Uma homenagem aos 20 anos da Constituição brasileira

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Descrição do Produto

Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira Bruno Costa Teixeira Paula Castello Miguel (Coordenadores)

Uma homenagem aos 20 anos da Constituição Brasileira

Florianópolis 2008

© Fundação José Arthur Boiteux e Faculdade de Direito de Vitória

Capa, projeto gráfico e diagramação Studio S • Diagramação & Arte Visual (48) 3025-3070 – [email protected]

FACULDADE DE DIREITO DE VITÓRIA

EDITORA FUNDAÇÃO BO1TEUX

Conselho editorial

Conselho Editorial

Antonio José Ferreira Abikair Elda Coelho de Azevedo Bussinguer Paula Castello Miguel

Prof. Aires José Rover Prof. Arno Dal Ri Júnior Prof. Carlos Araujo Leonetti Prof. Orides Mezzaroba Profª. Thais Luzia Colaço

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) U48

Uma homenagem aos 20 anos de constituição brasileira. / Júlio Pinheiro Faro Homem de Siqueira; Bruno Costa Teixeira (coordenadores). Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. 352 p. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-7840-004-0 1. Brasil. Constituição (1988). 2. Direitos do homem. 2. Direito constitucional – Brasil. 4. Direito – Estudo e ensino. 3. I. Título. CDD 341.2481 Catalogação na publicação por: Aline Cipriano Aquini CRB-14/961

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Endereço Rua Dr. João Carlos de Souza, 779 CEP: 29.056-919 – Vitória – ES Tel.: (27) 3041-6372 Fax (27) 3041-3663 Site: www.fdv.br

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Sumário

Prefácio..................................................................................................................5 Apresentação........................................................................................................7 Introdução............................................................................................................9 O tempo da Constituição: a legitimidade da Constituição entre o direito e a política vinte anos depois Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira.............................................................13 Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil Luís Roberto Barroso.......................................................................................31 O estado da arte da interpretação do direito nos vinte anos da Constituição do Brasil Lenio Luiz Streck.............................................................................................49 Constituição “a partir da cultura” e Constituição “enquanto cultura” – um projeto científico para o Brasil Peter Häberle...................................................................................................79 A Constituição Brasileira de 1988 e o Direito Penal após 20 anos: uma perspectiva crítica alinhada aos direitos e garantias fundamentais Daury Cesar Fabriz....................................................................................... 109 La positividad de los derechos sociales en el marco constitucional Antonio-Enrique Pérez Luño........................................................................ 129 Os vinte anos da Constituição Brasileira: da reserva do possível à proibição de retrocesso social Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira........................................................ 157

Evolução de direitos e garantias fundamentais e vedação de retrocesso: uma abordagem da jurisprudência do STF nos vinte anos da Constituição brasileira Adriano Sant’Ana Pedra...............................................................................173 Algumas notas sobre a eficácia e efetividade do direito à moradia como direito de defesa aos vinte anos da Constituição Federal de 1988 Ingo Wolfgang Sarlet....................................................................................207 O acesso à justiça na perspectiva dos direitos humanos Carlos Henrique Bezerra Leite......................................................................245 Ensino jurídico, direitos humanos e a construção de ambientes digitais voltados à aprendizagem colaborativa Bruno Costa Teixeira....................................................................................259 Dignidade humana e a proteção dos direitos sociais nos planos global, regional e local Flávia Piovesan.............................................................................................281 Por uma jurisdição constitucionalmente adequada ao paradigma do estado democrático de direito – reflexões acerca da legitimidade das decisões judicias e da efetivação dos direitos e garantias fundamentais Alexandre de Castro Coura...........................................................................311 Da segurança nacional à segurança jurídica: armadilha pós-ditadura em favor da emergência do fundamentalismo jurídico Eneá de Stutz e Almeida...............................................................................331

Prefácio

A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. Le Goff, J.

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elebrar os 20 anos de nossa Carta Maior é mais do que comemorar a positivação de Direitos Fundamentais, na medida em que consiste, substancialmente, em rememorar em quê contextos social e político os referidos direitos foram conquistados. Este baluarte de memórias, por sua vez, pode configurar um sólido escudo de proteção dos – e respeito aos – valores listados pela mesma Carta. A Constituição de 1988 é definida por muitos autores como uma carta de direitos cujo escopo fundamental é proteger a dignidade da pessoa humana e tornar a sociedade um ambiente livre, justo e igualitário. Em contrapartida, vários outros autores a chamam também de uma colcha de retalhos, em virtude do excesso de emendas que vem sofrendo desde sua promulgação. Ao se publicar uma obra composta por diversos trabalhos, pretende-se trazer o lume do debate para a efetividade da própria Constituição enquanto diploma fundamental de uma nação. Este livro, portanto, tem a pretensão de se apresentar enquanto mais um instrumento e uma fonte de pesquisa para a discussão em torno da Constituição brasileira, na sempre constante esperança de que os direitos ali previstos sejam minimamente concretizados e que sejam respeitados os princípios, as regras e os objetivos que o Constituinte pôs ao Estado.

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Essa pretensão dos organizadores não teria sido atingida, evidentemente, sem o apoio da Faculdade de Direito de Vitória - FDV, que abraçou gentilmente este projeto. Também foi precioso o apoio de autores e tradutores, que trouxeram o excelente conteúdo do livro. Agradecemos, deste modo, a Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Luís Roberto Barroso, Adriano Sant’Ana Pedra, Lenio Luiz Streck, Peter Häberle, Peter Neumman, Daury Cesar Fabriz, Alexandre de Castro Coura, Antonio-Enrique Pérez Luño, Ingo Wolfgang Sarlet, Carlos Henrique Bezerra Leite, Eneá de Stutz e Almeida e Flávia Piovesan, além daqueles professores que apoiaram, de alguma forma, este projeto. Este livro também é fruto de dois anos de edição da revista eletrônica Panóptica, por meio da qual pudemos ter a honra de estabelecer contato com professores de direito de todo o mundo na sempre presente pretensão de oferecer um conteúdo jurídico de qualidade com acesso livre e facilitado. Editorar uma revista eletrônica – e, por derradeiro, organizar um livro em parceria com a FDV e a Editora Boiteux – tem sido uma experiência empolgante e honrosa. Bruno Costa Teixeira & Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira Editores de Panóptica - www.panoptica.org

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Apresentação

Este é um livro comemorativo muito especial. Especial por comemorar os vinte anos da Constituição Brasileira de 1988. Este documento é um marco no processo de redemocratização do país, além de representar um avanço inigualável no que tange à proteção de direitos individuais, sociais e políticos. Esta obra discute, inexoravelmente, a concretização destes direitos. Especial também por comemorar os dois anos da Revista Panóptica, publicação eletrônica que reuniu artigos de juristas nacionais e estrangeiros da mais alta qualidade. O meio eletrônico permite que se acompanhe o acesso do material publicado e que se verifique que, em seu décimo terceiro número, a publicação obteve uma inserção na comunidade acadêmica. O que a torna mais especial, todavia, é que ela tem como editores dois alunos de graduação do curso de direito da Faculdade de Direito de Vitória – FDV. O espírito acadêmico e empreendedor de Bruno Costa Teixeira e Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira orgulha a todos da Instituição. Suas posturas demonstram que a FDV os sensibilizou para a importância do estudo da ciência do direito. Revela que a qualidade almejada pela FDV em seu trabalho os contaminou. Sinto-me honrada de poder compartilhar com estes brilhantes alunos a coordenação desta obra. A qualidade do material publicado neste livro apenas decorre do trabalho já desenvolvido pelos editores da Panóptica. Temas diversificados ganham afinidade no quesito qualidade, seja dos autores, seja dos textos.

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Importante registrar a felicidade de possuirmos uma Constituição Democrática e podermos debatê-la livremente. Por mais defeitos que ela possa ter, por mais ajustes que mereça, é ela que nos garante a liberdade de expressão. Devemos celebrar o direito de debatê-la, de criticá-la e de lutar por sua concretização. Desejo a todos um bom proveito da obra. Desejo à Panóptica vida longa, conquista de mais espaço e que perpetue a sua qualidade.

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Introdução

Rememorar é um ato político. Nos fragmentos da memória encontramos atravessamentos históricos e culturais, fios e franjas que compõem o tecido social, o que nos permite re-significar o trabalho com a memória como uma prática de resistência. Carmen Lúcia Vidal Pérez

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uando se procura realizar ou concretizar uma obra, o racional, e até mesmo o razoável, é que se tenha uma trajetória para seguir, no que se costuma dizer um corte metodológico sobre o assunto que se pretende tratar. A coletânea que se introduz com estas poucas linhas propedêuticas versa sobre a Constituição brasileira de 1988, mais especificamente sobre o seu aniversário de 20 anos. Cada um dos autores convidados para publicar seus trabalhos nesta coletânea trabalhou sobre a temática uma homenagem aos vinte anos da Constituição brasileira, como o próprio título adianta. Entretanto, não lhes foi requerido qualquer tema específico, como se faz, em tese, quando são elaborados os capítulos de uma obra. Pelo contrário, facultou-se aos autores trazerem suas respectivas contribuições a partir daquilo que, como parece ser, mais os atormenta nestes últimos vinte anos. Essa liberdade pelo que se entende principalmente numa obra que homenageia um documento de tão elevada importância para os rumos de um país é fundamental para que se tenha verdadeira homenagem. Assim, cada um dos autores que aceitou o singelo convite feito pelos coordenadores deste livro trouxe o trabalho que, em sua percepção, melhor exprimiria aquilo que eles sentem em relação a este aniversário. O interessante é que todos acabaram por

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contemplar assuntos que têm entre si imensa relação (democracia, cultura, direitos), de modo que coube apenas uma organização desses textos, que, se não parecer a melhor, pelo menos serviu para uma pretensa continuidade, embora se saiba que, mesmo naquelas obras onde parece haver continuidade, nada impede que o leitor leia o capítulo que quiser. A título de exemplo, o primeiro e o último trabalho começam do mesmo jeito, apesar de os autores se emaranharem por campos e análises distintas. Tanto Marcelo Cattoni quanto Eneá de Stutz tratam sobre a legitimidade da Constituição: o primeiro traz uma breve análise histórica, discorrendo, em seguida, pela questão da identidade constitucional e de sua efetividade; a segunda versa sobre a efetividade constitucional, associando-a com a idéia de fundamentalismo jurídico, no que quer parecer, portanto, uma crítica sobre o fato de as normas constitucionais preverem algo que na prática não tem funcionado, ou não tem sido aplicado. Embora haja similitude quanto aos temas explorados, não se poderia colocar um ao lado do outro, pois, como em uma obra que se volta apenas para homenagear algo, apresentando não uma única conclusão, mas várias proposições, é necessário que se tenha uma idéia de que se tem em mãos uma obra que dialoga com si própria, indicando, pois, uma idéia cíclica. Mas não é apenas em relação a estes trabalhos que há um diálogo. Caso se observe atentamente, os trabalhos que se situam no que se pode chamar miolo da obra trabalham cada um ao seu modo com a idéia que os dois textos acima referidos têm em comum: a efetividade constitucional. Os trabalhos de Daury Fabriz, Pérez Luño, Julio Siqueira, Adriano Pedra e Ingo Sarlet seguem essa lógica, dialogando entre si e com os demais textos do livro. Não fogem a esta discussão os trabalhos de Bezerra Leite, Bruno Teixeira e Flávia Piovesan, na medida em que tratam sobre a efetividade – e a importância da educação e da cultura em de direitos humanos. E o diálogo continua. Entre o primeiro trabalho e aqueles que se encontram no aludido miolo, estão os textos de Luís Roberto Barroso, Lenio Luiz Streck e Peter Häberle, respectivamente, sobre democratização, interpretação e cultura. O trabalho de Barroso, visivelmente, oferece uma continuidade ao de Cattoni. O de Häberle, por sua vez, 10

Introdução

oferece uma transição entre a crítica à efetividade e o trabalho sobre esta. Neste encalço, o excelente escrito de Streck parece ficar isolado à primeira vista, o que, no entanto, é mera ilusão, já que não se dá efetividade às normas constitucionais sem haver interpretação. Aliás, no mesmo sentido é o trabalho de Alexandre Coura. Finalmente, como se pode visualizar a partir do índice do livro, procurou-se jungir a um só tempo, a liberdade proporcionada aos autores para que veiculassem por seus escritos homenagens pessoais, a um estilo de organização que permitisse o desenvolvimento de um proveitoso diálogo. Desta forma, e como não poderia deixar de ser, deseja-se uma excelente leitura dos trabalhos e a velha esperança de que Constituição continue a ser homenageada sempre que possível, a fim de que, quem sabe, aquilo que deve ser celebrado, o seja, e aquilo que ficou por fazer, seja feito. Os Coordenadores

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1 O tempo da Constituição: a legitimidade da Constituição entre o direito e a política vinte anos depois

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira* “Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela...”. Chico Buarque in Pelas Tabelas Para Menelick de Carvalho Netto e José Luiz Quadros de Magalhães, meus caríssimos professores, nos vinte anos da Constituição da República.

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a presente exposição1, retomo, uma vez mais, a discussão sobre o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito e sua legitimidade. Antes de tudo, trata-se de uma oportunidade de trazer ao debate público reflexões desenvolvidas no marco da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia sobre o sentido normativo, que se auto-expressa no exercício democrático do poder constituinte, compreendido como gênesis jurídico-política da legitimidade do Estado Democrático de Direito. Parto inicialmente de uma proposta de resgate crítico da memória do processo constituinte de 1987-88 e de sua legitimidade,

* Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG); Professor de Teoria da Constituição, Teoria Geral do Estado II e temas de História do Direito (UFMG); Professor de Filosofia do Direito e Hermenêutica e Teoria da Argumentação Jurídica (PUC Minas). 1 Dois agradecimentos essenciais: Lenio Streck e Flaviane Barros; não há como faltar.

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proposta essa explicitamente comprometida com os princípios fundantes do constitucionalismo democrático. Assim é que se pode preliminarmente afirmar que se construiu, no Brasil, ao menos desde meados dos anos setenta, a idéia segundo a qual a transição do regime militar para a democracia seria feita de modo gradual e sem grandes “traumas”, por meio de um processo negociado entre os representantes do regime e a oposição. Esse processo já teria começado logo com a eleição indireta do Gal. Ernesto Geisel para Presidente da República, que venceu o Dep. Ulisses Guimarães, candidato oposicionista, no Colégio Eleitoral. O próprio fato de a oposição ter lançado um forte candidato teria demonstrado o seu crescimento, logo após os anos de maior fechamento do regime. Tal processo de “abertura” avançaria com a revogação dos atos institucionais, com a eleição do Gal. João Baptista de Oliveira Figueiredo, com a anistia “ampla e irrestrita” e com a reintrodução do pluripartidarismo. Em 1982 e em 1984, cresceu a pressão, assim como a campanha, pelo restabelecimento das eleições diretas para Presidente da República. Apesar de grande mobilização em todo o País, a proposta de emenda à Constituição de 67/69, de autoria do Dep. Dante de Oliveira, que propunha o retorno das eleições diretas, não foi aprovada pelo Congresso Nacional. Cresceu a campanha presidencial em torno do candidato da oposição, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, que foi eleito pelo colégio eleitoral, em início de 1985, com base numa ampla coalizão, que também contava com dissidentes do regime, a chamada “Aliança Liberal”. Todavia, o eleito, como sabemos, não veio assumir o cargo, por problemas de saúde e, logo depois, em razão de sua morte. O vice, já empossado, feito presidente, José Sarney, enviou ao Congresso proposta de emenda constitucional versando sobre a conversão do Congresso Nacional em Assembléia Nacional Constituinte, que seria subsidiada por um projeto de constituição elaborado por importantes personalidades – a “Comissão de Notáveis”. Uma vez aprovada a proposta de emenda, eleitos os deputados e parte dos senadores que iriam compor o Congresso, em 1986, e instalada a Constituinte em 1987, o projeto do Executivo foi logo rechaçado, com a aprovação do primeiro regimento interno da Assembléia e com o início dos trabalhos. Várias comissões foram montadas, receberam contribuições de todos os setores da sociedade,

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

e mesmo o antigo projeto do Executivo foi considerado apenas mais uma contribuição entre tantas outras. Por diversas vezes, o Dep. Ulisses Guimarães se pronunciou, inclusive, contra o Presidente da República, defendendo a “soberania” da Assembléia, assim como também o fez o presidente da Comissão de Sistematização, o jurista e Dep. Afonso Arinos. Depois de idas e vindas quanto ao sistema de governo e quanto à definição do próprio tempo do mandato, já em curso, do então Presidente da República, e com a reorganização das forças políticas no seio da Constituinte, a nova Constituição foi promulgada a 5 de outubro de 1988. Mas se estamos diante de uma inevitável simplificação de todo esse processo de transição política para a democracia, é porque as opiniões acerca dele divergem. Certos juristas brasileiros colocaram em questão a própria legitimidade da Constituinte e da Constituição por ela elaborada. E isso exatamente em razão do “caráter negociado” da chamada transição democrática, a ponto de afirmarem alguns que a Constituição não teria sido fruto de um processo genuinamente constituinte, o que teria maculado, desde o início, sua legitimidade. A polêmica sobre a legitimidade constitucional giraria em torno dos seguintes pontos centrais. Primeiramente, se a Assembléia Nacional Constituinte havia sido convocada por meio de uma emenda à Constituição de 1967/69, sua atuação encontrava-se limitada e, conseqüentemente, teria havido apenas uma alteração sutil, mas não uma ruptura, em relação à ordem constitucional anterior, que continuaria servindo como fundamento jurídico da suposta nova ordem instaurada com a Constituição de 1988. Assim, o poder constituinte da Assembléia Nacional seria apenas derivado, não originário. A chamada Nova República não teria surgido de uma revolução; faltarlhe-ia, pois, o poder constituinte originário próprio de processos revolucionários e seu único fundamento de autoridade repousaria, em última análise, na Constituição anterior. Logo, só restaria a alternativa, no plano jurídico-político, da reforma constitucional. O outro ponto relacionava-se a que, sendo a Assembléia Constituinte formada pelos membros do Congresso Nacional no exercício de seus mandatos, tinha-se que os integrantes daquela haviam sido eleitos, em última instância, de acordo com as normas eleitorais da Constituição de 1967/69. Logo, a nova Constituição que viessem

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a ser elaborada representaria, nesse sentido, uma continuação da Constituição anterior, uma vez que a vontade política da Assembléia Nacional, em último grau, havia sido formada sobre a égide do Direito Constitucional e Eleitoral até então vigente. Tais objeções à legitimidade democrática da Constituição da República de 1988, que em certos casos bem podem ser reconhecidas como fruto da combinação entre cinismo e continuísmo, até nostalgia, quem sabe, não vieram apenas de juristas que notoriamente “oficiaram” durante a Autocracia de 1964, mas também de importantes políticos e juristas que participaram ativamente do processo de abertura democrática. Para esses, também haveria uma falta de legitimidade da Assembléia Constituinte, de 1987-88, em razão não apenas do modo com que essa assembléia foi convocada – uma emenda à Constituição de 1967 – mas também em razão do funcionamento da Constituinte, falta que segundo alguns teria sido compensada por uma atuação legitimadora por parte do Supremo Tribunal Federal. Diante desses ataques que vem tanto de pensadores notoriamente conservadores quanto de políticos e juristas supostamente democráticos, cabe perguntar, inicialmente, qual poderia ser a memória democrática do processo constituinte de 1987-88. Seria a de um processo constituinte tão-somente conduzido por lideranças partidárias privatizadas, encasteladas no Congresso Nacional, que teriam atuado sem audiências públicas e sem a possibilidade de propostas de emendas populares, sem a menor contribuição ou pressão diuturna por parte dos setores organizados e mobilizados da sociedade, inclusive sem a pressão, até mesmo, do Palácio do Planalto? Sem ao menos uma assessoria parlamentar decente e respaldada por seminários e debates especializados ocorridos à época por todo o País? Ou teria sido, ao contrário, “o processo constituinte de maior participação popular da história do Brasil”, para citar, aqui, as palavras do Prof. Paulo Bonavides? Em outras palavras, a história da Constituinte e da Constituição não teria sido exatamente a história do fracasso na tentativa de uma transição política “pelo alto”, planejada pelas elites políticas, fracasso esse decorrente justamente da ampla mobilização e participação popular dos setores organizados politicamente da sociedade brasileira? E, de 1988 até o hoje, o que, afinal, foi constituído em termos de “identidade constitucional”, feito de nós como

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sociedade política, e que se nos coloca como uma necessidade de reflexão crítica, de resgate ou de exercício dessa memória? Aquela que teria sido fruto de uma atuação meramente legitimadora por parte do Supremo Tribunal Federal? E em que sentido seria possível falar, afinal, de uma identidade constitucional brasileira? Há um fio condutor que possa ser reconstruído historicamente? Mas, por outro lado, quais seriam os problemas para se falar numa identidade constitucional? Um dos problemas, e que pelo menos é próprio das constituições escritas, cujo texto foi elaborado num determinado momento histórico, é o de se é possível resgatar a história da elaboração desse texto, da sua construção ou da sua reconstrução jurisprudencial pela jurisdição constitucional, já que, como texto escrito, a Constituição estará sempre, inexoravelmente, aberta a múltiplas interpretações plausíveis. Um outro é o de se é possível resguardar essa identidade, se a própria Constituição prevê a possibilidade de reforma do seu texto. Emendas Constitucionais viriam estabilizar uma certa identidade ou romper como ela? A essas indagações, poderíamos acrescentar esta: dificuldades adicionais poderiam advir, por exemplo, no caso brasileiro, posto que teríamos buscado seguir a França no que se refere a uma descontinuidade constitucional formal? Pois por um lado cabe lembrar que a Constituição de 1988 se segue à Constituição do Império de 1824, à primeira Constituição republicana de 1891, à Constituição de 1934 e à de 1937, à de 1946 e à de 1967-1969. Já por outro lado, para alguns, a Constituição de 1988 resgataria o espírito das Constituições de 91, de 34 e de 46, no seu compromisso com a noção cara ao constitucionalismo de governo limitado, democraticamente eleito e comprometido com os direitos fundamentais. Esse modelo francês, inclusive, ao contrário do norte-americano, pressuporia a supremacia do Executivo e do Legislativo, que supostamente encarnariam institucionalmente a “nação soberana”, assim como a pretensão iluminista a uma capacidade sobre-humana de solução antecipada de todo e qualquer dos problemas sociais através de uma legislação racional. Afinal, considerando as histórias constitucionais do Brasil, sobre o pano de fundo desses últimos vinte anos, o que nós constituímos? O que foi construído, em termos do desenvolvimento 17

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e da realização do projeto constituinte de sociedade, que estaria subjacente à Constituição de 1988, a construção de uma sociedade fraterna, do compromisso com o pluralismo político, social e cultural, com a democracia e com a justiça social, com o Estado de Direito e com os direitos fundamentais? Uma certa sensação de fracasso parece restar, ao menos para alguns políticos e juristas que adoram repetir e repetir que a Constituição e, quem sabe, o próprio projeto constitucional brasileiro estariam mortos; e que seria, portanto, necessário, simplesmente celebrar uma missa fúnebre pela Constituição de 1988, uma vez por todas reconhecendo nossa incapacidade de constituir uma sociedade de cidadãos solidários, livres e iguais. Embora tais juristas tenham sido capazes, em certos momentos passados, de apreender de modo claro um sentimento difuso, conducente ao perigo de um verdadeiro processo de anomia e de desintegração social, mais uma vez é preciso repetir que devemos ir além e buscarmos apreender algo mais, numa perspectiva normativa não-idealizada e reconstrutiva, para que possamos fazer jus à complexidade da questão. Não se pode mais tratar as tensões políticas que se estabelecem no interior da realidade social a partir de uma suposta dicotomia ou hiato entre o ideal constitucional e uma realidade política recalcitrante. É preciso romper com o modo tradicional de se pensar o tema da efetividade constitucional. E em que sentido? O Prof. Menelick de Carvalho Netto nos chama justamente a atenção para o modo com que tradicionalmente as teorias jurídicas vão lidar com o problema da efetividade do Direito, com a questão do seu cumprimento e de sua aplicação efetivos. Por um lado, tais teorias, que têm como exemplo a teoria constitucional de Loewenstein, afirmam em linhas gerais que o Direito representa um ideal de sociedade a ser perseguido, mas que, todavia, em face desses ideais normativos, a própria realidade poderia se apresentar como um obstáculo, a todo o momento, para que esse ideal pudesse ser realizado. O problema desse enfoque é que, por um lado, desconhece que essa mesma realidade é também uma construção histórica e, por outro, que mesmo esse suposto ideal de uma nova sociedade que representaria o Direito surgiu e, assim, faz parte da própria sociedade que o projeta. Ora, em última análise, tal enfoque revela-se numa postura 18

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reificada e reificante que agrava ainda mais o problema que pretende denunciar, posto que acaba por naturalizá-lo. E tudo isso ao contrário de se procurar mostrar como é que esses ideais de democracia e de justiça já estão inscritos, ainda que parcialmente, na realidade social, buscando resgatar criticamente, reconstruir, portanto, seus vestígios na nossa própria história. É preciso explorar as tensões presentes nas próprias práticas jurídicas cotidianas e reconstruir, de forma adequada ao Estado Democrático de Direito, os fragmentos de uma racionalidade normativa já presente e vigente nas próprias realidades sociais e políticas, pois é exatamente essa dimensão principiológica o que inclusive torna passível de crítica uma realidade excludente. Se esses ideais, enquanto exigências de princípio, já não estivessem presentes, ainda que fragmentariamente, na nossa historia, a nos possibilitar a capacidade de reconhecer mesmo toda uma “catastrófica realidade social”, nós não seríamos também capazes sequer de reconhecer as exigências normativas que o próprio projeto de construção e realização desses ideais nos coloca: sem uma vivência da exclusão, por um lado, e sem a pré-compreensão de um conseqüente “constitucionalismo simbólico” daí decorrente, por outro, nem sequer os textos de normas constitucionais que se opõem à discriminação e à toda e qualquer forma de exclusão social teriam sido provavelmente incluídos, e de forma tão veemente, na Constituição da República de 1988. Cabe lembrar com o jurista Friedrich Müller (Quem é o povo?, 1998) que a positivação jurídico-moderna como texto, como “textificação é faca de dois gumes”, porque a Constituição pode ser tanto compreendida como desvirtuada no sentido de um “constitucionalismo simbólico”, quanto também pode ser normativamente levada a sério. A Constituição brasileira de 1988 não apenas fala de exclusão social, senão que se pronuncia incontestavelmente contra ela, como no caso dos textos de normas de direitos fundamentais, podendo revelar, portanto, diferentemente de um contraste entre ideal e real, uma tensão entre texto e contexto. Numa leitura reconstrutiva, devese portanto virar o texto constitucional contra a exclusão social que, ao contrário de se ancorar numa lei natural, na verdade permanece historicamente vinculada aos pré-conceitos sociais não-problematizados daqueles que vivenciam a Constituição.

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Aliás, como bem afirma o sociólogo Bernardo Sorj: Muitos estudos de ciências sociais, no lugar de descobrirem as formas e sentidos de construção social da cidadania a partir dos próprios agentes sociais, refletem as frustrações da intelectualidade e das classes médias locais com suas próprias sociedades. Tal atitude, embora compreensível, alimenta uma tendência secular à desmoralização das instituições democráticas existentes, e as ciências sociais perdem a oportunidade de mostrar que a América Latina é um canteiro de experiências sociais que, com os cuidados devidos, indica problemas igualmente relevantes para os países capitalistas avançados. (Sorj, A democracia inesperada, 2004, p.20)

E, considerando isso, não podemos sequer concordar com aqueles que afirmam que um processo de legitimação da Constituição teria sido alcançado pela atuação do Supremo Tribunal Federal que a teria feito funcionar. Isso porque, no mínimo, o Supremo Tribunal Federal não pode, sob a desculpa de querer guardar a Constituição, privatizar, apropriar-se da Constituição. Não se pode afastar a cidadania da Constituição, quer seja do seu momento de fundação, quer seja do seu processo de interpretação construtiva. Somos todos cidadãos intérpretes da Constituição. Uma postura contrária a uma “sociedade aberta de intérpretes da Constituição” não contribui para o resgate de tradições democráticas, que concorreram para elaboração da Constituição de 1988 e para reafirmação, mais uma vez, de um projeto constitucional que, na verdade, não surgiu em 1988, nem se esgotou em 1988. Não se pode negar a importância e o sentido normativo que se auto-expressa no processo constituinte de 1987-88, sobre o pano de fundo do constitucionalismo latinoamericano e mundial. A Constituição de 1988 é um marco importantíssimo, na nossa história recente, de um projeto que transcende ao próprio momento de promulgação do texto da Constituição e que lhe dá sentido normativo. Numa leitura reconstrutiva, a Constituição reafirma, mais uma vez, porque os reinterpreta, os grandes ideais de autonomia e de emancipação presentes nas grandes revoluções do final do século XVIII, sobre 20

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o pano de fundo da história política brasileira. Porque nós também somos herdeiros de um processo constitucional que se desenvolve há pelo menos duzentos anos, que deve ser relido permanentemente no sentido de que só se garantem condições para o exercício da liberdade, em liberdade. Como afirma o filósofo Jürgen Habermas: O ato da fundação da constituição é sentido como um corte na história nacional, e isso não é resultado de um mero acaso, pois, através dele, se fundamentou um novo tipo de prática com significação para a história mundial. E o sentido performativo desta prática destinada a produzir uma comunidade política de cidadãos livres e iguais, que se determinam a si mesmos, foi apenas enunciado no teor da constituição. Ele continua dependente de uma explicação reiterada, no decorrer das posteriores aplicações, interpretações e complementações das normas constitucionais. Graças a esse sentido performativo, que permanece disponível à intuição de cada cidadão de uma comunidade política democrática, ele pode assumir duas atitudes: referir-se criticamente aos textos e decisões da geração dos fundadores e dos sucessores; ou, ao contrário, assumir a perspectiva dos fundadores e dirigi-la criticamente contra atualidade, a fim de examinar se as instituições existentes, as práticas e procedimentos da formação democrática da vontade preenchem as condições para um processo que produz legitimidade... Sob essa premissa, qualquer ato fundador abre a possibilidade de um processo ulterior de tentativas que a si mesmo se corrige e que permite explorar cada vez melhor as fontes do sistema dos direitos. (Habermas, Constitutional Democracy, 2001, p.775-776).

