Uma breve história do esquecimento na Idade Média: ensaio de historicidade memorial [Versão Provisória de ensaio apresentado no VII Encontro Internacional do LATHIMM; a ser publicado em: ALVES, G. et HOFFMANN, R., \"Memória: questões historiográficas e metodológicas\"]

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UMA BREVE HISTÓRIA DO ESQUECIMENTO NA IDADE MÉDIA: ENSAIO DE HISTORICIDADE MEMORIAL

Gabriel Castanho* Canta Hesíodo (c. séc. VII A.E.C.) que a união entre Zeus e Memória (Mnemosyne) deu origem às Musas e, consequentemente, ao esquecimento (Lesmosyne), resultado do trabalho mnemônico que visa lançar no olvido as aflições e os males dos homens 1. O termo grego remete à Lete (Lethe, esquecimento) divindade filha de Éris (Discordia) e neta da Noite2. Lete deu nome à fonte e ao rio que marcam a passagem entre o mundo dos vivos e dos mortos. Suas águas tinham o poder de apagar as experiências vividas na terra e permitir a entrada no mundo ctônico. O vocábulo remete ainda à verdade ou ao que não está escondido ou oculto (como em aletheia), ampliando ainda mais o campo semântico do esquecimento na tradição helênica. A esse campo, se soma (como confirma a genealogia hesiódica de Lete) a noção de testemunho: à verdade das experiências humanas e divinas traçadas pela memória se opõe o obscurantismo do esquecimento. Esse é o ponto de partida de Platão (c.430 A.E.C.-c.350 A.E.C.) em seu Phaidros. Ali o filósofo atribui a Sócrates a narrativa que traça a origem da escrita entre os homens. As letras teriam sido criadas pelo deus Theuth e entregues ao rei Thamus para potencializar a sabedoria e a memória dos egípcios. O rei, contudo, responde que, com a escrita, a memória não será exercitada e se enfraquecerá, abrindo espaço para o esquecimento (Lethe)3. Essa relação entre escrita e lembrança é uma das marcas da tradição ocidental da memória. No período medieval, tal ideia ecoará sob a forma de uma famosa expressão latina: verba volant, scripta manent (“as palavras voam, os escritos permanecem”, em tradução livre). Sob diferentes formas, fragmentos dessa expressão passaram a circular no ocidente latino, pelo menos, desde o século XI, mas ninguém mais ninguém menos que Tomas de Aquino a cristalizou na chamada carta aos Filipenses (ensinamento oral de c. 1265 relatado por Reinaldo de Piperno) quando afirmou que verba enim de facili transeunt, sed scripta manent

* Professor do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História e Civilizações pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), Paris, França. 1

HESÍODO, Teogonia: a origem dos deuses (estudo e tradução Jaa Torrano). São Paulo: Iluminuras, 2004 [1991], v. 53-54, p. 105. 2 HESÍODO, Teogonia: a origem dos deuses (estudo e tradução Jaa Torrano). São Paulo: Iluminuras, 2004 [1991], v. 212-232, p. 113-115. 3 PLATÃO. Euthyphro. Apology. Crito. Phaedo. Phaedrus (tradução Harold N. Fowler). Cambridge: Harvard University Press; London, William Heinemann, 1925, 274e-275b (Loeb Classical Library 36).

(“as palavras passam com facilidade, mas os escritos permanecem”, novamente em tradução livre)4. Aletheia e verba volant, scripta manent: palavras e expressões eruditas, oriundas de temporalidades bastante distantes da atualidade brasileira, mas que nem por isso nos são hoje estranhas. De fato, um leitor atento às questões políticas que atravessaram a cena pública brasileira nos anos 2015-2016 perceberá que expressão foi empregada pelo então vicepresidente da República, Michel Temer, em uma carta pública (portanto, no sentido epistolar ocidental do termo “epístola”), onde seu autor acusava sua até então aliada (a ex-presidenta Dilma Rousseff) de tê-lo menosprezado e, por que não, esquecido, como acontece com as palavras ao vento; por outro lado, e poucos meses depois, o termo aletheia deu nome à 24ª fase da chamada operação Lava Jato (a mesma que levou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a depor sob condução coercitiva) do Ministério Público Federal e da Justiça Federal do estado do Paraná. Vemos ai o mesmo contexto semântico evocado pela bela mítica helênica, a saber, testemunho, verdade, memória e esquecimento, agora revestido com um caráter marcadamente jurídico. Diante de tal panorama transtemporal é, dentre todos os cientistas sociais, ao historiador que a sociedade deve recorrer, uma vez que este é seu território nato e campo absolutamente fértil para reflexões a respeito das continuidades e das rupturas ocorridas ao longo dos séculos. Por sua vez, entre os historiadores, o medievalista se encontra em posição privilegiada para traçar os elementos principais que marcaram a transformação do caráter divino (segundo a tradição helênica) em estatuto jurídico das noções de esquecimento e de memória constatado atualmente. Tal empresa analítica é longa e ampla. Aqui, proporei apenas alguns pontos basilares que, espero, ensejem trabalhos futuros. Para tanto, estabelecerei, nas páginas que se seguem, um sobrevoo semântico dos usos do termo oblivio em diferentes tipos documentais produzidos na Idade Média. O campo religioso Desde a fundação do campo de estudos sociais da religião na virada do século XX, muitas foram as leituras realizadas sobre a estruturação do sagrado e suas relações com homens e mulheres. Da abordagem universalizante e eurocêntrica de Émille Durkheim (tributária da noção de Igreja católica) à visão heterogenia e densa de Clifford Geertz, a antropologia e a sociologia passaram a falar em religiões (no plural), enriquecendo, assim, a

