Uma Coroa para os Deuses: as flores e os rituais / A Crowm for the Gods: the flowers and the rituals

September 1, 2017 | Autor: F. Marquetti | Categoria: Antiquity, Rituals, Plants, Funerals, Wedding
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Uma Coroa para os Deuses: as flores e os rituais




RESUMO: Este artigo pretende tratar do uso das flores e de outras plantas
na confecção de coroas para os diversos rituais da Antiguidade Clássica,
bem como da sua função na preparação do neófito, da noiva, dos mortos, e
dos sacrifícios, buscando esclarecer o significado contido nas escolhas e
nos usos destas plantas e flores.
PALAVRAS CHAVE: plantas, rituais, casamento, funerais, Antiguidade


O uso de plantas e flores na Antiguidade Clássica para a confecção de
coroas é muito mais do que um desejo de ornamentação para homens ou deuses,
elas são objetos rituais empregados em cultos, em procissões e nas
oferendas para os deuses.
A invenção da coroa de flores é atribuída a Dioniso, que utilizou a
hera para confeccioná-la. Na origem, as coroas eram reservadas aos deuses,
mas sua utilização estende-se aos animais sacrificiais, aos sacerdotes e,
finalmente, aos fiéis. Os barcos, no retorno de um herói viajante, eram
ornados de flores como reconhecimento; na primavera, os atenienses coroavam
seus filhos, que completavam três anos, para agradecer aos deuses por lhes
haver permitido superar com saúde a vulnerabilidade da infância. Como
última demonstração de afeto e de respeito ornava-se os mortos e suas
tumbas com as flores mais preciosas.

Dioniso (segurando um tirso) com Mênade
Interior de uma taça de figuras vermelhas, século V a.C.
Numerosas regras norteiam as circunstâncias nas quais as coroas devem
ser portadas e de quais plantas ou flores elas devem ser compostas. Por
exemplo: os ramos de árvores com folhagem persistente eram reservados aos
deuses, pois simbolizavam a perenidade da ordem divina, as coroas
honoríficas de louro, oliveira e pinho eram reservadas aos vencedores dos
grandes torneios. Nos templos, os altares de sacrifício e as estátuas dos
deuses eram ornados de flores do campo[1]. Mais tarde, adota-se também o
uso das coroas de flores para indicar um afeto recíproco, no amor ou na
amizade. Nos casamentos, os noivos não são os únicos a portar flores, todos
os parentes e mesmo os presentes as usam. No casamento de Jasão e Medéia,
todos os argonautas portam coroas de flores (Apollonios de Rhodes, 1996,
IV,1140-1169). Do mesmo modo, para o casamento de Zeus e Hera, Gaia faz
nascer no jardim das Hespérides um tapete de flores multicoloridas com as
quais os deuses tecem suas coroas, mesclando inúmeras flores, brilhantes
como pedras preciosas: prímulas, primaveras, e as suntuosas tulipas e
palmas selvagens (amarelas, vermelhas e laranjas, brancas e rosas)
(Baumann, 1984, 64-5). Já as coroas feitas em ouro e prata eram dadas em
oferenda aos mortos, simbolizavam a sobrevivência da alma na outra vida.



Coroa de folhas de carvalho em ouro, século IV a.C.
Proveniente da tumba de Filipe II - Olímpia


Os cravos, por exemplo, fazem parte das flores sagradas utilizadas
para as coroas de Zeus, eram chamados na Antiguidade de "Dios anthos",
flores de Zeus, em função de sua beleza e de seu perfume agradável. Uma das
mais belas espécies de cravo nasce em Creta (Dianthus arboreus), na qual os
arqueólogos pensam reconhecer o modelo que serve para as decorações murais
do palácio de Cnossos. O nome de "flor de Zeus" lhe foi dado, segundo
Baumann (1984, p.81), por ser Creta o país natal do pai dos deuses.