Com os olhos postos no futuro, que se projeta com o ato de fundação que representa a Constituição, é possível reconstruir, também, um outro passado. Um novo passado, que enquanto “memória do futuro”, seja comprometido com esse projeto de futuro. Pois o nosso passado, resgatado nessa perspectiva, não é só um passado de frustrações. Pois a reconstrução da história, e poderíamos dizer que não só da história política e dos seus crimes, assim como de

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seu emprego público, como afirma Habermas, baseando-se em uma reflexão do jurista Klaus Günther, ...depende não apenas dos fatos, mas também da nossa visão dos fatos, como decidimos nas questões de imputabilidade. A observação histórica retrospectiva também depende de uma pré-compreensão com a qual abordamos o ocorrido, qual participação atribuímos às pessoas e qual às circunstâncias, onde traçamos as fronteiras entre liberdade e obrigação, culpa e inocência. A disponibilidade hermenêutica de reconhecer a verdadeira dimensão da responsabilidade e do conhecimento de causa varia com a nossa compreensão da liberdade – como nós avaliamos como pessoas responsáveis e quanto exigimos de nós mesmos como atores políticos. É essa pré-compreensão mesma que se encontra em discussão com as questões da autocompreensão éticopolíticas. Como vemos divididas culpa e inocência na visão histórica retrospectiva, também reflete as normas com base nas quais estamos dispostos a nos respeitar reciprocamente como cidadãos desta República. (Habermas, A constelação pós-nacional, 2001b, p.48-49).

E é à luz dessas reflexões que proponho compreender a transição política como um processo constituinte democrático em que se houve algum fracasso, este foi sofrido por aqueles setores das elites civis e militares brasileiras que acreditavam na realização de uma transição “pelo alto”, e estrategicamente planejada, da ditadura para a democracia, sem a participação da cidadania mobilizada politicamente. Sigo, aqui, as afirmações do Prof. Menelick de Carvalho Netto, em sua reconstrução do processo constituinte de 1987-88: ...as gramáticas de práticas sociais instituintes dos horizontes de sentido em que levantamos pretensões a novos direitos e propostas organizacionais de nosso viver em comum é que fornecem o substrato de legitimidade necessário à emergência do poder constituinte originário, tornando visível a caducidade das instituições vigentes e apontando para a necessidade de 22

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ruptura institucional. O desgaste do regime ditatorial e o movimento pelas eleições diretas para Presidente, de início, catalizaram as forças instituintes. A proposta de uma constituinte ganhava sentido no bojo desse movimento que, no entanto, terminou sendo subsumido no acordo das elites com a candidatura Tancredo Neves/ José Sarney no colégio eleitoral. A legitimidade dessa Constituição não decorreu, é claro, de sua problemática convocatória, a Emenda Constitucional n.º 26, de 27/11/1985 à Carta autoritária de 1969, nem tampouco do processo eleitoral marcado pelo clima de continuísmo decorrente da não-exclusividade da Assembléia Constituinte e da adoção de um plano econômico que nos possibilitou viver no melhor dos mundos até o dia da eleição (...) Na verdade, a grande legitimidade que caracteriza a Constituição de 1988 decorreu de uma via inesperada e, até o momento da eleição da Assembléia Constituinte, bastante implausível. Com a morte do Presidente eleito, Tancredo Neves, e a posse como Presidente do Vice-Presidente eleito, José Sarney, as forças populares mobilizadas pela campanha das “Diretas já” voltaram a sua atenção e interesse de maneira decisiva e para os trabalhos constituintes, então em fase inicial, pois a de organização ou de definição do processo havia acabado de se encerrar. Como resultado dessa renovada atenção, o tradicional processo constituinte pré-ordenado, contra todas as previsões, subitamente não mais pode ser realizado em razão da enorme mobilização e pressão populares que se seguiram, determinando a queda da denominada comissão de notáveis – a comissão encarregada da elaboração do anteprojeto inicial – e a adoção de uma participativa metodologia de montagem do anteprojeto a partir da coleta de sugestões populares. Canais de participação direta e indireta da sociedade civil organizada terminaram encontrando significativa acolhida no regimento revisto do processo constituinte; o despertar do interesse de todos alimentou e fomentou o aprofundamento dos debates, acompanhados por todo o país todas as noites através da televisão. Foi des-

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se processo, profundamente democrático, que a Constituição hauriu sua legitimidade original, resultando de uma autêntica manifestação de poder constituinte, em razão do processo adotado. (Carvalho Netto, A sanção no procedimento legislativo, 1992, p. 43-45).

Afinal, qual é o fundamento de legitimidade do projeto constituinte do Estado Democrático de Direito, senão a própria construção, e projeção a um futuro aberto, dessa legitimidade? E de uma legitimidade através da legalidade, do reconhecimento segundo o qual se deve, inclusive, rever a concepção francesa e tradicional de poder constituinte como ato de força e compreender que, hoje, após mais de dois séculos de Constitucionalismo, o poder constituinte “requer mais do que a simples e bruta tomada do poder ou manipulações palacianas para obter apoio do povo.” (Carvalho Netto 2002, p. 45) Nesse sentido, para Menelick de Carvalho Netto, o poder constituinte, embora ilimitado em relação à ordem com a qual rompe, (...)encontra-se vinculado a criar instituições capazes de garantir esses princípios [liberdade e igualdade] jurídica e politicamente, pois, ao institucionalizar o poder público, o faz de tal modo que a própria constituição dos órgãos e a forma de atuação dos mesmos os densifique. O Estado moderno retira de seu próprio operar, de seu funcionamento regido por esses mesmos princípios, o substrato de legitimidade necessário à sua reprodução cotidiana. (Carvalho Netto, A revisão constitucional, 2002, p.41-42).

E é assim que Habermas, ao reconstruir a pergunta pressuposta a um processo constituinte legítimo - acerca de quais direitos devemos atribuir-nos, reciprocamente, caso queiramos regular legitimamente nossa convivência por meio do Direito -, afirma que, numa perspectiva reconstrutiva, que leva a sério a relação interna entre Direito e democracia, bem como a relação de complementaridade entre Direito e moral, a forma jurídica moderna, justificada normativamente com base no princípio do discurso enquanto princípio democrático, não se encontra à disposição da auto-legislação

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democrática, posto que a constituiu. Na modernidade, o poder constituinte legítimo só se expressa através do médium do Direito moderno. Nesse sentido, Habermas afirma: Ao invés de apoiar-me num realismo moral, que tem poucas chances de ser defendido, sugiro que entendamos o próprio regresso como a expressão compreensível de um aspecto do caráter da constituição dos Estados democráticos de direito, isto é, a sua abertura para o futuro: uma constituição que é democrática, não somente de acordo com seu conteúdo, mas também de acordo com a fonte de sua legitimação, constitui um projeto capaz de formar tradições com um início marcado na história. Todas as gerações posteriores enfrentarão a tarefa de atualizar a substância normativa inesgotável do sistema de direitos estatuído no documento da constituição (...) É verdade que essa continuação falível do evento fundador só pode escapar do círculo da autoconstituição discursiva de uma comunidade, se esse processo, que não é imune a interrupções e a recaídas históricas, puder ser interpretado, a longo prazo, como um processo de aprendizagem que se corrige a si mesmo. (Habermas, Constitutional Democracy, 2001, p.768).

Ou seja, a relação ou nexo interno entre Estado de Direito e democracia, direitos humanos e soberania popular, realiza-se, na dimensão do tempo histórico, como um processo de aprendizagem social com o Direito, que é sujeito a tropeços mas é capaz de corrigir a si mesmo, se compreendermos a Constituição como um projeto que transforma o ato fundador num processo constituinte que tem continuidade por meio de sucessivas gerações. Enfim, o constitucionalismo democrático é um projetar-se que, por ser moderno, é sempre carente de legitimidade, de uma legitimidade que é sempre vivida como falta, como ausência, na impossibilidade de um fundamento último, absoluto, na tradição, e que se lança, pois, a um futuro aberto. Esse “pro-jecto” remete a própria questão da legitimidade à idéia de construção da legitimidade, por meio da realização no tempo da coesão interna entre as noções de

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autogoverno e de iguais direitos individuais de liberdade, concretizadores de uma noção complexa de autonomia. Assim, as exigências normativas que se colocam a esse processo constituinte, ao invés de barreiras a ele, são, na verdade, uma forma de explicitação da própria noção complexa de autonomia que lhe é subjacente (Habermas, 2003a, p.171). Como chama atenção Carvalho Netto: A identidade constitucional não pode se fechar, a não ser ao preço de trair o próprio constitucionalismo como demonstra Michel Rosenfeld. O constitucionalismo, ao lançar na história a afirmação implausível de que somos e devemos ser uma comunidade de homens, mulheres e crianças livres e iguais, lançou uma tensão constitutiva à sociedade moderna que sempre conduzirá à luta por novas inclusões, pois toda inclusão é também uma nova exclusão. E os direitos fundamentais só poderão continuar como tais se a própria Constituição, como a nossa expressamente afirma no § 2.º do seu art. 5.º, se apresentar como a moldura de um processo de permanente aquisição de novos direitos fundamentais. Aquisições que não representarão apenas alargamento da tábua de direitos, mas, na verdade, redefinições integrais dos nossos conceitos de liberdade e de igualdade, requerendo nova releitura de todo o ordenamento à luz das novas concepções dos direitos fundamentais. (Carvalho Netto, A Constituição européia, 2003, p. 154).

Agora, como é possível construir permanente e reflexivamente essa legitimidade insistindo num dos grandes equívocos, que advém da incapacidade de compreender que o Direito não é capaz por si só de transformar a realidade ou de transformar o mundo? Que no máximo, no máximo, a Constituição pode promover mudanças na medida em que essa Constituição constitua algo. Que ela seja o centro de mobilização ou de integração política de uma sociedade, no sentido do desenvolvimento de um patriotismo constitucional. É insistir num equívoco acreditar que a Constituição por ela mesma é capaz de transformar a realidade, ou que mais uma emenda constitucional vai resolver o problema da falta de efetividade da Constituição. Num equívoco que, ao contrário de reforçar a crença 26

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no Direito, contribui para mais frustração e para o agravamento do sentimento de fracasso constitucional. Tal equívoco se faz presente, mais uma vez, quando ao invés de promovermos a transformação da compreensão da Constituição e das práticas políticas e sociais, no sentido do projeto de construção permanente e aberta do Estado Democrático de Direito entre nós, correntes políticas, no governo ou fora dele, insistem mais uma vez numa nova Emenda Constitucional ou mesmo numa nova Constituinte, na expectativa por demais idealista de que assim seriam resolvidos todos os problemas e crises sociais, econômicos, políticos e, até mesmo, os de efetividade do Direito. Mais grave ainda é quando se acredita que poderiam ser resolvidos “problemas de governabilidade” ou mesmo “crises políticas e morais”, atribuindo-se “culpa” ao Texto Constitucional, como se fosse culpa da Constituição democrática o seu próprio descumprimento, como também todo e qualquer problema social, econômico, político ou moral. Atualmente, tramitam no Congresso Nacional pelo menos três Propostas de Emenda à Constituição, quer no sentido da convocação de uma nova assembléia constituinte, quer no sentido de se converter o Congresso Nacional em assembléia revisora, alterando-se o próprio art. 60, da Constituição da República, que regula o processo legislativo de reforma constitucional, sob a pretensa justificação, inclusive, apresentada por parte da doutrina, do que seria uma “compreensão evolutiva do poder constituinte”. Cabe, antes de tudo, considerar que as normas constitucionais que regulam o processo legislativo de reforma constitucional possuem, como toda norma jurídica, uma dupla dimensão de validade: elas se endereçam aos seus destinatários tanto como limites coercitivos para aqueles que atuam de forma estratégica ou, ao menos, visando tão-somente à satisfação dos seus próprios interesses, quanto como uma garantia do exercício de liberdades comunicativas àqueles que agem por respeito às normas democraticamente estabelecidas. Nesse sentido, é preciso deixar claro que as Propostas de Emenda à Constituição que visam à redução do quorum de três quintos para maioria absoluta, à diminuição dos turnos de votação, bem como à reunião unicameral das Casas Legislativas, enfim, a uma simplificação do processo legislativo de reforma, são inconstitucionais, estando sujeitas à declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário. Elas violam a rigidez

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constitucional, porque colocam em risco os direitos e garantias das minorias políticas, bem como porque infringem as próprias condições constitucionais e processuais para deliberação por maioria, subvertendo o próprio processo legislativo democrático, sob a desculpa de democracia. Ora, decisões ainda que majoritárias, mas violadoras de direitos constitucionais das minorias políticas, e que, assim, subvertem as próprias bases constitucionais para deliberação política, são, na verdade, autoritárias; não configuram, portanto, a manifestação de um poder político democrático, mas sim a expressão de pura violência. Tais propostas, sob o argumento falacioso de que a convocação de uma assembléia revisora, ou mesmo de uma nova constituinte, cujos trabalhos seriam submetidos a um referendo popular, seria a expressão da soberania popular mesmo que contrária à Constituição, são verdadeiras tentativas de golpe de Estado, devendo ser, portanto, denunciadas publicamente e a elas resistidas, posto que configuram uma grave ameaça contra o Estado Democrático de Direito. Bom, para concluir: não mais podemos ser ingênuos em relação à nossa história política. Temos que assumir essa história, que é nossa, e que não pode ser privatizada por ninguém que pretenda adotar um ponto de vista privilegiado em relação a ela. O Direito é, como diz o jurista Ronald Dworkin, um empreendimento público. E a Constituição e seus princípios não podem estar à disposição do Supremo Tribunal Federal ou mesmo do Presidente da República e do Congresso Nacional. Porque nenhum deles pode compreender o exercício de suas funções constitucionais como substituição a excluir do processo político-deliberativo o público mobilizado de cidadãos em uma democracia, sob pena de se dar continuidade a tradições autoritárias com as quais a Constituição veio romper. Representação política não é nem pode ser substituição da cidadania, mas uma forma de mediação institucional que garanta e aprofunde a própria democracia. A Constituição é da cidadania, como um projeto aberto e permanente de construção de uma sociedade de cidadãos livres e iguais; se não, não é Constituição. Nesse sentido, levar a sério a Constituição de 1988 e sua legitimidade, vinte anos depois, coloca-nos, mais uma vez, o desafio diário de fazermos do projeto constituinte do Estado Democrático de Direito

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uma conquista cidadã, num processo permanente de aprendizado social com o Direito em nossa própria história. Tal aprendizado, ninguém nos tira, ninguém pode realizar por nós.

Referências bibliográficas CARVALHO NETTO, Menelick de. A Constituição da Europa In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da Constituição: Perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 281-290. __________. A revisão constitucional e a cidadania: a legitimidade do poder constituinte que deu origem à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e as potencialidades do poder revisional nela previsto. Revista do Ministério Público Estadual do Maranhão, São Luiz, n.º 9, jan./dez. de 2002; pp. 37-61. __________. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional. São Paulo: Littera Mundi, 2001b. __________. Constitutional Democracy: a paradoxal union of contradictory principles? 2001, pp.775-781. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 1998. SORJ, Bernardo. A democracia inesperada. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

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2.1 Introdução: da vinda da família real à Constituição de 19881

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omeçamos tarde. Somente em 1808 – trezentos anos após o descobrimento –, com a chegada da família real, teve início verdadeiramente o Brasil. Até então, os portos eram fechados ao comércio com qualquer país, salvo Portugal. A fabricação de produtos era proibida na colônia, assim como a abertura de estradas. Inexistia qualquer instituição de ensino médio ou superior: a educação resumia-se ao nível básico, ministrada por religiosos. Mais de 98% da população era analfabeta. Não havia dinheiro e as trocas eram feitas por escambo. O regime escravocrata subjugava um em cada três brasileiros e ainda duraria mais oitenta anos, como uma chaga moral e uma bombarelógio social. Pior que tudo: éramos colônia de uma metrópole que atravessava vertiginosa decadência, onde a ciência e a medicina eram tolhidas por injunções religiosas e a economia permaneceu extrativista e mercantilista quando já ia avançada a revolução industrial. Portugal foi o último país da Europa a abolir a inquisição, o tráfico de escravos

* Professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School. Doutor e livre-docente pela UERJ. 1 O presente texto é a versão condensada de artigo escrito por solicitação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, intitulado Vinte anos da Constituição brasileira de 1988: o Estado a que chegamos, elaborado para integrar volume contendo a análise crítica das Constituições brasileiras e para publicação na Revista de Direito do Estado nº 10.

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e o absolutismo. Um Império conservador e autoritário, avesso às idéias libertárias que vicejavam na América e na Europa2 e 3. Começamos mal. Em 12 de novembro de 1823, D. Pedro I dissolveu a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa que havia sido convocada para elaborar a primeira Constituição do Brasil4. Já na abertura dos trabalhos constituintes, o Imperador procurara estabelecer sua supremacia, na célebre “Fala” de 3 de maio de 18235. Nela, manifestou sua expectativa de que se elaborasse uma Constituição que fosse digna dele e merecesse sua imperial aceitação. Não mereceu6. O Projeto relatado por Antônio Carlos de Andrada, de corte moderadamente liberal, limitava os poderes do Rei, restringindo seu direito de veto, vedando-lhe a dissolução da Câmara e subordinando as Forças Armadas ao Parlamento. A constituinte foi dissolvida pelo Imperador em momento de refluxo do movimento liberal na Europa e de restauração da monarquia absoluta em Portugal. Embora no Decreto se previsse a convocação de uma nova constituinte, isso não aconteceu. A primeira Constituição brasileira – a Carta Imperial de 1824 – viria a ser elaborada pelo Conselho de Estado, tendo sido outorgada em 25 de março de 1824. Percorremos um longo caminho. Duzentos anos separam a vinda da família real para o Brasil e a comemoração do vigésimo aniversário da Constituição de 1988. Nesse intervalo, a colônia exótica e semi2

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Sobre o tema, v. Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil, 1945; Patrick Wilcken, Império à deriva, 2005; Laurentino Gomes, 1808, 2007; Ricardo Lobo Torres, A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal, 1991; Waldemar Ferreira, História do direito constitucional brasileiro, 1954; Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de direito constitucional brasileiro, v. II, 1960; Marcelo Caetano, Direito constitucional, v. 1, 1987; Manoel Maurício de Albuquerque, Pequena história da formação social brasileira, 1981; Aurelino Leal, História constitucional do Brasil, 1915, edição fac-similar; e Paulo Bonavides e Paes de Andrade. História constitucional do Brasil, 1991. A crítica severa não nega, por evidente, o passado de glórias de Portugal e o extraordinário Império marítimo que construiu. Não desmerece, tampouco, o grande progresso trazido ao Brasil com a vinda da família real. Nem muito menos interfere com os laços de afeto e de afinidade que ligam os brasileiros aos portugueses. Curiosamente, a convocação da constituinte se dera em 3 de junho de 1822, antes mesmo da Independência, e fazia menção à união “com a grande família portuguesa”. A Independência veio em 7 de setembro, a aclamação de D. Pedro como imperador em 12 de outubro e a coroação em 1º de dezembro de 1822. “Como imperador constitucional, e mui principalmente como defensor perpétuo deste império, disse ao povo no dia 1º de dezembro do ano próximo passado, em que fui coroado e sagrado, que com a minha espada defenderia a pátria, a nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim. (...) [E]spero, que a Constituição que façais, mereça a minha imperial aceitação...” (grifos acrescentados). V. A fala de D. Pedro I na sessão de abertura da constituinte. In: Paulo Bonavides e Paes de Andrade, História constitucional do Brasil, 1991, p. 25. Marcello Cerqueira, A Constituição na história: origem e reforma, 2006, p. 387.

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abandonada tornou-se uma das dez maiores economias do mundo. O Império de viés autoritário, fundado em uma Carta outorgada, converteu-se em um Estado constitucional democrático e estável, com alternância de poder e absorção institucional das crises políticas. Do regime escravocrata, restou-nos a diversidade racial e cultural, capaz de enfrentar – não sem percalços, é certo – o preconceito e a discriminação persistentes. Não foi uma história de poucos acidentes. Da Independência até hoje, tivemos oito Cartas constitucionais: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, em um melancólico estigma de instabilidade e de falta de continuidade das instituições. A Constituição de 1988 representa o ponto culminante dessa trajetória, catalizando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional7. Nem tudo foram flores, mas há muitas razões para celebrá-la.

2.2 Ascensão e ocaso do regime militar O colapso do regime constitucional, no Brasil, se deu na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, quando um golpe militar destitituiu o Presidente João Goulart. Veio o primeiro Ato Institucional – primeiro de uma longa série – e, na seqüência histórica, tornou-se inevitável a trajetória rumo à ditadura, que duraria mais de vinte anos. Em 1965, foram canceladas as eleições presidenciais e prorrogado o mandato do Presidente Castelo Branco. Em 1966, foram extintos os partidos políticos. Em 1967, foi editada uma nova Constituição, votada por um Congresso pressionado e sem vestígio de soberania popular autêntica. Em 1968, baixou-se o Ato Institucional nº 5, que conferia poderes quase absolutos ao Presidente, inclusive para fechar o Congresso, cassar direitos políticos de parlamentares e aposentar qualquer servidor público. Em 1969, em golpe dentro do golpe, impediu-se a posse do Vice-Presidente Pedro Aleixo, quando do afastamento por doença do Presidente Costa e Silva, e uma nova Constituição foi outorgada pelos Ministros militares. Nesse mesmo ano, indicado pelas Forças Armadas, toma posse o Presidente Emílio Garrastazu Médici. Seu período de governo, que 7

Para uma densa análise da formação nacional, das origens portuguesas até a era Vargas, v. Raymundo Faoro, Os donos do poder, 2001 (1ª. ed. 1957).

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foi de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974, ficou conhecido pela designação sugestiva de anos de chumbo. A censura à imprensa e às artes, a proscrição da atividade política e a violenta perseguição aos opositores do regime criaram o ambiente de desesperança no qual vicejou a reação armada à ditadura, manifestada na guerrilha urbana e rural8. A tortura generalizada de presos políticos imprimiu na história brasileira uma mancha moral indelével e perene9. A abertura política, “lenta, gradual e segura”, teve seu início sob a Presidência do General Ernesto Geisel, que tomou posse em 15 de março de 197410. Apesar de ter se valido mais de uma vez de instrumentos ditatoriais11, Geisel impôs sua autoridade e derrotou resistências diversas à liberalização do regime, que vinham dos porões da repressão e dos bolsões de anticomunismo radical nas Forças Armadas12. A posse do General João Baptista Figueiredo, em 15 de março de 197913, deu-se já após a revogação dos atos institucionais, que representavam a legalidade paralela e supraconstitucional do regime militar14.

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V. Elio Gaspari, A ditadura escancarada, 2002. Sobre a luta armada, v. tb.: Fernando Gabeira, O que é isso companheiro?, 1979; Fernando Portela, Guerra de guerrilha no Brasil: a saga do Araguaia, 1979; Alfredo Sirkis, Os carbonários, 1980. Sobre o tema da tortura, v. Brasil: nunca mais, 1985, publicado pela Arquidiocese de São Paulo, com prefácio de D. Paulo Evaristo Arns, ex-Cardeal Arcebispo de São Paulo e figura proeminente na defesa dos direitos humanos durante o regime militar. Em convenção nacional realizada em 23 de setembro de 1973, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) lançou como candidatos à Presidência e à Vice-Presidência Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho, que se apresentaram como “anti-candidatos”. Sobre o tema, v. Alzira Alves de Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão (coords.), O dicionário histórico-biográfico brasileiro, v. III, 2001, p. 2.709. Em abril de 1977, o Presidente decretou o recesso do Congresso Nacional e outorgou as Emendas Constitucionais nºs 7, de 13.04.1977, e nº 8, de 14.04.1977, que continham, respectivamente, uma reforma do Judiciário, medidas casuísticas que asseguravam a preservação da maioria governista no Legislativo e mantinham eleições indiretas para governadores. Além disso, ao longo do seu governo, Geisel cassou o mandato de vereadores, deputados estaduais e federais,. Sobre seu período na Presidência, v. o longo depoimento prestado pelo ex-Presidente em Maria Celina D’Araujo e Celso Castro (orgs.), Ernesto Geisel, 1997. V. tb. Elio Gaspari, A ditadura derrotada, 2003; e A ditadura encurralda, 2004, em que relata a parceria entre Geisel – o “Sacerdote” – e Golbery – o “Feiticeiro” – na terminologia que cunhou. O MDB lançou como candidatos à Presidência e à Vice-Presidência o General Euler Bentes Monteiro e o Senador Paulo Brossard. Na eleição realizada em 15.10.1978, venceu a chapa da situação, integrado por Figueiredo e Aureliano Chaves, que obtiveram 355 votos contra 226. A Emenda Constitucional nº 11, de 13.10.1978, revogou todos os atos institucionais e os atos complementares que lhes davam execução.

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Figueiredo deu continuidade ao processo de descompressão política, promovendo a anistia15 e a liberdade partidária16. Centenas de brasileiros voltaram ao país e inúmeros partidos políticos foram criados ou saíram da clandestinidade. A derrota do movimento pela convocação imediata de eleições presidenciais – as Diretas já –, em 1984, após ter levado centenas de milhares de pessoas às ruas de diversas capitais, foi a última vitória do governo e o penúltimo capítulo do regime militar. Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu, para a Presidência da República, a chapa contrária à situação, encabeçada por Tancredo Neves, que tinha como vice José Sarney17. O regime militar chegava ao fim e tinha início a Nova República, com a volta à primazia do poder civil. Opositor moderado da ditadura e nome de consenso para conduzir a transição pacífica para um regime democrático, Tancredo Neves adoeceu às vésperas da posse e não chegou a assumir o cargo, morrendo em 21 de abril de 1985. José Sarney, que fora um dos próceres do regime que se encerrava – mas que ajudou a sepultar ao aderir à oposição –, tornou-se o primeiro Presidente civil desde 1964.

2.3 Convocação e atuação da assembléia constituinte Cumprindo compromisso de campanha assumido por Tancredo Neves, o Presidente José Sarney encaminhou ao Congresso Nacional proposta de convocação de uma constituinte. Aprovada como Emenda Constitucional nº 26, de 27.11.1985, nela se previu que “os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” reunir-se-iam em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana18. Instalada 15

A anistia política foi concedida pela Lei nº 6.683, de 28.08.1979, que em seu art. 1º previa: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. 16 Em 1979, foi reformulado o sistema partidário, com a extinção de MDB e ARENA e a implantação do pluripartidarismo. 17 Por 480 votos a 180, Tancredo Neves, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), derrotou Paulo Maluf, candidato do Partido Democrático Social (PDS), que era o partido de sustentação política do governo militar, sucessor da Aliança Renovadora Nacional (ARENA). 18 Emenda Constitucional nº 26, de 27.11.1985: “Art. 1º - Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional

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pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Carlos Moreira Alves, em 1º de fevereiro de 1987, a Assembléia Constituinte elegeu em seguida, como seu Presidente, o Deputado Ulysses Guimarães, que fora o principal líder parlamentar de oposição aos governos militares. Da constituinte participaram os parlamentares escolhidos no pleito de 15 de novembro de 1986, bem como os senadores eleitos quatro anos antes, que ainda se encontravam no curso de seus mandatos. Ao todo, foram 559 membros – 487 deputados federais e 72 senadores – reunidos unicameralmente. Não prevaleceu a tese, que teve amplo apoio na sociedade civil, da constituinte exclusiva, que se dissolveria após a conclusão dos seus trabalhos19. A ausência de um texto que servisse de base para as discussões dificultou de modo significativo a racionalização dos trabalhos20, que se desenvolveram em três grandes etapas: (i) das Comissões Temáticas; (ii) da Comissão de Sistematização; e (iii) do Plenário21. O processo constituinte teve início com a formação de oito Comissões Temáticas22, cada uma delas dividida em três Subcomissões, em um total de 2423. Coube às Subcomissões a apresentação de relatórios, que foram consolidados pelas Comissões Temáticas, surgindo daí o primeiro projeto de Constituição, que foi encaminhado à Comissão

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Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Art. 2º - O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente. Art. 3º - A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional Constituinte”. Relator da Proposta de Emenda Constitucional nº 43, de 1985, que previa a convocação da Assembléia Constituinte, o Deputado Flavio Bierrenbach apresentou substitutivo no qual propunha que, mediante consulta plebiscitária, o povo se manifestasse diretamente sobre dois pontos: (i) se delegava o poder constituinte originário a uma assembléia exclusiva ou ao Congresso Nacional; (ii) se os senadores eleitos em 1982 poderiam exercer funções constituintes. O substitutivo não foi aprovado. Sobre o tema, v. Flavio Bierrenbach, Quem tem medo da constituinte, 1986. Nem o Presidente da República, José Sarney, nem tampouco o Presidente da Assembléia Constituinte, Ulysses Guimarães, quiseram encampar o Anteprojeto elaborado pela “Comissão Afonso Arinos”. V. José Roberto Rodrigues Afonso, Memória da Assembléia Constituinte de 1987∕88: as finanças públicas. In: www.bndes.gov.br/conhecimento/revista/rev1102.pdf. Para uma descrição detalhada dos trabalhos da Assembléia Constituinte, v. Paulo Bonavides e Paes de Andrade, História constitucional do Brasil, 1991, p. 449 e s. V. tb. José Adércio Leite Samapaio, “Teoria e prática do poder constituinte. Como legitimar ou descontruir 1988 – 15 anos depois”. In: José Adércio Leite Sampaio (coord.), Quinze anos de Constituição, 2004, p. 36. No âmbito das Subcomissões realizaram-se incontáveis audiências públicas, com ampla participação de setores econômicos, movimentos sindicais e entidades de classe.

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de Sistematização. Na elaboração do Projeto da Comissão de Sistematização, prevaleceu a ala mais progressista do PMDB, liderada pelo Deputado Mário Covas, que produziu um texto “à esquerda do Plenário”24: nacionalista, com forte presença do Estado na economia e ampla proteção aos trabalhadores. Em Plenário, verificou-se uma vigorosa reação das forças liberal-conservadoras, reunidas no “Centro Democrático” (apelidado de “Centrão”), que impuseram mudanças substantivas no texto ao final aprovado25. Em 5 de outubro de 1988, após dezoito meses de trabalho, encerrando um processo constituinte exaustivo e desgastante, muitas vezes subjugado pela política ordinária26, foi aprovada, em clima de moderada euforia, a Constituição da República Federativa do Brasil. Aclamada como “Constituição cidadã”27 e precedida de um incisivo Preâmbulo28, a Carta constitucional foi promulgada com 245 artigos, distribuídos em nove títulos, e setenta disposições transitórias.

