura dos Povos Indígenas no Ordenamento Jurídico Brasileiro e no Direito Internacional dos Direitos Humanos. In: Wagner Menezes; Clodoaldo Silva da Anunciação; Gustavo Menezes Vieira. (Org.). Direito Internacional em Expansão. 1. ed. Belo Horizonte. Arraes Editores, vol. 4, 2014.

UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LEGAL SOBRE A PROTEÇÃO DA CAPACIDADE CIVIL E DA CULTURA DOS POVOS INDÍGENAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS José Baptista de Mello Neto1 Louis Philippe Patrick De Jongh Filho2 RESUMO Este trabalho tem como objetivo demonstrar como se deu o reconhecimento da capacidade civil e da cultura dos povos indígenas, no ordenamento jurídico brasileiro e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, e também pontuar quais desafios ainda persistem em termos de proteção legal para tais sujeitos. A princípio serão investigados quais os elementos léxicos mais apropriados para tratar destes grupos e de sua cultura. Ao final, será realizada uma análise histórico-legal sobre a capacidade de exercício e o modo de vida dos povos indígenas. Palavras-chave: Legislação Indigenista. Direitos Humanos. Tutela Jurídica. 1. Considerações iniciais Até a segunda metade do século XX, a legislação brasileira adotou um paradigma integracionista e buscou assimilar a cultura dos povos indígenas ao modo de vida da sociedade brasileira. Por muito tempo, tais povos foram considerados relativamente incapazes, de sorte que cabia ao Estado a tutela de seus direitos. Tal situação apenas se modificou após a aprovação da Constituição Federal de 1988 (CF-88), que garantiu a capacidade de exercício e a diversidade cultural dos povos indígenas. Mesmo assim, ainda hoje persistem algumas normativas anacrônicas no

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Doutorando em Educação PPGE/UFPB; Doutorando em Direito PPGDIR/DINTER/UERJ/UEPB; Professor das Universidades Estadual e Federal da Paraíba; Coordenador-Geral do Comitê Paraibano de Educação em Direitos Humanos; Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo da OAB/PB; membro do Núcleo de Cidadania de Direitos Humanos da UFPB. [email protected] 2 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Monitor Bolsista da Disciplina de Direito dos Grupos Socialmente Vulneráveis e Monitor Voluntário do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba. [email protected]

ordenamento jurídico brasileiro, incompatíveis com o disposto na CF-88 e nos instrumentos internacionais. No presente artigo, buscaremos fazer uma análise histórico-legal acerca da capacidade civil e da cultura dos povos indígenas. Nesse ínterim, buscaremos responder algumas perguntas: “O que é cultura?”, “Quem são os povos indígenas?”, “Como se deu o reconhecimento da capacidade civil e da cultura dos povos indígenas?”, “A legislação indigenista brasileira se mostra adequada ao seu parâmetro constitucional e à normativa internacional?”. 2. O que é cultura? A cultura é um termo para o qual há diferentes acepções. Há quem a relacione ao cultivo da terra, ao conjunto de técnicas que resultam no cultivo do solo (agricultura), ao “refinamento e ‘domesticação’ do homem por ele mesmo” ou a uma “cultura ‘institucional’”, tendo em vista que o “processo cumulativo de refinamento”, em termos de conquistas, invenções e descobertas, enseja a associação dos centros culturais ou da cultura ao ambiente das instituições (museus, bibliotecas, universidades, inter alia).3 Além disso, a cultura pode ser enxergada como um complexo que abarca conhecimento, crença, moral, direito, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos por um homem como membro de uma sociedade. 4 Também é válido pensá-la como um conjunto difuso de pressupostos e valores, orientações para a vida, crenças, procedimentos políticos e convenções de comportamentos que são partilhados por um grupo de pessoas, e que influenciam o agir de cada membro e sua interpretação do significado do comportamento das outras pessoas.5 Ou simplesmente podemos perceber a cultura como uma programação coletiva da mente que distingue os membros de um grupo ou categoria de pessoas de outro.6 É-nos facultada também a possibilidade de enxergar a cultura como algo relacional, de sorte que se possa através desse dispositivo heurístico falar da diferença. 3