" " "
"Cravos campestres; Cravos de Rodes; Lychnes[2] "Férula "


Dentre as plantas e as flores sacras usadas em coroas como oferendas
religiosas, encontramos:
o carvalho, o cravo, a margarida (Dios ofrya) – para Zeus
a vinha silvestre (Kissos), a hera, a salsaparrilha (Smilaz), a férula[3] e
o narciso - para Dioniso
o louro e a palmeira - para Apolo
o narciso, o crócus (ou açafrão), a papoula, o trigo e o lótus - para Ceres
ou Deméter
o kissos e o carvalho - para Réia
o narciso, o crócus, a íris, o jacinto e a papoula preta - para Hécate
o narciso, o freixo[4] e o teixo[5] - para as Parcas, as Fúrias e as
Eríneas
o narciso, o crócus, a papoula branca, a rosa branca, o amaranto e o teixo
- para Ártemis
o narciso, a papoula branca, a rosa vermelha, o mirto, a mirra, o tamaris,
o aspargo, o rosmarinho e a buglossa (ou língua-de-vaca) - para Afrodite
a violeta, o pino e a anêmona - para Cibele
a papoula - para Hipnos, Thanatos, Hermes e Hera
o narciso e o linho - para Perséfone e Hades
O abeto - para Pan[6]
(Daremberg & Saglio, 1888, p. 1520-1537).

Pinho; choupo ou álamo; loureiro em flor


"O choupo ou álamo branco era dedicado às" "
"divindades ctonianas por causa das duas "Freixo em flor "
"cores de suas folhas: o lado sombrio " "
"representa o mundo subterrâneo, o lado " "
"claro, aquele dos vivos. Segundo o mito," "
"Héracles volta do Hades coroado de ramos" "
"de álamo após vencer Cérbero. O Álamo " "
"era usado na confecção de coroas para os" "
"mortos na cerimônia de visita destes aos" "
"seus familiares durante as Antestérias, " "
"festa de três dias em honra Dioniso. " "
" " "
" " "
"Abeto e Teixo em flor " "


O Asfodélos é outra planta ligada aos mortos, com sua flor pálida,
pardacenta, confere à paisagem um aspecto particularmente triste, é tida
como a planta que cobre as pradarias do Hades. O perfume desagradável desta
planta e seus cachos de flores com nuances de violeta combinam bem com a
morte e a obscuridade. Seus rizomas carnudos cozidos e misturados com figos
constituíam uma alimentação aceitável. Eram consumidos na Antiguidade
durante os períodos de escassez, além de constituírem uma alimentação
frugal oferecida aos mortos sobre os túmulos, juntamente com as coroas de
choupo nas Antestérias (Plínio, livro XXI, 108-110).



Asfodélo branco e amarelo


A escolha das flores para os deuses não é aleatória, ligadas aos
deuses e seus mitos, as flores, como outras plantas, revelam a ligação do
deus com o mundo dos homens e, muitas vezes, são o veículo, o meio de
entrada no outro mundo, no mundo da divindade. Este é o caso, por exemplo,
do narciso, ofertado para inúmeras divindades. A planta, nascida do sangue
vertido pelo jovem Narciso[7], tem valores narcóticos, sedativos,
paralisantes que permitem ao neófito entrar no reino da morte; além do seu
bulbo ser um poderoso vomitivo, que auxilia nos ritos de purificação[8].
Sua ligação com as deusas ctônicas como Perséfone, Hécate, as Parcas, as
Fúrias e as Eríneas, fica mais do que explícita e nos permite, ainda,
perceber a relação de outras deusas com o mundo dos mortos, como é o caso
de Ártemis, Afrodite e Deméter, mais conhecidas pelas suas relações com o
mundo visível, elas possuem, no entanto, epítetos sombrios, que as ligam ao
mundo subterrâneo, ao ciclo da vida, revelando a origem mais arcaica de
alguns de seus ritos.