2.4 O sucesso institucional da Constituição de 1988 A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes 24

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Nelson de Azevedo Jobim, A constituinte vista por dentro – Vicissitudes, superação e efetividade de uma história real. In: José Adércio Leite Sampaio (coord.), Quinze anos de Constituição, 2004, p. 12. Enviado à Comissão de Redação, o Projeto ainda sofreria acréscimos de natureza material, que obrigaram a uma nova votação em Plenário, em dois turnos e por maioria absoluta. A Assembléia Constituinte, que teve a maioria de seus membros eleitos no embalo do sucesso temporário do Plano Cruzado, em novembro de 1986, teve o final dos seus trabalhos marcado pela disputa presidencial do ano de 1989 e pelos múltiplos interesses que ela engendrava. Constituição cidadã foi o título de discurso proferido por Ulysses Guimarães, na Presidência da Assembléia Constituinte, em 27 de julho de 1988, onde afirmou: “Repito: essa será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria”. V. íntegra do texto em http://www.fugpmdb.org.br/ frm_publ.htm. A expressão tornou a ser por ele utilizada quando da promulgação da nova Carta, em 5 de outubro de 1988, em discurso intitulado Constituição coragem. V. http:// www.fugpmdb.org.br/frm_publ.htm. Acessos em: 5 abr. 2008. No texto do Preâmbulo, a fotografia, retocada pela retórica e pelo excesso de boas intenções, do momento histórico de seu nascimento e das aspirações de que deveria ser instrumento: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

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violento, para um Estado democrático de direito. Sob sua vigência, realizaram-se cinco eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país duas décadas de estabilidade institucional. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, diversos episódios poderiam ter deflagrado crises que, em outros tempos, teriam levado à ruptura institucional. O mais grave deles terá sido a destituição, por impeachment, do primeiro presidente eleito após a ditadura militar, sob acusações de corrupção. Mas houve outros, que trouxeram dramáticos abalos ao Poder Legislativo, como o escândalo envolvendo a elaboração do Orçamento, a violação de sigilo do painel eletrônico de votação e o episódio que ficou conhecido como “mensalão”. Mesmo nessas conjunturas, jamais se cogitou de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Não há como deixar de celebrar o amadurecimento institucional brasileiro. Até aqui, a trágica tradição do país sempre fora a de golpes, contra-golpes e quarteladas, em sucessivas violações da ordem constitucional. Não é difícil ilustrar o argumento. D. Pedro I dissolveu a primeira constituinte. Logo ao início do governo republicano, Floriano Peixoto, Vice-Presidente da República, deixou de convocar eleições – como exigia a Constituição – após a renúncia de Deodoro da Fonseca, permanecendo indevidamente na Presidência. Ao fim da República Velha, vieram a Revolução de 30, a Insurreição Constitucionalista de São Paulo, em 1932, a Intentona Comunista, de 1935, bem como o golpe do Estado Novo, em 1937. Em 1945, ao final de seu período ditatorial, Getúlio Vargas foi deposto pelas Forças Armadas. Reeleito em 1950, suicidou-se em 1954, abortando o golpe que se encontrava em curso. Eleito Juscelino Kubitschek, foi necessário o contra-golpe preventivo do Marechal Lott, em 1955, para assegurar-lhe a posse. Juscelino ainda enfrentaria duas rebeliões militares: Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, os Ministros militares vetaram a posse do Vice-Presidente João Goulart, levando à ameaça de guerra civil, diante da resistência do Rio Grande do Sul. Em 1964, veio o golpe militar. Em 1968, o Ato Institucional nº 5. Em 1969, o impedimento à posse do Vice-Presidente Pedro Aleixo e a outorga de uma nova

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Constituição pelos Ministros militares. A enunciação é meramente exemplificativa, mas esclarecedora. A Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade institucional brasileira. Nos últimos vinte anos, superamos todos os ciclos do atraso: eleições periódicas, Presidentes cumprindo seus mandatos ou sendo substituídos na forma constitucionalmente prevista, Congresso Nacional em funcionamento sem interrupções, Judiciário atuante e Forças Armadas fora da política. Só quem não soube a sombra não reconhece a luz.

2.5 Um balanço preliminar29 2.5.1 Alguns avanços Em inúmeras áreas, a Constituição de 1988 consolidou ou ajudou a promover avanços dignos de nota. No plano dos direitos fundamentais, a despeito da subsistência de deficiências graves em múltiplas áreas, é possível contabilizar realizações. A centralidade da dignidade da pessoa humana se impôs em setores diversos. Para que não se caia em um mundo de fantasia, faça-se o registro indispensável de que uma idéia leva um tempo razoável entre o momento em que conquista corações e mentes até tornar-se uma realidade concreta. Nada obstante isso, no âmbito dos direitos individuais, as liberdades públicas, como as de expressão, reunião, associação, e direitos como o devido processo legal e a presunção de inocência incorporaram-se com naturalidade à paisagem política e jurídica do país. É certo que ainda não para todos30. Os direitos sociais têm enfrentado trajetória 29

Vejam-se alguns balanços anteriores, aos dez e aos quinze anos da Constituição, em: Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), Uma Década de Constituição: 1988 – 1998, 1999; Alexandre de Moraes (coord.), Os 10 anos da Constituição Federal, 1999; Uadi Lammêgo Bulos, Decênio da Constituição de 1988, Revista de Processo 98:307, 2000; Luís Roberto Barroso, Dez Anos da Constituição de 1988 (foi bom para você também?), Revista Forense 346:113, 1999; Fernando Facury Scaf (org.), Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição brasileira de 1988, 2003; Ordem dos Advogados do Brasil, 15 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988: comemoração: palestras: Carmen Lúcia Antunes Rocha, Paulo Bonavides, José Afonso da Silva; Paulo Roberto Soares de Mendonça, A Constituição de 1988, a globalização e o futuro, Revista de EMERJ 25:22, 2004. 30 V. Luís Roberto Barroso, Discurso de despedida como Conselheiro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, mimeografado, 2005: “O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana é uma janela privilegiada de onde se avistam imagens de um Brasil real, tristemente real. Atávico, primitivo, violento. O Brasil dos excluídos. O País dos grupos

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mais acidentada, sendo a sua efetivação um dos tormentos da doutrina31 e da jurisprudência32. Nada obstante, houve avanços no tocante à universalização do acesso à educação, apesar de subsistirem problemas graves em relação à qualidade do ensino. Os direitos coletivos e difusos, por sua vez, como a proteção do consumidor e do meio ambiente, disciplinados por legislação específica, incorporaram-se à prática jurisprudencial e ao debate público33. A Federação, mecanismo de repartição do poder político entre a União, os Estados e os Municípios, foi amplamente reorganizada, de extermínio, de ponta a ponta, tolerados, incentivados; da violência policial – mas não de uma violência policial autônoma: a polícia serve os desígnios da sociedade –; o País das chacinas variadas, de índios, de crianças, de pobres em geral; o País do sistema penitenciário sórdido. (...) Desprestigiadas, desequipadas, mal-treinadas e mal-remuneradas, as forças policiais protagonizam, rotineiramente, espetáculos desoladores de truculência. São de triste e recente memória as chacinas do Carandiru, de Eldorado dos Carajás e de Vigário Geral, ocorridas na última década do século XX. E quando estes episódios começavam a se embotar na memória, a chacina de dezenas de pessoas nos Municípios de Queimados e de Nova Iguaçu, menos de um ano atrás, vieram nos lembrar, mais uma vez, que muitos brasileiros são vítimas daqueles que deveriam protegê-los. (...) Mas o Estado brasileiro tem faltado à causa dos direitos humanos não apenas por ação, mas também por omissão. Nas grandes cidades brasileiras, parcela da população encontra-se submetida ao arbítrio do tráfico de drogas. O Estado democrático de direito ainda não alcançou as partes do nosso território onde vivem os mais humildes. A exclusão social não se traduz apenas como privação de direitos econômicos e sociais. Implica também a privação dos direitos mais básicos, como a inviolabilidade do domicílio e a liberdade de locomoção. O que se nega aos favelados brasileiros não é só a igualdade. É também a liberdade, na sua dimensão mais nuclear”. 31 V. Ricardo Lobo Torres, A jusfundamentalidade dos direitos sociais, Revista de Direito da Associação dos Procuradores do novo Estado do Rio de Janeiro 12:1, 2003, e A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In: Ingo Wolfgang Sarlet, Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado, 2003; Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 1998; e Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise, Ajuris 31:103, 2004; Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídidica dos princípios: o princípio da dignidade da pessoa humana, 2002; Andreas Krell, Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha, 2002; Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1990; e Marcos Maselli Gouvêa, O controle judicial das omissões administrativas, 2003; 32 V. Rogério Gesta Leal, A quem compete o dever de saúde no Direito brasileiro? Esgotamento de um modelo institucional, Revista de Direito do Estado 8:91, 2007; e Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, Interesse Público 46:31, 2007. V. o mesmo texto em http://www. migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=52582 e em http://conjur.estadao.com.br/ pdf/estudobarroso.pdf. Sobre o mesmo tema, v. Fátima Vieira Henriques, O direito prestacional à saúde e sua implementação judicial – Limites e possibilidades, mimeografado, dissertação de mestrado, UERJ, 2007; e Fábio César dos Santos Oliveira, Direito de proteção à saúde: efetividade e limites à intervenção do Poder Judiciário, Revista dos Tribunais 865:54, 2007. 33 Questões envolvendo escolhas difíceis entre bens jurídicos protegidos pela Constituição, como o desenvolvimento nacional, de um lado, e a preservação do meio ambiente, de outro, estiveram presentes na imprensa e nos tribunais, como a transposição do Rio São Francisco e a construção de usinas hidroelétricas na Amazônia.

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superando a fase do regime de 1967-69, de forte concentração de atribuições e receitas no Governo Federal. Embora a União tenha conservado ainda a parcela mais substantiva das competências legislativas, ampliaram-se as competências político-administrativas de Estados e Municípios, inclusive com a previsão de um domínio relativamente amplo de atuação comum dos entes estatais. A partilha das receitas tributárias, de outra parte, embora um pouco mais equânime do que no regime anterior, ainda favorece de modo significativo a União, principal beneficiária da elevadíssima carga tributária vigente no Brasil. De parte isto, ao longo dos anos, a União ampliou sua arrecadação mediante contribuições sociais, tributo em relação ao qual Estados e Municípios não têm participação, o que colaborou ainda mais para a hegemonia federal. A verdade inegável é que os Estados brasileiros, apesar da recuperação de sua autonomia política, não conseguiram, em sua grande maioria, encontrar o equilíbrio financeiro desejável. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também seguiu, como regra geral, um lógica centralizadora34. O reequacionamento do federalismo no Brasil é um tema à espera de um autor35. A nova Constituição, ademais, reduziu o desequilíbrio entre os Poderes da República, que no período militar haviam sofrido o abalo da hipertrofia do Poder Executivo, inclusive com a retirada de garantias e atribuições do Legislativo e do Judiciário. A nova ordem restaura e, em verdade, fortalece a autonomia e a independência do Judiciário, assim como amplia as competências do Legislativo. Nada obstante, a Carta de 1988 manteve a capacidade legislativa do Executivo, não mais através do estigmatizado decreto-lei, mas por meio das medidas provisórias. A Constituição, juntamente com suas emendas, contribuiu, também, para a melhor definição do papel do Estado na economia, estabelecendo como princípio fundamental e setorial a livre iniciativa, ao lado da valorização do trabalho. A atuação direta do Estado, assim na prestação dos serviços públicos (diretamente ou por delegação), como na exploração de atividades econômicas, recebeu tratamento sistemático adequado. 34

O STF exige que os Estados-membros observem o modelo federal e o princípio da simetria na maior parte dos temas relevantes, aí incluídos, por exemplo, o processo legislativo e as regras de aposentadoria. 35 V. Luís Roberto Barroso, A derrota da federação. O colapso financeiro de Estados e Municípios. In: Temas de direito constitucional, v. I, 2002, p. 141 e s.

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2.5.2 Algumas circunstâncias O processo constituinte teve como protagonista uma sociedade civil que amargara mais de duas décadas de autoritarismo. Na euforia – saudável euforia – de recuperação das liberdades públicas, a constituinte foi um notável exercício de participação popular. Nesse sentido, é inegável o seu caráter democrático. Mas, paradoxalmente, essa abertura para todos os setores organizados e grupos de interesse fez com que o texto final expressasse uma vasta mistura de reivindicações legítimas de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, reservas de mercado e ambições pessoais. A participação ampla, os interesses múltiplos e a já referida ausência de um anteprojeto geraram um produto final heterogêneo, com qualidade técnica e nível de prevalência do interesse público oscilantes entre extremos. Um texto que, mais do que analítico, era casuístico36, prolixo e corporativo37. Esse defeito o tempo não curou: muitas das emendas, inclusive ao ADCT, espicharam ainda mais a carta constitucional ao longo dos anos38. Outra circunstância que merece ser assinalada é a do contexto histórico em que se desenrolaram os trabalhos constituintes. Após muitos anos de repressão política, o pensamento de esquerda finalmente podia se manifestar livremente, tendo se formado inúmeros 36

Para uma visão crítica severa nessa matéria, v. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, A revisão constitucional brasileira, 1993, p. 5-6; e, tb., Organizações sociais de colaboração (descentralização social e Administração Pública não-estatal), Revista de Direito Administrativo 210:184. 37 Luís Roberto Barroso, Dez Anos da Constituição de 1988 (foi bom para você também?), Revista Forense 346:113, 1999, p. 117-8: “A Constituição de 1988 convive com o estigma, já apontado acima, de ser um texto excessivamente detalhista, que em diversos temas perdeuse no varejo das miudezas – seja no capítulo da Administração Pública, como no título da ordem tributária ou no elenco de mais de 70 artigos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para citar apenas alguns exemplos. Não escapou, tampouco, do ranço do corporativismo exacerbado, que inseriu no seu texto regras específicas de interesse de magistrados, membros do Ministério Público, advogados públicos e privados, polícias federal, rodoviária, ferroviária, civil, militar, corpo de bombeiros, cartórios de notas e de registros, que bem servem como eloqüente ilustração”. 38 Em prática singularíssima, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi tendo novos artigos e disposições acrescidos por emendas constitucionais, passando de 70 para 89 artigos (o art. 89 foi acrescentado pela EC nº 38, de 2002), sendo que muitos deles tiveram sua redação alterada igualmente por emenda (a EC nº 56, de 2007, prorrogava prazo previsto no art. 76 do ADCT). Sobre o ponto, v. Oscar Dias Corrêa, Os 15 anos da Constituição de 1988 (breves anotações), Revista da EMERJ 6:15, 2003, p. 19: “E foi o que se viu: o ADCT, ao invés de servir, como usual, de roteiro à passagem do regime velho para o novo, normas de transição, na verdade se transformou em espaço que passou a recolher todas as normas não transitórias que não encontrassem lugar no texto vigente, e servissem às conveniências da hora”.

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partidos políticos de inspiração comunista, socialista, trabalhista e social-democrata. Mais organizados e aguerridos, os parlamentares dessas agremiações predominaram amplamente nos trabalhos das comissões, até a reação, de última hora, já narrada, das forças de centro e de direita. Ainda asim, o texto aprovado reservava para o Estado o papel de protagonista em áreas diversas, com restrições à iniciativa privada e, sobretudo, ao capital estrangeiro, aí incluídos os investimentos de risco. Pois bem: um ano após a promulgação da Constituição, caiu o muro de Berlim e começaram a desmoronar os regimes que praticavam o socialismo real. Simultaneamente, a globalização, com a interconexão entre os mercados e a livre circulação de capitais, impôs-se como uma realidade inelutável. Pelo mundo afora, ruíam os pressupostos estatizantes e nacionalistas que inspiraram parte das disposições da Constituição brasileira. 2.5.3 Alguns revezes A Constituição brasileira, como assinalado, consubstanciou-se em um texto excessivamente detalhista e que, além disso, cuida de muitas matérias que teriam melhor sede na legislação infraconstitucional. De tais circunstâncias, decorrem conseqüências práticas relevantes. A primeira delas é que a constitucionalização excessiva dificulta o exercício do poder político pelas maiorias, restringindo o espaço de atuação da legislação ordinária. Em razão disso, diferentes governos, para implementar seus programas, precisaram reunir apoio de maiorias qualificadas de três quintos, necessárias para emendar a Constituição, não sendo suficientes as maiorias simples próprias à aprovação da legislação ordinária. O resultado prático é que, no Brasil, a política ordinária – i.e., a implementação da vontade das maiorias formadas a cada época – se faz por meio de emendas constitucionais, com todo o incremento de dificuldades que isso representa. Chega-se, assim, sem surpresa, à segunda conseqüência da constitucionalização excessiva e minuciosa: o número espantoso de emendas, que antes do vigésimo aniversário da Carta já somavam 56. Houve modificações constitucionais para todos os gostos e propósitos: limitação da remuneração de parlamentares, restrições à criação de Municípios, realização de reformas econômicas, administrativas, previdenciárias, do Judiciário, prorrogação de tributos provisórios, des43

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vinculação de receitas, atenuação da imunidade parlamentar formal, contenção das medidas provisórias, redução do mandato presidencial, admissão da reeleição e daí por diante. Há risco de se perder o fôlego, a conta e a paciência. Tudo isso sem qualquer perspectiva de inversão de tendência. Naturalmente, essa disfunção compromete a vocação de permanência da Constituição e o seu papel de simbolizar a prevalência dos valores duradouros sobre as contingências da política.

2.6 O desempenho das instituições Cabe, antes de concluir, fazer uma breve anotação sobre aspectos relevantes associados ao funcionamento dos três Poderes ao longo dos vinte anos de vigência da Constituição. São examinadas, ainda que brevemente, algumas das mudanças constitucionais que repercutiram sobre a atuação de cada um deles, bem como o desempenho concreto de seus papéis constitucionais pelo Executivo, Legislativo e Judiciário. No tocante ao Poder Executivo, o plebiscito previsto no art. 2º do ADCT, realizado em 21 de abril de 1993, manteve, por significativa maioria, o sistema presidencialista. Dentre as emendas constitucionais aprovadas, merecem registro a que reduziu o mandato presidencial de cinco para quatro anos39, a que passou a admitir a reeleição40 e a que criou o Ministério da Defesa, marco simbólico relevante da submissão do poder militar ao poder civil41. As medidas provisórias, concebidas como um mecanismo excepcional de exercício de competência normativa primária pelo Executivo, tornaram-se instrumento rotineiro de o Presidente legislar. A disfunção só veio a ser coibida, ainda que não integralmente, com a edição da Emenda Constitucional nº 32, de 12.09.200142. Apesar da redemocratização, não se superou integralmente o presidencialismo hegemônico da tradição brasileira, que se manifesta em domínios diversos, inclusive e notadamente, no poder de contingenciar verbas orçamentárias. 39 40

Emenda Constitucional de Revisão nº 5, de 9.06.1994. Emenda Constitucional nº 16, de 5.06.1997, que passou a permitir a reeleição, para um único período subseqüente, do Presidente, governadores e prefeitos. 41 Emenda Constitucional nº 23, de 3.09.1999. 42 A EC nº 32, de 2001, prevê a vigência da medida provisória pelo prazo máximo de 60 dias, prorrogáveis uma única vez, por igual período, com trancamento da pauta até que haja deliberação sobre ela por parte de cada casa do Congresso Nacional.

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Quanto ao Poder Legislativo, cabe assinalar a recuperação de suas prerrogativas após a Constituição de 1988, embora permaneça visível o decréscimo de sua importância na produção de leis. De fato, além das medidas provisórias já referidas, a maior parte dos projetos relevantes resultaram de iniciativa do Executivo. Nesse cenário, a ênfase da atuação do Congresso Nacional deslocou-se para a fiscalização dos atos de governo e de administração. O principal instrumento dessa linha têm sido as comissões parlamentares de inquérito (CPIs). Por outro lado, um problema estrutural da representação política no Brasil é a desproporcionalidade da composição da Câmara dos Deputados. De fato o número máximo de setenta deputados e o mínimo de sete, determinados pelo art. 45, § 1º da Constituição, provoca a sobre-representação de alguns Estados e a sub-representação de outros43. Por fim, a Emenda Constitucional nº 35, de 21.12.2001, introduziu modificação substantiva no regime jurídico da imunidade parlamentar, deixando de exigir prévia licença da casa legislativa para a instauração de processo criminal contra parlamentar. O Poder Judiciário, por sua vez, vive um momento de expressiva ascensão política e institucional. Diversas são as causas desse fenômeno, dentre as quais se incluem a recuperação das garantias da magistratura, o aumento da demanda por justiça por parte de uma sociedade mais consciente, a criação de novos direitos e de novas ações pela Constituição, em meio a outros fatores. Nesse cenário, ocorreu entre nós uma expressiva judicialização das relações sociais e de questões políticas. O Supremo Tribunal Federal (STF) ou outros órgãos judiciais têm dado a últma palavra em temas envolvendo separação de Poderes, direitos fundamentais, políticas públicas, regimes jurídicos dos servidores, sistema político e inúmeras outras questões, algumas envolvendo o dia-a-dia das pessoas, como mensalidade de planos de saúde ou tarifa de serviço públicos. Essa expansão do papel do Judiciário, notadamente do STF, fez deflagrar um importante debate na teoria constitucional acerca da legitimidade democrática dessa atuação.

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Sobre a questão, v. Vandré Augusto Búrigo, Sistema eleitoral brasileiro – A técnica de representação proporcional vigente e as propostas de alteração: breves apontamentos, RIL 39:177, 2002; e Fabiano Santos, Instituições eleitorais e desempenho do presidencialismo no Brasil, Dados 42, 1999, p. 8.

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2.7 Conclusão 2.7.1 O que ficou por fazer A comemoração merecida dos vinte anos da Constituição brasileira não precisa do falseamento da verdade. Na conta aberta do atraso político e da dívida social, ainda há incontáveis débitos. Subsiste no país um abismo de desigualdade, com recordes mundiais de concentração de renda e deficit dramático em moradia, educação, saúde, saneamento. A lista é enorme. Do ponto de vista do avanço do processo civilizatório, também estamos para trás, com índices inaceitáveis de corrupção, deficiências nos serviços públicos em geral – dos quais dependem, sobretudo, os mais pobres – e patamares de violência que se equiparam aos de países em guerra44. Por outro lado, o regime de 1988 não foi capaz de conter a crônica voracidade fiscal do Estado brasileiro, um dos mais onerosos do mundo para o cidadão-contribuinte. Sem mencionar que o sistema tributário constitui um cipoal de tributos que se superpõem, cuja complexidade exige a manutenção de estruturas administrativas igualmente custosas. Há, todavia, uma outra falha institucional, que, por sua repercussão sobre todo o sistema, compromete a possibilidade de solução adequada de tudo o mais. Nos vinte anos de sua vigência, o ponto baixo do modelo constitucional brasileiro, e dos sucessivos governos democráticos, foi a falta de disposição ou de capacidade para reformular o sistema político. No conjunto de desacertos das últimas duas décadas, a política passou a ser um fim em si mesma, um mundo à parte, desconectado da sociedade, visto ora com indiferença, ora com desconfiança. As repetidas crises produzidas pelas disfunções do financiamento eleitoral, pelas relações oblíquas entre Executivo e parlamentares, bem como pelo exercício de cargos públicos para be44

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V. Ilona Szabó de Carvalho e Pedro Abramovay, O custo da violência. In: O Globo, 14 mar. 2008, p. 7, Opinião. À época em que publicaram o artigo, os autores eram, respectivamente, Coordenadora do Programa de Segurança Humana do Viva Rio e Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. Ao comentarem a Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, averbaram: “O país perde cerca de 50.000 brasileiros por ano, vítimas de homicídio. Segundo o IPEA, as perdas econômicas para a nação com a violência são de mais de 90 bilhões de reais por ano. A maior concentração de violência ocorre nas periferias das grandes cidades, locais de enorme desagregação social, sobretudo em conseqüência da ausência de políticas públicas consistentes para essas regiões”.

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nefício próprio têm trazido, ao longo dos anos, uma onda de ceticismo que abate a cidadania e compromete sua capacidade de indignação e de reação. A verdade, contudo, é que não há Estado democrático sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem parlamento atuante e investido de credibilidade. É preciso, portanto, reconstruir o conteúdo e a imagem dos partidos e do Congresso, assim como exaltar a dignidade da política. O sistema político brasileiro, por vicissitudes diversas, tem desempenhado um papel oposto ao que lhe cabe: exacerba os defeitos e não deixa florescer as virtudes. É preciso desenvolver um modelo capaz de resgatar e promover valores como legitimidade democrática, governabilidade e virtudes republicanas45, produzindo alterações profundas na prática política46. Há inúmeras propostas na matéria, apesar da pouca disposição para o debate. Uma delas defende para o Brasil, como sistema de governo, o semipresidencialismo, nos moldes de França e Portugal; como sistema eleitoral, a fórmula do voto distrital misto, que vigora, por exemplo, na Alemanha; e, como sistema partidário, um modelo fundado na fidelidade e na contenção da pulverização dos partidos políticos47.

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A expressão “virtudes republicanas” é aqui utilizada para designar a preservação da integridade pessoal dos agentes públicos e a observância de padrões éticos de gestão da coisa pública, que levem à promoção do interesse público, e não dos interesses particulares dos governantes ou de terceiros identificados. Tais virtudes se expressam nos princípios constitucionais da moralidade, da impessoalidade e da finalidade pública na ação política e administrativa. A expressão também é freqüentemente empregada, no debate político, para denotar o exercício consciente e ativo da cidadania. 46 Com efeito, é preciso: 1. em relação à legitimidade democrática: a) propiciar maior identificação entre sociedade civil e classe política, com aumento da coerência entre discurso e prática, e maior visibilidade e controlabilidade da atividade parlamentar; b) conferir maior autenticidade programática aos partidos políticos, fomentando a fidelidade e mitigando a pulverização partidária; c) reduzir a influência do poder econômico no processo eleitoral, com o barateamento das campanhas, a limitação dos gastos e, eventualmente, o financiamento público; 2. em relação à governabilidade: a) facilitar a formação de maiorias de sustentação política do governo; b) institucionalizar as relações entre Executivo e Legislativo, com predomínio dos partidos e não do poder individual atomizado de cada parlamentar; c) criar mecanismos de superação de crises políticas, que impeça a longa agonia de governos que perderam sua base de apoio no parlamento e na sociedade; 3. em relação às virtudes republicanas: a) eliminar o poder de barganha individual de cada parlamentar, gerador de mecanismos de troca de favores por votos; b) tornar o debate político mais programático e menos clientelista; c) esvaziar a necessidade de loteamento de órgãos públicos e de distribuição de cargos em troca de apoio. 47 V. Luís Roberto Barroso, A Reforma Política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil, Revista de Direito do Estado 3:287, 2006.

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Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil

2.7.2 O que se deve celebrar O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. O imaginário social contemporâneo vislumbra nesse arranjo institucional, que procura combinar Estado de direito (supremacia da lei, rule of the law, Rechtsstaat) e soberania popular, a melhor forma de realizar os anseios da modernidade: poder limitado, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, justiça social, tolerância e – quem sabe? – até felicidade. Para evitar ilusões, é bom ter em conta que as grandes conquistas da humanidade levam um tempo relativamente longo para passarem do plano das idéias vitoriosas para a plenitude do mundo real. O curso do processo civilizatório é bem mais lento do que a nossa ansiedade por progresso social. O rumo certo, porém, costuma ser mais importante do que a velocidade. O modelo vencedor chegou ao Brasil com atraso, mas não tarde demais, às vésperas da virada do milênio. Os últimos vinte anos representam, não a vitória de uma Constituição específica, concreta, mas de uma idéia, de uma atitude diante da vida. O constitucionalismo democrático, que se consolidou entre nós, traduz não apenas um modo de ver o Estado e o Direito, mas de desejar o mundo, em busca de um tempo de justiça, fraternidade e delicadeza. Com as dificuldades inerentes aos processos históricos complexos e dialéticos, temos nos libertado, paulatinamente, de um passado autoritário, excludente, de horizonte estreito. E vivido as contradições inevitáveis da procura do equilíbrio entre o mercado e a política, entre o privado e o público, entre os interesses individuais e o bem coletivo. Nos duzentos anos que separam a chegada da família real e o vigésimo aniversário da Constituição de 1988, passou-se uma eternidade.

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3 O estado da arte da interpretação do direito nos vinte anos da Constituição do Brasil Lenio Luiz Streck*

3.1 Da justeza dos nomes do crátilo de platão à linguagem como condição de possibilidade: por que o direito estaria imune às transformações da filosofia?

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á uma angústia que assombra o homem desde a aurora da civilização. Afinal, como atravessar esse “abismo gnosiológico” que separa o homem das coisas? Como se dão nome às coisas? Por que algo é? Desde o início, houve um compromisso da filosofia com a verdade; a filosofia sempre procurou esse olhar que desvendasse o que as coisas são. Talvez a obra que melhor simbolize essa procura angustiante seja Crátilo, escrito por Platão no ano de 388 A .C. Efetivamente, trata-se do primeiro grande livro de filosofia da linguagem. Nele, além de Sócrates, há mais dois personagens: Hermógenes, que representa os sofistas, e Crátilo, que representa Heráclito (présocrático que, justamente com Parmênides, inaugura a discussão acerca do “ser” e do “pensar”, e do logos superando o mythos). Crátilo é um tratado acerca da linguagem e, fundamentalmente, uma discussão crítica sobre a linguagem. São contrapostas duas teses/ posições sobre a semântica: o naturalismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza (o logos está na physis), tese defendida no diálogo por Crátilo,1 e o convencionalismo, posição sofística defendida por * Doutor em Direito do Estado (UFSC); Pós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica (Universidade de Lisboa); Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito

O estado da arte da interpretação do direito nos vinte anos da Constituição do Brasil

Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras com as coisas. O Crátilo representa o enfrentamento de Platão à sofística. Os sofistas – que podem ser considerados os primeiros positivistas – defendiam o convencionalismo, isto é, de que entre palavras e coisas não há nenhuma ligação/relação. Claro que, com isso, a verdade deixava de ser prioritária. O discurso passava a depender de argumentos persuasivos. A palavra (ou os signos) não tinham as características, por exemplo, a elas atribuídas, já no século XX, por Sausure,2 pelas quais, embora admitida a convencionalidade (arbitrariedade), já no momento seguinte essa relação torna-se (i)mutável (isto é, embora a imutabilidade fosse um atributo necessário ao funcionamento da linguagem, esta também teria que sofrer mutações), além da linearidade. Os sofistas provocaram, assim, no contexto da Grécia antiga, um rompimento paradigmático, levando “a cabo una revolución espiritual en sentido estricto, desplazando el eje de la reflexión filosófica desde la physis y el cosmos hasta el hombre y hasta lo que concierne la vida del hombre en tanto que miembro de una sociedad. Se comprende entonces que los temas dominantes de la sofística fuesen la ética, la política, la retórica, el arte, la lengua, la religión, la educación, es decir lo que hoy llamaríamos la cultura del hombre. Por lo tanto, cabe

(Mestrado e Doutorado) da UNISINOS-RS e UNESA-RJ; Professor Visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Procurador de Justiça-RS; membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional; membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Instituto dos Advogados do Brasil; presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica-RS-MG. 1 Concordo com Garcia-Roza quando diz que Platão atribui ao personagem Crátilo um ponto de vista sobre a adequação das palavras às coisas que não expressa adequada e suficientemente o pensamento de Heráclito. Com efeito, se os pré-socráticos – mormente Heráclito – descobriram o ser, e Platão e Aristóteles o esconderam, a posição de Crátilo não pode corresponder, stricto sensu, à de Heráclito. Cfe. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 67. Frise-se, ainda, que, em Heráclito, a dualidade physis e logos é mantida numa unidade de tensão, sendo o logos aquilo que originariamente desnuda o ser e o sentido. Para tanto, ver: CORETH, Emerech. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo: Editora da USP, 1973, p. 27, citando BOEDER, H. Grund und Gegenwart als Frageziel der frühgriechischen Philosophie. Den Haag: M. Nijhoff, 1962, principalmente p. 73 e segs, e LOHMANN, J. Zur Begegnung von griechischen und frühgriechichen Logosdenken. Lexis IV, Lahr i. B., 1954. 2 Recorde-se que o signo, para Saussure, possui quatro características: arbitrariedade, imutabilidade, mutabilidade e linearidade.