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TOMAS DE AQUINO, Super Epistolas S. Pauli Lectura (Ed. R. Cai). Turim/Roma: Marietti, 1953, vol.2, p. 89-123.

reflexão científica sobre as diferentes formas de manifestação e exercício prático da relação com o divino. Contudo, a noção de religião empregada durante a Idade Média, testemunho coerente da visão de mundo cristã da época, é apresentada de maneira unívoca pelos autores medievais: apenas o cristianismo recebe a qualificação de religião 5; fora dele o que existiria seria erro (heresia), infidelidade (outra crença monoteísta) e paganismo (politeísmos). Essa identificação entre a noção de religião e a prática especificamente cristã se deu por meio do termo latino religiosus, entendido fundamentalmente como o cuidado e o respeito dedicado às divindades. Manuel de Souza demonstrou recentemente – e com grande detalhamento histórico – como se deu a apropriação cristã do qualificativo romano religiosus. Vejamos os principais aspectos dessa translatio propostos por Manuel de Souza6. Originariamente aplicado a objetos que se encontram submetidos a interdições normativas, religiosus inverterá seu significado passando, desde pelo menos o século I A.E.C., a qualificar algo desejado social e politicamente. Foi também ao final da República que os pontífices passaram a associar o termo às coisas sagradas a serem evitadas por oposição aos assuntos mundanos e à vida cotidiana. Por outro lado, já no século II E.C., religiosus passa a ser positivamente associado aos dias de festas e às cerimônias de culto. Com esse novo sentido positivo instala-se e se desenvolve a associação entre a noção de local religioso e os sítios de sepultamento dos mortos que serão objeto de cultos. Segundo um aparato jurídico fortemente estabelecido durante o Império, religiosus e sagrado se associam, de maneiras opostas – o segundo tendendo ao campo da gestão pública e o primeiro ao nãopúblico –, às interdições e proteções oriundas do direito pontifical. Mas será somente ao final do século II e início do século III (em especial nas obras de polemistas como Tertuliano – c.155-c.225) que o cristianismo começará a reivindicar para si o monopólio do religioso (processo que se completaria apenas no século V), por meio da apropriação do termo religiosus para qualificar seus seguidores, cabendo a heréticos ou pagãos a alcunha de inreligiosi. Assim, o sentido jurídico que reveste o vocábulo religiosus durante a República passa gradativamente a ter sua função social transformada a partir de reflexões de cunho teológico cristão durante o período imperial. A iniquidade lembrada ou esquecida por deus: Ezequiel 33:13 5

Sobre o descompasso existente entre os usos medieval e atual do termo “religião” ver. GUERREAU, A., L'avenir d'un passé incertain. Quelle histoire du Moyen Âge au XXIe siècle. Paris: Seuil, 2001, p. 31-34. 6 DE SOUZA, M., Religiosus ou les métamorphoses du “religieux” dans le monde romain de la fin de la République à l’Empire chrétien (IIe siècle av. J.-C. - début du Ve siècle ap. J.-C.). In : Bulletin du Centre d’études médiévales d’Auxerre, 7, 2003. Disponível em http://cem.revues.org/3552. Consultado em Setembro de 2016.