" " "
" "Papoula "
"Narciso " "
" "Crócus "


Compartilhando o mesmo poder narcótico, temos o kissos, o crócus, a
papoula, o lírio, o jacinto, a íris e a violeta, nascidos todos do sangue
vertido por um jovem amante ou amado dos deuses, elas estão ligadas à morte
iniciática primeva, que deu origem aos ritos, seu uso pelos neófitos, antes
e/ou depois do ritual indica sua comunhão com o deus, tal qual o primeiro
iniciado. O uso pelo neófito antes do ritual é, geralmente, sob a forma de
beberagens, devido aos valores purificantes das plantas, enquanto vomitivos
e, também, narcotizantes, mas elas se fazem presentes, ainda, sob a forma
de coroas usadas durante e depois do ritual. Elo indispensável, as flores
assumem um papel de espelhamento com os iniciados e vice-versa; assim como
elas, os neófitos cumprem um ciclo de morte e renascimento, marcado pela
metamorfose. No caso das plantas bulbosas, a transformação do bulbo/semente
em flor, da forma amorfa e de aparente esterilidade para uma forma bela,
plena de vida, cor e perfume; no caso do neófito, a
transformação/metamorfose se dá através de uma morte ritual, simulada, na
qual o jovem iniciado desce ao reino dos mortos e de lá ressurge
transformado em seu conhecimento, antes bulbo tosco, depois tocado pela
divindade e pelo conhecimento, "iluminado".


" " "
"Íris "Violeta "


Dada a sua ligação com a morte as plantas funerárias, como as chama
Plínio, o velho, também podem ser usadas para as coroas em homenagem aos
mortos. Todas essas plantas são de local alagadiço, frias e úmidas, de
perfume intenso, elas nascem logo no final do inverno, com o degelo dos
campos e fenecem com o sol estival da canícula.
Um uso interessante é a do visco, um parasita do Carvalho, na
confecção de coroas para os ritos funerários, segundo Baumann (1984,68-
9,112) ele teria sido usado por Perséfone para abrir as portas do Hades e,
em decorrência disto, facilitaria a entrada do defunto no reino dos mortos.
Junto do visco era frequente o uso da íris, flor que tem seu nome derivado
da mensageira dos deuses e que acompanhava as almas dos mortais até o
repouso eterno, indicando o caminho com o arco-íris, adviria daí as cores
cambiantes da flor e do arco-íris. A íris era usada também para decorar as
tumbas, juntamente com o jacinto, o narciso e outras.


" " "
"Visco de Carvalho (Gui) "Jacinto "