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afirmar con exactitud que gracias a los sofistas se inicia el período humanista de la filosofía antigua”.3 Por isso, Platão é o primeiro a sair a campo para um enfrentamento que, mais do que filosófico, tem um forte componente político. Tomo Platão – e seu “Crátilo” (e seu contexto político) – para demonstrar essa busca pelo conhecimento. Afinal, ali, quatro séculos antes da era cristã, já se discutia a “justeza dos nomes”. Isto é, quais as condições de possibilidade para que os objetos tenham determinados nomes e não outros? Como funciona a relação do sujeito com o objeto? Qual é o papel da linguagem? Verdade ou método? Essas perguntas atravessam os séculos, experimentando diferentes respostas, representadas por diferentes “princípios epocais”, que igualmente fizeram a longa travessia de duas metafísicas, chegando, nesta quadra do tempo, ao universo de posturas e teorias filosóficas que representam as posições hoje consideradas como pós-metafísicas. Cada época organizou sua concepção de fundamento.4 Na metafísica clássica, o eidos platônico, a ousia aristotélica e o ens creatur aquiniano; na metafísica moderna, o cogito descartiano, o eu transcendental kantiano, o eu absoluto hegeliano e o último princípio epocal dessa era, a vontade do poder de Nietzsche. A era da técnica – novo princípio epocal – abandona qualquer possibilidade de conteudística; é a assunção do procedimento. Não há modo de ser no mundo. No campo do direito, tais questões permanece(ra)m difusas, em um misto de objetivismo e subjetivismo. Se a primeira “etapa” do linguistic turn foi recepcionada pelas concepções analíticas do direito, o mesmo não se pode dizer com aquilo que se pode denominar de “giro-linguístico-ontológico”, proporcionado pela introdução do 3

Cfe. REALE, Giovane; ANTISERI, Dario. História del pensamento filosófico y científico. I - Antigüedad y Edad Media. Barcelona: Editorial Herder, 1995, p. 75, que lembram, ainda, que, durante muito tempo, os historiadores da filosofia aceitaram de forma acrítica os juízos de Platão e Aristóteles acerca dos sofistas. Conseqüentemente, sua importância foi infravalorizada, sendo considerada como um componente da decadência do pensamento filosófico grego. Somente em nosso século foi possível efetuar uma revisão mais sistematizada dos juízos sofísticos, com a conseqüente revalorização radical desse movimento, do ponto de vista histórico e filosófico. Atualmente, todos compartem das conclusões de W. Jaeger, no sentido de que os sofistas são um fenômeno tão necessário como Sócrates e Platão; mais ainda, estes, sem aqueles, resultam de todo impensáveis. 4 Trata-se do ser em vista da fundamentação do ente. Por isso, cada época possui o seu fundamento. Cf. HEIDEGGER, Martin. Tempo e Ser. Tradução de Ernildo Stein. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 2005, pp. 256-257

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mundo prático na filosofia. Da epistemologia caminhamos para a hermenêutica5 (fundada na ontologia fundamental). Em Heidegger e Wittgenstein essas questões ficam extremamente bem delineadas, embora sob perspectivas diferenciadas. A utilização da filosofia hermenêutica e da hermenêutica filosófica dá-se na exata medida da ruptura paradigmática introduzida principalmente por Heidegger (e também por Wittgenstein) nos anos 20-30 do século XX, a partir da introdução do mundo prático na filosofia, circunstância que aproxima os dois filósofos. Portanto, mormente a partir de Ser e Tempo, mais do que um linguistic turn, o que ocorreu foi um giro linguístico-ontológico. Essa alteração radical na estrutura do pensamento proporcionou a ruptura com os paradigmas metafísicos clássico e moderno. Veja-se que Heidegger, buscando superar Dilthey e Husserl, desloca a questão da hermenêutica em direção da ontologia (a faticidade, o modo-deser-no-mundo), deixando para trás o “plano epistemológico” (nível cognitivo e perceptivo em que se moviam Husserl e Dilthey). E com isso se supera a metodologia como “uma terceira coisa” com objetivo de dar certeza ao conhecimento. Essa autêntica “revolução copernicana” não foi apenas relevante para o direito, mas para a totalidade da estrutura do pensamento da humanidade. A partir daí, já não se fala em fundamentum inconcussum – eis a presença dos princípios epocais – e, sim, no compreender e nas suas condições de possibilidade. Nesse sentido, há uma pergunta que se torna condição de possibilidade: por que o direito estaria “blindado” às influências dessa revolução paradigmática? Aliás, talvez por assim se pensar – e a dogmática jurídica e até mesmo algumas posturas que se pretendem críticas apostam na presença da filosofia no direito tão somente como “capa de sentido” – é que o direito continua até hoje refém, de um lado, do 5

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Não é mais possível pensar – e a assertiva é de Rorty – que existe um conjunto especial de termos nos quais todas as contribuições à conversação deveriam ser colocadas. Para a epistemologia, ser racional é encontrar o conjunto apropriado de termos para os quais todas as contribuições deveriam ser traduzidas, se for necessário que a concordância se torne possível. A epistemologia encara os participantes como unidos no que Michael Oakeshott (On the Character of a Modern European State) chama uma universitas – um grupo unido por interesses mútuos para alcançar um fim comum. A hermenêutica os encara como unidos no que ele chama de societas – pessoas cujos caminhos através da vida se reuniram, unidas antes pela civilidade que por uma meta comum e muito menos por um terreno comum. Cf. RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 314.

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objetivismo e, de outro, do solipsismo próprio da filosofia da consciência. Ou seria possível conceber o direito isolado das transformações ocorridas na filosofia (da linguagem)? 6 É preciso compreender que o direito, na medida em que não está imune/blindado contra as transformações ocorridas no campo filosófico, é um fenômeno inserido em uma intersubjetividade racional (chamada por Herbert Schnädelbach de “razão hermenêutica”) e que deve ser sempre primeiramente produzida e garantida em processos de compreensão. Por isso, “compreender sentido” não é apenas uma conseqüência, mas o fundamento da própria razão. Visto assim, o problema hermenêutico não é apenas universal, mas, ao mesmo tempo, fundamental, isto é, sua solução já reside no âmbito da constituição de entendimento e razão e, desse modo, no campo avançado do problema do conhecimento, que Kant acreditava poder abordar com os meios dos conceitos do entendimento e da razão garantidos. Se, como tal, não existe razão sem compreensão de sentido, então, o problema do sentido se situa sistematicamente antes do problema do conhecimento, pois devem ser pressupostos já como resolvidos, em todas as produções de conhecimento, os problemas da compreensão hermenêutica.7 No campo do conhecimento do direito, a questão é saber, de efetivo, de que modo um processo lógico-argumentativo pode “acontecer” sem a précompreensão. É possível interpretar para depois compreender? Por que isolar o conhecimento jurídico do fenômeno da compreensão? Ora – e o socorro vem novamente de Schnädelbach –, o peso filosófico do tema “compreender” reside no fato de que, sob as condições do historicismo emergente, em sua forma uniformizalizada e fundamentalizada, ele toca a auto-compreensão da própria razão e, com

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Penso, assim, que os críticos (refiro-me especialmente àqueles advindos da filosofia e da sociologia) que olham de soslaio o crescimento do uso da ontologia fundamental no direito deveriam observar melhor esse fenômeno e, quem sabe, implementar pesquisas na área do direito, assim como cada vez mais os juristas fazem pesquisas na área da filosofia (não para transformar a filosofia em um discurso otimizador do direito, mas como condição de possibilidade; por isso, a expressão que cunhei “filosofia no direito” e não “do direito”). Afinal, o direito é um fenômeno bem mais complexo do que se pensa. Em definitivo: o direito não é uma mera racionalidade instrumental. Isso implica reconhecer que fazer filosofia no direito não é apenas pensar em levar para esse campo a analítica da linguagem ou que os grandes problemas do direito estejam na mera interpretação dos textos jurídicos. 7 Cf. SCHNÄDELBACH, Herbert. Compreender. Epílogo. In: STEIN, Ernildo. Racionalidade e Existência. O ambiente hermenêutico e as ciências humanas. Ijuí: Unijuí, 2008, pp. 127 e segs.

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isso, obriga a ser levada em consideração esta auto-compreensão em qualquer teoria da razão – não apenas na teoria da razão hermenêutica: a transcendentalização da razão histórico-hermenêutica significa, ao mesmo tempo, uma historicização da filosofia transcendental. Em síntese, o que é nosso objeto não pode ser pensado independentemente do modo como nos aparece. Este é o “teorema” fundante do compreender que se insere na revolução copernicana representada pela inserção do mundo prático na filosofia. Aplicado à problemática da compreensão, isso tudo quer significar que as condições históricas, sob as quais nosso modo de compreender possui/adquire um significado constitutivo para aquilo que nós cada vez compreendemos e para o fato de que não há razão para excluir quaisquer condições de compreensão – sejam as da ratio, da intuição e da inspiração – criam uma situação teorética nova, na medida em que qualquer penetração no sentido transcendental de nossas condições históricas de compreensão do sentido como tal atinge não apenas o elemento histórico e, com isso, qualquer situação de comunicação.8 À margem de tais transformações, a hermenêutica jurídica predominante no universo jurídico de terrae brasilis (doutrina e na jurisprudência) continua refém de um pensamento que aposta, de um modo ou de outro, numa espécie de “construção” do seu objeto de conhecimento ou de teorias dualistas que acreditam na possibilidade de o direito ser pensado independentemente do nosso modo próprio de ser no mundo, no qual o fenômeno (jurídico) nos aparece. Por tais razões, assume absoluta relevância o rompimento paradigmático na hermenêutica proporcionada por Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer, exatamente pela circunstância de que a hermenêutica não mais será uma “questão de método”, passando a ser filosofia. E isso faz a diferença. Com efeito, a hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do direito deita raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao processo interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto é, primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar). A impossibilidade dessa cisão – tão bem denunciada por Ga8

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Idem, ibidem.

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damer – implica a impossibilidade de o intérprete “retirar” do texto “algo que o texto possui-em-si-mesmo”, numa espécie de Auslegung, como se fosse possível reproduzir sentidos; ao contrário, para Gadamer, fundado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung). Mais ainda, essa impossibilidade da cisão – que não passa de um dualismo metafísico – afasta qualquer possibilidade de fazer “ponderações em etapas”, circunstância, aliás, que coloca a(s) teoria(s) argumentativa(s) como refém(ns) do paradigma do qual tanto tentam fugir: a filosofia da consciência. O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes (Horizontenverschmelzung), porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos. Volta-se, como um eterno retorno, à questão apontada anteriormente a partir de Schnädelbach: o problema do sentido do direito se situa antes do problema do conhecimento (o jurista não “fabrica” o seu objeto do conhecimento); a compreensão, pela sua “presença antecipada”, é algo que não dominamos; o sentido não está à nossa disposição. Por isso é que não interpretamos para compreender e, sim, compreendemos para interpretar. A interpretação, como bem diz Gadamer, é a explicitação do compreendido. Com isso, são colocados em xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento. Se a filosofia é hermenêutica (Heidegger) e a hermenêutica é filosófica (Gadamer), é porque estão superados os dualismos metafísicos que atravessaram dois milênios. Dito de outro modo, a hermenêutica assim compreendida vem para romper com a relação sujeito-objeto, representando, assim, uma verdadeira revolução copernicana. Em outras palavras, coloca em xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento. E isso tem conseqüências. Sérias.

3.2 A hermenêutica como uma questão definitivamente paradigmática Embora o ceticismo de parcela considerável da comunidade jurídica, é impossível negar as conseqüências da viragem lingüísticoontológica para a interpretação do direito. Está-se a tratar de uma ruptura paradigmática que supera séculos de predomínio do esque55

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ma sujeito-objeto. Passamos, pois, do fundamentar para o compreender. Afinal, de terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, a linguagem passa a condição de condição de possibilidade. Para Gadamer, não faz sentido pensar em uma ligação pura entre o conhecimento e o objeto a ser conhecido, através de uma linguagem com papel meramente instrumental. Palavras e conceitos não são instrumentos à disposição de um sujeito cognoscente. É nesse sentido que a hermenêutica filosófica, para além dos objetivismos e subjetivismos, abre um novo espaço para a compreensão do direito e tudo o que representa a revolução copernicana proporcionada pelo novo constitucionalismo. Em outras palavras, essa segunda revolução (a superação do papel instrumentalista da linguagem) é condição de possibilidade para o acontecer (Ereignen) da primeira (o novo constitucionalismo no interior do qual o direito assume um elevado grau de autonomia e proporciona uma co-originariedade entre direito e moral). É exatamente nesse contexto que exsurgem as possibilidades da superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. O direito assume um caráter marcadamente hermenêutico, em conseqüência de um efetivo crescimento no grau de deslocamento do pólo de tensão entre os poderes de Estado em direção à jurisdição (constitucional), diante da impossibilidade de o legislativo (a lei) poder antever todas as hipóteses de aplicação e do caráter compromissório da Constituição, com múltiplas possibilidades de acesso à justiça. Assim, na medida em que o direito é uma ciência prática, o centro da discussão inexoravelmente sofre um deslocamento em direção ao mundo prático, que, até o advento do Estado Democrático de Direito, estava obnubilado pelas conceitualizações metafísico-positivistas, sustentadas por uma metodologia com evidentes matizes metafísico-dualísticorepresentacionais. Definitivamente, a realidade, os conflitos sociais e a cotidianidade das práticas dos atores sociais não estavam no rol das preocupações do positivismo e de suas derivações. Com efeito, em um universo que calca o conhecimento em um fundamento último e no qual a “epistemologia” é confundida com o próprio conhecimento (problemática presente nas diversas teorias do discurso e nas perspectivas analíticas em geral), não é difícil constatar que a hermenêutica jurídica dominante no imaginário dos 56

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operadores do direito no Brasil (perceptível a partir do ensino jurídico, da doutrina e das práticas dos tribunais) continua sendo entendida como um (mero) saber “operacional” (talvez por isso os juristas se denominam uns aos outros de “operadores do direito”). Domina, no âmbito do campo jurídico, o modelo assentado na idéia de que “o processo/procedimento interpretativo” possibilita que o sujeito (a partir da certeza-de-si-do-pensamento-pensante, enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance o “exato sentido da norma”, “o exclusivo conteúdo/sentido da lei”, “o verdadeiro significado do vocábulo”, “o real sentido da regra jurídica”, etc. Sem pretender simplificar o problema, é possível dizer que o saber dogmático-jurídico ainda continua refém de uma metodologia que não ultrapassou nem sequer a filosofia da consciência, bastando, para tanto, verificar o papel de protagonista dado ao juiz pelas teorias instrumentais do processo.9 O conjunto de técnicas trazidas pela ex9

Desde Oskar von Büllow – questão que também pode ser vista em Anton Menger e Franz Klein –, a relação publicística está lastreada na figura do juiz, “porta-voz avançado do sentimento jurídico do povo”, com poderes para criar direito mesmo contra legem, tese que viabilizou, na seqüência, a Escola do Direito Livre. Essa aposta solipsista está lastreada no paradigma representacional, que atravessa dois séculos, podendo facilmente ser percebida em Chiovenda, para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz diz ser a vontade concreta da lei; em Carnellutti, de cuja obra se depreende que a jurisdição é “prover”, “fazer o que seja necessário”; também em Couture, para o qual, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista, apostando na escolha dos juízes como um modo de resolver os problemas da justiça; em Liebman, que “libera” o juiz das “amarras da lei” (afinal, ele é o “intérprete qualifiacdo da lei”); já no Brasil, afora a doutrina que atravessou o século XX (v.g., de Carlos Maximiliano a Paulo Dourado de Gusmão), tais questões estão presentes na concepção (escola) instrumentalista do processo, cujos defensores sustentam a existência de “escopos metajurídicos”, pelos quais se torna permitido ao juiz realizar determinações jurídicas, mesmo que não contidas no direito legislado, com o que o aperfeiçoamento do sistema jurídico dependerá da “boa escolha dos juízes” e, conseqüentemente, de seu (“sadio”) protagonismo. Sob outra perspectiva, esse fenômeno se repete no direito civil, a partir da defesa, por parte da maioria da doutrina, do poder interpretativo (criador) dos juízes nas cláusulas gerais, as quais, por conterem “abertura interpretativa”, devem ser preenchidas “ideologicamente” e com amplo “subjetivismo”, justificando, assim, um ativismo judicial de cariz positivista, com nítida aposta discricionária-arbitrária; no processo penal, não passa despercebida a continuidade da força do “princípio” da “verdade real” (o que é isso, ninguém sabe dizer) e do livre convencimento (como justificar essa “liberdade” em pleno Estado Democrático de Direito?); já no direito constitucional, essa perspectiva pode ser constatada pela utilização descriteriosa dos princípios, transformados em “álibis persuasivos” (pan-principiologismo), dividindo-se a interpretação em casos fáceis (easy cases) - para os quais se aplicam as regras mediante a subsunção – e em casos difíceis (hard cases, solucionáveis a partir da intervenção dos princípios, que “são chamados à colação” por intermédio do uso da ponderação, circunstância que, ao fim e ao cabo, favorece e fortalece o velho protagonismo judicial, cujo “ovo da serpente” já estava em Oscar Von Büllow, no longínquo ano de 1868.

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pressiva maioria da doutrina tende a objetificar o direito, impedindo o questionar originário da pergunta pelo sentido do direito em nossa sociedade, soçobrando, com isso, a força normativa da Constituição. Mais ainda e na mesma linha, um exame da doutrina e da jurisprudência do direito aponta para a continuidade do domínio da idéia da indispensabilidade do método ou do procedimento para alcançar a “vontade da norma”, o “espírito de legislador”, a “melhor resposta”, etc. No mais das vezes, continua-se a acreditar que o ato interpretativo é um ato cognitivo (daí a prevalência do sujeito solipsista) e que “interpretar a lei é retirar da norma tudo o que nela contém” (sic) – aqui ainda se está no paradigma anterior (realismo filosófico) –, circunstância que bem denuncia a problemática metafísica nesse campo de conhecimento. Na verdade, é possível perceber certa imbricação – consciente ou inconsciente – dos paradigmas metafísicos clássico e moderno no interior da doutrina brasileira (e estrangeira). Dito de outro modo: de um lado, há o “mito do dado” (metafísica clássica), em que cada coisa tem uma essência e por isso tem um sentido. Pensa-se, assim, que o intérprete é capaz de extrair da coisa sua essência, transportando-a para a sua mente, formando o conceito daquela coisa; daí que, quando o intérprete pensa sobre essa coisa, esta passa a existir como um conceito de caráter universal. Isso ocorre mediante uma abstração: da essência para a universalidade. Desse modo, há um algo que é “dado à nossa mente”, como se pode perceber nas súmulas (e também na construção de conceitos prêt-à-pôrters que recheiam os manuais jurídicos). As súmulas “carregariam”, assim, a substância de determinados casos. Transportada (ess)a essência (substância) para a mente, forma-se o conceito, que é representado pelo enunciado sumular, que passa a ser “o dado”. Conseqüentemente, o intérprete fica assujeitado a esse dado, isto é, a esse conceito de caráter universal (pensemos nisso também na aplicação da repercussão geral pelo STF e da nova Lei dos Recursos – 11.672, pelo STJ). Mas, por mais paradoxal que possa parecer, somos também metafísicos modernos, porque, antes da formação do “mito do dado”, ocorre a primazia do sujeito solipsista. Sua consciência é que instaura o mundo (o conhecimento é uma representação acurada, somente tornada possível por processos mentais especiais e intelegível por intermédio de uma teoria geral da representação, como

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bem lembra Richard Rorty). É desse sujeito (agora, na modernidade, assujeitador) que se “constrói” o objeto do conhecimento (pensemos em Kelsen e as razões pelas quais, para ele, era necessário dualizar “ser e dever ser” e porque a teoria pura só poderia consolidar-se como uma meta-linguagem sobre uma linguagem objeto). Nesse contexto, não é difícil perceber que “filosofia da consciência” (paradigma representacional) e “discricionariedade judicial” (que leva à arbitrariedade) são faces da mesma moeda. Talvez por tudo isso é que, mesmo hoje, em plena era do tão festejado giro-lingüístico-ontológico, de um modo ou de outro, o pensamento jurídico continua a reproduzir o velho debate “formalismorealismo”. Mais ainda, e na medida em que o direito trata de relações de poder, tem-se, na verdade, em muitos casos, uma mixagem entre posturas “formalistas” e “realistas”, isto é, por vezes, a “vontade da lei” e a “essência da lei” devem ser buscadas com todo o vigor; em outras, há uma ferrenha procura pela solipsista “vontade do legislador”; finalmente, quando nenhuma das duas orientações é “suficiente”, põe-se no topo a “vontade do intérprete”, colocando-se em segundo plano os limites semânticos do texto, fazendo soçobrar até mesmo a Constituição. O resultado disso é que aquilo que começa com (um)a subjetividade “criadora” de sentidos (afinal, quem pode controlar a “vontade do intérprete”?, perguntariam os juristas), acaba em decisionismos e arbitrariedades interpretativas, isto é, em um “mundo jurídico” em que cada um interpreta como (melhor) lhe convém...! Enfim, o triunfo do sujeito solipsista, o Selbsüchtiger. Para ser mais simples: de um lado há uma objetividade textual, que torna o intérprete refém de um mundo de essências (pensemos na força das súmulas e dos verbetes jurisprudenciais, por exemplo), e, de outro, uma subjetividade que assujeita o texto, pelo qual o texto jurídico é “apenas a ponta do iceberg” (prestemos, pois, muita atenção: quando um jurista afirma isso, está-se diante de um positivista). Desse modo, a dogmática jurídica (tradicional), enquanto reprodutora de uma cultura estandardizada,10 torna-se refém de um 10

A “indústria” que mais cresce é a dos “manuais”, recheados de “conceitos sem coisas”. O problema alcançou níveis alarmantes no “mercado jurídico” com o surgimento dos “estudos esquemáticos” e “quadros sinópticos” dos Códigos e (até) da Constituição. A pergunta que

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pensamento metafísico, esquecendo-se daquilo que a hermenêutica filosófica representa nesse processo de ruptura paradigmático. Esse esquecimento torna “possível” separar o direito da sociedade, enfim, de sua função social. Dito de outro modo, o formalismo tecnicista que foi sendo construído ao longo de décadas “esqueceu-se” do substrato social do direito e do Estado. E esqueceu-se, fundamentalmente, do grau de autonomia que o direito alcançou no paradigma do Estado Democrático de Direito. deve ser feita é: qual é a importância acadêmico-científica de publicações que meramente reproduzem expressões do senso comum teórico (ou que expressam “contundentes obviedades”), como, por exemplo, que a interpretação doutrinária é aquela realizada por estudiosos do direito, “os quais emitem suas opiniões pessoais (sic) sobre a lei” e que interpretação judicial é aquela realizada pelos aplicadores do direito, ou seja, pelos juízes (sic)? Pergunta-se: hermenêutica jurídica seria algo tão singelo (ou simplista) quanto proferir uma “opinião pessoal”? Alguém duvida que a interpretação judicial é feita pelos juízes e tribunais? Mais: qual é a importância reflexiva contida na assertiva, constante em um importante manual de direito penal (e repetido por outros), de que o desenvolvimento mental incompleto é aquele que ainda não se concluiu e o desenvolvimento retardado é o que não pode chegar à maturidade psíquica? E o que o autor pretenderia dizer com o enunciado “o motivo torpe é aquele que, por sua manifesta repugnância, ofende os princípios da moralidade social”? Ou com a seguinte “proposição”: a torpeza é uma “qualidade” (sic) que ofende a nobreza do espírito humano? Veja-se a definitividade do “conceito” de grave ameaça, caracterizada em um dos manuais mais utilizados nas salas de aula como “o prenúncio de um acontecimento desagradável...” Por que alguém compra um livro jurídico para lhe dizer, por exemplo, que “coisa alheia” no crime de furto “é aquela que não pertence à pessoa” e que “coisa móvel” é aquela que se desloca de um lugar para outro? E o que dizer do enunciado “paralização de atividade econômica é a cessação, temporária ou definitiva, de uma atividade lucrativa”? Por que alguém adquire um livro para dizer que “agressão atual”, na caracterização da legítima defesa, é “aquela que está acontecendo” e a iminente é a “que está por acontecer”? Ou que “quadrilha necessita de quatro pessoas”? Ou, ainda, que “aquele que escreveu a carta não pode ser sujeito ativo do crime de violação de correspondência”? A lista é interminável...! São as obras mais vendidas no “mercado editorial” do direito brasileiro. É o triunfo do senso comum teórico dos juristas, que Warat já denunciava há mais de trinta anos. Vale a pena igualmente conferir citações do tipo que Bolzan de Morais, com rara felicidade, denomina de “citações prenhes de vazio”, como, v.g.: a) “a Constituição autoritária de 1969, no dizer de fulano...” (se o escritor não sabe que a Constituição de 1969 era autoritária, por que, então, deseja ensinar aos outros?); b) para falar do Estado Democrático de Direito, faz-se uma nota de rodapé citando autor que apenas reproduz o artigo 1º da Constituição (se o escritor se esforçasse, encontraria isso na própria Constituição, pois não?); c) ou, ainda, livros, teses e dissertações, contendo pérolas como “as prisões não regeneram, no dizer do eminente jurista sicrano...” ou “novos conceitos” como “sentença vem de sentire...”, fazendo-se alusão a vários juristas...! Talvez a mais “genial” das citações seja a de que “prova para condenar tem de ser robusta, como bem diz o festejado Malatesta” (sic), encontrada em petições, sentenças e acórdãos em todo o território nacional... (veja-se o “alto” teor de “persuasão” do “enunciado”...). Por tais razões é que parcela expressiva desses manuais (refiro-me aos compêndios e similares que apenas reproduzem standards jurídicos à serviço dos cursinhos de preparação para concursos e outros que, com pretensões críticas, acabam reproduzindo, consciente ou inconscientemente, aquilo que pretendem combater) deveria trazer, na quarta capa, uma advertência ao “consumidor”, dando conta dos propósitos do autor...!

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Ou seja, transformado em uma mera instrumentalidade formal, o direito deixou de representar uma possibilidade de transformação da realidade, à revelia do que a própria Constituição estatui: a construção do Estado Democrático (e Social) de Direito. A toda evidência, esta circunstância produzirá reflexos funestos no processo de compreensão que o jurista terá acerca do papel da Constituição, que perde, assim, a sua substancialidade. Mesmo algumas posturas consideradas críticas do direito, embora tentem romper com o formalismo normativista (para o qual a norma é uma mera entidade lingüística), acabam por transferir o lugar da produção do sentido do objetivismo para o subjetivismo; da coisa para a mente/consciência (subjetividade assujeitadora e fundante); da ontologia (metafísica clássica) para a filosofia da consciência (metafísica moderna). É possível, desse modo, perceber uma certa imbricação – consciente ou inconsciente – dos paradigmas metafísicos clássico e moderno no interior da doutrina brasileira (e estrangeira). Daí a minha insistência: trata-se de um problema paradigmático. Os juristas não conseguem alcançar o patamar da viragem lingüístico/ hermenêutica, no interior da qual a linguagem, de terceira coisa, de mero instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de possibilidade. Permanecem, desse modo, prisioneiros da relação sujeitoobjeto (problema transcendental), refratária à relação sujeito-sujeito (problema hermenêutico). Sua preocupação é de ordem metodológica e não ontológica (no sentido heideggeriano-gadameriano). A revolução copernicana provocada pela viragem lingüístico-hermenêutica tem o principal mérito de deslocar o locus da problemática relacionada à “fundamentação” do processo compreensivo-interpretativo do “procedimento” para o “modo-de-ser”.

