Uma Cadeira para a Escuta

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Com um pouco mais de experiência com garotos do tipo, eu o teria colocado no "grupo da morte", com meninos de perfil equivalente [vide meu artigo "Das façanhas delinquenciais infantis"]. Mas não. O menino estava altivo e altaneiro em meio a muitos outros bastante inofensivos para o contexto. E ele já exerceu sua "dominância heroico-alfa-negativa", logo na chegada. Atirou giz em mim, rindo zombeteiramente, jogou ao chão as cartolinas dos outros meninos que trabalhavam numa mesa, quis devassar o armário onde guardava minhas coisas, sacudi-lo e jogar tudo que ali estivesse ao chão. Agiu no estilo "aqui não vai rolar nada que eu não queira ou não deixe que role".

Eu pedi aos outros meninos que saíssem da sala. Eles estavam liberados daquela sessão inaugural. Já sabiam quem era o recém-chegado.

Eu pedi que sua mãe entrasse na sala e, ao lado dela, pedi que ele se sentasse numa cadeira. Afastei a cadeira da mesa, e ele se sentou. A mãe puxou um cinto da cintura. Eu lhe disse: "Guarde o cinto, mãe; isso aqui não tem nada a ver como 'quem bate em quem', mas 'com quem respeita quem e quando'; não tem a ver com força, mas com justiça".

A mãe "viu" o que o garoto havia feito na sala: a cena estava toda lá. E mais: viu as outras crianças saindo com suas mães e sendo dispensadas por mim. Rumores das proezas de seu filho já haviam chegado a ela, antes que eu o colocasse na "cadeira da escuta".

"Foi a primeira e última vez que eu mandei esses meninos embora", foi a primeira frase que eu dirigi ao garoto. "Mãe", eu disse à mãe dele, "quero um adulto homem acompanhando-o na próxima sessão". A mãe disse que o pai do menino era "tranqueira", expressão literal dela, e eu lhe disse: "quero um adulto homem que não seja 'tranqueira' acompanhando seu filho na próxima sessão". Ela decidiu que seria o irmão dela, o tio da criança.

Ela me contou das suspensões do garoto, que meninos e até "a professora tinham medo dele", etc.

"Aqui não tem ninguém com medo de você; os meninos saíram hoje, da próxima vez que você não deixá-los interagirem comigo, ou não quiser interagir com eles, é você que sairá da sala,acompanhado do seu tio; você os viu sair pela primeira e última vez; você já 'causou': aqui, não 'causa' mais".

"E mais", eu disse a ele e sua mãe, "quero que seu irmão vá à escola dele, no recreio, antes da próxima sessão, e que ele aponte ao tio os inimigos que fez na escola, e que ele, tio, ouça dos próprios meninos, em primeira mão, na frente de seu filho, as razões pelas quais eles outros têm medo dele; quero que seu irmão me traga o 'dossiê completo' na próxima sessão".

Escrevi uma carta para a professora do menino, aquela que tinha "medo" dele". Avisei-a de minha estratégia psicopedagógica: os inimigos dele seriam apontados por ele mesmo, no recreio, para o tio, que ouviria "das vítimas" a soma das façanhas do garoto.

Isso foi feito, com alguma relutância escolar.

Por vezes, não sou bem recebido em minhas interlocuções inter-ambientais, porque faz parte de meu modelo de pensar a criança que "as sombras de cada ambiente se coloquem umas diante das outras, para que, reciprocamente justapostas, 'iluminem umas às outras', lancem luz umas sobre as outras: a sombra familiar, a sombra no ambiente de atendimento, a sombra escolar. Às vezes, recebo uma carta malcriada de determinada professora, invariavelmente seguida de retratação por parte da escola, que não quer me perder enquanto profissional que intervenha na situação.

A carta abaixo é apenas ilustrativa das "tratativas" e retratações típicas no contexto. Professores que acham que não me cabe dizer que "um tio vá à reunião de mães", ou que visite o recreio da escola, com minha solicitação prévia, criam alguns obstáculos, que, invariavelmente, são superados num segundo tempo, quando percebem que "as coisas só continuarão 'na mesma' [ou seja, 'empacadas'] se não adotarem medidas 'outras'".

A carta abaixo, com seus salamaleques protocolares, só ilustra a força-de-inércia habitual às instituições médias, sendo a escola "apenas mais uma, nesse rol".


Ofício nº tal e tal:

Assunto: Pedido de Retratação


Prezado Senhor,

A Direção desta Unidade Escolar, vem através deste Ofício se retratar e pedir desculpas pelo fato ocorrido envolvendo a professora Fulana de Tal, no início deste mês.

Também estamos informando que o bilhete enviado pela referida professora saiu de nossa escola sem o consentimento e autorização tanto da Equipe Pedagógica, quanto Administrativa (o ocorrido já foi devidamente informado ao Supervisor de Ensino, responsável pela nossa Unidade Escolar, e este tomará as providências pertinentes ao caso).

Tal retratação de nossa parte se faz necessária, uma vez que nossas crianças e suas respectivas famílias sempre foram muito bem atendidas e tratadas por todos os profissionais da Equipe do Posto de Saúde X.

Dessa forma, estamos solicitando, encarecidamente, que continue nos atendendo e ajudando como sempre fez.

Sendo só para o momento, subscrevemo-nos,

Atenciosamente,
Diretor da Escola.


Este menino, com este enquadre específico, se tornou mais do que um aliado: se tornou um aliado agradecido.

Mas todo enquadre emerge de situações concretas.

A escola, ainda que recalcitrantemente, também se mostrou uma aliada.

Pois bem: o menino ter ficado de fora de um "grupo da morte" [a metáfora é das chaves futebolísticas: conferir o meu artigo "Das Façanhas Delinquenciais Infantis"], talvez tenha sido providencial.





Marcelo Novaes

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