Uma Cidade Inventada

August 22, 2017 | Autor: Pedro Corga | Categoria: Creative Writing, Literature, Poetry, Contests
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UMA CIDADE INVENTADA

- ADRIANO ARANIBAR

CONCURSO “AVEIRO JOVEM CRIADOR 2013”

I Começo com a palavra casa. Começo com o sentimento de lá estar. Mas decido sair. E digo a palavra porta. Outro sentimento: o de pertencer ao mundo exterior à casa. Avanço e piso o chão alcatroado. Digo a palavra caminho e coloco-me nele. O sentimento de não saber por onde ir: sentimento sem sentido. Digo “bom dia” aos que passam: ninguém retribui o cumprimento, muitos passam apressados, os olhos postos no chão, de modo a evitar qualquer tipo de interacção verbal. Este bom dia é, pois, só meu. II Sempre fui uma pessoa a quem doeu muito viver. A vida doía-me imenso, já em criança. Todas as acções do quotidiano me causavam um ferimento profundo, que eu sentia como quase fatal. Era sensível a tudo, tudo me causava sofrimento, como se a minha vida estivesse envolta numa densa nuvem negra que concentrasse em si tudo o que é negativo. Sempre que o mundo me fazia perguntas, a nuvem impedia-me de responder. Mas agora não: digo caminho, digo liberdade, digo fuga. E prossigo. A minha nuvem é já menos pesada. Conto livrar-me de mais peso à medida que for avançando, talvez até em direcção a mim mesmo, ao eu mesmo que não sei quem é. Todos os dias digo uma nova palavra, todos dias avanço um pouco mais. Escolhi atirá-las ao vento para que se transformem em acções concretas. Já não fico com elas presas ao papel: uma vez ditas, são feitas. E avançam comigo.

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III Paro e digo a palavra cansaço. Esse é o sentimento das minhas pernas, das minhas articulações. É hora de fazer uma pausa. Digo a palavra amanhã e o meu coração enche-se de esperança. A palavra noite chega com um abraço frio. Digo agasalho mas nada me sobra. Gaguejo frio, tirito solidão e espero a palavra sol. Quando o sol nasce, amanheço sem palavras. Como é forte o poder do astro, como é inundante a sua luz. A natureza torna inútil a linguagem e faz o homem analfabeto. O nascer-do-sol traz consigo mistérios que são invisíveis para muitos seres humanos, principalmente para os que ainda dormem. É a primeira vez que recebo o sol com esta intensidade: sinto-me outra pessoa na presença irreal do seu nascimento. Acordo o verbo despertar e a realidade constrói-se à minha volta. Dou uma estrada larga ao que é real. E depois disso várias estradas, com artérias, ventrículos e impulsos sanguíneos. IV Numa dessas veias cansadas da cidade, vejo um mendigo. Sentado num pedaço de cartão velho, lê o segundo volume de O Viajante Endinheirado. Os cantos de leitura numa casa nunca são utilizados, porque a leitura não escolhe lugar - pode acontecer em qualquer canto, mesmo na esquina de uma qualquer urbe imaginada. A cidade não tem tempo para leituras longas. Apenas tolera as gordas dos jornais que apregoam sangue e déficits orçamentais. Voltando ao mendigo: creio que sou muito semelhante a ele, agora que vagueio, sem hora nem rumo, por estas ruas inventadas. Talvez ele seja a minha imagem projectada em cada esquina, esquecida de si mesma. 3