Para uma compreensão densa do longo processo de surgimento da instituição eclesial é necessário, portanto, levar em consideração o fato de que a identidade cristã se constituiu – no ocidente – a partir da noção de religiosus e sua herança semântico-jurídica pagã (romana). Uma identidade que alterou o campo de significados do termo no sentido de uma sobreposição de valores sociais, morais e espirituais positivados. Essa articulação entre religião cristã e organização social em função de um vocabulário fundamentalmente ligado à justiça floresceu nos séculos medievais em torno da questão do perdão divino dos pecados humanos. “Religioso” era aquele que se penitenciava zelosa e constantemente por suas faltas buscando o esquecimento de seus erros passados. Mas poderia ser também o justo (o uso do vocabulário judiciário no sentido espiritual não é sem importância e terá uma longa tradição na exegese bíblica) que orgulhosamente confia em sua salvação e por isso relaxa sua vigilância espiritual. Neste caso, ao cometer o mal terá todos os seus atos justos levados ao esquecimento, como diz Ezequiel 33,13 (omnes iustitiae euis oblivioni tradentur). A tópica bíblica será em seguida comentada a exaustão sob o olhar penitencial (juridicamente espiritual, portanto). Hugo de São Vitor (c.1096-1141) em seu sacramento sobre a fé cristã pondera que um novo pecado joga no esquecimento toda penitência já realizada, ao mesmo tempo que faz reviver (relembrar, podemos dizer) a causa da penitência, ou seja o antigo pecado7. Assim os crimes espirituais alimentam a memória dos pecados passados bem como entregam ao olvido toda tentativa de tentar superá-los Ao pesquisarmos nas vastas bases digitais alimentadas por milhares de textos medievais que nos são hoje disponíveis, percebemos não apenas que essa passagem bíblica é bastante recorrente8, como o uso associado do termo esquecimento (oblivio) com justiça (iustitia), pecado (peccatum) e, sobretudo, o verbo polissêmico tradere (entregar, transmitir, levar, trazer) é dos mais comuns no campo semântico do olvido medieval. Pode-se dizer que tais termos compõem o cerne do que poderíamos chamar de vocabulário do esquecimento

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“Si omnes justitiae ejus oblivioni tradentur, ergo et poenitentia ejus et humilitas ejus, et caetera bona quae operatus est oblivioni tradentur; si autem poenitentia oblivioni traditur, culpa unde excusatur? Ergo si poenitentia deletur, culpa quae propter poenitentiam dimissa fuerat iterum necesse est renascatur.” HUGO DE SÃO VITOR, “De sacramentis christianae fidei”, liber: 2, pars: 14, cap.: 9, In: MIGNE, J.-P. (éd.), Patrologiae cursus completus seu bibliotheca universalis, integra, uniformis, commoda, oeconomica, omnium ss. patrum, doctorum scriptorumque ecclesiasticorum (agora em diante PL). Paris, 1880, v. 176, col. 576. 8 Pensamos por exemplo em: AGOSTINHO DE HIPONA, Speculum, In: Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, 12 (Ed. F. WEIHRICH). Viena: Hoelder-Pichler-Tempsky, 1887, cap. 21, p.110; JOÃO CASSIANO, Conférences XVIII-XXIV (ed., M. PETSCHENIG ; introd., trad. e notas E. PICHERY]. Paris: Cerf, 1971 [1959] (Sources Chrétiennes, 64), conferência 17, capítulo 25; HINCMAR DE REIMS, Carta 37, In: PERELS, E. (ed.). Hincmari archiepiscopi Remensis epistolae. Berlim: Weidmann, 1939, p. 16 (Monumenta Germaniae Historica); RÁBANO MAURO, Carta 15, In: DÜMMLER, E. (Ed.). Epistolae Karolini Aevi, 3. Berlim: Weidmann, 1899, p. 414 (Monumenta Germaniae Historica).