3.3 De como a superação do método e do esquema sujeitoobjeto não pode significar um “livre atribuir de sentidos”, mas também não pode significar uma “proibição de interpretar” Como decorrência – embora não seja esta a preocupação fulcral destas reflexões –, a ausência de uma adequada compreensão do novo paradigma do Estado Democrático de Direito torna-se fator decisivo

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para a inefetividade da Constituição. Acostumados com a resolução de problemas de índole liberal-individualista e com posturas privatísticas, que ainda comandam os currículos dos cursos jurídicos (e os manuais jurídicos), os juristas (compreendidos lato sensu) não conseguiram, ainda, despertar para o novo. O novo continua obscurecido pelo velho paradigma, sustentado por uma dogmática jurídica entificadora. Dizendo de outro modo: ocorreu uma verdadeira revolução copernicana na filosofia, no direito constitucional e na ciência política, que ainda não foi suficientemente recepcionada pelos juristas brasileiros. Mas, nada do que foi dito pode dar azo a que se diga que a hermenêutica é relativista. Pensar assim seria fazer uma leitura às avessas de Gadamer e dos pressupostos que sustentam a hermenêutica filosófica. Portanto, nada do que foi dito até aqui pode significar que o intérprete venha a dizer “qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Ao contrário, é a partir da hermenêutica filosófica que falaremos da possibilidade de respostas corretas ou, se assim se quiser, de respostas hermeneuticamente adequadas a Constituição (portanto, sempre será possível dizer que uma coisa é certa e outra é errada; há pré-juízos falsos e pré-juízos verdadeiros). Essa questão assume especial relevância exatamente se examinada no plano das rupturas paradigmáticas, isto é, não devemos esquecer o grau de autonomia alcançado pelo direito (leia-se, pelas Constituições) no Estado Democrático de Direito, a ponto de podermos considerar ultrapassada a dicotomia direito-moral. Dizendo de outro modo, esse grau de autonomização do direito traz consigo a co-originariedade com a moral, que, na verdade, institucionalizase no direito. Neste ponto assiste razão a Habermas. A produção democrática do direito dispensa o “uso” de uma moral corretiva, como pretendem, por exemplo, algumas teorias argumentativas, em especial a de Alexy e Günther. Destarte, a discussão alcança o patamar da democracia. Não teria sentido que, nesta quadra da história, depois da superação dos autoritarismos/totalitarismos surgidos no século XX e no momento em que alcançamos esse (elevado) patamar de discussão democrática do direito, viéssemos a “depender” da discricionariedade dos juízes na solução dos assim denominados “casos difíceis”. Dito de outro modo, seria substituir a democracia pela “vontade do poder” (en62

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tendido como o último princípio epocal da modernidade) dos juízes. A produção democrática do direito – que é esse plus normativo que caracteriza o Estado Democrático de Direito – é um salto para além do paradigma subjetivista. É nesse sentido que, ao ser anti-relativista, a hermenêutica funciona como uma blindagem contra interpretações arbitrárias e discricionariedades e/ou decisionismos por parte dos juízes. Mais do que isso, a hermenêutica será antipositivista, colocando-se como contraponto à admissão de múltiplas respostas advogada pelos diversos positivismos (pensemos, aqui, nas críticas de Dworkin a Hart). Nesse sentido, lembro que a noção de “positivismo” é entendida, neste texto e no restante de minhas obras, a partir de sua principal característica: a discricionariedade, que ocorre a partir da “delegação” em favor dos juízes para a resolução dos casos difíceis (não “abarcados” pela regra).11 A holding da discussão encontra-se nas críticas 11

Todas as minhas críticas à discricionariedade estão fundadas no conceito “forte” cunhado por Dworkin em suas críticas ao positivismo, especialmente o de Hart (que, como já referi, são extensíveis, v.g., à Kelsen, Ross e a Alexy, os quais, de um modo ou de outro, também apostam no poder discricionário do juiz). Em face da vagueza e da ambigüidade das palavras da lei e da relevante circunstância de que direito é poder, no mais das vezes, a discricionariedade descamba em arbitrariedade, soçobrando os limites ôntico-semânticos do texto minimamente “condensados” pela tradição. Mas não confundamos essa discussão – tão relevante para a teoria do direito – com a separação feita pelo direito administrativo entre atos discricionários e atos vinculados, ambos diferentes de atos arbitrários. Trata-se, sim, de discutir o grau de liberdade de escolha dado ao intérprete (juiz) face à legislação produzida democraticamente, com dependência fundamental da Constituição. E esse grau de liberdade – chame-se-o como quiser – acaba se convertendo em um poder que não lhe é dado, uma vez que a “opção” escolhida pelo juiz deixará de lado outras “opções” de outros interessados, cujos direitos ficaram à mercê de uma atribuição de sentido, muitas vezes decorrentes de discursos exógenos, não devidamente filtrados na conformidade com os limites impostos pela autonomia do direito. Daí a necessária advertência: não é correto trazer o conceito de discricionariedade administrativa para o âmbito da interpretação do direito (discricionariedade judicial). Também não se trata da distinção entre a “discricionariedade na civil law” e na common Law. Para os limites desta discussão, não se compreende a discricionariedade interpretativa (ou discricionariedade judicial) a partir da simples oposição entre ato vinculado e ato discricionário, mas sim tendo como ponto específico de análise o fenômeno da interpretação, onde – e isso parece óbvio – seria impróprio falar de vinculação. Ora, toda interpretação é um ato produtivo; sabemos que o interprete atribui sentido a um texto e não reproduz sentidos nele já existentes. Tem sido muito comum aproximar – embora que de forma equivocada – aquilo que se menciona como discricionariedade judicial daquilo que a doutrina administrativa chama de ato administrativo discricionário. Nota-se, de plano, que há aqui uma nítida diferença de situações: no âmbito judicial, o termo discricionariedade se refere a um espaço a partir do qual o julgador estaria legitimado a criar a solução adequada para o caso que lhe foi apresentado a julgamento. No caso do administrador, tem-se por referência a prática de um ato autorizado pela lei e que, por este mesmo motivo, mantêm-se adstrito ao princípio da legalidade. Ou seja, o ato

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dirigidas a Herbert Hart por Ronald Dworkin, para quem o juiz não possui discricionariedade para solver os hard cases. Insisto e permito-me repetir: antes de tudo, trata-se de uma questão de democracia. Por isso, deveria ser despiciendo acentuar ou lembrar que a crítica à discricionariedade judicial não é uma “proibição de interpretar”. Ora, interpretar é dar sentido (Sinngebung). É fundir horizontes. E direito é um sistema de regras e princípios, “comandado” por uma Constituição. Que as palavras da lei (lato sensu) contêm vaguezas e ambigüidades e que os princípios podem ser – e na maior parte das vezes são – mais “abertos” em termos de possibilidades de significado, não constitui nenhuma novidade (até os setores que primam pela estandardização do direito e que praticam uma espécie de “neopentecostalismo jurídico”, já perceberam essa característica “lingüística” dos textos jurídicos). O que deve ser entendido é que a aplicação desses textos (isto é, a sua transformação em normas) não depende de uma subjetividade assujeitadora (esquema sujeitoobjeto), como se os sentidos a serem atribuídos fossem fruto da vontade do intérprete, como que a dar razão a Kelsen, para quem a interpretação a ser feita pelos juízos é um ato de vontade (sic). O “drama” da discricionariedade aqui criticada é que esta transforma os juízes em legisladores. Isso enfraquece a autonomia do direito conquistada principalmente no paradigma do Estado Democrático de Direito. Combater a discricionariedade não significa dizer que os juízes não criam o direito (sem olvidar o relevante fato de que, no mais das vezes, a discricionariedade se transforma em arbitrariedade, soçobrando, assim, o direito produzido democraticamente). Mas não é esse tipo de criação judicial que está em causa no debate Dworkin-Hart e, tampouco, nas críticas que faço ao positivismo à luz da hermenêutica filosófica.

discricionário no âmbito da administração somente será tido como legítimo se de acordo com a estrutura de legalidade vigente (aliás, o contexto atual do direito administrativo aponta para uma circunstancia no interior da qual o próprio conceito de ato discricionário vem perdendo terreno, mormente em países que possuem em sua estrutura judicial, um Tribunal especificamente Administrativo). O que se está a tratar é daquilo que está convalidado pela tradição da teoria do direito, isto é, a experiência interpretativa “conhece” um conceito de discricionariedade, utilizado por Herbert Hart em seu Conceito de Direito. E é esse que é praticado e defendido pelo positivismo, confessadamente ou não, até os nossos dias, mesmo em tempos de pós-positivismo.

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Levando em conta as promessas incumpridas da modernidade em terrae brasilis, a superação dos paradigmas metafísicos (clássico e moderno) – condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno do novo constitucionalismo e da conseqüente derrota do positivismo – não pode representar o abandono das possibilidades de se alcançar verdades conteudísticas. Sendo mais claro: a hermenêutica jamais permitiu qualquer forma de “decisionismo” ou de “realismo”. Gadamer rejeita peremptoriamente qualquer acusação de relativismo à hermenêutica (jurídica). Falar de relativismo é admitir verdades absolutas, problemática, aliás, jamais demonstrada. A hermenêutica afasta o fantasma do relativismo, porque este nega a finitude e seqüestra a temporalidade. No fundo, trata-se de admitir que, à luz da hermenêutica (filosófica), é possível dizer que existem verdades hermenêuticas. A multiplicidade de respostas é característica não da hermenêutica, e, sim, do positivismo. Ou seja, é possível dizer, sim, que uma interpretação é correta, e a outra é incorreta. No campo jurídico, vários autores defendem a possibilidade/necessidade de respostas corretas e/ou adequadas (Habermas e Dworkin sustentam a única resposta correta; Gadamer, embora não tenha tratado diretamente dessa temática, vai dizer que das gilt der Sache nach auch dort, wo sich das Verständnis unmittelbar einstellt und gar keine ausdrückliche Auslegung vorgenommen wird, ou seja, que uma interpretação é correta quando ninguém se pergunta sobre o sentido atribuído a algo), e que Alle rechte Auslegung muss sich gegen die Willkür von Einfällen und die Beschränktheit unmmerklich Denkgewohnheit abschirmen und den Blick auf die Sachen selber richten (toda a interpretação correta deve guardar-se da arbitrariedade dos chutes e do caráter limitado dos hábitos mentais inadvertidos, de maneira à voltar-se às coisas mesmas) e, mais ainda, que So ist die ständige Aufgabe des Verstehens, die rechten, sachangemessenen Entwürfe auszuarbeiten, das heisst Vorwegnahmen, die sich na den Sachen erst bestätigen sollen, zu wagen (isto é, a constante tarefa de compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, ou seja, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas “nas coisas mesmas”). Assim, a tese aqui apresentada – desenvolvida detalhadamente em meu Verdade e Consenso – é uma simbiose entre as teorias de Gadamer e Dworkin, com o acréscimo de que a resposta não é nem a única e

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nem a melhor: simplesmente se trata “da resposta adequada à Constituição”, isto é, uma resposta que deve ser confirmada na própria Constituição, na Constituição mesma. Isso é assim porque nos movemos no mundo exatamente porque podemos fazer afirmações dessa ordem. E disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreensão, os conceitos interpretativos não resultam temáticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrário, determinam-se pelo fato de que desaparecem atrás daquilo que eles fizeram falar/aparecer na e pela interpretação. Aquilo que as teorias da argumentação ou qualquer outra concepção teorético-filosófica (ainda) chamam de “raciocínio subsuntivo” ou “raciocínio dedutivo” nada mais é do que esse “paradoxo hermenêutico”, que se dá exatamente porque a compreensão é um existencial (ou seja, por ele eu não me pergunto por que compreendi, pela simples razão de que já compreendi, o que faz com que minha pergunta sempre chegue tarde). Mais ainda, aquilo que algumas teorias (argumentativas) chamam de casos fáceis – portanto, solucionáveis por intermédio de “simples subsunções” ou “raciocínios dedutivos” – são exatamente a comprovação disso. Com efeito, na hermenêutica, essa distinção entre easy e hard cases desaparece em face do círculo hermenêutico e da diferença ontológica. Essa distinção (que, na verdade, acaba sendo um cisão) não leva em conta a existência de um acontecer no pré-compreender, no qual o caso simples e o caso difícil se enraízam. Existe, assim, uma unidade que os institui, detectável na “dobra da linguagem”. Veja-se, nesse sentido, como essa dualização (contraposição) entre casos difíceis e casos fáceis acarreta problemas que as diversas teorias analítico-discursivas não conseguem responder satisfatoriamente: casos fáceis (que vale também para as demais versões da teoria da argumentação jurídica), seriam aqueles que demandam respostas corretas que não são discutidas; já os casos difíceis seriam aqueles nos quais é possível propor mais de uma resposta correta “que se situe dentro das margens permitidas pelo direito positivo”. Mas, pergunto: como definir “as margens permitidas pelo direito positivo”? Como isso é feito? A resposta que a teoria da argumentação jurídica parece dar é: a partir de raciocínios em abstrato, a priori, como se fosse primeiro interpretar e depois aplicar... 66

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Nesse ponto, as diversas teorias do discurso se aproximam: as “várias” possibilidades de aplicação se constituem em discursos de validade prévia, contrafáticos, que servirão para juízos de “adequação”. No meu sentir, entretanto, isso implica um dualismo, que, por sua vez, implica separação entre discursos de validade e discursos de aplicação, cuja resposta se dará, quer queiram, quer não, mediante raciocínios dedutivos, e isso é filosofia da consciência, por mais que se queira negar. Se é verdade que as explicações decorrentes de nosso modo prático de ser-no-mundo (o-desde-já-sempre-compreendido) resolvem-se no plano ôntico (na linguagem da filosofia da consciência, em um raciocínio causal-explicativo), também é verdadeiro afirmar que esse “modo ôntico” permanecerá e será aceito como tal se – e somente se – a sua objetivação não causar estranheza no plano daquilo que se pode entender como tradição autêntica. Nesse caso, devidamente conformados os horizontes de sentido, a interpretação “desaparece”. Em síntese, é quando ninguém se pergunta sobre o sentido atribuído a algo. Mas, se essa fusão de horizontes se mostrar mal sucedida, ocorrerá a demanda pela superação das insuficiências do que onticamente objetivamos. Trata-se do acontecer da compreensão, pelo qual o intérprete necessita ir além da objetivação. Com efeito, estando o intérprete inserido em uma tradição autêntica do direito, em que os juristas introduzem o mundo prático seqüestrado pela regra (para utilizar apenas estes componentes que poderiam fazer parte da situação hermenêutica do intérprete), a resposta correta advirá dessa nova fusão de horizontes. Por isso o acerto de Dworkin, ao exigir uma “responsabilidade política” dos juízes. Os juízes têm a obrigação de justificar suas decisões, porque com elas afetam os direitos fundamentais e sociais, além da relevante circunstância de que, no Estado Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui um direito fundamental. Daí a necessidade de ultrapassar o “modo-positivistade-fundamentar” as decisões (perceptível no cotidiano das práticas dos tribunais, do mais baixo ao mais alto); é necessário justificar – e isso ocorre no plano da aplicação – detalhadamente o que está sendo decidido. Portanto, jamais uma decisão pode ser do tipo “Defiro, com base na lei x ou na súmula y”. 67

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Mutatis mutandis, trata-se de justificar a decisão (decisão no sentido de que todo ato aplicativo – e sempre aplicamos – é uma de-cisão). Para esse desiderato, compreendendo o problema a partir da antecipação de sentido (Vorhabe, Vorgriff, Vorsicht), no interior da virtuosidade do círculo hermenêutico, que vai do todo para a parte e da parte para o todo, sem que um e outro sejam “mundos” estanques/ separados, fundem-se os horizontes do intérprete do texto (registrese, texto é evento, texto é fato). Toda a interpretação começa com um texto, até porque, como diz Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto, deixa primeiro que o texto te diga algo. O sentido exsurgirá de acordo com as possibilidades (horizonte de sentido) do intérprete em dizê-lo, d’onde pré-juízos inautênticos acarretarão graves prejuízos hermenêuticos. Há que se entender que a explicitação da resposta de cada caso deverá estar sustentada em consistente justificação, contendo a reconstrução do direito, doutrinaria e jurisprudencialmente, confrontando tradições, enfim, colocando a lume a fundamentação jurídica que, ao fim e ao cabo, legitimará a decisão no plano do que se entende por responsabilidade política do intérprete no paradigma do Estado Democrático de Direito. A justificativa (a fundamentação da fundamentação, se assim se quiser dizer) é condição de possibilidade da legitimidade da decisão. Isso é assim porque o sentido da obrigação de fundamentar as decisões previsto no art. 93, inc. IX, da Constituição do Brasil implica, necessariamente, a justificação dessas decisões. Veja-se que um dos indicadores da prevalência das posturas positivistas – e que denuncia a discricionariedade judicial que lhe é inerente – está no escandaloso número de embargos de declaração propostos diariamente no Brasil. Ora, uma decisão bem fundamentada/justificada (nos termos de uma resposta correta-adequada-à-Constituição, a partir da exigência da máxima justificação, ou seja, há que fundamentar a fundamentação) não poderia demandar “esclarecimentos” acerca da holding ou do dictum da decisão. Os embargos de declaração – e acrescente-se, aqui, o absurdo representado pelos “embargos de préquestionamento” (sic) – demonstram a irracionalidade positivista do sistema jurídico. Como é possível que se considere “normal” a não fundamentação de uma decisão, a ponto de se admitir, cotidianamente, milhares de “embargos”?

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Nessa linha, a applicatio – porque interpretar é sempre um aplicar – evita a arbitrariedade na atribuição de sentido, porque é decorrente da antecipação (de sentido) que é própria da hermenêutica filosófica. Aquilo que é condição de possibilidade não pode vir a se transformar em um “simples resultado” manipulável pelo intérprete. Afinal, não podemos esquecer que mostrar a hermenêutica como produto de um raciocínio feito por etapas foi a forma pela qual a hermenêutica clássica encontrou para buscar o controle do “processo” de interpretação. A compreensão de algo como algo (etwas als etwas) simplesmente ocorre (acontece), porque o ato de compreender é existencial, fenomenológico, e não epistemológico. Qualquer sentido atribuído arbitrariamente será produto de um processo decorrente de um vetor (standard) de racionalidade de segundo nível, meramente argumentativo/procedimental, isso porque filosofia não é lógica e, tampouco, um discurso ornamental.

3.4 Aportes finais: a (nova) hermenêutica no estado democrático de direito – um novo paradigma fundado na autonomia do direito e de como a morte do sujeito do esquema sujeitoobjeto não significou a morte do sujeito da relação de objeto O direito do Estado Democrático de Direito está sob constante ameaça, isso porque, de um lado, corre o risco de perder a autonomia (duramente conquistada) em virtude dos ataques dos predadores externos (da política, do discurso corretivo advindo da moral e da análise econômica do direito) e, de outro, torna-se cada vez mais da frágil em suas bases internas, em face da discricionariedade/arbitrariedade das decisões judiciais e do conseqüente decisionismo que disso exsurge inexoravelmente. É nesse sentido que proponho a resistência através da hermenêutica, apostando na Constituição (direito produzido democraticamente) como instância da autonomia do direito para limitar a transformação das relações jurídico-institucionais em um constante estado de exceção. Disso tudo é possível dizer que, tanto o velho discricionarismo positivista, quanto o pragmatismo fundado no declínio do direito, têm algo em comum: o déficit democrático. Isso porque, se a grande conquista do século XX foi o alcance de um direito transformador das relações sociais, será (é?) um retrocesso reforçar/acentuar formas de exercício 69

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de poder fundados na possibilidade de atribuição de sentidos de forma discricionária, que leva, inexoravelmente, a arbitrariedades, soçobrando, com isso, a própria Constituição. Ou seja, se a autonomia do direito aposta na determinabilidade dos sentidos como uma das condições para a garantia da própria democracia e de seu futuro, as posturas axiologistas e pragmatistas – assim como os diversos positivismos stricto sensu – apostam na indeterminabilidade. E por tais caminhos e condicionantes que passa a tese da resposta correta em direito. Numa palavra, a superação do positivismo implica a incompatibilidade da hermenêutica com a tese das múltiplas ou variadas respostas. Afinal, a possibilidade da existência de mais de uma resposta coloca essa “escolha” no âmbito da discricionariedade judicial, o que é antitético ao Estado Democrático de Direito. Ou seja, a partir da hermenêutica filosófica e de uma crítica hermenêutica do direito, é perfeitamente possível alcançar uma resposta hermeneuticamente adequada a Constituição ou, se se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada – espécie de resposta hermeneuticamente correta – a partir do exame de cada caso. Com efeito, entendo ser possível encontrar uma resposta constitucionalmente adequada para cada problema jurídico (como explicito em meu Verdade e Consenso desde a primeira edição). Hermenêutica é aplicação. Não há respostas, a priori, que exsurjam de procedimentos (métodos ou fórmulas de resolução de conflitos). Em outras palavras, definitivamente não percebemos primeiro o texto para depois acoplar-lhe o sentido (a norma). Ou seja, na medida em que o ato de interpretar – que é sempre compreensivo – é unitário, o texto não está – e não nos aparece – desnudo, à nossa disposição. No confronto entre a hermenêutica (filosófica) e as diversas teorias da argumentação, fica patente a não preocupação destas com o problema do relativismo. Conseqüentemente, quem se preocupa com a possibilidade de respostas corretas é a hermenêutica, exatamente pelo seu caráter anti-relativista (veja-se, neste ponto, que Dworkin, embora não advogue claramente uma postura que o possa identificar com a hermenêutica filosófica, assume um viés não-relativista a partir de outros caminhos). Assim, negar a possibilidade de que possa existir uma resposta correta pode vir a se constituir – sob o ponto de vista da hermenêu70

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tica filosófica – em uma profissão de fé no positivismo e, portanto, na discricionariedade judicial, uma vez que o caráter marcadamente não-relativista da hermenêutica é incompatível com a existência de múltiplas respostas. Corre-se o risco de conceder ao juiz uma excessiva discricionariedade (excesso de liberdade na atribuição dos sentidos), acreditando, ademais, que o direito é (apenas) um conjunto de normas (regras). Isto significa transformar a interpretação jurídica em filologia, forma refinada de negação da diferença ontológica. Não esqueçamos que texto e norma, fato e direito, não estão separados e, tampouco, um “carrega” o outro; texto e norma, fato e direito, são (apenas e fundamentalmente) diferentes. Por isso, o texto não existe sem a norma; o texto não existe em sua “textitude”; a norma não pode ser vista; ela apenas é (existe) no (sentido do) texto. Numa palavra, a resposta constitucionalmente adequada é o ponto de estofo em que exsurge o sentido do caso concreto (da coisa mesma). Na coisa mesma (Sache selbst), nessa síntese hermenêutica, está o que se pode denominar de a resposta hermeneuticamente (mais) adequada, que é dada sempre e somente na situação concreta. Este é o salto que a hermenêutica dá em relação às teorias da argumentação, que são procedimentais. A tese da resposta hermeneuticamente adequada é, assim, corolária da superação do positivismo – que é discricionário, abrindo espaço para várias respostas e a conseqüente livre escolha do juiz – pelo (neo)constitucionalismo, sustentado em discursos de aplicação, intersubjetivos, em que os princípios têm o condão de recuperar a realidade que sempre sobra no positivismo. Nesse sentido, e uma vez mais visando a evitar mal-entendidos, é preciso compreender que – do mesmo modo que Gadamer, em seu Wahrheit und Method – Dworkin não defende qualquer forma de solipsismo (a resposta correta que defende não é produto de uma atitude de um Selbstsüchtiger); Dworkin superou – e de forma decisiva – a filosofia da consciência. Melhor dizendo, o juiz “Hércules” é apenas uma metáfora para demonstrar que a superação do paradigma representacional (morte do sujeito solipsista da modernidade) não significou a morte do sujeito que sempre está presente em qualquer relação de objeto. Uma leitura apressada de Dworkin (e isso também ocorre com quem lê Gadamer como um filólogo, fato que ocorre não raras vezes no direito) dá a falsa impressão de que Hércules representa o

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portador de uma “subjetividade assujeitadora”. Ora, como já referido, enquanto as múltiplas teorias que pretendem justificar o conhecimento buscam “superar” o sujeito do esquema sujeito-objeto eliminando-o ou substituindo-o por estruturas comunicacionais, redes ou sistemas e, algumas de forma mais radical, até mesmo por um pragmatismo fundado na Wille zur Macht (por todas, vale referir as teorias desconstrutivistas e o realismo dos Critical Legal Studies), Dworkin e Gadamer, cada um ao seu modo, procuram controlar esse subjetivismo e essa subjetividade solipsista a partir da tradição, do não-relativismo, do círculo hermenêutico, da diferença ontológica, do respeito à integridade e da coerência do direito, de maneira que, fundamentalmente, ambas as teorias são antimetafísicas, porque rejeitam, peremptoriamente, os diversos dualismos que a tradição (metafísica) nos legou desde Platão (a principal delas é a incindibilidade entre interpretação e aplicação, pregadas tanto por Dworkin como por Gadamer). Parece, assim, que o equívoco recorrente acerca da compreensão das teses de Gadamer e de Dworkin – em especial, seu anti-relativismo e a aversão de ambos à discricionariedade – reside no fato de se pensar que a derrocada do esquema sujeito-objeto significou a eliminação do sujeito (presente em qualquer relação de objeto), cuja conseqüência seria um “livre atribuir de sentidos”. Por assim pensarem – e por temerem a falta de racionalidade na interpretação –, muitas teorias acabaram, de um lado, retornando àquilo que buscavam combater: o método; e, de outro, construindo discursos que desoner(ass)em o sujeito-intérprete do encargo de elaborar discursos de aplicação. Tudo por acreditarem na eliminação do sujeito ou na sua pura e simples substituição por sistemas ou teorias comunicativas. Dito de outro modo, se o método, para o paradigma representacional, é/ foi o supremo momento da subjetividade, decretar a sua superação, como magistralmente fez Gadamer, não quer dizer que, a partir de então, seja possível “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Ao contrário: se o método colocava a linguagem em um plano secundário (terceira coisa entre o sujeito e o objeto), manipulável pelo sujeito solipsista, a intersubjetividade que se instaura com o linguistic turn exige que, no interior da própria linguagem, se faça o controle hermenêutico (entre outras coisas, levar-se o texto a sério, circunstância que se coaduna perfeitamente com as Constituições na segunda metade do

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século XX e confere especial especificidade à interpretação do direito, em face do vetor de sentido assumido pelo texto constitucional, além de reafirmar a autonomia do direito). Por tudo isso, é preciso ter claro que o estabelecimento das bases para a construção de discursos críticos é uma tarefa extremamente complexa e que não se faz sem ranhuras. Afinal, mais do que um imaginário a sustentar o modo-positivista-de-fazer/interpretardireito, há, no Brasil, uma verdadeira “indústria cultural” assentada em uma produção jurídica que tem nos manuais (a maioria de baixa densidade científico-reflexiva) a sua principal fonte de sustentação, retroalimentada pelas escolas de direito, cursos de preparação para concursos e exame de ordem, além da própria operacionalidade do direito, que continua – em pleno século XXI – a ter no dedutivismo a sua forma de aplicar o direito. Por isso, não é temerário (re)afirmar que o positivismo jurídico – entendido a partir da dogmática jurídica que o instrumentaliza – é uma trincheira que resiste (teimosa-mente) a essa viragem hermenêutico-ontológica. Para uma melhor compreensão dessa fenomenologia, basta que examinemos alguns sintomas dessa não-recepção do paradigma da intersubjetividade no e pelo direito. Com efeito, quando já de há muito está anunciada a morte do sujeito (da subjetividade assujeitadora – filosofia da consciência), parece que, no âmbito do direito, tal notícia não surtiu qualquer efeito. Continuamos a apostar nesse sujeito do esquema metafísico “sujeito-objeto”. Veja-se: o Código de Processo Penal sustenta-se no modelo inquisitivo, pelo qual o juiz toma decisões de ofício – prisões, diligências, busca de provas, etc. (há até mesmo recursos de ofício); o Código de Processo Civil é fruto de repetidas apostas no procedimento que tem o sujeito-juiz como protagonista – recordemos, aqui, o papel da escola instrumentalista do processo nesse contexto –, com a função de adaptar o procedimento à correta aplicação da técnica processual, reconhecendo-se ao julgador o poder de adequar o mecanismo às especificidades da situação, utilizando-se, para tal, de sua “sensibilidade” e seu “sentido do justo” (considere-se, ainda, que as sucessivas reformas foram transferindo as decisões colegiadas para o monocratismo); no direito civil, parcela considerável dos juristas aposta nas cláusulas gerais, que, em face de sua abertura, darão maior possibilidade para

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o juiz “buscar o justo concreto”, o que nada mais é do que reforçar a velha discricionariedade positivista; no direito penal, basta uma leitura do artigo 59 para compreendermos a dimensão da cognição (metafísica) a ser feita pelo aplicador, sem considerar a ontologia clássica por trás da(s) teoria(s) do delito; no direito tributário, o sujeito liberal-individualista continua a ser – mesmo nesta quadra da história – o protagonista de uma contraposição Estado-Sociedade (como se ainda vivêssemos no século XIX), cuja leitura/interpretação é feita, não raras vezes, a partir de “regras que superam princípios constitucionais”; na teoria do direito, em nome da ponderação – e esse o problema fulcral, v.g., da teoria da argumentação jurídica –, abre-se um campo profícuo para o exercício de discricionariedades e decisionismos, sob os auspícios dos diversos graus de “proporcionalidades”, além de se (continuar a) pensar na distinção lógicoestrutural entre casos simples (que seriam solucionados por dedução ou subsunção (sic) e casos complexos (para os quais são chamados à colação os princípios). Isso para dizer o mínimo. É o triunfo daquilo que Luis Alberto Warat já denunciava há mais de 30 anos atrás: o senso comum teórico dos juristas, a estandartização do direito e o positivismo jurídico, no interior do qual cada um interpreta como quer, dando-se, assim, razão ao velho Kelsen e seu decisionismo...! Passados tantos anos de Constituição compromissória e social, os livros que mais vendem são da mesma estirpe e naipe da década de 70 ou 80 do século XX. E já existem estudos esquemáticos de direito plastificados à venda na lojas dos aeroportos de todo o país...! Numa palavra: o direito é um fenômeno complexo, mesmo que a dogmática jurídica prevalecente se esforce em demonstrar o contrário. Não se concretiza uma Constituição sem a construção das condições para a compreensão dessa fenomenologia. Falar em constitucionalismo compromissório e social (e, quiçá, dirigente) implica mergulhar nas profundezas da crise do direito provocada pelo positivismo jurídico. Implica também compreender o significado de expressões como “pós-positivismo”, “discricionariedade”, “decisionismos”, etc. E que, ao fim e ao cabo, está-se diante de um grande debate contemporâneo (democracia versus constitucionalismo) e do conseqüente dilema: como se interpreta e como se aplica.

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Mas, mais do que isso, está-se diante da questão sobre a qual vêm se debruçando os mais importantes jusfilósofos do mundo: a racionalidade das decisões judicias. Ou seja, efetivamente parece que estamos condenados a interpretar. Penso que a hermenêutica (filosófica) pode ter um papel de absoluta relevância na busca de respostas a esse dilema. Desde o seu nascimento, a “questão hermenêutica” sempre esteve localizada na tensão entre o texto e o sentido do texto. Para além de objetivismos e subjetivismos, a hermenêutica que surge no horizonte do paradigma do giro lingüístico-ontológico supera o problema que considero fulcral no direito e de suas variações positivistas: o sujeito solipsista responsável pela manutenção do metafísico esquema sujeito-objeto. E essa hermenêutica12 tem uma dimensão ontológica, concretizadora. Os dualismos, próprios dos paradigmas metafísicos objetificantes (clássico e da filosofia da consciência), sucumbem ao primado da diferença ontológica. É por isto que o texto constitucional – compreendido no paradigma aqui desenvolvido – aponta para uma dimensão material, que conformará a sua norma. Isto, à evidência, aumenta a responsabilidade do intérprete do direito. Trata-se de um “dar-se” conta de que estamos diante de duas grandes revoluções copernicanas: a que transformou o direito após o segundo pós-guerra (neoconstitucionalismo) e o giro lingüísticoontológico que atravessou a filosofia mormente após os anos 30 do século passado. Em outras palavras, o jurista não pode se comportar como o sujeito que, à beira do Vesúvio, mesmo vendo que as lavas cobririam a tudo e a todos, preferiu continuar a arrumar o quadro de Van Gogh na parede de sua bela morada...!

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É para esse constante des-velar do texto constitucional que venho construindo o que denomino de Nova Crítica do Direito ou Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida tanto em meus Hermenêutica Jurídica (e)m Crise e no Verdade e Consenso. Nesse contexto, todo o trabalho de desconstrução do pensamento dogmático-objetificador do direito é feito sob o signo desses aportes filosóficos. Tendo como base esse referencial teórico, é inexorável que eu venha a combater toda e qualquer atividade discricionária, voluntarista ou decisionista do Poder Judiciário – e, de igual forma e com a mesma contundência, da doutrina positivista que guarnece tais posições. Registre-se minha posição firme – fundada na hermenêutica filosófica – no sentido de que “levemos o texto a sério” (Afinal, como bem diz Gadamer, Wer einen Text verstehen will, ist vielmeher bereit, sich von im etwas zu sagen lassen.), entendido o texto como evento (como faz, por exemplo, Thomas Kuhn), isto é, o texto como condição de possibilidade para a emergência dos fatos.