Todas essas flores possuem uma estreita ligação com os ciclos da
natureza, seu uso está diretamente associado aos períodos rituais de
ofertas de primícias, à purificação e expulsão dos males e a preparação
para o plantio. Elas fazem parte do que Detienne chama de estrutura do
banquete sacrificial, ofertadas sob a forma de coroas ou de perfumes
(incensos), os aromas, as cores e a forma das flores, têm um lugar definido
e significativo nos ritos. Neste caso temos que distinguir em primeiro
lugar as plantas cultivadas, como os cereais e os frutos, que, embora,
participem de inúmeros rituais, não serão aqui abordadas, pois constituem
um universo já domesticado pelo homem, um universo regrado pelas "leis
sociais"; e as plantas selvagens, não cultivadas, sobre as quais recai
nosso foco, estas estabelecem relações diretas com os mitos transgressores
da ordem social, ou, em última análise, participam de um modelo de
transgressão para a ordenação do cosmos.
Dentro desse universo selvagem, as plantas se dividem em grupos que se
combinam e se opõem: o alto/baixo, terra/céu, úmido/seco, cru/cozido,
putrescível/imputrescível, fétido/perfumado, mortal/imortal, formando um
conjunto coerente que mediatiza homens e deuses. É importante notar que a
primeira mediação deste sistema se faz a partir do corpo semidivino (ou
semi-humano) dos heróis/heroínas que se uniram aos deuses, ou foram por
eles desejados, neste contexto, a vida, o desejo erótico, a união sexual e
a morte são extremos de um mesmo círculo.
A maioria das flores e plantas que compõem as coroas dos deuses são
nascidas do sangue ou do corpo dos amados/amantes dos deuses, é o caso da
violeta, ofertada a Cibele, que nasce do sangue de Átis ao se emascular num
bosque de pinheiros. O mito recobre aí um rito iniciático dos sacerdotes de
Cibele, deusa Frígia, cujos sacerdotes eram eunucos; mas também revela
traços de uma cultura mais anterior, agrária, na qual os ritos de
preparação da terra para o plantio tinham íntima ligação com a sexualidade.
A união com as Grandes Deusas sempre foi funesta aos mortais ou semi-
mortais, pois implicavam na castração e morte destes, uma vez que a Deusa
toma para si a sua virilidade, sua potência geradora de vida, para devolvê-
la sob a forma de fertilidade/fecundidade ao grupo: fartura de frutos,
novilhos, cereais e mesmo crianças. Esta troca entre a Deusa e a comunidade
já havia sofrido no período clássico uma "dessacralização", ficando
perdidos os motivos primeiros que norteavam o uso das flores e outros
elementos nos rituais.
As coroas feitas dessas flores "nascidas desses primeiros sacrifícios"
tinham por função recuperar o momento fundador do social, estabelecendo o
elo entre o selvagem, não regularizado pelos códigos da divindade, e o
cultivado/cultural, ordenado pelos ritos. Um primeiro exemplo dessa
banalização dos elementos do rito é o uso de coroas de flores para os
convidados e de galhos espalhados pelo chão e paredes durante o banquete,
mais que uma função ornamental, eles tinham, na origem, o valor de
oferendas religiosas ao deus do vinho, para o qual o banquete era uma
homenagem. Já no tempo de Plínio, o velho, o uso de flores como a hera, a
rosa, a violeta e o mirto, é indicado apenas para evitar a embriaguez e as
dores de cabeça que resultam da ingestão excessiva de vinho.
Outro exemplo do nublamento dos motivos que levavam a determinados
usos é o de uma coroa feita de plantas espinhosas (ou picantes) e de
bolotas de carvalho nos ritos do himeneu. A jovem nubente, assim coroada,
deveria renunciar à vida selvagem trocando a coroa de plantas espinhosas
pela vida de esposa, ou seja, a do "trigo cultivado e trançado",
simbolizado pelo fuso, pelo pilão, pelo pão e que, na cerimônia nupcial, se
opõem à primeira como o bem ao mal. O uso do aspargo (Aspargus acutifolius)
de folhas picantes é comum na Beócia, ele é uma planta consagrada a
Afrodite. Sua utilização vem da lenda de Perigune, filha do malfeitor
Sínis, que se esconde no istmo de Corinto atrás de uma moita desses
aspargos quando Teseu, após matar seu pai, a persegue e se une a ela. Os
beócios coroavam com esses ramos espinhosos as noivas, pois acreditavam que
os aspargos amargos, quando convenientemente cultivados, tornavam-se doces.
Observa-se uma sobreposição de sentidos neste costume, um primeiro, que une
civilizado (Teseu) ao selvagem (Perigune), integrando este à cultura, Teseu
é o herói civilizador que amplia as fronteiras do mundo civilizado
(destruindo monstros) sob os auspícios de Afrodite; um segundo, que toma o
feminino como parte emblemática do selvagem e que sob a força do homem, de
seu trabalho, é domesticado, tornando-se doce.



Aspargos
Outra flor bastante usada nas coroas nupciais, são os nivéolos brancos
(Lefkoion), nome usado pelos gregos para inúmeras plantas, dentre elas,
encontramos as flores de Io, amante de Zeus, e que foi transformada em vaca
para escapar à ira de Hera. O nivéolo (Leucojum aestivum) que nasce nos
charcos e nas pradarias úmidas, é a flor que Gaia fez nascer para nutrir Io
após a sua metamorfose. Mas a denominação lefkoion dos antigos pode ser
atribuída também ao funcho branco que dá as primeiras flores no outono,
usado na confecção de coroas de casamento e que também possui folhas
espinhosas. Em ambos os casos temos a passagem de uma união
selvagem/bestial (da ordem do natural) para uma regrada pela sociedade (da
ordem do cultural) – o uso dos nivéolos ou do funcho são um alerta às
noivas do perigo de sua selvageria e a necessidade de sua domesticação.
" " "
"Nivéolos "Funcho "