religioso medieval, ou seja, os termos mais intimamente associados ao olvido pelos autores medievais em textos de caráter religioso. A relação direta e constante entre oblivio e tradere merece mais atenção, uma vez que revela uma concepção diferente de esquecimento para os falantes do português atual. Nela percebe-se que o olvido pressupõe um deslocamento que marca a mudança de uma situação, no caso, da lembrança para a não-lembrança. Leva-se algo ao esquecimento, assim como em algumas línguas fala-se em “trazer à memória”. É, portanto, uma ação, caracterizada pelo ato de entregar ou retirar algo da memória. Tal significado é coerente com o aspecto técnico, retórico e imagético detalhadamente estudado por Mary Carruthers 9. Como recurso mnemônico, oblivio faz parte do processo criativo que envolve a noção de memória na Idade Média. De fato, como indicou Verbaal, a produção escrita (literária, em especial) só pode ser iniciada após a produção de um espaço mental vazio sobre o qual a memória possa se organizar e se estruturar10. A reflexão medieval sobre a memória e os discursos produzidos a respeito dela (aquilo que alguns chamam de “metamemória” 11), partem, assim, do principio bíblico evocado anteriormente: em primeiro lugar a lembrança e o esquecimento estabelecem um elo de ligação entre a vida e o pós-vida por meio do divino; em segundo lugar esse elo se realiza em uma prática jurídica pautada pelo horizonte soteriológico (a salvação ou a danação das alma após o juízo final); por fim, o julgamento divino reforça o caráter técnico da concepção de memória na Idade Média. De fato, e em acordo com os trabalhos seminais de Frances A. Yates, esquecer e lembrar muitas vezes não são obra do acaso, mas sim de operações voluntárias por parte dos agentes envolvidos12. Esquecer é, em suma, uma arte no sentido medieval da palavra, isto é, um conjunto de conhecimentos (savoir-faire, know-how) diretamente ligados a uma determinada prática e que permite ao sujeito realizar uma dada tarefa. Esquecer este mundo e lembrar-se do além visa preparar a alma para o julgamento divino de todos os atos realizados na Terra e que não foram lançados ao olvido por Deus. A vida do fiel pode, então, ser definida metaforicamente como uma arte memorial, uma elaboração constante de imagens mnemônicas (sejam elas escritas ou não) marcadas pelo preenchimento de lugares comuns em uma topografia espiritual da salvação. O trabalho 9

CARRUTHERS, M. Machina memorialis. Méditation, rhétorique et fabrication des images au Moyen Âge. Paris: Gallimard, 2002 [1998]. 10 VERBAAL, W. Bernard of Clairvaux’s school of oblivion. In: BRUUN, M. B. et GLAS, S.. Negotiating Heritage: Memories of the Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2008. p. 221–237. 11 Sobre o conceito de metamemória nos estudos sociais ver CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014 [2011]. 12 YATES, F. A. The art of Memory. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1966.

mental associado à memória segue assim a lógica cristã das virtudes e se manifestada pela cogitação contemplativa realizada por aqueles que são identificados como sendo sábios. Santo Agostinho diz, em um de seus comentários sobre os Salmos que, enquanto o sábio reflete a respeito de tudo aquilo que escuta (o que pressupõe o manuseio constante das lembranças), o estúpido entrega ao esquecimento (oblivioni tradit) tudo o que escuta13.

O discurso

metamemorial medieval se encontra assim profundamente ligado a duas formas de conhecimento: técnico-mnemônico (para o aprendizado) e jurídico-espiritual (penitencial). Tais modalidades de conhecimento só se realizam perfeitamente quando direcionadas para a salvação. Nesse sentido, rememorar algo é lembrar-se da verdade divina e da história dos homens, da queda até o juízo final. Assim, a noção antiga de memória associada ao divino tem sua forma alterada pelo campo semântico da justiça salvífica medieval de modo a identificar a lembrança das ações virtuosas ao perdão e o seu esquecimento à punição. Para uma cultura marcada pelo pecado original e pela crença na natureza viciosa do mundo material, lembrar ou esquecer as ações virtuosas do fiel figura como o grande instrumento de acesso ao paraíso ou ao inferno. Chegamos aqui ao ponto culminante da reflexão medieval sobre o esquecimento. Uma concepção metamemorial claramente religiosa e jurídica extremamente abstrata e genérica, mas mesmo assim socialmente eficaz, uma vez que mobiliza práticas comunitárias como o culto à memoria (ou seja, às relíquias) de santos, a elaboração de textos eruditos eivados de citações bíblicas e o agenciamento de imagens (estejam elas dispostas sobre pergaminho ou espalhadas no espaço de uma igreja). Trata-se, portanto, de um aspecto cultural intermediário, entre o erudito e o popular – e pertencente a essas duas esferas14 – que é acionado de maneiras diferentes segundo contextos precisos. Ao aprofundarmos nossa pesquisa buscando os diferentes usos específicos do vocabulário do esquecimento, um tipo documental salta aos olhos pelo uso constante que faz dos termos estudados: os “atos da prática”. Nas páginas seguintes iremos abordar essa modalidade de escritos e seus discursos metamemoriais.

Os formulários com caráter jurídico 13

“breuiter dixit: sapiens ruminat, stultus non ruminat. Hoc autem aperte et latine quid est? Sapiens cogitat ea quae audierit; stultus autem audita obliuioni tradit.” AGOSTINHO DE HIPONA. « Enarrationes in Psalmos, psalmus: 141, 1, In: PL, 36. Sobre a influência de Agostinho na concepção medieval de memória ver SOLIGNAC, A. L’Idée de la mémoire chez Augustin et sa survie au Moyen Âge. In : JONES-DAVIES, M.-T. Mémoire et oubli au temps de la Renaissance. Paris: Honoré Champion, 2002. v. 26, p.13-22 ; MADEC, G. Oubli et souvenir de Dieu selon saint Augustin. In: La vie spirituelle, v. 132, p. 174–182, 1978. 14 FRANCO JR. H. Meu, teu, nosso. Reflexões sobre o conceito de cultura intermediária. In. ID. A Eva Barbada. São Paulo: Edusp, 1996, p. 31-44.