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4 Constituição “a partir da cultura” e Constituição “enquanto cultura” – um projeto científico para o Brasil

Peter Häberle*

4.1 Introdução

É

para mim uma grande honra e motivo de grande alegria poder prestar essa contribuição aqui no Brasil por ocasão do jubileu da sua Constituição. Há vários anos traduções – do alemão ao português e vice-versa – e contatos pessoais, temperados pela amizade, me ligam ao seu país. Quero agradecer de antemão por tudo isso. Documentar a constituição “a partir da cultura” e “enquanto cultura”: eis um programa talvez muito ambicioso. Ele resulta da concepção da teoria constitucional como culturologia (1982). Nas explanações a seguir, pretendo explorá-lo em nova perspectiva. Inicio no plano ‘micro’ com o Dia da Constituição: “dias da constituição” são dias, nos quais se comemora de ano em ano, festivamente e de múltiplos modos, a constituição vigente, a sua pré-história, a sua entrada em vigor e a sua evolução futura esperada, nos planos estatal-político, comunitário-social e por vezes também privado (na Suiça)

* Diretor gerente do Instituto de Direito Europeu e Cultura Jurídica Européia de Bayreuth, bem como do Escritório de Pesquisa sobre Direito Constitucional Europeu na Universidade de Bayreuth, Alemanha.

Constituição “a partir da cultura” e Constituição “enquanto cultura”...

Apresento liminarmente alguns exemplos em escala mundial, à guisa de elementos de um inventário extremamente fragmentário. Há dias da constituição que figuram como feriados, e.g. o Dia da Independência da nação ou o Dia da Revolução como o dia 4 de julho nos EUA ou o dia 14 de julho na França, bem como o dia 25 de abril na Itália (dia da libertação do fascismo), o dia 25 de maio na Argentina (Dia da Independência). Examinados de perto, eles são dias anteriores à constituição, dias por assim dizer pré-constitucionais, e não obstante pertencem ao fundamento escrito ou não escrito da autocompreensão de uma sociedade politicamente organizada. Constituem uma espécie de constituição antes da constituição. Há, contudo, também exemplos de que os dias da constituição evocam apenas no plano legal, mas não no plano constitucional a entrada em vigor de uma constituição, sendo celebrados em caráter mais ou menos oficial (e.g. mediante o hasteamento de bandeiras na frente de prédios públicos). Isso vale e.g. na Alemanha para o dia 23 de maio no tocante à Lei Fundamental promulgada em 1949. No plano da União Européia ocorreu recentemente algo notável, no fundo tolo. Se o Tratado da Constituição de 2004 ainda previra no seu Art. 4º (símbolos) um “Dia da Europa” (9 de maio), ele foi conscientemente eliminado no assim chamado tratado reformista de Lisboa de 2007. Não obstante, deve-se supor que o Dia da Europa, assim como o hino e a bandeira da Europa, continuarão vivos materialmente como realidade constitucional. Depois do “Não” da Irlanda em 13 de junho de 2008, tais símbolos se tornarão ainda mais importantes para a sobrevivência e a vivência da Europa. No dia 14 de julho de 2008 tremulou em Paris em muitos lugares também a bandeira européia. Uma análise de graus de texto pode documentar que no mundo inteiro uma série de constituições “ordenam” feriados referidos à constituição ou evocadores da mesma, assim e.g. a Constituição da Albânia, Art. 14 § 5 (1998, também denominado “Dia da Bandeira”), a Constituição da Guiné Equatorial, Art. 4º § 5 (1991), a constituição do Gabão Art. 2º § 10 (1994). Lembremos também o feriado de fundação do Reich (18 de fevereiro de 1871), outrora comemorado com festividades na Alemanha. Nos últimos dias da República de Weimar ninguém menos do que Rudolf Smend proferiu uma grande conferên-

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cia comemorativa, cujas deixas produzem um efeito de irradiação até os dias atuais: “Cidadão e burguês”...1

4.2 Primeira parte: a itália como modelo Uma celebração – por sinal exemplar – de um dia da constituição pôde ser vista em Roma. Referiu-se aos 50 anos da Corte Costituzionale italiana (“Ano da Constituição“). Num volume luxuoso, cujo conteúdo foi também apresentado em uma exposição2 os italianos celebraram por ocasião do 50º aniversário da Corte Costituzionale a Constituição de 1947, na perspectiva e com os recursos da cultura, arte e ciência. Os artigos individuais da constituição e a conexa jurisprudência mais extensa da Corte Costituzionale foram ilustrados simultaneamente no contexto de explicações de juízes famosos do tribunal. Foram registrados grandes documentos, de telas pintadas e desenhos alusivos à história cultural da Itália até exemplos de pintura moderna, e.g. com vistas ao entorno dos trabalhadores e quadros representativos de batalhas históricas bem como alegorias da Justiça. Citemos aqui alguns exemplos dessa obra bibliófila única em termos de análise culturológico-constitucional, documentada por uma exposição: sobre o Art. 4º (especialmente o direito ao trabalho): quadro representando uma antiga fiação de seda, um operário em greve, mulheres trabalhando em arrozais, um camponês atrás do arado, um canteiro de obras: o trabalho é documentado aqui de modo tradicional, mas em toda a sua diversidade, o que não deixa de ser coerente diante do Art. 1º inc. 1 (“república fundada no trabalho”); sobre os Arts. 9º, 33 e 34 (especialmente meio ambiente, cultura, paisagem, escola): o projeto de Miguel Ângelo do túmulo para Leão X e Clemente VII, um retrato de mulher da Renascença, o autógrafo de Niccolò Machiavelli com a introdução aos seus “Discorsi“ (antes de 1531), o retrato de um humanista, o retrato de vários astrônomos (ambos do séc. XVI), o autógrafo de um manuscrito de Galileo Galilei (1616), uma vista de 1

Bürger und Bourgeois im Deutschen Staatsrecht [Cidadão e burguês no Direito de Estado da Alemanha] (1933), agora reeditado em: R. Smend. Staatsrechtliche Abhandlungen. 2ª ed. 1968, pp. 309 ss. 2 1956-2006 – 50 anni di Corte Costituzionale: le immagini, le idee. Roma, 2006, edd. Piero Boragina e Giuseppe Marcenaro.

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Veneza (Francesco Guardi, séc. XVIII), telas do Coliseu (séc XVIII), olivais de um pintor por assim dizer impressionista, “Minha Siracusa”, um quadro em estilo tendencialmente moderno, “A preceptora” (um quadro quase cubista); sobre os Arts. 29, 30 e 31 (especialmente família, sob o título abrangente ‘relações ético-sociais’): “Madona com o Menino Deus“ (aprox. 1580), retrato de uma família no estilo renascentista, retrato de uma família burguesa, retratos de família do séc. XX (que também revelam uma mudança da imagem da família no passar do tempo); sobre os Arts. 2º e 3º (especialmente igualdade, liberdade de associação, sob o título abrangente ‘princípios fundamentais’, também liberdade religiosa): quadro renascentista de uma missa, representação, em estilo imitativo da Antiguidade, da pregação de um apóstolo (séc. XVIII), o interior de uma sinagoga (séc. XVIII), assembléia de quakers (séc. XVIII): isto é, também representações de outras religiões, quadros de diversas assembléias de épocas distintas (e.g. comediantes em feiras), pessoas sentadas num bonde (1923); sobre o Art. 5º (especialmente autonomia local): representação pictórica imaginária de uma cidade, que reúne os emblemas arquitetônicos de muitas municipalidades italianas, e.g. de Roma, Milão, Turim, Pisa, e evidentemente só pode ter caráter exemplificativo; sobre o Art. 11 (especialmente proibição da guerra de agressão): diversos quadros de batalhas em estilo antigo e moderno, uma alegoria da paz com um cordeiro (séc. XVIII); sobre os Arts. 24 e 25 (especialmente Justiça e direitos fundamentais referidos à justiça): vários quadros alegóricos sobre a Justiça dos séculos XVII e XX, uma primeira edição da obra de Cesare Beccaria (1764); sobre o Art. 10 (especialmente Direito Internacional): quadro representando a audiência concedida a um embaixador (séc. XVIII); aqui salta aos olhos uma ausência: a idéia da unificação européia, tão cedo recepcionada na Itália (Ventotene!), não é representada por nenhuma ilustração; sobre o Art. 32 (especialmente saúde e beneficência): quadro sobre a assistência a pobres em Florença (1514), distribuição de comida a pobres (séc. XVII); sobre os Arts. 41 e 47 (especialmente iniciativa privada e poupança): bordado familiar em ambiente aristocrático (séc. XVIII), retratos de comerciantes conhecidos, velho “extrato de conta bancária” de Miguel Ângelo (1514).

Desconheço no mundo inteiro outra implementação culturológico-jurídica comparável de uma constituição vivida no espelho das 82

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suas áreas parciais na religião, ciência e arte, vida política e social. Decerto não é casual que justamente a Itália celebre a si mesma como a nação cultural da Europa, para não dizer do mundo, na forma dessa publicação. Outros países ou comunidades científicas de constitucionalistas poderiam tomar esse projeto como um modelo, em cooperação com (outras) disciplinas culturológicas. Vejamos um exemplo para ilustrar essa tese.

4.3 Segunda parte: o exemplo de Portugal 4.3.1 A realidade da constituição no dia 25 de abril de 2006 em Lisboa Tomemos um exemplo de Lisboa, referente à realidade constitucional. Em 25 de abril de 2006 tive, quase que por acaso, a oportunidade de vivenciar a realidade político-social do Dia da Constituição de Portugal, festejado em Lisboa. Por um lado, fora convidado como orador para um evento solene do Tribunal Constitucional de Portugal e da Faculdade de Direito da velha universidade, mas antes misturei-me ao público, mais precisamente à esfera pública nacional, que à sua maneira celebrava na Avenida da Liberdade, via pública mais vistosa da cidade, a Constituição de 1976. Assisti praticamente a uma festa popular, uma espécie de “constituição como um processo público”, com muitos cidadãos e grupos como intérpretes ativos da constituição. Mais concretamente, havia agrupamentos partidários, associações de grupos da sociedade portuguesa, delegações de aldeias distantes e representações de moradores de bairros, mas também organizações profissionais de toda a espécie, e todos desciam em uma espécie de desfile a grande avenida na direção do mar. Todos os participantes e quase todos os espectadores usavam como um símbolo o cravo vermelho, famoso desde 1974 (“Revolução dos Cravos”). Em transparências, em parte carregadas pelas pessoas, em parte exibidas em veículos, fazia-se referência expressa a determinados artigos da constituição, assim e.g. sobre matérias como o trabalho, a família ou o meio ambiente, também a paz. Eram também apresentadas reivindicações em matéria de política constitucional ou reivindicações políticas de caráter geral, ilustradas em carros finamente decorados. Podia-se sentir um sentimento republicano, uma articulação da auto-

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compreensão da população como nação constituída, em que pesassem todos os déficits criticados, como o desemprego. Como “observador participante” vivenciei o ”constitutional law in public action“, posto em prática. Tudo isso me é inesquecível e esteve também sempre presente no impressionante congresso científico organizado na Fundação Gulbenkian, de caráter mais acadêmico.3 4.3.2 Uma interpretação da constituição de 1976 em termos de história cultural Vejamos agora, partindo das profundezas da história da cultura portuguesa e do seu “húmus” e tomando como roteiro a obra antes comentada sobre a Itália, as seguintes referências a dispositivos constitucionais de 1976 com vistas a ocorrências, eventos, grandes obras da arte e cultura portuguesas: a “Era Dourada“ (séc. XVI), com suas grandes obras (cf. a respeito Art. 42); a catástrofe nacional do terremoto de Lisboa de 17554; a separação do Brasil em 1822; sobre o Preâmbulo rico em conteúdos: narrativa da história mais recente de Portugal enquanto Estado constitucional: 25 de abril de 1974: libertação da ditadura e do colonialismo, percepção e defesa dos direitos fundamentais, profissão da democracia, do Estado de Direito e do “país fraterno”. Imagens de festas de rua durante a “Revolução dos Cravos”. documentos da promulgação da constituição pela Assembléia Constituinte (2 de abril de 1976); sobre o Art. 7º (relações internacionais): documentos de Direito das Gentes, especialmente sobre as “relações amistosas com os países lusófonos” (o português é língua materna de 120 milhões de pessoas); uma imagem do Tribunal Penal Internacional em Haia; sobre o mandamento da paz enquanto documento contrário, cf. e.g. a Batalha de Aljubarrota5; sobre Art. 11 (símbolos nacionais), especialmente a bandeira: a bandeira de Portugal pode ser lida como um livro de história, pois traduz li3

A conferência foi publicada em EuGRZ 2006, pp. 533 ss.: Neue Horizonte und Herausforderungen des Konstitutionalismus [Novos horizontes e desafios do constitucionalismo]. 4 Reprodução de Lisboa in: Portugal, DuMont, 1987, p. 84. 5 Reproduzido in Portugal, DuMont, 1987, p. 40.

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teralmente em imagens a história política e constitucional do país: os cinco escudos azuis na forma de uma cruz representam os cinco reis mouros vencidos em 1139 em uma batalha; o verde como signo da esperança foi a cor de Henrique o Navegador6 (1394-1460); o escudo com a esfera armilar, antigo instrumento de navegação, espelha o grande papel que Portugal desempenhou no descobrimento do mundo extraeuropeu (em todos os lugares deparamo-nos com os vestígios dos descobridores: em Sagres, Porto, Batalha ou mesmo em Lagos: Vasco da Gama descobriu em 1497 o caminho marítimo para a Índia); depois a roda dourada com o arco dourado, sobre o escudo, acrescentada à bandeira no séc. XIII pelo rei Afonso III; os cinco pontos brancos em cada escudo representam as chagas de Cristo; o campo vermelho foi incluído como símbolo da revolução7; a recepção do símbolo da Revolução de 5 de outubro de 1910 deveria ser ilustrada por um documento dessa época. No plano da Teoria Constitucional, verifica-se que o Preâmbulo descreve uma breve fase do surgimento de Portugal enquanto Estado constitucional, ao passo que a bandeira nacional recapitula com meios gráficos e em cores a evolução multissecular do país; sobre os Arts. 12 s. (direitos e deveres fundamentais): grandes sentenças do Tribunal Constitucional de Lisboa e seus comentários jurídicos; sobre o Art. 15 (estrangeiros, cidadãos europeus): destaque dos cidadãos dos países lusófonos; documentos de países como Moçambique, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau; sobre o Art. 41 (liberdade de consciência e do culto): documentos da história da igreja, inquisição inclusa8; o milagre de Fátima, “país dos castelos e das abadias“9; sobre o Art. 42 (liberdade da expressão cultural): ilustrações da arte e cultura portuguesas, e. g. colunas manuelinas no Mosteiro de Belém10, azulejaria portuguesa, Convento dos Jerônimos em Lisboa; da literatura: Luís de Camões (1524-1580, poema épico “Os Lusíadas”); Fernando Pessoa (1888-1935); o Prêmio Nobel José Saramago “Esperança no Altentejo“; da música: o fado (“saudade“). – Sobre 6 7

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Seu monumento está reproduzido em: Portugal, Walter-Reiseführer 1986, p. 39; reprodução também in: G. Faber/O. Kasper, Portugal, 1983, 1ª contracapa. Reprodução cit. ap. B. J. Barker, Weltatlas der Flaggen. 2005, p. 51. V. genericamente sobre a função simbólica de bandeiras nacionais: Peter Häberle, Nationalflaggen: kulturelle Identitätselemente und internationale Erkennungssymbole [Bandeiras nacionais: elementos de identidade cultural e símbolos de reconhecimento internacional], 2008. Reprodução da queima de vítimas da Inquisição, in: Portugal, DuMont, 1987, p. 46. Reproduções in: G. Faber/O. Kasper, Portugal, 1983, pp. 84 ss. Reproduzido in: Portugal, DuMont, 1987, p. 63. Outros exemplos nas pp. 67 ss.

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o desenvolvimento das ciências: a cidade universitária de Coimbra (universidade antiga, especialmente a biblioteca universitária, construída entre 1716 e 173211); a Fundação Gulbenkian em Lisboa; danças folclóricas com trajes típicos12; primeiros constitucionalistas que escreveram grandes manuais sobre a Constituição de 1976: Gomes Canotilho e Jorge Miranda; juízes e/ou presidentes importantes (exemplificativamente): Manuel Cardoso da Costa; sobre o Art. 66 (qualidade do meio ambiente e da vida): paisagens culturais como o Algarve, Albufeira e o Parque Nacional de Buçaco, Costa do Sol, vinhedos no Vale do Douro, v. também os “sotaques africanos“13; sobre o Art. 78 (criação cultural): reproduções de objetos do patrimônio cultural nacional, e.g. dos azulejos de feitura artística, do estilo manuelino (1490-1540); Patrimônio Cultural da Humanidade (UNESCO)14: Porto, Tomar, Évora, Sintra; sobre o Art. 79 (cultura física e esportes): como cultura strictiore sensu: provavelmente também a corrida de touros à portuguesa; sobre o Art. 150 (Assembléia da República): Palácio de São Bento15; sobre os Arts. 278-283 (Tribunal Constitucional): reprodução do Palácio, de uma sessão plenária e da representação de grandes sentenças, especialmente sobre os direitos fundamentais.

4.4 Terceira parte: Constituição “como cultura” (teoria) 4.4.1 “Constituição” (inventário em termos juspositivos) Vamos aproximar-nos de início do “tema ‘constituição’” no sentido de um inventário, para que possamos perguntar então pelo sentido, pelas “funções”, e elaborar elementos de teoria. No decurso do tempo as constituições escritas (que servem também à segurança jurídica) desenvolveram determinados elementos estruturais, no tocante à sua forma: iniciam com freqüência com preâmbulos (e. g. abertos com a invocação de Deus), que, “sintonizam” com a obra e contêm formulações prévias em estilo solene, à semelhança de abertu-

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Reprodução in G. Faber/O. Kasper, Portugal, 1983, p. 75. Reprodução in G. Faber/O. Kasper, Portugal, 1983, p. 48. Documentado in: G. Faber/O. Kasper, Portugal, 1983, pp. 142 ss. Reproduções in: UNESCO-Weltkulturerbe, 2003, pp. 214-223. Reprodução in: Portugal, DuMont, loc. cit., p. 96.

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ras e prelúdios culturológicos16, para fundamentar a identidade (e. g. artigo sobre os símbolos). Seguem quase sempre duas partes – garantias dos direitos fundamentais e a parte referida à organização -; por fim as disposições finais e transitórias, freqüentemente uma mescla colorida, mas não irrelevante, arredondam o todo. Tradicionalmente a constituição está referida ao Estado, por isso falamos também do “Estado Constitucional”, constituído pela constituição. Só em tempos mais recentes o conceito de constituição se “expande”, e.g. na direção da Europa ou mesmo do Direito das Gentes. Para ater-nos à dimensão mais formal, registremos o seguinte: na parte referente à organização, no qual são constituídos órgãos como o parlamento, o governo, a administração pública e os tribunais (função organizadora da constituição) encontramos também procedimentos para a alteração da constituição (com ricas variantes) e raras vezes (como na Suíça, com caráter exemplar: “Revisão total”) procedimentos para uma nova constituição da Constituição (com ou sem participação popular) – tudo somado, uma tentativa de constituições para elaborar o “tempo” de forma diferenciada. Passemos aos conteúdos: o “tipo Estado constitucional”, uma conquista civilizatória de muitos séculos e um conjunto de textos de clássicos17 a partir de Aristóteles, passando por Montesquieu e Rousseau, os Federalist Papers (1787) e Hans Jonas “Prinzip Verantwortung [Princípio Responsabilidade]” no Direito Ambiental, aparece em muitas variantes (nacionais), mas pode também ser representado à semelhança de um “tipo ideal”: nos seus fundamentos e elementos, bem como nos direitos humanos, crescentemente diferenciados nos temas e nas discussões, na democracia (pluralista) com partidos políticos, na divisão dos poderes, na identidade (assim no artigo sobre os símbolos do Estado), nos objetivos do Estado (Estado de Direito, Estado de Bem-Estar Social, Estado comprometido com a cultura e, mais recentemente, também Estado comprometido com a proteção do meio ambiente), com freqüência também na divisão vertical dos poderes (federalismo e regionalismo). Típicos para o Estado Cons16

Peter. Häberle, Präambeln im Text und Kontext von Verfassungen [Preâmbulos no texto e contexto de constituições], in: Festschrift Broermann, 1982, pp. 211 ss. 17 Peter Häberle, Klassikertexte im Verfassungsleben [Textos clássicos na vida das constituições], 1981.

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titucional moderno são órgãos constitucionais como a jurisdição constitucional, que foi iniciada em 1803 nos EUA, estabelecida por volta de 1920 na Áustria e iniciou uma marcha triunfal sem precedentes nas décadas depois de 1945 e 1989, praticamente no mundo inteiro. Novos temas (proteção de minorias, ombudsman, cláusulas de subsidiaridade, artigo sobre o pluralismo) foram acrescentados pouco a pouco: e.g. o assim chamado “artigo sobre a Europa” (como na Lei Fundamental alemã, Art. 23, e na Constituição de Portugal, Art. 7º § 5, que normatizaram um segmento de “Direito Constitucional Nacional Europeu”) ou formas do “Estado Constitucional cooperativo” (Lei Fundamental, Art. 24), abertura diante do Direito das Gentes (“visão positiva do Direito das Gentes”, e.g. defesa dos direitos humanos, da segurança internacional, da solução de conflitos, da justiça, cf. Constituição de Portugal de 1976, Art. 7º, antes Constituição da Itália, Art. 11). Por fim, comissões de averiguação da verdade18 (mais recentemente e.g. no Canadá). 4.4.2 Compreensão de constituições da perspectiva alemã (elementos de teoria) Há muito tempo a Alemanha caracteriza-se por uma luta especialmente intensa sobre o que se deve entender por “constituição”. Os próximos tópicos talvez possam transmitir uma primeira orientação. Se para Ferdinand von Lassalle (1862) a essência da constituição residia nas “relações efetivas de poder”, Georg Jellinek afirma na sua grande Allgemeine Staatslehre [Teoria Geral do Estado] (1900) que a constituição seria apenas uma “lei com poder de vigência formal potenciada”. Já aqui vemos como as tentativas individuais de aproximar-se do tema ‘constituição’ muitas vezes formulam apenas meias verdades: decerto a constituição também é uma lei com poder de vigência formal potenciada, à medida que só pode ser emendada com maioria qualificada em procedimentos específicos de Emendas Constitucionais (e.g. Lei Fundamental Art. 79 incs. 1 e 2 e Constituição da Itália, Art. 138)19, mas essa avaliação meramente formal 18

Cf. meu livro Os problemas da verdade no Estado Constitucional, traduzido por Urbano Carvelli. 2008. 19 A respeito desse complexo de questões, v. Peter Häberle, Verfassungslehre als Kulturwissenschaft [Teoria da constituição como Culturologia], 2ª ed. 1998, pp. 267 ss.

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não é suficiente: vista a partir do seu objeto e das suas funções, a “constituição” é bem mais do que isso20. “Nos ombros de gigantes” – essa expressão vale, no meu entendimento, especialmente para a compreensão da Teoria do Estado contida na Lei Fundamental de 1949, com referência à “Constituição de Weimar”. Assim como os célebres anos 20 em Berlim produziram um “florescimento” até hoje admirado nas artes e na ciência, os doutrinadores do Direito de Estado na República Weimar formularam nas suas controvérsias perguntas e deram respostas, clássicas até os tempos atuais, diante das quais nos, os pósteros, somos, quando muito, “anões colocados nos ombros de gigantes” – o que não exclui que nós, por estarmos nos seus ombros, ocasionalmente enxerguemos até mais longe do que esses gigantes! Feita essa ressalva, apresentarei agora algumas posições na “Controvérsia weimariana sobre as direções” [Weimarer Richtungsstreit], foi acompanhada com tanta atenção justamente na Itália (e.g. por Fulco Lanchester)21. A obra “Constituição e Direito Constitucional” de Rudolf Smend (1928) tornou-se influente, sendo conhecida sob a denominação “Teoria da integração” também na Itália, onde chegou a ser traduzida. Smend concebe o Estado como processo de uma integração sempre renovada, no qual, para citar alguns exemplos, as bandeiras, as insígnias e os hinos desempenham um papel importante. Na retrospectiva, essa visão também deve ser vista como tentativa de contra-arrestar a infausta polarização das forças políticas na República de Weimar. Carl Schmitt procede de modo inteiramente distinto. A sua “Teoria da Constituição” (1928) remanesce como uma grande realização, mas em outros escritos ele nos deu deixas, que desservem justamente o Estado Constitucional. Mencionemos aqui a teoria decisionista, segundo a qual decisões normativas procedem

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Sobre o conceito de constituição v. Peter Häberle, Verfassungslehre als Kulturwissenschaft [Teoria da constituição como Culturologia], 2ª ed. 1998, pp. 342 ss. et passim; em posição contrária, partindo de um conceito pré-constitucional de Estado, cf. Josef Isensee, Staat und Verfassung [Estado e Constituição], in: HdBStR vol. 5, 2ª ed. 1995, pp. 591 ss. 21 Fulco Lanchester, Momenti e Figure nel Diritto Costituzionale in Italia e in Germania, 1997. - Da bibliografia alemã especializada cf. Manfred Friedrich, Geschichte der deutschen Staatsrechtswissenschaft [História do Direito de Estado enquanto ciência na Alemanha], 1997, pp. 320 ss.; Michael Stolleis, Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland [História do Direito Público na Alemanha], vol. III. 1914 – 1945, 1999, especialmente pp .153 ss.

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“em termos normativos do Nada” - uma tese, que pode ser refutada já com base no material que nos fornece o Direito Comparado: pensemos apenas no pluralismo de idéias e interesses, que conduziram, para citar um exemplo, às modelares constituições portuguesa (1976), espanhola (1978), bem como a brasileira (1988). Por outro lado, faz-se mister evocar a infeliz expressão, segundo a qual a dimensão política definir-se-ia por um pensamento pautado pela oposição “amigo/ inimigo”. No meu entendimento, a sociedade aberta conhece em princípio “concorrentes”, “adversários”, mas não verdadeiros “inimigos” na constituição do pluralismo. A teoria da integração de Rudolf Smend – na época da sua elaboração de cunho nacional, hoje necessariamente carente de uma reformulação com vistas à Europa – lembra as imprescindíveis formações comunitárias, a função pacificadora da constituição, o “consenso fundamental”, para usar uma expressão moderna, que inclui todos os cidadãos e sem o qual, para citar um exemplo, o funcionamento do princípio da maioridade com a proteção escalonada das minorias nem seria possível. Hermann Heller (1934) lembra o aspecto da “co-atuação consciente, organizada de forma planificada”, mas ele pensa na sua “Teoria do Estado”, até hoje uma obra epocal, conscientemente no Estado e não - de acordo com o imperativo dos nossos tempos - na constituição. Ocorre que no Estado Constitucional o Estado existe apenas na extensão constituída pela constituição (Rudolf Smend/Adolf Arndt). Com Carl Schmitt não podemos nem explicar a Suíça nem construir a Europa. Com vistas à Lei Fundamental alemã surgiu uma outra “conversa constitucional” com participantes em parte proeminentes. Assim o jurista suíço Werner Kägi formulara em 1945 a deixa sobre a constituição “como ordem jurídica fundante do Estado”. Citemos também Horst Ehmke (constituição como “restrição e racionalização do poder e garantia de um processo livre de vida política”)22 e Konrad Hesse (“constituição como ordem jurídica fundante da sociedade politicamente organizada”23). No meu entendimento se faz necessária 22 23

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H. Ehmke, Grenzen der Verfassungsänderung [Limites da emenda constitucional], 1953. K. Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts in der Bundesrepublik Deutschland [Linhas fundamentais do direito constitucional da República Federal da Alemanha], 20ª ed. 1995 (reimpressão 1999), p. 10.

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uma compreensão mista da constituição, na qual as diferentes funções são introduzidas de forma diferenciada. Assim a constituição é e.g. com referência aos objetivos do Estado e à divisão dos poderes “estímulo e limite” (Rudolf Smend), mas também “norma e missão” (Ulrich Scheuner), assim com vistas ao princípio do Estado de Direito e à fixação de outros valores fundamentais. Ela cumpre funções bem determinadas: restringe e controla não apenas o poder (e.g. mediante o terceiro poder), mas funda e legitima-o também (por meio de eleições). Constitui procedimentos para dirimir conflitos (e.g. no parlamento), organiza competências e instituições para fixar e concretizar determinadas tarefas (ao longo das três funções do Estado). Estabelece o Estado aberto (ao mundo) enquanto “Estado Constitucional cooperativo”24 (Lei Fundamental, Art. 24 GG, Constituição da Itália, Art. 11, Constituição do Luxemburgo, Art. 49 bis), bem como a “sociedade constituída” e.g. na “eficácia externa dos direitos fundamentais, no Estado de Bem-Estar Social, e cria possibilidades de identificação para cidadãos e grupos no comprometimento com a lei e o direito ou no hino nacional e nas cores do país (fontes emocionais ou racionais do consenso). No direito constitucional cultural (e.g. sobre os objetivos da educação nas escolas) ela também indica valores que formam o fundo cultural da sociedade aberta (assim e.g. a tolerância, o respeito pela dignidade das outras pessoas, o amor à verdade, o espírito democrático, a consciência ambiental). Vista no eixo do tempo, a constituição (também) é um processo público, tal como hoje podemos distinguir uma “tríade de âmbitos republicanos”: o âmbito da dimensão estatal-organizacional (dos órgãos estatais, e.g. audiências públicas), o âmbito da dimensão sócio-política (e.g. dos sindicatos, das igrejas, da mídia) e o âmbito da dimensão do extremamente pessoal-privado (e.g. liberdade de consciência). A esfera pública é um “manancial da democracia” (Martin Walser), mesmo se sabemos desde Hegel, que na esfera pública encontra-se simultaneamente “tudo o que é verdadeiro e falso”. Mas a constituição é sobretudo cultura. Discutiremos os pormenores dessa definição logo mais.

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Cf. a respeito disso a minha publicação, traduzida por M.A. Maliska: Estado Constitucional Cooperativo. 2007.