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 54-55. TYLER apud AYRUCH, K. The Cultural and Conflict Resolution. Washington DC: United States Institue of Peace Press, 1998, p.6. 5 Spencer-Oatey, H. Culturally Speaking Culture, Comunnication and Politeness Theory. London: Continuum, 2008, p. 3. 6 Hofstede, G. Cultures and Organizations: Software of the Mind. London: Harper Collins Business, 1994, p.5. 4

Podemos compreendê-la ainda em seu significado de arte, sendo assim uma forma de nomear o campo da inventividade e do aprimoramento, bem como do desejo irreprimível do ser humano pela perfeição. 7 Por fim, cabe o significado de cultura como “modo de vida de uma sociedade ou de um povo”, compreendendo-a em sua pluralidade, em face dos diferentes valores, comportamentos e regras de cada grupo; devendo, pois, ser enxergada nesta definição como algo mutável, modificado pelas experiências e idéias, e não necessariamente consensual e igualitária.8 Destarte, interessa-nos aqui destacar exatamente o sentido de cultura como “modo de vida de uma sociedade ou de um povo”, entendendo que esta acepção foi basilar para o reconhecimento dos direitos dos indígenas, tanto na seara internacional como na esfera nacional, por incluir nele a concepção de pluralidade cultural e a defesa dos usos, costumes e tradições dos povos indígenas. 3. Povos Indígenas: um conceito em construção Conquanto seja utilizado desde muito tempo, tanto pela legislação indigenista brasileira como pelas fontes de direito internacional, não é pacífico o conceito de povos indígenas. No direito brasileiro, todas as constituições, exceto a Constituição de 1891, fizeram referência aos povos indígenas, ainda que por meio de outros vocábulos. A Constituição de 1824 (art. 6°) fez menção a eles ao estabelecer quem estaria incluído na definição de cidadãos brasileiros. Por sua vez, as Constituições de 1934 (Art.129), 1937 (art. 154), 1946 (art. 216) e 1967 (art.186), garantiu o respeito à posse de terras indígenas. Já a Constituição de 1988 (CF-88), asseverou uma série de direitos e de garantias para tais povos, dos quais iremos tratar da capacidade e da cultura. Fato é que poucos documentos legais no âmbito nacional se arriscaram a definir os aludidos sujeitos. A Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispôs sobre o Estatuto do Índio, de forma pioneira estabeleceu a seguinte definição: “Art. 3°, I- Índio 7

MARKS, Susan; CLAPHAM, Andrew. International Human Rights Lexicon. New York: Oxford University Press, 2005, p. 34-48. 8 Idem.

ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. No direito internacional, o primeiro conceito de “povos indígenas” surgiu ainda no período de existência da Liga das Nações, definindo-os como habitantes de territórios não autônomos que, apesar de viverem numa região localizada geograficamente dentro da circunscrição de Estados pré-determinados, afirmavam a diferença territorial de suas culturas.9 Por sua vez, o Pacto da Sociedade das Nações, de 1919, mais conhecido como Convenção de Versalhes, do qual o Brasil foi membro fundador, referiu-se, em seus artigos 22 e 23, de diferentes formas aos povos indígenas direta ou indiretamente (“colônias”, “povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios”, “comunidades”, “indígenas”, ”populações indígenas”). A Convenção n° 107 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, de 5 de junho de 1957, ao estabelecer a quem se aplicaria a convenção, acabou oferecendo uma definição de indígenas. Senão vejamos: Art 1°, 1, b) (A presente convenção se aplica) aos membros das populações tribais ou semitribais de países independentes, que sejam consideradas como indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país, ou uma região geográfica a que pertença tal país, na época da conquista ou da colonização e que, qualquer que seja seu estatuto jurídico, levem uma vida mais conforme às instituições sociais, econômicas e culturais daquela época do que às instituições peculiares à nação que pertencem.