V “Preciso de dinheiro para comprar livros”. Alimentar a alma, satisfazer a sede de conhecimento. Eis o homem na condição de sem-abrigo do espírito, pobre por dentro. (Como pode a ficção matar a verdadeira fome, a fome real que traz consigo nas roupas desfeitas e imundas? Com o livro apenas se mata a que não dói no estômago.) “A fome é a única coisa que trago...” Olho para o mendigo e não consigo dizer a palavra pão. VI O meu olhar deixa o mendigo para trás e concentra-se nos objectos que se estendem ao longo do percurso que vou calcetando, pedra a pedra, num trabalho que mistura tédio e devaneio. A cidade não se compadece, sempre tem pressa, a velocidade aumenta no seu interior, a cada dia que passa. E os homens dentro dela correm aflitos, atrasados, preocupados, neuróticos. Há aqui elementos que importam. Debruçemo-nos sobre as questões que cada pedra esconde: a forma como se tornam escuras debaixo da sombra carregada das nuvens, que formam estruturas ameaçadoras e pesadas. Atentemos no ar ameaçador do céu. Mas antes de o poder analisar pormenorizadamente, a natureza concretiza - digo pressa e consigo escapar à chuva. De repente, surge o vento que avança sonoro pelas ruas da cidade. Avança como há milhões de anos, sem se importar com planeamentos urbanos ou elevações metalizadas erguidas vários metros acima de pavimentos rodoviários. 4

VII Passados cinco longos minutos, a natureza instaura no ambiente citadino uma repentino momento de suspensão. O sol volta a brilhar como se nada tivesse acontecido, apressando-se a secar quaisquer vestígios dos elementos que momentaneamente perturbaram a desordem natural da cidade. Caminho mais uns metros e vejo passar por mim um sujeito curioso: veste um blazer castanho-escuro e umas calças de terylene da mesma cor. Faz-se acompanhar de um livro de capa amarela, que lê enquanto caminha. Passeia pelas páginas do livro ao mesmo tempo que, com passos largos e descuidados, procura orientar-se pelas ruas da cidade sem chocar com os objectos extraliterários que teimam em colocar-se no caminho da sua leitura. Do outro lado da rua, preparando-se para atravessar, encontra-se um famoso crítico literário. Imagino a seguinte cena: o leitor-transeunte, num esforço por se desviar de um redondo pedaço de dejecto de cão, esbarra violentamente contra o crítico de literatura que acabara de atravessar a passadeira. O livro, uma tradução tosca de Justiça seja feita, de R. W. Jameson, acerta em cheio na cabeça do crítico, provocando um crónico ataque de riso na população que se reúne em volta. Mais adiante, vejo um outro indivíduo que, sentado numa pequena banca branca, apresenta, num pedaço de cartão, um espectáculo invulgar: “Da poesia ao nada: peça-me um poema e veja-o ser queimado (ao) vivo”. Avanço. O jovem diz-me que devo escolher o tema de entre uma vasta lista de palavras, cada uma com um valor monetário diferente. Antes de prosseguir, verifico a quantidade de trocos que tenho no bolso. Por um euro escolho o verbo ludibriar e fico à espera. O rapaz à minha frente escrevinha qualquer coisa num pedaço de papel, depois aproxima-o de uma chama viva colocada numa das extremidades da banca branca e o papel começa a pegar fogo. 5

VIII Foi dinheiro bem gasto. O acto de queimar um poema contém em si mais poesia do que aquela que possa caber num simples papel. Queimar um poema vivo é um acto extremamente poético, um acto de poesia extrema. Paro no fim da rua e observo. O mundo é composto por inúmeras linhas rectas, verticais, horizontais, paralelas, perpendiculares, diagonais, ascendentes e descendentes. Além de vértices graves e aguçados, possui igualmente formas mais arrendondadas, que não causam tantas dores de cabeça. Penso isto enquanto construo mais uma linha recta paralela à minha vida sem sentido. Tomo mais um paracetamol, na esperança de me livrar desta dor metafísica que paira irremediavelmente sobre o meu corpo já cansado. IX Já não quero mais sonhar: digo a palavra fim e um entardecer distraído preenche a totalidade do meu campo de visão. É belo e faz doer. Veja-se, ainda, a importância de observar atentamente as palavras: “fazer doer” - algo exterior a mim constrói a minha dor, ergue-a como a uma escultura de barro. Porquê de barro? É fácil de moldar enquanto está fresco - a dor é facilmente moldável; é fácil quebrar quando solidifica. Somos todos feitos de barro, não somos? Somos todos feitos de dor. Olho para trás e não vejo nada do que construí. Pergunto: Estrada? Caminho? Cidade? Nada, ninguém responde; existe apenas o vazio incolor da minha alma mergulhada num tédio profundo e insensível.

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