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4.5 “Cultura” Depois da aproximação à “constituição” precisamos agora elaborar, por enquanto em separado, o conceito de “cultura”, que lhe deve ser atribuído como correlato. 4.5.1 Deixas sobre o tema “cultura” Deixas sobre o “tema da cultura” devem iniciar com Cícero, possivelmente o maior jurista da Antiguidade romana25. Nas explanações a seguir, não podemos rastrear todos os efeitos desse grande começo no plano da história do conceito ‘cultura’, isso seria um tema à parte. Mencionemos, contudo, obras como a do suíço Jacob Burckhardt, “A cultura da Renascença na Itália” (1919), bem como a Sociologia da Cultura de um pensador como Arnold Gehlen. Há muitos textos clássicos sobre o conceito de cultura, provavelmente em todas as disciplinas da História das Idéias. Lembremos também o conflito em aberto sobre se a matemática é uma ciência natural ou uma ciência da cultura. Na Alemanha, uma das linhas da reflexão sobre cultura desemboca em Max Weber. Lá também encontramos entre os clássicos da República de Weimar, especialmente na história do Direito de Estado, dois “gigantes”, no caso Rudolf Smend e Hermann Heller (1934). Para caracterizar o primeiro, lembremos apenas a sua expressão “direitos fundamentais como sistema cultural” (1928). Devemos a Hermann Heller a tese da Teoria do Estado como ciência da cultura26. Esses trabalhos pioneiros foram retomados apenas no fim dos anos 70 e mais pronunciadamente nos anos 8027. Hoje 25

Da bibliografia especializada: J. Niedermann, Kultur, Werden und Wandlungen des Begriffs und seiner Ersatzbegriffe von Cicero bis Herder [Cultura. O devir e as transformações do conceito e dos seus conceitos substitutivos, de Cícero a Herder]. 1941. 26 Hermann Heller, Staatslehre [Teoria do Estado]. 1934, pp. 32 ss. Da bibliografia especializada: A. Dehnhardt, Dimensionen staatlichen Handelns [Dimensões da ação do Estado]. 1996. De outras disciplinas v. e.g. o projeto “A tolerância como tema cultural”. Para a fundamentação de uma pesquisa interdisciplinar e intercultural sobre a tolerância, ed. A. Wierlacher. 1996. 27 Peter Häberle, Kulturpolitik in der Stadt - ein Verfassungsauftrag [Política cultural municipal - um encargo constitucional]. 1979; Id. Kulturverfassungsrecht im Bundesstaat [Direito constitucional cultural no Estado federativo]. 1980; Id. Verfassungslehre als Kulturwissenschaft [Teoria consticucional como Culturologia]. 2ª ed. 1998); Ulrich Steiner/Dieter Grimm, Kulturauftrag im staatlichen Gemeinwesen [A missão cultural na sociedade politicamente organizada no Estado] in: VVDStRL 42 (1984), pp. 7 ss. ou. 46 ss.; Klaus Stern, Kulturstaatlichkeit – ein

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o conceito de cultura é quase abundante: é usado para denominar praticamente tudo (“cultura culinária”, “cultura do setor privado”, boxe como “cultura”, inclusive - com conotações negativas - “cultura da morte” no sentido do Papa João Paulo II). A cultura se transforma em conceito da moda e passepartout terminológico, correndo o risco de se tornar um conceito pouco fecundo para a pesquisa científica. Tal déficit só pode ser corrigido por uma estruturação e formulação mais precisa, acessíveis justamente a juristas. 4.5.2 Primeiras distinções Uma primeira aproximação tosca pode dar certo a partir dos conceitos opostos. Cultura se opõe a “natureza”. Esta é “criação” ou resultado da evolução. A cultura é criada pelo ser humano, sit venia verbo: uma “segunda criação”. Aqui naturalmente aparecem problemas de delimitação: assim o jurista do Serviço de Proteção do Patrimônio Cultural se vê e.g. diante da pergunta, se partes da natureza, pensadas como que “investidas” [“besetzt”]28* por representações religiosas, como árvores, são cultura pelo fato de determinados povos, por assim dizer chamados primitivos [Naturvölker], vinculam as suas representações religiosas com elas (“espíritos arbóreos”)? No meu entendimento, essa pergunta deve ser respondida positivamente, assim como também falamos de “monumentos da natureza” (cf. Constituição do Estado de Brandenburgo de 1992, Art. 40 inc. 4 al. 3). Deveríamos, porém, preservar a distinção fundamental entre natureza e cultura, mesmo se tivermos a maravilhosa sentença de Goethe em mente: “A natureza e a arte parecem fugir uma à outra e encontram-se, antes que nos demos conta disso...”. O tipo do Estado Constitucional ou a ciência, que o trabalha e nele se manifesta, pode fornecer algumas sugestões diante do pano de fundo do assim chamado “conceito aberto de cultura”, em parte até graças a textos constitucionais positivos do continente europeu. Assim a distinção entre “alta cultura” no sentido do “Verdadeiro,

verfassungsrechtliches Ziel [O caráter do Estado cultural - um objetivo constitucional], in: Festschrift H.-P. Schneider, 2008, p. 111 ss. 28 O autor usa o termo psicanalítico, cunhado por Freud. “Besetzung” costuma ser traduzido por “catexia”, “catexe” ou “investimento”. [Nota do Tradutor]

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Bom e Belo” da tradição da Antiguidade, do humanismo italiano e do Idealismo alemão se oferece à nossa apreciação e aparece, para e.g. em alguns objetivos educacionais de constituições estaduais da Alemanha (cf. Constituição da Baviera de 1946, Art. 131, inc. 2). A “cultura popular”, preservada nos países em desenvolvimento como “cultura aborígine” (cf. Constituição da Guatemala de 1985, Art. 66), é uma segunda categoria. O Estado Constitucional não a despreza e faz bem em agir assim: a democracia também vive a partir dessa espécie de cultura, pensemos no federalismo ou regionalismo, que protege o que é pequeno, a pátria in loco. Culturas alternativas ou subculturas constituem uma terceira categoria. Podem até ser o húmus de altas culturas: entrementes, os Beatles tornaram-se clássicos. “Contraculturas”, e.g. dos primórdios do movimento operário ou dos desempregados dos dias atuais deveriam ser mencionadas também. A abertura do conceito de “arte” no âmbito da liberdade artística (deixa: conceito aberto de cultura)29 mostra que justamente a cultura alternativa também deve ter a sua oportunidade – até o limite da pornografia. Em uma “constituição do pluralismo” a concepção aberta, pluralista de cultura é apenas coerente. Os juristas já se “rididularizaram” com freqüência suficiente com definições, não apenas no Direito Penal, quando negaram apressadamente a obras novas o predicado “arte” ou “cultura”. 4.5.3 Constituição como cultura 4.5.3.1 Teses iniciais Depois do que foi dito até agora, a tese da “Constituição como cultura” prova ser coerente. Não se pergunta pela constituição e pela cultura, muito pelo contrário pela constituição enquanto cultura. Perífrases “meramente” jurídicas, textos, instituições e procedimentos não levam longe. A constituição não é apenas o ordenamento jurídico para juristas, devendo ser interpretada por eles de acordo com as antigas e novas regras do ofício. Ela produz efeitos essenciais também

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Cf. da bibliografia especializada, com documentação comprobatória adiconal, I. Pernice, in: H. Dreier (ed.), Grundgesetz-Kommentar [Comentário à Lei Fundamental], vol. 1. 1996 Art. 5 III (arte), cotas 16 ss. (2ª ed. 2004).

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enquanto guia para não-juristas, para os cidadãos. A constituição não é apenas um texto jurídico ou um conjunto de regras normativas, mas também expressão de um estado de desenvolvimento cultural, meio da auto-representação cultural de um povo, espelho da sua herança cultural e fundamento de novas esperanças. Constituições vivas são uma obra de todos os intérpretes da constituição da sociedade aberta, são, na forma e no conteúdo, muito mais expressão e veiculação de cultura, moldura para a (re)produção e recepção e memória de informações, experiências, vivências e mesmo sabedorias “culturais” transmitidas pela tradição. Correspondentemente mais profundo é o seu modo de vigência – cultural. Ele foi mais belamente apreendido na imagem de Goethe, lembrada por Hermann Heller, segundo o qual a constituição seria uma “forma cunhada, que evolui como um organismo vivo” [“geprägte Form, die lebend sich entwickelt”]. As etapas da história evolutiva do “tipo Estado Constitucional”, a vida dos textos clássicos de Aristóteles a Hans Jonas, que introduz no jogo facetas sempre novas, desses textos clássicos, que foram compreendidos como textos constitucionais latiore sensu e com freqüência “coagularam” literalmente em textos constitucionais strictiore sensu (e.g. a divisão dos poderes em Montesquieu), mas provocam também os seus “contra-clássicos” (e.g. a pergunta de Bertolt Brecht: “Todo o poder de Estado emana do povo, mas promana em que direção?”)30*, a luta por uma compreensão “correta” da constituição, por fim a descoberta e apresentação do Direito Constitucional Cultural Geral e Especial: todos esses elementos evidenciam em comparação com a abertura simultaneamente comparatista e culturológica da teoria constitucional o seguinte: a constituição é cultura, com muitas camadas e diferenciações. Elas absorvem as experiências culturais dos povos, seu solo nutre esperanças culturais até utopias concretas como 30



O jogo de palavras em alemão não pode ser reproduzido adequadamente em português. No equivalente alemão de “Todo o poder de Estado emana do povo”, o verbo “emanar” é expresso por “ausgehen”, um verbo muito concreto, que significa, literalmente, “partir de” (Todo o poder de Estado parte do povo, em tradução literal). Brecht faz um jogo de palavras com outro composto do verbo “gehen” (literamente: caminhar), “hingehen”. Assim, uma tradução literal da frase alemã seria: Todo o poder de Estado sai do povo, mas para onde ele caminha? Mais acima, no mesmo período, foram usados os comparativos latinos “strictiore sensu” e “latiore sensu”, pois a expressão portuguesa “no sentido mais restrito/mais lato” pode ser um comparativo e um superlativo, mas o sentido no texto original é comparativo, daí a preferência pela expressão latina, menos ambígua. [Nota do Tradutor]

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no caso da reunificação da Alemanha. O princípio constitucional individual alimenta-se das camadas profundas do contexto cultural, assim e.g. a compreensão (distinta) do regionalismo, que experimenta agora a sua vitória na Grã-Bretanha (Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte) ou do federalismo (enquanto “federalismo cultural”, como na Alemanha). Também e justamente a Europa, que busca encontrar uma forma constitucional para si mesma, tem como fundo último os seus elementos - orgânicos - da sua cultura jurídica (historicidade, cientificidade, autonomia do Judiciário, liberdade religiosa, multiplicidade e unidade, particularidade e universalidade. A identidade da Europa resulta do enfoque culturológico: a identidade nacional dos Estados-membros, tutelada nos Tratados de Maastricht (1992) e Amsterdã (1997), bem como Nice (2000), é expressão da pluralidade da Europa, que por sua vez é em última e primeira instâncias uma pluralidade cultural. Isso vale também para a Constituição da União Européia de 2004, por enquanto fracassada. 4.5.3.2 O ganho no conhecimento Limito-me a sugerir com uma deixa apenas o ganho no conhecimento, propiciado pelo paradigma da “constituição como cultura”. A Teoria Constitucional será (re)conduzida ao círculo das outras ciências da cultura, e.g. à Ciência da Literatura [Literaturwissenschaft, termo designativo do estudo científico da literatura na universidade alemã] ou à Musicologia. Como aquelas, ela trabalha, por um lado, sobre textos e com textos (Teoria Constitucional como “Ciência dos Textos e da Cultura Jurídica”). Existe uma clara afinidade entre as constituições escritas e as três grandes religiões enquanto “religiões consubstanciadas em livros”. Assim até a Teologia entra no campo visual, desde que trabalhe com métodos hermenêuticos (desde Schleiermacher); o texto, porém, muitas vezes é apenas uma referência ao contexto cultural. A proximidade entre o texto constitucional e a literatura ou a música pode ser melhor mostrada na análise dos preâmbulos. Sua função consiste em literalmente “sintonizar” os cidadãos com a obra apresentada a seguir, em linguagem elevada e própria de feriados comemorativos. São, nessa medida, comparáveis a prólogos, aberturas ou prelúdios. Na Suíça recorreu-se em 1977 à ajuda de um porta (Adolf Muschg), a “Mesa Redonda” em Berlim 96

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Oriental convocou em 1989 a escritora Christa Wolf. Remetemos ainda ao “Hino Nacional”, citado em muitas constituições (e.g. na Constituição da Polônia de 1997, Art. 28 inc. 3). Hinos nacionais pertencem à categoria das “fontes de consenso emocional” de uma sociedade política. Quando controvertidos, verifica-se e negativo quão profunda ou quão elevada é a sua função em termos antropológicos. Não é necessário aqui lembrar o coro dos prisioneiros da ópera “Nabucco” de Giuseppe Verdi como “hino nacional secreto” da Itália e a sua comprovada eficiência contra o secessionismo da “Padânia” de Umberto Bossi (ocorrência em Milão em 1995). A compreensão da constituição enquanto cultura pode explicar também melhor a mudança do significado da norma constitucional sem a alteração do texto. O texto clássico de Rudolf Smend da década de 1950 afirma: “Quando duas Leis Fundamentais dizem a mesma coisa, não querem dizer a mesma coisa” - e isso vale também hoje, apesar dos processos mundiais de produção e recepção, nos quais o tipo Estado Constitucional se desenvolve “na” multiplicidade de seus exemplos nacionais. De resto conceitos como “cultura dos direitos fundamentais”, “cultura constitucional”, propostos na Alemanha em 1979 resp. em 198231, só são possíveis no âmbito geral dessa compreensão culturológica de constituição, aqui esboçada. Mencionemos por fim dois outros ganhos no conhecimento: Na Alemanha, o conceito de constituição é referido classicamente ao Estado, que esquecera a cultura desde Georg Jellinek na configuração da sua teoria dos três elementos (“povo”, “território”, “poder”)32. Hoje, a cultura precisa, na medida em que se trabalha na realização do Estado de Direito, ser incorporada, se não como “primeiro”, ao menos como quarto elemento definidor do Estado33. De resto o conceito de constituição deve ser libertado da sua fixação no Estado. O Direito das Gentes ou Alfred Verdross já fizeram isso em 1926 (“A constituição 31

P. Häberle, Kommentierte Verfassungsrechtsprechung [Jurisprudência constitucional comentada]. 1979, pp. 88 s., 90; Id. Verfassungslehre als Kulturwissenschaft [Teoria constitucional como culturologia]. 1ª ed. 1982, pp. 20 ss. 32 Sobre o conceito de constituição v. Klaus Stern. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland [O Direito de Estado da República Federal da Alemanha], vol. I, 2ª ed. 1984, pp. 19 ss. 33 Uma proposta apresentada cedo, mas não aprofundada, de Günter Dürig, Der deutsche Staat im Jahre 1945 und seither [O Estado alemão em 1945 e desde então], in: VVDStRL 13 (1955), p. 27 (37 ss.).

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da comunidade dos povos”), e hoje justamente não se pode mais trabalhar com a referência ao Estado, com vistas às perspectivas constitucionais da União Européia/Comunidade Européia34. O outro ganho no conhecimento poderia estar no fato de que a teoria constitucional, enquanto culturologia, expressa melhor do que as Ciências Sociais a dimensão “vertical”, “ideal”, se assim quisermos “platônica”. A dignidade humana é a premissa da Antropologia Cultural - é ela que permite ao cidadão o “andar ereto”, elaborado em numerosos processos de socialização cultural. Por isso Hegel se refere com muita concretudo à educação enquanto “segundo nascimento” do ser humano, Arnold Gehlen postula o “retorno à cultura” e a cultura é a “segunda criação” – sendo a democracia a conseqüência organizacional da dignidade humana, tal como a compreendemos no sentido de Immanuel Kant. O caráter de reivindicação normativa, próprio dos princípios constitucionais, a sua simultânea função de traçar limites à ação da política (em busca do poder e guiada pelo exercício do poder) e ao poder excessivo da economia, a sua “força dirigente”, e.g. apreensível nos objetivos do Estado, seus postulados de justiça, muitas vezes insuficientemente tematizados: tudo isso só pode ser apreendido por uma Culturologia que leve a dimensão normativa a sério. A Ciência Jurídica precisamente não é uma “Ciência Social”, diferentemente do apregoado pela Revolta de 1968. A constituição não é idêntica às “relações efetivas de poder” (conforme queria Ferdinand von Lassalle, 1862). Essa força e vontade de dirigir, a “força normativa da constituição” (Konrad Hesse) produz seus efeitos por intermédio de representações mentais norteadoras [Leitbilder], objetivos educacionais, mas também pela tutela jurídica do cidadão, graças aos direitos fundamentais e à autonomia do Poder Judiciário. 4.5.3.3 Ressalvas e limites Com isso entram no campo visual também algumas reservas e alguns limites desse enfoque. Deve-se “lembrar” aqui a normatividade específica da constituição do Estado Constitucional. Ela se distingue 34

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Cf. a esse respeito meus livros Europäische Verfassungslehre in Einzelstudien [Teoria Constitucional européia em estudos avulsos]. 1999, passim, especialmente pp. 15 ss. com documentação comprobatória adicional, bem como Europäische Verfassungslehre [Teoria Constitucional Européia]. 5ª ed. 2008, pp. 349 ss.

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da vigência da torá, de textos bíblicos e versões do Alcorão, uma vez que a sociedade aberta (Karl Popper), a “constituição do pluralismo” caracteriza o Estado Constitucional. Deve-se lembrar também o “conjunto de ferramentas” específicas do jurista, suas regras de método não apenas formais, com as quais ele opera, ao interpretar e.g. uma constituição ou outra norma: com os quatro métodos de interpretação (teor literal, história, sistemática, telos), canonizados desde Friedrich Carl von Savigny (1840) e já praticadas germinalmente na Roma antiga e.g. por Celsus, hoje complementadas pelo método comparativo como “quinto método da interpretação”35, agora também recepcionado pelo Tribunal Constituição de Liechtenstein. O jogo concertado dos quatro ou cinco métodos de interpretação no caso individual deve ser o mais aberto possível; da mesma maneira deve ser mais intenso possível o recurso direto a postulados de justiça, que o pluralismo dos métodos de interpretação deve dirigir, orientandose pelos resultados: tais regras de método são imprescindíveis. O jurista, também e justamente o “jurista europeu”, ganha com isso uma “posição própria” diante de outras ciências, também no âmbito das ciências da cultura. A autonomia relativa do tratamento jurídico de textos legais e contextos culturais remanesce inalterado – apesar de todas as analogias hermenêuticas ou reflexões centradas na interpretação de obras individuais (e.g. da compreensão de um quadro de Rembrandt), apesar de todos os traços em comum com a Teoria da Recepção (e.g. no sentido da Escola de Konstanz de Hans Robert Jauss na área da literatura). O jurista também tem as suas pré-compreensões e seus paradigmas (e.g. a “Mesa Redonda” como novo contrato social), conhece a sua alternância e mudança (na projeção da linha do tempo, e.g. o “contrato intergeracional”), por vezes também a “derrubada” de paradigmas (e.g. a abolição da pena de morte como retaliação “restituidora” no Direito Penal); mas os seus paradigmas produzem efeitos no meio da “sua” ciência, mesmo se ela for uma ciência da cultura. 35

Peter Häberle, Grundrechtsgeltung und Grundrechtsinterpretation im Verfassungsstaat [Vigência e interpretação dos direitos fundamentais no Estado Constitucional], in: JZ 1989, pp. 913 ss. Sobre as conseqüências da comparação de ordenamentos jurídicos para questões de método, v. genericamente: Ernst Kramer, Juristische Methodenlehre [Metodologia Jurídica]. 1998, pp. 190 ss. (2ª ed. 2005); sobre a dimensão européia cf. Helmut Coing, Europäisierung der Rechtswissenschaft [Europeização da Ciência Jurídica], in: NJW 1990, pp. 937 ss.

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4.6 Quarta parte: um projeto para o Brasil (1500-2008) 4.6.1 Observações genéricas sobre a história constitucional em documentos e textos constitucionais: um volume ilustrado do Brasil Embora o volume com textos e ilustrações de Roma (2006) seja único para a Itália e outros países, pouco tempo depois foi publicado no Brasil um volume impressionante do ano 2007, que facilita um pouco mais a um amigo desse grande país, formular em palavras ou mostrar em imagens fortes o potencial constitucional do país: refiro-me ao volume sobre a história constitucional do Brasil, publicado, entre outras instituições, pelo Supremo Tribunal Federal, com muito material ilustrativo36: As Constituições Brasileiras, Fundação Armando Alvares Penteado, 2007. Vejamos alguns tópicos: • a Assembléia Constituinte de 1823 com documentos (pp. 49-53); • a Constituição de 1824 (pp. 33 s.); • moedas com a miniatura da Constituição de 1824 (pp. 56 s.); • quadro da aclamação do imperador Pedro I de 1839 (p. 42); • cerimônia da sagração do imperador Pedro I de 1839 (p. 43); • a Constituição de 1891 (pp. 75 ss.); • a Proclamação da República de 1889 (queda do imperador Pedro II), alegoria (p. 86), Assembléia Constituinte (pp. 92, 97); • a Constituição da República Brasileira de 1891 (autógrafo, p. 107); • die Hymne auf die Verfassung (S. 138). • Getúlio Vargas: Convocação da Assembléia Constituinte de 1933, fotografias dos participantes e textos (pp. 142-148); • Constituição de 1937 (pp. 175 ss.) (documentos fotográficos); • Constituição de 1946 (pp. 221 s.) sob Eurico Gaspar Dutra; • Constituição de 1967 (pp. 249 s.), antes golpe de Estado de 1964 (pp. 251 ss.);

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Algum material não-jurídico encontra-se na publicação alemã Meyers Großes Länderlexikon, 2005, pp. 90 a 97.

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• reunião plenária da Assembléia Constituinte de 1988 (p. 305), recortes de jornais e fotografias de políticos, também caricaturas (pp. 290 ss.). 4.6.2 Complementando: pré-história, informações sobre o Brasil, documentos Além do material contido no volume analisado, são necessários ainda alguns tópicos e ilustrações documentais adicionais: • descobrimento do Brasil (1500). • mapa do Brasil do “Atlas Miller“, por volta de 151937; • índia tupi, quadro de Albert Eckhout, séc. XVII38; • abolição da escravatura (1888); • manifestação de camponeses sem-terra em Salvador (fim do séc. XX)39; • carnaval (no Rio)40; • posse do novo Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva (2003). A lista continua em aberto. 4.6.3 A constituição de 1988 Uma comparação em escala mundial evidencia a existência de dois âmbitos normativos, nos quais a história estatal e constitucional da nação é elaborada de modo altamente concentrado nos termos do Estado Constitucional: o preâmbulo e o artigo referente à bandeira nacional. Como já verificamos anteriormente, isso se comprova de modo impressionante no caso de Portugal. Enquanto “constituição na constituição”, o preâmbulo da constituição esboça a vitória sobre

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Reproduzido em: H. Taubald, Brasilien, 4. Aufl. 2003, S. 30. Reproduzido em: H. Taubald, aaO., S. 33. Reprodução em: H. Taubald, op. cit., p. 48. Reproduções em: H. Taubald, op. cit., pp. 66 ss.

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a ditadura e o colonialismo e o conjunto dos novos princípios constitucionais. Mas a própria bandeira nacional pode ser “lida” na sua execução prática (não no próprio texto constitucional, Art. 11) como “narrativa” da formação multissecular de Portugal, primeiro Estadonação da Europa. Na sua Constituição de 1988, o Brasil infelizmente não criou nenhum artigo específico sobre a bandeira. A rigor, tal artigo deveria ser inserido nos “Princípios fundamentais”, no Título I. Presente em todo o país, a bandeira brasileira funda a unidade da nação e é, tanto nas suas partes como no seu todo, uma bandeira nacional sobremaneira “eloqüente”, especialmente sugestiva nas suas cores e no seu estilo gráfico resp. na sua geometria. Se acrescentarmos o lema (“Ordem e Progresso”) e o céu estrelado sobre o Rio de Janeiro no dia da Proclamação da República (15 de novembro de 1889: 27 estrelas), a bandeira brasileira pertence às mais belas, não apenas da América Latina. Ela produz até um certo ponto o efeito de um “objetivo educacional” e certamente é transmitida assim nas escolas, fixando-se fortemente na memória como símbolo de reconhecimento nas relações internacionais. Ficamos surpresos ao constatar que a Constituição de 1988, muito extensa, às vezes talvez dedicada excessivamente a pormenores, mas na sua totalidade bem-sucedida, perdeu a oportunidade de esboçar a bandeira nacional no texto - como isso é feito de forma exemplar em não poucos países africanos. Seja como for: a proximidade interna, o sentimento do necessário nexo entre preâmbulos de constituições e bandeiras nacionais vividas pela sociedade remanescem uma descoberta científica importante para o Estado Constitucional enquanto tipo. 1) Passemos agora ao Preâmbulo da Constituição de 1988, que define com enorme densidade a autocompreensão do Brasil: garantia do “exercício dos direitos fundamentais sociais e individuais”, da “liberdade, segurança, do bem-estar, do desenvolvimento, da igualdade e da justiça”; ela define como “valores supremos” uma sociedade fraterna, pluralista e livre de preconceitos, fundamentada na harmonia social e no comprometimento com a solução pacífica de litígios nas relações domésticas e internacionais. A constituição assim e a seguir promulgada é posta pela Assembléia Constituinte “sob a proteção de Deus”. O preâmbulo é uma solução feliz em todos os seus aspectos: na sua redação ele assinala a proximidade ao

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cidadão, resume o essencial dos textos subseqüentes e produz um efeito impressionante. Quando muito, falta a dimensão temporal, normalmente típica: a elaboração da história (e.g. do regime militar: 1964 a 1985). O futuro, porém, pode se vislumbrado nos princípios de configuração da constituição, que lhe foram impostos. Formulada como algo evidente per se, a referência a Deus, que não foi ousada no Tratado da Constituição da União Européia de 2004 nem no de 2004, conscientiza as raízes religiosas da cultura brasileira (“Deus é brasileiro”), em que pese a pluralidade de todas as religiões e confissões, inclusive de culturas tribais. Se procurarmos por imagens, devemos pensar e.g. nas grandes igrejas do país (e.g. em Olinda) e, no Rio de Janeiro, na estátua avassaladora do Cristo Redentor. 2) Sobre os direitos fundamentais na Constituição de 1988: Garantidos num Título II, com destaque, eles se dividem em “direitos individuais e coletivos”, nos “direitos sociais” e nos “direitos de cidadania”. Vamos dar-lhes a seguir um suporte imagético, “ilustrá-los”, ao estilo do supracitado volume com textos e imagens da história constitucional italiana: Art. 5º: igualdade das pessoas; como contraste, imagens do período da escravidão41, também o “tratamento desumano” (cf. III), tombamento de “todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” no Patrimônio Histórico em conformidade com o Art. 216 V § 5; a garantia do “livre exercício dos cultos religiosos”, bem como da proteção de “locais de cultos e as suas liturgias” (VI): imagens de rituais de cultos indígenas, não-cristãos, como e.g. da macumba, poderiam ser inseridas aqui; a liberdade da “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” (IX) - documentada nas suas realizações na música (e.g. Villa-Lobos e Tom Jobim, também do samba), na arquitetura (Oscar Niemeyer), nos quadros de I. Nery, Lasar Segall, Cândido Portinari, Alfredo Volpi, C. Tozzi, G. de Barros e outros in: As Constituições Brasileiras,

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Reprodução da gravura de Jean Baptiste Debret, 1822: “Moenda de cana operada por escravos”, cit. ap H. Taubald, Brasil. 4ª ed. 2003, p. 42.

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Fundação Armando Alvares Penteado, 2007, pp. 208 ss. ou 282 ss., e não em último lugar das Ciências Jurídicas, especialmente do Direito Constitucional de imensa vitalidade, com muitos gêneros, que cobrem os espectros do manual doutrinário até a Festschrift (e.g. em homenagem a Paulo Bonavides), do anuário (editado por ele) até a monografia e o comentário; notável é o monumento a Goethe em Porto Alegre; para a proteção da “pequena propriedade rural” (XXVI): uma diferenciação comparativamente modelar da propriedade privada já no plano constitucional (v. também Art. 185 I) – aqui valeria a pena inserir material sobre pequenas propriedades rurais, também sobre o MST, à guisa de ilustração; ação popular (cf. também Art. 14 III) para a proteção da “moralidade administrativa”, do “meio ambiente e [...] patrimônio histórico e cultural” (LXXIII): essa etapa verdadeiramente sensacional do texto deveria ser documentada por meio de fotografias de um procedimento concreto e ilustrada com a reprodução de imagens dos grandes tesouros naturais e culturais do Brasil - mencionemos aqui o Rio Amazonas (sobre ele v. Art. 225 VII § 4) e as florestas tropicais úmidas42, ilhas como Florianópolis43, dos patrimônios histórico e cultural grandes igrejas como as catedrais de Olinda bem como Ouro Preto. - do grande tableau dos “direitos sociais” (Arts. 6º a 11): a contrarealidade das favelas como desafio para a ajuda prometida aos sem-teto no Art. 6º (v. também a “assistência social“ nos Arts. 203 s.), bem como o desemprego apesar dos grandes postulados no Art. 7º (“pobreza como normalidade“)44; deve-se acrescentar em conformidade com uma compreensão positiva da competência a “competência comum” para “combater as causas da pobreza e os fatores da marginalização” no Art. 23 X (v. também Art. 3º III), bem como os impressionantes princípios na parte “Da ordem econômica e financeira” (Arts. 170-181), especialmente a a expressão, evocativa da Constituição Italiana, “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano etc.” (v. também Art. 193: “primado do trabalho”; Art. 1 IV: “os valores sociais do trabalho”)

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Imagens de animais e plantas, também do Parque Nacional das Emas, podem ser encontradas no volume ilustrado de F. Colombini. Brasilia e Goiás. 2004. pp. 66 ss. 43 Cf. a esse respeito o volume ilustrado Santa Catarina. 2004. 44 Cf. a reprodução sob a deixa “Riqueza e pobreza”, in: H. Taubald. Brasilien. 4ª ed. 2003, p. 52.

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3) Elementos culturais de identidade na Constituição de 1988, tais como o idioma, o hino, a bandeira nacional, a diversidade étnica, a comunidade das nações latino-americanas, o esporte (especialmente o futebol): a força unificadora da língua brasileira é mencionada com freqüência, também os certos desvios da matriz lusitana. Da trilogia de feriado nacional, hino nacional e bandeira nacional45 a Constituição do Brasil não tematizou nada no seu texto, mas os três temas da realidade constitucional estão muito presentes; um vigoroso elemento de identidade cultural é formulado pelo Art. 4º (Parágrafo único): empenho pela integração “econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latinoamericana de nações”. Esse artigo integracionista, referido à América Latina, apresenta muitos paralelos em constituições de países vizinhos (e.g. preâmbulo da Constituição da Colômbia de 1991; Constituição do Uruguai de 1967/96, Art. 6º). Ele poderia fornecer a base textual para o desenvolvimento do “direito constitucional latino-americano comum”, pleiteado por mim há vários anos, mas abre também caminho para o MERCOSUL46. As garantias dos “índios”, normatizadas no Cap. VIII Art. 231, integram esse contexto. Aqui foi feito o que um constituinte pode fazer no plano textual. Uma questão distinta é a pela implementação política dessa norma constitucional em vinte anos: material ilustrativo sobre a população indígena brasileira. A pluralidade e homogeneidade da(s) cultura(s) do Brasil enquanto nação “multi-étnica” (até o carnaval carioca47) espelha-se nos Arts. 215 s. da Constituição (v. também Art. 23 IV), que chegam mesmo a ser o tipos ideais de artigos sobre cultura na constituição de um Estado Constitucional. As deixas são aqui as seguintes: direitos de acesso de cada pessoa às “fontes da cultura nacional”, cuja pluralida45

Cf. a esse respeito as monografias do autor: Feiertage als kulturelle Identitätsgarantien des Verfassungsstaates [Feriados como garantias de identidade cultural do Estado Constitucional]. 1987; Nationalhymnen als kulturelle Identitätelemente des Verfassungsstaates [Hinos nacionais como elementos de identidade cultural do Estado cultural]. 2007; Nationalflaggen: Bürgerdemokratische Identitätselemente und internationale Erkennungssymbole [Bandeiras nacionais: elementos de identidade de democracia cidadã e símbolos internacionais de reconhecimento]. 2008. 46 Cf. a esse respeito M.A. Maliska. Die Supranationalität in Mercosur [A supranacionalidade no MERCOSUL], in JöR 56 (2008), pp. 639 ss.; F. Fuders. Die Wirtschaftsverfassung des Mercosur [A constituição econômica do MERCOSUL]. 2008. 47 Cf. o luxuoso livro ilustrado Rio de Janeiro, ed. Hans Donner. 3ª ed. 2005.