De tal definição, devemos retirar cinco elementos essenciais para a caracterização dos povos indígenas sendo dois deles do passado, dois do presente e um que serve de liame entre o passado e o presente. Os elementos do passado seriam: 1- A ascendência de populações que habitavam o país ou uma região geográfica que pertença a tal país (caracterização do lugar) e o fato de que 2- Tais ancestrais habitavam em tal lugar à época da conquista ou da colonização (caracterização do tempo). O elemento que une o passado e o presente 9

BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p. 830-851.

seria: viver mais segundo as instituições sociais, econômicas e culturais da época da conquista ou da colonização a viver sob as atuais (caracterização da cultura). Por fim, os elementos do presente seriam 1- Ser membro de população tribal ou semitribal (caracterização do grupo) e 2- O país ser independente (caracterização de soberania). Já a Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, de 7 de junho de 1989, fez pequenas alterações ao que é proposto na primeira Convenção que regula tal matéria. Na caracterização do lugar, acrescentou o estabelecimento das atuais fronteiras estatais; na caracterização da cultura, retirou o elemento de ligação entre passado e presente e exigiu a conservação no todo ou em parte das instituições sociais, econômicas e culturais, propondo além destas a inclusão das instituições políticas. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI), de 13 de setembro de 2007, deu um importante passo ao reconhecer os povos indígenas como vítimas de injustiças históricas, cujos territórios, terras e recursos foram subtraídos, através de um processo de colonização, que obstou o seu desenvolvimento.10 Voltando à questão da definição de “povos indígenas”, faz-se imprescindível notarmos que, até então, esta nunca foi elaborada de forma incontroversa e precisa. Dessa sorte, há tão somente características que são consideradas comuns a esses grupos. Nada obstante, a definição mais amplamente citada foi proposta por José Martinez Cobo11, Relator Especial da Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, que abarcou quatro elementos principais: 1- sujeição à colonização; 2- continuidade histórica de sociedades anteriores à invasão ou à colonização; 3- identidade distinta daquela ostentada pela sociedade dominante em que estão inseridos os povos indígenas; e 4- preocupação com a preservação e a perpetuação de sua cultura.

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KÄLIN, Walter; KÜNZLI, Jörg. The Law of International Human Rights Protection. New York: Oxford University Press, 2009, p. 344-380. 11 COBO, José Martinez. Study of the Problem against Indigenous Populations, vol. v, Conclusions, Proposals ans Recommendations, UN Doc E/CN4/Sub 21986/7, Add 4, par. 379-381.

4. Proteção legal da capacidade civil e da cultura dos povos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro e no Direito Internacional dos Direitos Humanos É preciso perceber que a história dos povos indígenas no Brasil é marcada por três fases, a de extermínio, a de integração e, posteriormente à CF-88, a fase de ampliação e de recrudescimento de garantias e de direitos para tais sujeitos12. No que se refere à fase de integração, vale ressaltar que tal paradigma propunha a concepção de que “há estágios de evolução cultural pelos quais os índios (isolada ou coletivamente) passarão necessária e inexoravelmente, estágios a partir dos quais é possível diferenciá-los numa escala hierárquica de mais ou menos inferioridade”13. Nos dias hodiernos, considera-se que tal modo de pensar foi superado, dando lugar a outras correntes, dentre as quais preferimos adotar um conceito intermediário ao universalismo e ao relativismo culturais, qual seja, a hermenêutica diatópica proposta por Santos14. Isto porque, tal conceito sugestiona o diálogo entre culturas, a partir de suas premissas sólidas, ressaltando que nenhuma delas pode se pretender hermética, devido à diversidade cultural e ao fato de que todas são incompletas. 4.1 O reconhecimento da capacidade civil dos povos indígenas Ao examinarmos o art. 1° do Código Civil de 2002 (CC-02), o qual prescreveu que “toda pessoa é capaz de direitos e de deveres”, é possível inferir que a capacidade civil nada mais é do que a medida dos direitos e dos deveres de uma pessoa. Nesta senda, todos os indivíduos por razão de sua existência são titulares de direitos e de obrigações na vida civil, a isto se chama de capacidade de gozo ou de direito.15 Todavia, nem todas as pessoas são dotadas do discernimento necessário para exercerem com plenitude a sua capacidade. Logo, por falta de consciência ou de 12