Muitos medievalistas ainda hoje atribuem aos chamados “documentos da prática” um valor heurístico superior por supostamente se tratar de um testemunho “imparcial” das relações sociais neles inscritas. Vendas, doações, trocas, acordos, etc. seriam, diferentemente da documentação anteriormente analisada neste ensaio, de aplicação prática, pois visavam regulamentar e registrar (para a posteridade) realidades empíricas. Essa mesma leitura desse gênero documental muitas vezes menosprezou ou simplesmente negligenciou as parcelas tidas como meramente formais desses escritos: invocação, notificação, titulações do emitente e do destinatário, saudação, colofão e preâmbulo. No entanto, trabalhos recentes têm demonstrado a importância do estudo de tais formulações, as quais o olho desavisado toma por genéricas, retóricas vazias e inexpressivas, mas que, na verdade, revelam uma trama social profunda e complexa15. Seguindo tais estudos pretendemos indicar a seguir como é exatamente no preâmbulo (a respeito das motivações que levam a produção material do ato) e no colofão (informações finais que fecham ato) que se registram certa concepção medieval do esquecimento.

Testemunho oral, escrito, sigilográfico Em 2002 Patrick Geary respondeu aos críticos de sua obra seminal sobre a escrita memorial medieval16. Acusavam-no de ter, em Phantoms of Remembrace. Memory and Oblivion at the End of the First Millennium, negligenciado inteiramente um aspecto fundamental da memória na Idade Média: a oralidade. Em resposta Geary demonstrou que a “evidência escrita nunca 'fala por si só'. Ela primeiro deve ser vocalizada para que os sons que ela carrega sejam novamente escutados pelo juiz e seus conselheiros. Ela deve então ser confrontada à memória oral (...). Finalmente, a memória oral em si, (...) deve ser 'ficcionada', isto é, colocada em uma estrutura narrativa que seja a apresentação formal do procedimento de corte”17.

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ZIMMERMANN, M., Écrire et lire en Catalogne (IXe-XIIe siècle), vol. 1. Madri : Casa de Velázquez, 2003, p. 246-284 (Bibliothèque de la Casa de Velázquez, 23). GREVIN, B., Les mystères rhétoriques de l’État medieval. L’écriture du pouvoir en Europe occidentale (XIIIe-XVe siècle), In: Annales HSS, 63, 2008/2, p. 271300. ANHEIM, E., Culture de cour et science de l'État. In: Actes de la recherche en sciences sociales. v. 133, 2000, p. 40-47. 16 GEARY, P. Oblivion between orality and textuality in the tenth century. In: ALTHOFF, G., FRIED, J. et GEARY, P.(orgs.). Medieval Concepts of the Past: Ritual, Memory, Historiography. Washington, D.C.: German Historical Institute, 2002. p. 111–122. GEARY, P. Phantoms of Remembrace. Memory and Oblivion at the End of the First Millennium. Princeton: Princeton Univ. Press, 1994. 17 “Written evidence never ‘speaks for itself’. It first must be vocalized so that the sounds it carries are once more heard by the judge and his advisers. It then must be confronted by oral memory (…). Finally, the oral