De maneira emblemática Afrodite é a deusa à qual é ofertada a maior
diversidade de flores, conjugando o baixo, o frio e o úmido, que indicam
sua relação com a morte, com o selvagem; mas também o alto, o quente e o
seco, e sua ligação com a vida e com a cultura. Afrodite é a deusa, ao
mesmo tempo, do desregramento sexual, a patrona das prostitutas, do sexo
estéril, e a que auxilia a jovem "selvagem" a entrar na vida de esposa e
mãe, portanto, do sexo fértil. Essa passagem é marcada pelos aromas, pela
mirra e pelo véu que a jovem porta.
O uso da mirra nas coroas de casamento, assim como as flores
anteriores, está ligado à passagem do selvagem ao cultural, ou seja, ao
mito fundador de Mirra e Adônis.
À jovem noiva é permitido o uso das flores e, sobretudo, do perfume
durante os ritos do himeneu, pois cabe a eles aproximar o jovem casal,
tornando a união desejável, eles possuem uma função afrodisíaca; mas fora
dos ritos do himeneu, as flores e os perfumes são vetados às esposas e
permitidos apenas às prostitutas. Isto ocorre porque o casamento não tem
por finalidade o prazer, mas sim a união de grupos familiares, ficando o
prazer a cargo das prostitutas.

Mirra florida
" "


Os perfumes extraídos das flores associadas ao eixo
quente/seco/cozido, como o mirto, o tamaris e a mirra, estão ligados ao
período da canícula, quando o sol abrasador envolve Ôpora, fazendo a terra
exalar todos os perfumes, é quando os aromas chegam à maturidade e devem
ser recolhidos dos campos, é também um período perigoso, de lascívia, que
ameaça transformar a esposa modelo em fêmea impudica, que busca uma união
selvagem, não civilizada, como a jovem Mirra.
O mito de Mirra é sírio, bárbaro, portanto, e já era conhecido no
período de Hesíodo. É uma narrativa na qual encontramos traços dos
mistérios ligados aos ciclos da natureza e da vegetação, envolvendo
Afrodite e algumas das plantas a ela consagradas.
Mirra, ou Esmirna, é punida por Afrodite[9], que a faz apaixonar-se
por seu pai, Tiante (ou Ciníras), enlouquecida de desejo ela o engana, com
o auxílio de sua ama, e mantêm relações sexuais com ele por doze noites, na
décima segunda noite, Tiante descobre a farsa e persegue-a com intenção de
matá-la, em desespero, Mirra implora aos deuses que a auxiliem, estes se
apiedam dela e a metamorfoseiam em árvore, a mirra. Dez meses depois, a
casca da árvore se rompe e dela surge um menino, que recebeu o nome de
Adônis. Afrodite, impressionada com a beleza da criança, recolhe-a e a
confia em segredo a Perséfone, para que esta a criasse. Mas esta também
deseja o jovem Adônis e não o quer devolver a Afrodite, Zeus arbitra esta
disputa e determina que Adônis passe um terço do ano com Perséfone, no
reino dos mortos, outro terço com Afrodite, na superfície e o último terço
com quem desejasse. Adônis passou sempre dois terços do ano com Afrodite e
apenas um com Perséfone, enciumada esta envia um javali contra o jovem que
o mata num campo de alface. Outra versão, diz ter sido Ares, deus da guerra
e amante de Afrodite, que enciumado envia o javali contra o belo Adônis. Do
sangue do jovem nascem as anêmonas[10].


" " "
"Anêmona "Outra espécie de anêmona "