BELFORT, Lucia Fernanda Inácia. A proteção dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, em face da convenção sobre diversidade biológica. 2006. 139 f.. Dissertação Mestrado – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. 13 BARRETO, Helder Girão. As disputas sobre direitos indígenas. In: SEMINÁRIO DE DIREITO AMBIENTAL, 5. Rio Branco. Anais do Seminário de Direito Ambiental. Rio Branco: Centro de Estudos Judiciários, 2003, p. 64. 14 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Uma concepção multicultural de direitos humanos”. Revista Lua Nova, n.39, 1997, p.105. 15 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 1: teoria geral do direito civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 152-153

vontade, podem-se impor restrições legais a sua atuação pessoal na esfera do direito, ou seja, limita-se a denominada capacidade de fato ou de exercício. A capacidade civil dos povos indígenas é discutida de há muito no direito brasileiro. O Decreto n° 8.072, de 20 de Junho de 1910, que criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), estabeleceu dentre suas finalidades a “prestação de assistência” aos índios do Brasil que viviam aldeiados, “promiscuamente com civilizados”, reunidos em tribos ou em estado nômade (art. 1°, a); e a criação de centros agrícolas em zonas férteis, constituídas por trabalhadores nacionais (art.1°, b). Posteriormente, o Código Civil Brasileiro de 1916 (CC-16) também considerou necessária a assistência aos povos indígenas, por considerar a capacidade deles comprometida: “Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art.147, n.1) ou à maneira de os exercer: IV. Os silvícolas.”. Vale notar ainda a redação do Decreto n° 5.484, de 27 de Junho de 1928, o qual regulou a situação dos índios nascidos no território nacional. Conquanto tenha liberado os povos indígenas da tutela orfanológica (art. 1°), estabeleceu restrições a sua capacidade de exercício. Vejamos: “Art. 5° A capacidade, de facto, dos indios soffrerá as restrições prescriptas nesta lei, emquanto não se incorporarem elles à sociedade civilizada”. Também, ao discorrer sobre os crimes contra indígenas, o documento chega a mencionar o “atrazo mental do índio” (art. 27). A Lei N° 5.371 de 5 de dezembro de 1967, criadora da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), seguiu a mesma linha da legislação que a antecedeu sobre a capacidade dos povos indígenas: “Art.1°, Parágrafo único. A Fundação exercerá os podêres de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar ao índio, na forma estabelecida na legislação civil comum ou em leis especiais”. Nessa esteira, é preciso destacar ainda o que dispôs o Estatuto do Índio: Art. 7° Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido nesta Lei [...] §2 Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas.

É imperioso salientar ainda que tal Estatuto assegurou a possibilidade de qualquer indígena requerer a sua liberação do regime tutelar, desde que preenchidos alguns requisitos, quais sejam, ter 21 anos ou mais, ter conhecimento da língua portuguesa, estar apto a realizar trabalho útil na sociedade nacional e compreender os usos e costumes do povo brasileiro. Dessa forma, fica muito clara a tônica de tratamento conferida aos indígenas pelos documentos legais supracitados, ou seja, tais sujeitos eram considerados relativamente incapazes e, como tais, ficavam submetidos ao poder de tutela do Estado. Por oportuno, os povos indígenas que mantivessem a sua cultura tradicional eram considerados como indivíduos não integrados à civilização, ou seja, eles ainda não estavam devidamente incorporados à sociedade brasileira. Até a segunda metade do século XX, toda a legislação específica, sob o manto do integracionismo, buscou assimilar a cultura dos povos indígenas. Com o advento da CF-88, podemos observar uma mudança de paradigma em relação à capacidade civil dos povos indígenas. Prova maior deste fato é a redação do art. 232: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. O reconhecimento da capacidade processual dos indígenas para se defenderem em juízo foi uma grande conquista, uma vez que o ordenamento pátrio reconheceu indiretamente a capacidade de exercício por parte dos povos indígenas. Ademais, o CC-02 retirou os indígenas do rol dos relativamente incapazes, porém deixou a cargo da legislação especial a regulação da capacidade dos índios (art. 4°, Parágrafo único). Muito embora tenhamos o Projeto de Lei n° 2.057, de 1991, a sua tramitação persiste parada no Congresso Nacional, de sorte que o já defasado Estatuto do Índio permanece como a nossa legislação especial indigenista vigente. É preciso salientar que os instrumentos internacionais tiveram considerável influência na feitura da legislação nacional indigenista, concordando ou discordando do