Essa afirmação conclusiva e a demonstração que a antecedeu nos interessam particularmente por dois motivos. Primeiro, pois encontramos novamente a associação de termos jurídicos com a memória; em seguida, visto que esse vocabulário jurídico é entendido em sua realização prática, a saber, a ritualização que envolve o julgamento em si e, sobretudo, a declaração solene do veredito final; veredito estruturado no exercício da oralidade (no presente) e da escrita (projetada para o futuro). Tal ritualização soma, ao campo da produção da memória, a questão de seus usos ao longo dos anos pelos agentes medievais, uma vez que coloca em evidência a constante (re)ativação oral da memória escrita. É a própria documentação que indica a causa de sua existência, isto é, a necessidade de colocar por escrito os acordos previamente acertados de forma oral para que “não sejam de modo algum levados ao esquecimento, mas para informação dos futuros por uma narração fiel”, como diz um ato notarial da abadia de Santo Amand (fronteira entre as atuais França e Bélgica) datado de 114618. Encontramos aqui, em um ato da prática, a mesma expressão (oblivioni tradere) utilizada na bíblia e largamente retomada por textos religiosos medievais. O uso dessa expressão é corrente nos “atos da prática”, sobre tudo na arenga (“exposição” ou “preâmbulo”) deste gênero de documentos, ou seja, na parte dedicada à apresentação da motivação genérica responsável pela produção escrita. Sua presença é instável ao longo do tempo, sendo característica marcante do século X até primeira metade do XII (e ressurgindo na chancelaria régia entre o final do século XIII e no século XIV) 19. Além disso, sua função é “despertar o interesse do leitor” de modo a afirmar “a legitimidade da ação jurídica exposta no documento inserindo-o em um contexto mais amplo”20. Seu caráter de formulário e sua retórica pautada pelo reuso de lugares comuns parecem esvaziar os significados ali produzidos. No entanto, muitas pesquisas têm se debruçado sobre as sutis variações ali empregadas, revelando o potencial significativo dos termos ali empregados21. É nesse espaço, portanto, que se encena a “luta contra o esquecimento”22 travada entre a escrita – verdadeira marca da memória – e o tempo – terreno fértil para o esquecimento. De fato, em um ato datado de 1181 em Saint-Laurent (Liège), a produção do olvido aparece memory itself (…), must be ‘fictionalized’, that is, placed into a narrative structure that is the formal presentation of the court procedure.” GEARY, P. Oblivion between orality and textuality…, p. 122. 18 “non sunt ullatenus obliuioni tradenda sed fideli relatione posteris notificanda.” DUVIVIER, Ch., Actes et documents intéressant la Belgique. Bruxelas: Kiessling, 1898, I, p. 70. 19 GUYOTJEANNIM, O. et alii. Diplomatique médiévale. Turnhout: Brepols, 2006, p. 76 (Atelier du médiéviste, 2). 20 Id. Ibid. 21 Ver, por exemplo, os títulos citados em Id. Ibid. p. 77-99. 22 Id. Ibid. 76.

diretamente associada à transformação causada pelo envelhecimento das coisas perenes 23. O vocabulário ali empregado não é sem importância, uma vez que o termo immutabilitas (imutabilidade) possuía um sentido teológico claramente associado a Deus24. Não devemos nunca perder de vista que os redatores dos atos receberam suas letras e desenvolveram seu vocabulário manejando textos religiosos. Assim, ainda que esteja presente em um documento ligado à gestão material das relações entre os seres humanos, a referência ao esquecimento ali desenvolvida não apenas se associa à decrepitude trazida pelo tempo, mas também (por oposição) ao desejo de constância ou imutabilidade atribuído a Deus. A proximidade entre a memória e a divindade é evidente, como revela a passagem do sentido do termo memoria de seu fundamento romano (monumento mortuário dedicado a alguém) ao significado propriamente cristão (local onde se encontram os restos mortais de um santo)25; como consequência, reforça-se a intrínseca relação entre o esquecimento e a condição humana. O fato de tal relação ser comumente mediada pela escrita, como é claramente evocado no documento, não deve chamar mais nossa atenção do que a natureza jurídica do ato em questão. Por outro lado, meus argumentos indicam algo mais importante e menos evidente: a transferência do elemento garantidor da eficácia de tal ato. De fato, passa-se de uma memória divina (entendida como Verdade – Deus – imutável) para uma memória jurídica (entendida como Verdade – humana – perecível); entre uma e outra há o esquecimento, ou melhor, a produção do olvido (oblivioni tradere). Lembrar é divino, esquecer é humano; a justiça – operação mundana –, quando bem exercida pode levar à verdade e aproximar o pecador de seu Deus (seja por meio do fogo que pune os injustos ou da beatitude dos santos). Nesse sentido, o tempo e a condição corrompida da matéria (ai incluídos os seres humanos) colaboram, muitas vezes, com a produção do esquecimento (sempre voluntário). É exatamente para lutar contra a decadência mundana, causadora do esquecimento da verdade, que os atos jurídicos são escritos. Esse é o sentido de uma forma de base bastante comum nos preâmbulos de “atos da prática” produzidos na região da atual França no século XII e pouco estudados pelos medievalistas (que ali enxergam mero floreado retórico): a presença do advérbio quoniam (tendo em vista que, assim, por isso, consequentemente etc.) associado a termos que indicam a passagem do tempo (tempus, 23