Neste mito é possível verificar os ciclos da natureza e suas relações
com uma deusa da fertilidade/fecundidade. A união transgressora e selvagem
de Mirra tem como fruto um belo jovem, marcado pelo perfume, pela beleza e
pela sedução não codificada pela sociedade. Adônis, como todo deus
fitomórfico, tem um ciclo de vida no qual permanece um terço do ano sob a
terra e dois terços na superfície, ele representa a semente e sua
transformação em vegetação luxuriante, ligado à deusa do sexo, Afrodite,
ele é o filho/amante da terra fecunda. Em decorrência disso é que as
prostitutas e seus amantes celebravam na canícula as festas em honra de
Adônis e Afrodite, ritos marcados pelo desregramento, pelo perfume e pelos
prazeres. Estes ritos eram vetados às mulheres casadas ou às jovens de "boa
família", permanecendo sempre como uma transgressão que, ambiguamente,
embora marcado pela esterilidade, visava o fortalecimento da deusa da
fertilidade/fecundidade e de seu amante – as festas em honra de Adônis eram
uma celebração aos prazeres do sexo, mas não ao seu fim reprodutivo. Essa
ambiguidade já estava presente no mito quando da morte de Adônis em um
campo de alfaces, para os gregos, a alface é anti-afrodisíaca, ela se alia
às plantas de odor pútrido, que convidam à castidade, e às plantas
cultivadas, sob o domínio de Deméter. Temos neste mito uma oposição entre o
mundo cultural/social, do casamento e das terras cultivadas, e o mundo
selvagem: do sexo/ prazer e da natureza intocada, mundo no qual os aromas
colhidos no auge do verão, com o sol abrasando Ôpora, estão prontos a
honrar Afrodite, fornecendo os incensos e unguentos de sedução (Detienne,
1972, passim).
Às deusas tutelares do casamento e da maternidade (Hera e Deméter), e
às esposas castas, cabem as flores do eixo frio/úmido/cru, como o agnus-
castus. Este arbusto é assim chamado porque as mulheres, para afirmar sua
castidade, antes das Tesmofórias, deveriam se deitar sobre uma liteira
feita de seus galhos (Dioscórides, 1.103). Hera, deusa tutelar do
casamento, nasce, verdadeiramente, sob a sombra do agnus-castus. Esta
árvore ornava a entrada do templo de Hera em Samos e era considerada,
juntamente com o carvalho sagrado de Zeus em Dordone, como uma das árvores
que vive por mais anos. Em Esparta, a estátua da deusa era feita de seus
galhos. Geralmente, era encontrado junto ao mar, ou curso dos rios, com seu
perfume de especiarias, suas folhas em forma de mão, cinza pálido e seus
cachos de flores azul claro ou rosa.




" " "
"Agnus-castus "Carvalho "


As Tesmofórias, festa celebrada em honra de Deméter permitia apenas a
presença de mulheres casadas, esposas legítimas de cidadãos atenienses, era
vetada às solteiras, as prostitutas, as concubinas, as estrangeiras etc.
Realizadas durante outono, os ritos se desenrolam numa atmosfera
solene, grave e severa. As mulheres se afastavam de seus lares e maridos, a
abstinência sexual é uma imposição nos três dias da festas, elas se reúnem
fora da cidade, jejuam, se privavam de banhos e deitam-se sobre leitos
feitos de agnus-castus, cujo odor nauseabundo afasta os desejos sexuais, a
lascívia e convida à castidade. Estes ritos opunham-se dialeticamente aos
de Afrodite e Adônis, assim como as flores e plantas usadas neles.
Flores e rituais compõem um conjunto harmônico e complementar em sua
origem, nascidos da natureza e de sua observação, acompanharam o homem em
seu caminho rumo ao prazer, ao desconhecido e à morte, mas ao longo dos
séculos o homem foi perdendo a consciência do porquê de sua utilização nos
ritos, afastando-se da natureza, afastou-se também dos motivos que o
ligavam aos deuses e passou a realizar atos mecânicos, as plantas e flores,
perderam sua sacralidade e transformaram-se em ornamentação.

Referências Bibliográficas:
APOLLONIOSDE RHODES, Argonautiques. Tr. Francis Vian e Émile Delage. Paris:
Les Belles Lettres, 1996.
BAUMANN, Hellmut. Le bouquet d'Athéna. Les plants dans la mythologie et
l'art grecs. Paris: Flammarion, 1984.
DAREMBERG, M. M.-CH. & SAGLIO, E. D. M. - Dictionnaire des antiquités
grecques et romaines. Paris, Hachette, 1887.
DETIENNE, Marcel. Les Jardins d'Adonis. La mythologie des aromes en Grèce.
Paris: Gallimard. 1972.
DIOSCÓRIDES. Plantas y Remedios Medicinales (de materia medica). Livros I-
III. Trad. Manuela García Valdés. Madrid: Editorial Gredos, 1998.
DIOSCÓRIDES. Plantas y Remedios Medicinales (de materia medica). Livros IV-
V. Trad. Manuela García Valdés. Madrid: Editorial Gredos, 1998.
HESÍODO. Teogonia. A origem dos deuses. Trad.: Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras, 1995.
MARQUETTI, F.R. Perseguindo Narciso. Dissertação de Mestrado apresentada na
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP, 1999.
PLINE L' ANCIENNE. Histoire naturelle. Livro XXI. Trad. Jacques André.
Paris: Les Belles Letrres, 1969.
THÉOPHRASTE. Histoire naturelle. Livros I-IX. Trad. Jacques André. Paris:
Les Belles Letrres, 1967.