entendimento pátrio. Dessa forma, não havia como ser diferente em relação ao processo de reconhecimento da capacidade civil dos povos indígenas no Brasil. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADDH), de abril de 1948, foi pioneira ao reconhecer, em seu art. XVII, o direito de todos à personalidade jurídica e aos direitos civis: “Toda pessoa tem direito a ser reconhecida, seja onde for, como pessoa com direitos e obrigações, e a gozar dos direitos civis fundamentais”. Nessa esteira, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 10 de dezembro de 1948, estabeleceu em seu art II, 1 que: “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie [...]”. Do mesmo modo, assegurou, em seu art. XXII, a todos os seres humanos: “[...] direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade”. A Convenção n°107 da OIT, por sua vez, estabeleceu, em seu art. 7°, 1, que para definir “os direitos e as obrigações” dos povos indígenas, ou seja, para mensurar sua capacidade, seria preciso levar em conta o direito costumeiro dos povos indígenas. Todavia, complementou, no art.7°, 3, que as eventuais restrições não deveriam impedir que tais sujeitos se beneficiassem, “conforme sua capacidade individual, dos direitos reconhecidos a todos os cidadãos do país e de assumir as obrigações correspondentes”. De forma muito semelhante, a Convenção n°169 da OIT, em seu art. 8°, 1, propugnou que a aplicação da legislação nacional aos povos indígenas deveria levar em conta “seus costumes ou seu direito consuetudinário”. À luz do art. 8°, 3, obstou ainda a possibilidade de que os ditos povos não exercitassem quaisquer direitos e deveres concedidos aos demais cidadãos. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 16 de dezembro de 1966, também avançou ao garantir, em seu art. 16, o direito à personalidade jurídica: “Toda pessoa terá direito, em qualquer lugar, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”. Outrossim, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), de 22 de novembro de 1969, garantiu em seu art. 3 que: “Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”.

Por fim, a DNUDPI, muito embora não seja instrumento vinculante, foi indelével ao estabelecer a proibição de impor qualquer discriminação aos povos indígenas no exercício de seus direitos. Senão vejamos: Art. 2: Os povos e pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e indivíduos e têm o direito de não serem submetidos a nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que esteja fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena.

4.2 A proteção da cultura dos povos indígenas Conforme pudemos perceber, o Decreto n° 8.072, de 20 de Junho de 1910, estabeleceu com pioneirismo, no século XX, a necessidade de assistência aos indígenas na legislação nacional. Todavia, há de se notar como importante ressalva, para a aplicação de tal instituto, o respeito pela organização interna das tribos, bem como por sua independência, seus hábitos e suas instituições (art. 12, §4°). Por outro lado, o CC-16, revelou mais uma vez a perspectiva integracionista da normativa nacional em relação aos povos indígenas: “Art. 6, Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação”. A frase mencionada (“e que cessará à medida de sua adaptação”) foi posteriormente alterada, com o advento do Decreto n° 3.725, de 4 de dezembro de 1919, para “o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do paiz”. Mudança esta que apenas reafirmou o incentivo da lei em favor da assimilação cultural dos povos indígenas. Nesse viés, o Decreto n° 5.484, de 27 de Junho de 1928, em seu art. 6°, estabeleceu ainda que os indígenas não inteiramente adaptados ficassem sob a tutela do Estado, a qual seria exercida consoante o grau de adaptação de cada um. Acerca deste aspecto, julga-se inapropriado falar em povos mais ou menos adaptados, pois tal categorização ignora a pluralidade de culturas indígenas. Além disso, ao tratar da gestão dos bens, tal normativa expôs claramente a sua perspectiva integracionista, estabelecendo uma transição dos povos indígenas para trabalhadores de centros agrícolas: “Até a passagem dos índios para o centro agrícola ou sua incorporação á sociedade civilizada [...]” (art. 37).