“Quoniam rerum immutabilitate cuncta senescunt et obliuioni traduntur nisi litteris impressa memorie posterorum reseruentur iccirco”. YANS, M., Le cartulaire de l’abbaye de Saint-Laurent-les-Liège conservé au British Museum. In: Bulletin de la Société d'art et d'histoire du diocèse de Liège, T. 47, 1967 p. 75-78, n. 22. 24 Ver, por exemplo, a Suma Teológica de Tomás de Aquino, I, q.3, sobre a simplicidade de Deus. 25 Ver o verbete memoria do DU CANGE et al.. Glassarium mediae et infimae latinitatis. Niort: L. Favre, 1883-1887, t. 5, col. 335c.

futurus, presens, posterius, vetustas etc.) e a condição humana (mortalis, fraudulentus etc.) ligados pelo nosso par oblivioni tradere26. Tratam-se evocações capitais para a conquista da simpatia do leitor que começa a ler o documento, uma vez que asseguram sua eficácia no presente e no futuro27. Contudo, tal eficácia do escrito e da memória do ato evanescente que ele representa só será de fato assegurada ao final do documento quando são listadas as testemunhas e a marca (assinatura, selo etc.) do emitente do documento (a autoridade garantidora da veracidade do propósito ali descrito) bem como, algumas vezes, o nome daquele que escreveu o ato. É nessa parte do formulário diplomático que termina o ato (colofão) que se manifestam a autoridade e a autoria por trás da produção material do documento. É também nesse trecho que se encontram outro bom número de ocorrências da expressão oblivioni tradere. Citemos dois desses casos que nos parecem mais exemplares. Em um diploma do final do século XII, Godofredo, duque da Lotaríngia, certifica um breve ato de cessão de terras afirmando que, para se evitar o esquecimento (sob a forma oblivioni tradatur) da veracidade (veritas) dos atos objeto do documento, ele ordenou colocar ali seu selo e os nomes das testemunhas28. O selo “presentifica” a autoridade e garante a veracidade jurídica do ato contra qualquer tipo de esquecimento. Dele emana não somente a legitimidade, como normalmente destacam estudos sobre o colofão 29, mas, sobretudo, a memória dos atos em si, uma vez que o selo garante a veracidade dos fatos contra qualquer esquecimento. Do mesmo modo, um diploma de 1168 vindo da abadia cisterciense de Orval (atual Bélgica), mas emitido pelo bispo Hillinus de Trier segue uma lógica semelhante. Embora a passagem não se localize no final do documento, ali estão os mesmo termos e argumento: para que a passagem do tempo não leve ao esquecimento, testemunhas e o selo

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Ver, por exemplo: carta 10 da catedral de Amiens (1091-1102); carta 129 da abadia de Saint-Benoît-sur-Loire (1137-1154); carta 178 da abadia de Cîteaux (1167); carta 3 do bispado de Autun (1100-1170); carta 906 do cartulário de Savigny (c.1121); carta 51 do cartulário do priorado de Saint-Marcel-lès-Chalon (1120-1123); carta 4243 da abadia de Cluny (1172); carta 364 do cartulário geral de Yonne (1154). 27 Fala-se mesmo em “captatio benevolentiae”. GUYOTJEANNIM, O. et alii. Diplomatique médiévale…, p. 76. 28 “Verum ne forte hec ueritas hoc tenore gesta obliuioni tradatur presenti cartule atnotari sigillo meo firmari mandaui subscriptis testibus qui interfuerunt quorum hec sunt nomina.” MARNEFFE, E. de, Cartulaire de l'abbaye d'Afflighem, 5 fasc. 1894-1901 (Documents pour servir à l'histoire ecclésiastique de la Belgique, 2e série,), p. 247-248, n. 171. 29 GUYOTJEANNIM, O. et alii. Diplomatique médiévale..., em especial p. 86-92 sobre os meios de validação dos atos.