A Crowm for the Gods: the flowers and the rituals
ABSTRACT: This article intends to handle the use of the flowers and other
plants in the crowns making for several rituals in the Classic Antiquity,
as well as their function in the preparation of the neophyte, the bride,
the dead, and the sacrifices, aiming to clarify the meaning of the choices
and the uses of these plants and flowers.
KEY-WORDS: plants, rituals, wedding, funerals, Antiquity

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[1] Entenda-se aqui, flores encontradas nos campos da Hélade, muito
diversas das nossas.
[2] Todas as imagens de flores e plantas aqui apresentadas foram retiradas
de BAUMANN, 1984.
[3] Das leves hastes da férula, terminadas por uma pinha, são
confeccionados os tirsos. Os participantes das cerimônias do culto de
Dioniso portam desses bastões, muito resistentes para bater, mas muito
leves para ferir. O deus havia ordenado aos bebedores de vinho que
utilizassem apenas galhos de férula para que não se arriscassem a graves
ferimentos quando de suas brigas na embriagues.
[4] Hesíodo nos conta que os homens foram feitos de galhos de freixo com
flores. Esta árvore foi também chamada "mélia", nome de uma divindade muito
antiga da natureza, protetora dos rebanhos. Nêmesis, deusa da justiça, tem
nas mãos um cajado de freixo para afirmar seu rigor e sua inflexibilidade,
também as Eríneas, deusas da vingança, em seu palácio no Hades, portam
bastões de freixo para punir aqueles que cometem faltas. O presente do
centauro Quíron para o casamento de Tétis e Peleu foi uma barra de freixo
com o qual fez uma lança, utilizada sucessivamente por Peleu e, depois, por
Aquiles.
[5] As Eríneas, deusa infernais e da vingança, punem os crimes dos humanos
com o veneno tirado teixo. Desde a Antiguidade Clássica se conhece sua
toxidade, suas agulhas contêm um alcalóide particularmente venenoso para o
homem e os animais; 500g é suficiente para matar um cavalo. Ártemis, deusa
da caça, utiliza esta propriedade, ela se serve de flechas embebidas no
veneno do teixo para matar suas vítimas. Ártemis foi venerada num templo
que Teofrasto situa no meio de uma luxuriante floresta de teixos, o
Artemísion, na Arcádia.

[6] O mito conta que Pan faz a corte à ninfa Pitys, junto com Bóreas, o
vento do norte tumultuoso. Pitys tendo dado a preferência a Pan, por sua
docilidade, foi precipitada de uma falésia por uma lufada de Bóreas. Pan ao
descobri-la inanimada a metamorfoseou em abeto, sua árvore sagrada. Mas
mesmo sob essa forma, a jovem Pitys chora cada vez que Bóreas sopra. É por
isso que no outono as gotas de resina transparente escorrem dos troncos de
abetos.

[7] A versão mais conhecida do mito de Narciso é a de Ovídio, em suas
Metamorfoses, mas a versão grega mais antiga, do mitógrafo Conon, nos
informa que Narciso se mata com um punhal junto à fonte e de seu sangue
nasce a flor do mesmo nome. MARQUETTI, F. R. Perseguindo Narciso.
Dissertação de Mestrado apresentada na UNESP – FCLAr. em 1999.
[8] Segundo Dioscórides (IV,158), a raiz do narciso, após o cozimento, era
comida ou bebida para provocar vômitos.
[9] O motivo da punição de Mirra não é bem explicado, uma versão tardia
atribui o fato à mãe de Mirra ter se gabado da beleza da filha ser superior
ao da deusa.
[10] Segundo o mito, Afrodite ao correr em socorro de seu jovem amante,
feriu-se em um espinho e seu sangue tingiu as rosas, antes brancas, daí as
rosas vermelhas serem a ela consagradas.
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