Ainda no que se refere à cultura, é preciso analisar com cautela uma das finalidades da Lei n° 5.371 de 5 de dezembro de 1967: o “resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças bruscas” (art 1°, I, d). Pois ao passo que tutela o índio de uma aculturação forçada e brusca, enxerga a sua cultura sob uma perspectiva escatológica. Vale mencionar também que o Estatuto do Índio aponta como seus propósitos a preservação da cultura indígena e a integração progressiva e harmoniosa dos índios ao que denomina de “comunidade nacional” (Art. 1°). Parece-nos paradoxal tal afirmativa, na medida em que garante a tutela cultural daqueles povos, mas impõe indiretamente o objetivo de acabar com sua cultura, através de sua substituição pelo modo de vida da sociedade brasileira. Em contrapartida, não se pode negar que, em algumas passagens do texto, houve por parte do legislador certa preocupação com o resguardo e a observância dos valores, tradições, usos e costumes indígenas (art.1°, Parágrafo único; art. 2°, VI; art. 6°). Além disso, a CF-88 avançou ao assumir o encargo de proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras [...]” (art. 215) e ao reconhecer aos povos indígenas “sua organização social, costumes, línguas crenças e tradições [...]” (art. 231). Com isso, solidificou-se no ordenamento jurídico nacional o reconhecimento da diversidade cultural dos povos indígenas, rechaçando-se, pois, todo o conteúdo integracionista das normativas anteriores. É de bom alvitre destacar também que o Decreto n° 7177 de 2010, que aprovou o PNDH-3, em seu eixo III, objetivo estratégico II, Diretriz 9, estabelece importante política pública voltada para a aplicação dos saberes dos povos e a proteção dos conhecimentos tradicionais e medicinais, em consonância com o disposto na Convenção sobre Diversidade Biológica de 5 de junho de 1992 (art. 8, j; art. 10, c) No que se refere aos instrumentos internacionais, a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, é precursora ao assegurar o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos sem distinção (art. 1°, 3), bem como os princípios de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos (art 1°, 2).

Por sua vez, a DADDH, de abril de 1948, tem valioso papel ao estabelecer, em seu art. XIII, que: “Toda pessoa tem o direito de tomar parte na vida cultural da coletividade [...]”. Nesse viés, a DUDH, em seu art. XXII asseverou que todo ser humano tem direitos de cunho cultural, que sejam necessários à sua dignidade humana e ao desenvolvimento de sua personalidade. Não assegurando apenas o direito à cultura, como também o direito de usufruir da vida cultural de sua comunidade (art. XXVII). A Convenção N° 107 da OIT, por sua vez, incorreu no mesmo erro da legislação indigenista brasileira da época ao adotar uma perspectiva integracionista, para “[...] assegurar a proteção das populações em jogo, sua integração progressiva nas respectivas comunidades nacionais e a melhoria de suas condições de vida ou de trabalho” (Preâmbulo); e ao levar em conta o “grau de desenvolvimento cultural dessas populações” (art. 10, 2). Por outro lado, percebemos certo avanço em sua redação ao “tomar devidamente em consideração os valores culturais e religiosos [...]” (art. 4°, a), ao “tomar consciência do perigo que pode advir da subversão dos valôres e das instituições das referidas populações, a menos que os mesmos possam ser substituídos de maneira adequada e com o consentimento dos grupos interessados” (art. 4°, b), e ao levar em conta o direito costumeiro dos povos indígenas para determinar “os direitos e as obrigações das populações interessadas” (art. 7°, 1). Ambos os Pactos de 1966 estabeleceram no art 1°, I, que: “Todos os povos têm direito à autodeterminação” e que “Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Ademais, o Art. 27 do PIDCP dispôs que: Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