aparecem como instrumento de confirmação da veracidade dos fatos e garantidores de sua lembrança30. Poderíamos ainda citar outros exemplos nos quais o esquecimento (sob a forma oblivioni tradatur) aparece associado ao uso do selo de uma alta autoridade secular ou clerical e/ou às assinaturas das testemunhas ao final dos diplomas31. Ainda que seja necessário explicitar se tratar, nesse caso, de “atos da prática” um pouco mais tardios – o que indica uma gradativa evolução de nosso objeto de pesquisa –, uma vez que se concentram entre o final do século XII e princípios do XIII, neles é, mais uma vez, o combate contra o esquecimento que ganha a cena. Combate que concerne a passagem da jurisdição divina da memória para a jurisdição dominada por uma autoridade terrena que se coloca (e é aceita como tal) como responsável por assegurar a veracidade e a lembrança dos fatos. Trata-se de uma personagem, uma persona no sentido medieval do termo (ou seja, a pessoa enquanto unidade singular) 32. É, enfim, a alteração da própria noção de autor (em nosso caso, daquele produz as lembranças ou o esquecimento) que aqui se percebe. Não por acaso os estudos sobre o aparecimento do indivíduo moderno (egoico e criador) deram bastante atenção à parte final do diploma, encontrando ali algumas das primeiras manifestações de uma vontade crescente de identificação singular e memória das pessoas, sobretudo por parte de quem encomendou o ato e que se faz constantemente presente na leitura do documento (qual seja o local e o tempo) por meio de sua marca individual, intransferível, o selo 33. Atemporalidade e criação, duas marcas até o século XII profundamente associadas a Deus por meio da noção de auctoritas – tido como o único criador, não só do universo, mas também no universo – passam gradativamente a ser a marca de personalidades autorais singulares como Pedro Abelardo (1079-1142), Dante (1265-1321) e Petrarca (1304-1374), mas também de potências seculares como condes e reis, dentre os quais, João II, O Bom (rei de França entre 1350-1364) é o caso mais conhecido, pois foi o 30

“et ne aliqua euolutione temporum obliuioni tradatur testes idoneos subscribentes sigilli nostri impressioni confirmamus.” GOFFINET, H., Cartulaire de l’abbaye d’Orval. Bruxelas: Hayez, 1879, p. 37-38, n.24. 31 Ver por exemplo: ato de c. 1180 do cartulário da abadia de Vaux-de-Cernay; ato 161 do ano de 1202 do cartulário da catedral de Chartres; ato 25 do ano de 1104 do cartulário do capítulo de Avinhão; ato 487 do ano de 1198 do Geral de Yonne. 32 Sobre a noção medieval de “pessoa” ver SCHMITT, J.-Cl., La “découverte de l’individu” : une fiction historiographique. In MENGAL, P. et PAROT, F. (orgs.), La fabrique, la figure et la feinte. Fictions et statut de la fiction en psychologie. Pari: Vrin, 1989, p. 213-236. 33 A bibliografia sobre a individualidade medieval é vasta. Ver em especial: MORRIS, C. The discovery of the individual, 1050-1200. Toronto: University of Toronto Press, 1995 ; GOUREVITCH, A. J. La naissance de l’individu dans l’Europe médiévale. Paris: Du Seuil, 1997; IOGNA-PRAT, D. et BEDOS-REZAK, B.-M. L’individu au Moyen Age; individualisation avant la modernité. Paris: Aubier, 2005 ; ROSENWEIN, B. Y avait-il um ‘moi’ au haut Moyen âge ” In: Revue Historique, 2005/1, 633, p. 31-52.

primeiro a se fazer retratar de modo realístico em uma pintura. Da auctoritas divina (origem e mantenedora da memória) ao autor dos diplomas que imprime em um selo seu símbolo de poder individual e intransferível é o controle da lembrança e do esquecimento que tem sua jurisdição trasladada.

*** Atualmente, impulsionados pela elaboração da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular que pretendia estabelecer diretrizes universais para o ensino de História em todo o país, os estudos sobre a Antiguidade e a Idade Média se viram, juntamente com outras áreas do conhecimento sobre o passado (como, por exemplo, a história indígena da América pré-colonial) virtualmente excluídos dos conteúdos escolares. Uma vez que os debates entre os profissionais da área foram, muitas vezes, segmentados, o presente ensaio pretendeu expor uma questão de suma importância, mas que ainda não recebeu a devida atenção: a historicidade de nossa noção atual de memória. Tentei aqui traçar não a totalidade de vertentes que alimentam o sentido do termo “memória” em nossos dias, mas apenas demonstrar, a partir de realidades empíricas, como o uso político atual de certo vocabulário – Aletheia e a expressão “verba volant, scripta manent” – associado à memória é tributário de uma longuíssima tradição ocidental que encontra na Idade Média, e em especial no século XII, um ponto de inflexão decisivo na transformação do sentido divino (oriundo do mundo helênico) atribuído à lembrança e ao esquecimento em um significado jurídico. Foi, paradoxalmente, o período medieval, tão conhecido pela dominação de um suposto obscurantismo religioso monolítico, que possibilitou a criação de uma noção gradativamente secularizada de memória. Nesse sentido a Idade Média oferece ao historiador aquilo que deve ser o seu pão cotidiano: o estudo da mudança ao longo do tempo, e mais precisamente no que nos interessa aqui, uma história de nossa própria noção de memória. É nesse confronto com a alteridade, seja ela em relação à nossa história nacional ou à história vinda de horizontes mais ou menos longínquos, que o historiador encontra sua razão de existir e seu exercício de cidadania.

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