Em outro ponto, o art. 15, 1, a do o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) também assegurou “[...] a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural [...]” Insta destacar que a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 14-25 de Junho de 1993, garantiu que os povos indígenas podem estipular livremente quanto a seu “desenvolvimento econômico, social e cultural” (I, 2). O Protocolo de San Salvador, de 17 de novembro de 1988, por sua vez, reconheceu os direitos aos benefícios da cultura, pois em seu art. 14, 1, a, assim dispôs: “1. Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem o direito de toda pessoa a: a. Participar na vida cultural e artística da comunidade; [...]”. A Convenção n° 169 da OIT, diferentemente da que lhe precede, assinalou dois objetivos principais: a tutela de direitos dos povos indígenas e a garantia do respeito pela sua integridade (art.2°, 1). Incluiu ainda três medidas relativas a tais povos, voltadas: à garantia de direitos e de oportunidades, a plena efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais e à eliminação das diferenças sócio-econômica (art.2°, 2). Do mesmo modo, fez-se no mencionado tratado importante apelo ao respeito de valores e práticas sociais, cultuais, religiosas e espirituais desses povos (art.5°), bem como ao direito destes de escolher seu processo de desenvolvimento e a importância da cooperação dos povos com os governos (art. 7°). Por fim, a DNUDPI argüiu que a riqueza das civilizações e das culturas estava exatamente na diversidade. Estabeleceu ainda os direitos dos povos indígenas à autodeterminação (art 3°) e à autonomia ou ao autogovernança (art. 4). Para tanto, estabeleceu o impeditivo para a destruição forçada da cultura ou da assimilação forçada face à comunidade indígena (art. 8°). A Declaração consolidou ainda o direito de manifestar, praticar, desenvolver e ensinar tradições, costumes e cerimônias espirituais e religiosas; o direito aos medicamentos tradicionais (art. 24) e o direito de proteger, manter, controlar e desenvolver o patrimônio cultural (art. 31).

Conclusão Ao lume do exposto, podemos perceber a relevância de uma definição de povos indígenas para a proteção legal de tais sujeitos. Nesse sentido, como contribuição de nossa pesquisa, entendemos que povos indígenas são indivíduos descendentes de populações que resistiram à conquista ou à colonização e que habitaram uma região inserida nas atuais fronteiras estatais, cujos membros se diferenciam da sociedade que o circunda por se reconhecerem como tais e manterem traços culturais, econômicos, sociais, políticos e jurídicos próprios de seus ancestrais; com isso visando preservar suas instituições e perpetuar seu modo de vida coletivo, sob os auspícios da autodeterminação dos povos e da autonomia. Ademais, verificamos que apenas recentemente o tratamento conferido à capacidade civil dos indígenas no ordenamento jurídico pátrio oscilou da capacidade relativa à capacidade absoluta. Do mesmo modo, até a CF-88, toda a legislação buscou assimilar a cultura dos povos indígenas e não reconheceu a sua diversidade cultural. Por oportuno, faz-se urgente elaborar uma nova legislação indigenista, pois o Estatuto do Índio e a Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, que criou a FUNAI, estão claramente defasadas ao prever o regime de tutela estatal para tais sujeitos e ao preservar o paradigma integracionista, o qual remonta ao início do século XX. Com efeito, tais normativas não se coadunam ao disposto na CF-88 e muito menos aos instrumentos internacionais que o Brasil se obrigou a adimplir. Portanto, a morosidade do aludido Estado em atualizar a matéria indigenista poderia ensejar inclusive uma responsabilização em instâncias internacionais. Referências BARRETO, Helder Girão. As disputas sobre direitos indígenas. In: SEMINÁRIO DE DIREITO AMBIENTAL, 5. Rio Branco. Anais do Seminário de Direito Ambiental. Rio Branco: Centro de Estudos Judiciários, 2003, p. 64. BELFORT, Lucia Fernanda Inácia. A proteção dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, em face da convenção sobre diversidade biológica. 2006. 139 f.. Dissertação Mestrado – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

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