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de (culturas populares indígenas e afrobrasileiras, pluralismo cultural), direitos de participação na cultura, fixação de “datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais”, caracterização do patrimônio cultural brasileiro segundo as suas “formas de expressão”, seus métodos e criações, bem como âmbitos de expressão, a multiplicidade das medidas estatais para proteger e fomentar o patrimônio cultural brasileiro, até a proteção dos “sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (1888: abolição da escravatura) em conformidade com o Art. 216 V § 5 (v. também Art. 231: proteção dos índios, da sua “reprodução [...] cultural”).É lícito supor que justamente a garantia da pluralidade das culturas e etnias constitua no Brasil uma garantia fundamental para a unidade desse país gigantesco. Quando muito, sentimos falta de um texto referente ao pluralismo das instituições mantenedoras da cultura (Estado, municípioa, sindicatos: germes no Art. 227). Documentos de imagens são: Manaus, Rio de Janeiro (de acordo com Stefan Zweig a cidade mais linda do mundo), Brasília48, território indígena no Amazonas. 4) Proteção do meio ambiente (Constituição Brasleira, Art. 5º LXXIII, Art. 225): deixas e em parte novos tipos de texto são: “direito a ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, “bem de uso comum do povo”, uma utopia concreta (?), perspectiva das geracões; “integridade do patrimônio genético do País”, “educação ambiental em todos os níveis de ensino”, formação de uma consciência pública, proteção da flora e fauna49 (impressionante é o volume Cenas da Vida Gaúcha, de 2003). Essa proteção ambiental modelar ancorada na constituição pode ser ilustrada sem dificuldade com imagens (cf. apenas as Cataratas do Iguaçu50, o Pantanal, a Amazônia Central), mas os riscos para a floresta tropical úmida são conhecidos. Estamos diante da possibilidade de um “musée imaginaire” (André Malraux), de uma Constituição do Brasil “para todos”.

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Cf. o Monumento a Juscelino Kubitschek em Brasília, reproduzido em: H. Taubald, Brasilien. 4. ed. 2003, p. 40; v. também a sua reprodução em: As Constituições Brasileiras, op. cit., 2007, p. 231. 49 Cf. os volumes ilustrados: brasil retratos poéticos, brazil poetic portraits, nº 1, 2000, nº 2, 2001, nº 3, 2003. 50 Cf. o volume Das Welterbe der UNESCO, Naturwunder und Kulturschätze unserer Welt, Mittelund Südamerika [O patrimônio mundial da UNESCO. Maravilhas da natureza e tesouros culturais do nosso mundo, América Central e América do Sul]. 1997, pp. 304-311.

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5) Políticas, especialmente a “política urbana” (Constituição do Brasil, Arts. 182 s.): o artigo sobre a capital51 referente a “Brasília”52 (Art. 18 § 1) pertence - como também em outras constituições - aos fatores de integração, ao menos no plano da idéia. Mas o “caráter artificial” da capital federal, mencionado com muita freqüência, enseja dúvidas. Faltam os elementos de uma sociedade orgânica de cidadãos in loco. Em termos arquitetônicos, porém, a “capital de proveta” é única, graças a Oscar Niemeyer (cf. o volume ilustrado Oscar Niemeyer. Minha Arquitetura, 1937-2005. 2ª ed. 2005). Mencione-se ainda a implementação da constituição na arquitetura: a “Praça dos Três Poderes”. Decifremos e comentemos o artigo sobre política urbana, provavelmente único no mundo inteiro (v. também Art. 18 § 4), conforme segue: “política de desenvolvimento urbano”, “funções sociais da cidade”, “bem-estar dos seus habitantes”. Material ilustrativo: e.g. sobre a “cidade desmedida” São Paulo53, mas também sobre Curitiba54. 6) A proteção da multiplicidade étnica no Brasil (Constituição Brasileira, Art. 3º IV, 5º VI, 21 X IV, Art. 215, 261, Art. 231; índios55, 232 (direito à ação coletiva); dignas de menção são também as minorias alemãs no Brasil Meridional, cf. a seu respeito o livro A Saga dos Alemães. Do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo, 2004; exemplos de patrimônio da UNESCO no Brasil: centro histórico de São Luís e de Salvador, Brasília, Diamantina. 7) O Estado federativo no Brasil (Arts. 4 e 18): “República Federativa do Brasil” com 26 Estados e um Distrito Federal (Brasília). Surgiram peculiaridades nas constituições estaduais? Art. 25, “Dos Estados Federados”, especialmente o Estado “africano” da Bahia.

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Da bibliografia especializada, em perspectiva comparada: C. Seiferth. Die Rechtsstellung der Bundeshauptstadt Berlin [A posição jurídica de Berlim, capital federal]. 2008; Peter Häberle, Die Hauptstadtfrage als Verfassungsproblem [A questão da capital como problema constitucional], in: DÖV 1990, pp. 989 ss. Cf. o volume: Das Welterbe der UNESCO, Naturwunder und Kulturschätze unserer Welt, Mittel- und Südamerika, 1997, pp. 264-271. Reproduções em Merian: Brasilien, 01/55, pp. 38 ss. Cf. J. P. Fagnani, Curitiba 3D, 2002. Reprodução de uma plantação indígena do pintor alemão Johann Moritz Rugendas (Augsburg, 1858), in: As Constituições Brasileiras, 2007, p. 70. A “Viagem pitoresca” pelo Brasil, com uma imagem da selva, influenciou a teoria da evolução de Charles Darwin há 150 anos (cf. diário Frankfurter Allgemeine Zeitung de 1º de julho de 2008, p. 39).

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8) O Supremo Tribunal Federal em Brasília (Arts. 101-103): Documentação do exterior e do interior, Sala do Plenário, repleta de evocações da história56, menção de grandes sentenças (exemplos de autoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes), tarefa de “guarda da Constituição” (Art. 102), valorização positiva do Direito Processual Constitucional na teoria e na prática.

4.7 Perspectivas Futuras A Constituição Brasileira de 1988 não contém nenhuma referência direta à ligação antiga com a matriz Portugal (de 1500 a 1822), mas ela sobrevive nas formas da língua e da cultura: o mesmo com vistas à África no Norte (música!). Sobretudo os especialistas portugueses e brasileiros em Direito do Estado cooperam estreitamente. Existe também uma Associação Brasil-Alemanha de Juristas. A exploração verdadeira do rico “potencial de cultura constitucional” no Brasil no fundo só pode ser realizada por um brasileiro. Por isso limito-me a apresentar aqui apenas um esboço fragmentário, que não teria sido possível nem germinalmente sem as muitas demonstrações de hospitalidade e as viagens a esse “país do futuro” (Stefan Zweig). A “sociedade aberta dos intérpretes da constituição e dos artistas” do seu belo país continua desafiada. Um volume com textos e imagens, à semelhança do editado em Roma, é um real desiderato para o Brasil. Tradução Peter Naumann

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Cf. o livro ilustrado Supremo Tribunal Federal Brasil, 2004.

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5 A Constituição Brasileira de 1988 e o Direito Penal após 20 anos: uma perspectiva crítica alinhada aos direitos e garantias fundamentais

Daury Cesar Fabriz*

5.1 Considerações preliminares

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ão é de hoje que a sociedade brasileira espera respostas mais satisfatórias por parte do sistema de justiça penal. Como já afirmava Lemgruber (2002, p.155), “a temática da criminalidade e dos meios de controlá-la carrega, por sua própria natureza, um forte apelo emocional”, e, neste contexto, “facilmente o medo se converte em caldo de cultura para demandas vingativas e autoritárias, sobretudo quando amplificado pela mídia e manipulado por interesses políticos”. Hoje, vislumbramos um direito penal vazio de direitos. Um direito penal contra os excluídos. Um direito a serviço da força. Imerso, em grande parte, numa nítida mentalidade repressiva que busca remediar por meio de um Estado policialesco esse mesmo Estado social e economicamente falido (WACQUANT, 2004, p. 12) - o que se observa é um distanciamento, ainda que velado, dos institutos penais em relação às matrizes constitucionais que lhe garantem validade1. Bem verdade que a doutrina atual tem vislumbrado na * Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela FD/UFMG; Coordenador do mestrado em direitos e garantias Fundamentais da FDV; Professor Adjunto do Dep. Direito da UFES; Presidente da Academia Brasileira de Direitos Humanos.

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pena um caráter multifacetado2, todavia, ao que parece, a face prevalente da punição estatal vem sendo a vindicativa ou vingativa, exatamente na contramão dos direitos e garantias fundamentais expressos em nossa Constituição. Em verdade, além de não estancar os problemas atinentes à segurança pública, o tratamento conferido ao direito penal tem reverberado de forma a recrudescer a criminalidade, especialmente considerando as inúmeras violações a direitos individuais em nome de uma pretensa ordenação social. Vale realçar, nesta linha, os inúmeros equívocos de movimentos radicais de política criminal – a exemplo da corrente de Lei e Ordem (law and order) – responsáveis pela crença enganosa, arraigada no imaginário de considerável parcela da população brasileira, de que as respostas adequadas à prevenção e solução dos desvios sociais somente poderiam ser fornecidas pelo direito penal (BULHÕES, 2001, p. 15). Na verdade, um meio que a “melhor sociedade” encontrou para mandar para a invisibilidade uma massa de seres humanos desinteressantes para o modo de produção e consumo vigentes. O que se nota é um gradativo processo de deificação do direito penal, concebido de maneira isolada, por vezes hermética, e içado às raias de provedor da tão almejada estabilidade institucional. Isso tem provocado uma interpretação dos institutos penais dissociada de suas raízes constitucionais, à deriva de influxos maniqueístas e, desapegados de uma interpretação razoável. Uma hermenêutica dissociada da realidade e dos princípios constitucionais. Perfilhando uma percepção atualizada acerca da matéria, Zaffaroni e Pierangeli (2002, pg. 135) chegam a afirmar que a relação entre o direito constitucional e o direito penal deve ser sempre muito próxima, eis que a Constituição Política de um povo constitui-se na primeira manifestação legal da política penal, dentro da qual deve enquadrar-se a legislação penal propriamente dita. Os direitos fundamentais devem funcionar como a pedra angular de todo ordenamen1

Nas palavras de Luís Roberto Barroso (1998, p.128): “No centro do sistema, irradiando-se por todo o ordenamento, encontra-se a constituição, principal elemento de sua unidade, porque a ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado”. 2 Sobre o caráter multifacetado da pena ver Guilherme de Souza Nucci, “Individualização da pena. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2005”

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to, incluindo as leis penais. Assim, o presente estudo busca expressar a importância dos princípios no processo de interpretação do direito, com atenção especial para os princípios de índole constitucional, na qualidade de normas fundacionais de todo o ordenamento jurídico. Ora, se princípios e regras ostentam escalões hierárquicos similares no ordenamento pátrio, o que justifica a repetida opção pelas regras penais em face dos princípios constitucionais, quando da solução de intempéries casuísticas? Nesta perspectiva, serão apuradas as repercussões que tal situação tem perpetrado, bem como as conseqüências colacionadas pelos direitos e garantias fundamentais no estudo e na aplicação do direito penal. Algumas ponderações críticas serão assumidas, na esperança de que novos paradigmas sejam traçados, evitando que o direito penal se perca no universo da pura ostensividade, muitas vezes submerso em demandas sociais conservadoras, na contramão do respeito aos vetores de interpretação constitucional. Tomando-se como referência o atual estágio filosófico em que se encontra o direito, expressado por Luís Roberto Barroso e Ana Paulo de Barcellos (2003, 104) como “Pós-Positivista”, fica fácil perceber quão carcomido está o processo de aplicação do direito penal, especialmente quanto à seleção dos bens a serem tutelados (marcado por um ocaso legiferante sem precedentes), ao estabelecimento de sanções desarrazoadas e da condescendência quase silenciosa às modalidades medievais de execução dessas mesmas sanções. Nesse sentido, quadra, sem demora, estabelecer as balizas das quais o direito penal não pode se afastar, sob pena de ser alcançado pela pecha da inconstitucionalidade, quão afastado estará dos preceitos constitucionais.

5.2 Algumas notas acerca da teoria dos princípios Importante assinalar alguns comentários, ainda que breves, acerca da teoria dos princípios, enfocando o estudo nos princípios constitucionais. Entender que o direito atual encontra-se permeado de normas principiológicas não parece difícil, contudo, se o reconhecimento dessas estruturas de caráter axiológico soa com facilidade, não há o mesmo consenso relacionado à concretização dessas normas. Há uma grande resistência, no ambiente do direito penal em admitir que este se encontre abaixo da Constituição e seus princípios. Fala111

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se hoje, na observância da Constituição Penal, naquele conjunto de normas constitucionais que se refere diretamente ao direito penal (PALMA, 2006, p. 35), contra o anacronismo dos nossos tribunais em relação à aplicação do direito penal. Sobretudo no campo penal, observa-se uma tendência cotidiana pela forma em detrimento ao conteúdo, pelas regras – ainda que atentatórias – aos princípios – ainda que garantidores. Longe de parecer um discurso transcendental, fala-se aqui do direito penal brasileiro, talvez com similitudes ao redor do mundo, mas que ainda precisa de uma sólida atualização perante os influxos de uma teoria dos direitos fundamentais cada vez mais consistente. O direito penal carece de uma maior afetação do direito constitucional e, ainda que quixotesco, este é o caminho mais viável para sua humanização, para a limitação do ímpeto criminalizador do Estado. Assim, o tema das implicações constitucionais no direito penal, antes de antigo ou demasiadamente debatido, e mesmo implicitamente aceito, precisa amadurecer em busca da realização. E tal intento passa, necessariamente, pelo entendimento da dicotômica relação entre regras e princípios. Conforme salienta PALMA ( 2006, 85 ), “ a discussão científica dos problemas concretos do Direito Constitucional Penal implica, pelo menos, uma análise ´desinteressada’ do que subjaz às grandes controvérsias sobre valores.” Uma discussão que deve se afinar ao plano do Estado democrático de direito onde questões sobre o valor da vida e sua inviolabilidade, por exemplo, deve ser uma questão que passe pela construção de um discurso compartilhado com toda a sociedade e não somente pela sociedade visível. Vida, propriedade, igualdade e segurança são princípios consagrados em nossa Constituição. Princípios que precisão ser interpretados (vivenciados), para que sejam valorizados. Antes de acender colorosos debates em torno da natureza jurídica dos princípios, valemo-nos das preciosas lições de Alexy (2002, 83), para quem regras e princípios podem ser resumidos sob um mesmo conceito, qual seja, o das normas. Assim, resume o mestre alemão que “tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados com la ayuda de las expressiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la prohibición. Los princípios, al igual que las reglas, son razones de un tipo muy diferente. La distinción entre reglas y principios es pues una distinción entre dos tipos de normas”.

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Os princípios, no percurso que os conduziu ao centro do sistema, tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam natureza puramente axiológica3, assim como os valores (BARROSO e BARCELLOS, 2003, p. 108). Na verdade, apresentam os princípios uma estrutura deontológica, pressupondo um dever-ser ainda que em raias abstratas. Diante dos diversos critérios apresentados com o escopo de diferenciar regras e princípios, trazemos a muito bem formulada classificação de Humberto Ávila (2006, p.39), construída a partir da observação de pontos de contato entre balizados doutrinadores. Para Ávila, quatro seriam os critérios diferenciadores4: a) o caráter hipotético-condicional; b) o modo final de aplicação; c) o relacionamento normativo; d) o fundamento axiológico. O caráter hipotético-condicional “se justifica no fato de as regras possuírem uma hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao modo se, então, enquanto os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para futuramente encontrara a regra para o caso concreto5” (ÁVILA, 2006, p. 39). Pelo modo final de elaboração entende-se que as regras são aplicadas do modo tudo-ou-nada, consistindo em um processo silogístico

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Segundo Alexy (2002, p. 147): “La diferencia entre principios y valores se reduce así a um ponto. Lo que en el modelo de los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo de los princípios, prima facie debido; y lo que en el modelo de los valores es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los principios, definitivamente debido. Así pues, los princípios y los valores se diferencian solo en virtud de su carácter deontológico y axiológico respectivamente”. 4 O autor (Ávila, 2006, p. 39/40) deixa claro que “todos esses critérios de distinção são importantes, pois apontam para qualidades dignas de serem examinadas pela Ciência do Direito”. Mas, assevera que “isso não nos impede, porém, de investigar modos de aperfeiçoamento desses critérios de distinção, não no sentido de desprezar sua importância e, muito menos ainda, de negar mérito das obras que os examinaram; mas, em vez disso, naquele de confirmar sua valia pela forma mais adequada para demonstrar consideração e respeito científico: a crítica”. Para uma melhor análise da postura crítica do mencionado autor acerca dos critérios apresentados, recomenda-se a leitura das páginas subseqüentes. 5 Neste ponto discordamos. Imagine-se uma hipótese em que a indicação realizada por um princípio não encontre nenhuma regra aplicável ou, ao menos, coerente com o preceito abstrato por ele lançado. Cremos que a generalidade dos princípios não os limita à existência concomitante ou superveniente de uma regra que delimite seu campo de atuação eis que, por vezes, estaríamos condicionado a realização de tão cara positivação de valores ao talante do legislador. Não raro, regras disformes e contrárias aos princípios fundamentais são produzidas – em escala quase industrial pelas Casas Legislativas, e, até por isso, devem os princípios assumir o espaço deixado por elas, seja quando inexistentes, seja quando contrárias aos ditames principiológicos gerais.

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de subsunção dos fatos à norma, onde a lei é a premissa menor, os fatos a premissa maior e a sentença a conclusão (BARROSO e BARCELLOS, 2003, p. 101). Já os princípios são aplicados de modo gradual, balanceado, ponderado – mais ou menos6. O critério do relacionamento normativo se caracteriza pelo fato de o conflito de regras configurar uma situação antinômica, conflitual, solucionável apenas com a declaração de invalidade de uma delas. Os princípios, por sua vez, não se conflitam, senão que buscam a harmonização. Quando colidentes as matrizes principiológicas, um dos princípios cederá espaço àquele mais apropriado a reger o caso concreto, escolha esta dirigida pela aplicação do princípio da proporcionalidade (TAVARES, 2003, p. 27). Por fim, no tocante ao fundamento axiológico, os princípios são tidos como postulados valorativos, axiológicos, da decisão a ser tomada, ao contrário das regras. Feitas as considerações conceituais acerca da teoria dos princípios, sobejadamente no tocante a posição destes diante das regras - ambos ocupam o posto de normas, desempenhando funções diversas, sendo que, ao nosso entendimento, valhem-se os princípios de fundamento ou substrato axiológico para a própria existência das regras – resta a indagação: Por que o direito penal reproduz/aplica com tamanha freqüência regras desatendendo a princípios constitucionais? 5.2.1 A importância dos princípios na era do pós-positivismo No que diz respeito à juridicidade dos princípios, podemos apontar a existência de três fases distintas ao longo da história: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista (BONAVIDES, 2003, p. 259). Merecerá nossa atenção o último estágio apontado, momento a partir do qual apontaremos algumas incongruências hermenêuticas atinentes ao direito penal nos dias atuais.

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Esta característica qualifica os princípios como mandato de otimização (Cf. Alexy, 2002, p. 86): “El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado (...)”.

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Conforme encarta Paulo Bonavides (2003, p.264), a fase póspositivista surge a partir do momento em que “as novas constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”. A evolução histórica do constitucionalismo conferiu às cartas Constitucionais o papel de marco inaugural de uma dada ordem social, ponto de partida e de chegada de qualquer empreitada hermenêutica, parâmetro de validade dentro do ordenamento ao qual dirige7. Até por isso, vinculam não somente os legisladores, mas também os juizes e administradores no tocante a suas normalizações, especialmente aquelas que visem salvaguardar os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Dissertando acerca deste momento histórico Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos (2003, p. 107) pontuam com brilhantismo: “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O Pós-Positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada Nova Hermenêutica Constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explicita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre direito e ética”. E prosseguem os autores citados (2003, p. 108): “O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fundamentais e do reencontro com a Ética – ao qual, no Brasil, se deve agregar o da transformação social e da emancipação – deve ter repercussão sobre o oficio dos juizes, advogados e promotores, sobre a atuação do Poder Público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na Dogmática

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Não estamos aqui advogando a tese da absolutização das normas constitucionais, mas, tão somente, ressaltando seu locus de destaque frente as demais normas de um ordenamento jurídico.

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Jurídica e na pratica jurisprudencial e, indo mais além, produzir efeitos positivos na realidade”. 5.2.2 Direitos ou princípios fundamentais? Diante da relevância jurídica assumida pelos princípios, içados à qualidade de normas fundacionais do ordenamento jurídico, substratos axiológicos e origem de qualquer empreitada hermenêutica, quadra analisar a natureza das normas estatuidoras dos direitos e garantias fundamentais. Sabendo que o objetivo do presente estudo é perquirir acerca do grau de fidelidade que o direito penal tem conferido a estes direitos (ou princípios), trata-se de ponto chave. Um dado importante de nossa época é a significação cada vez maior dos direitos fundamentais (HESSE, 2001, p. 83). Numa primeira abordagem, vale delimitarmos o que vem a ser entendido por direitos fundamentais ou, tendo em vista a pluralidade de acepções, quadra apresentar algumas dentre as conceituações possíveis. Numa definição teórica (FERRAJOLI, 2001, p. 19), os direitos fundamentais são todos aqueles direitos subjetivos que correspondem indistintamente a todos os seres humanos enquanto pessoas8. Em outras palavras (PECES-BARBA, 1999, p. 37), tais direitos podem compreender tanto os pressupostos éticos como os componentes jurídicos, significando a relevância moral de uma idéia relacionada à dignidade humana e seus objetivos, bem como a relevância jurídica que converte os direitos em norma básica do ordenamento, tal como instrumento necessário para que o indivíduo desenvolva as suas potencialidades, dentro do corpo social. Sob um forte viés filosófico, imprescindível a um entendimento profícuo acerca do tema, cunha o Professor Joaquim Carlos Salgado (2003, p. 195) o seguinte conceito: “A expressão direitos fundamentais tem seu significado garantido num fato político de natureza planetarizante: o fato do Estado de Direito, definido como o Estado cuja fina-

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E acrescenta Luigi Ferrajoli (2001, p.19): “(...) entendiendo por derecho subjetivo cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un sujeto por una norma jurídica; y por status la condición de un sujeto, prevista asimismo por una norma jurídica positiva, como pressupuesto de su idoneidad para ser titular de situaciones jurídicas y/o autor de los actos que son ejercicio de éstas.”

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lidade ou ratio essendi é a realização e garantia de direitos subjetivos considerados fundamentais, portanto, que se conferem a todos como pessoas. Esses direitos, quer concernentes à estrutura bio-psicológica (zoon), quer à estrutura noética (logikón) do homem como ser pensante, têm como conteúdo os valores também considerados essenciais que se criaram e se desenvolveram na cultura ocidental.” Não é difícil observar que toda conceituação sobre os direitos fundamentais apresenta-se carreada de elementos axiológicos. Sobre isso, observa-se que os direitos fundamentais não são somente direitos subjetivos, mas também princípios objetivos de ordem constitucional. Dessa forma, a atual interpretação dos direitos fundamentais deve considerá-los como princípios de todo o ordenamento jurídico, e não somente da ordem constitucional. (HESSE, 2001, p. 91) A própria Constituição Federal tratou de conferir importância nuclear aos direitos fundamentais, atribuindo a eles local de destaque em seu corpo. Por certo, dentre as inovações de nossa Carta de 1988, como bem assinalado por Ingo Wolfgang Sarlet (1998, p. 69) “assumiu destaque a situação topográfica dos direitos fundamentais, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, o que, além de traduzir maior rigor lógico, na medida em que os direitos fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda ordem constitucional e jurídica, também vai ao encontro da melhor tradição do constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais.”. A Lei Fundamental (HESSE, 2001, p. 92) provou que não pretende ser uma ordem neutra ante aos valores e, ao erigir um título próprio destinado aos direitos e garantias fundamentais, estatuiu uma ordem axiológica objetiva, expressando um robustecimento da força normativa desses ditos direitos. Esse sistema de valores, cuja espinha dorsal está centrada na dignidade da pessoa humana, deve reger todas as esferas do Estado, isto é, legislativo, executivo e judiciário. E, nas palavras de André Ramos Tavares (2003, p. 45): “Os dispositivos constitucionais que enunciam ditos direitos fundamentais não comportam somente uma força normativa e, por conseqüência, uma norma; mas, em virtude de seu valor, como fundamental por óbvio, assumem verdadeira condição de princípios, sendo fundamento de posições jurídico-subjetivas, isto é, normas definidoras de direitos e garantias, mas também de deveres fundamentais.” 117

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Do exposto, nota-se que os direitos fundamentais, além de sua função originária de instrumentos de defesa da liberdade individual, passam a ser considerados como elementos da ordem jurídica objetiva, atuando dentro de um sistema axiológico na condição de fundamento material de todo o ordenamento jurídico (SARLET, 1998, p. 61). Por fim, e já respondendo a proposição feita alhures, os consagrados “direitos fundamentais” também representam normas de índole principiológica, não estando uma categoria em conflito com a outra. Pelo contrário, o direito tido como fundamental (representante de posições jurídicas) necessita do substrato (norma-princípio) advinda do dispositivo (texto).

5.3 A Constituição e o Direito Penal: a necessária compatibilização de dois campos de força 5.3.1 O “estado de direitos fundamentais”: a dignidade da pessoa humana e sua repercussão na seara penal Como já acentuado, os direitos fundamentais passaram a assumir valor nuclear no âmbito do Estado Democrático de Direito. Conquanto essa postura já date da década de 40 (PIOVESAN, 2003, p. 358), somente com a Constituição de 1988 é que se erigiu um sistema consentâneo com a pauta valorativa atinente à proteção ao ser humano, em suas mais vastas dimensões, em tom nitidamente principiológico, a partir do reconhecimento de uma intrínseca dignidade. Sob a influência das Constituições alemã (Grundgesetz de 1949), portuguesa (1976) e espanhola (1978) – que prezam pela recepção dos direitos humanos e proteção da dignidade humana, o Estado brasileiro assumiu, por meio de sua Carta Constitucional, o status de “Estado de Direitos Fundamentais” (OTERO, 2005, p. 546). E acrescenta Maria Celina Bodin de Moraes, em sua aclamada tese de Livre-Docência (2003, p. 82), que “o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do imperativo categórico kantiano, de ordem moral, tornou-se um comando jurídico no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988, do mesmo modo que já havia ocorrido em outras partes”. O “Estado de Direitos Fundamentais”, nas palavras do jurista lusitano Paulo Otero (2005, p. 546), trata-se de um estado baseado no 118

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respeito pela dignidade da pessoa humana e, ao serviço da garantia da inviolabilidade dessa mesma dignidade inerente a cada pessoa individual e concreta. Assim, a violação dos direitos do homem deixa de ser um assunto de foro exclusivo do Estado em cujo território o fato ocorreu, mas, antes se configura numa questão que a todos diz respeito. Isto significa que a dignidade enquanto valor alcança a todos os setores da ordem jurídica (MORAES, 2003, p. 84). Ponderando acerca do tema, Flávia Piovesan (2003, p. 389) afirma que “se no atual cenário do Direito Constitucional ocidental, pode-se depreender que a hermenêutica que mais contribuiu para a efetividade das normas Constitucionais é aquela que privilegia e potencializa a força normativa de seus princípios fundamentais (a serem levados em conta desde o primeiro vislumbre da norma abstrata, até o momento da decisão dos casos concretos), imperioso é ressaltar que, dentre eles, com força deontológica predominante, está o princípio da dignidade da pessoa humana”. Indubitavelmente, a dignidade da pessoa humana representa o mais fundamental dos direitos fundamentais, devendo toda a ordem normativa se responsabilizar pela manutenção de sua incolumidade. Sem demora, insta sobrelevar que a generalidade inata do princípio da dignidade humana não pode servir de argumento para sua inobservância, uma vez que não é função do ordenamento jurídico determinar o conteúdo, as características ou a avaliação dessa dignidade. Evidente que todos os princípios incorporados à Constituição lograram o devido reconhecimento de que é o ser humano sujeito de direitos, e assim, detentor de uma dignidade cujo âmago é o direito da pessoa a ter direitos (MORAES, 2003, p. 82). Um dos problemas enfrentados no contexto desse “Estado de Direitos Fundamentais”, especialmente no epicentro desta relação entre o direito constitucional e o direito penal, tem sido a consideração acerca da fundamentalidade dos direitos. É saber: qual direito é ou não fundamental? Sem a pretensão de esgotar a matéria, quiçá espinhosa, colacionamos trecho bastante elucidativo acerca da questão: “Não se está mesmo excluindo, urge sublinhar, que num cenário de perda da noção de ‘fundamentalidade’ se procure reivindicar e qualificar como expressão de direitos fundamentais certos comportamentos que, por acção ou omissão, se traduzam, segundo o orde119

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namento jurídico até então vigente, em ilícitos criminais ou em actos atentatórios da dignidade humana, expressando a violação de direitos fundamentais até então dotados de uma integral protecção jurídicocriminal ou cuja garantia da dignidade de cada pessoa impede a sua legitimação jurídica como ‘direitos fundamentais’. Dois exemplos ilustram o último cenário descrito: a reivindicação da existência de um “direito ao aborto”, enquanto direito fundamental de cada mulher dispor livremente de seu próprio corpo, traduziria a passagem de crimes a direitos fundamentais, tal como a reivindicação de um ‘direito a se prostituir’, enquanto expressão do direito fundamental de cada um a dispor, envolveria a legitimação de direitos fundamentais atentatórios da dignidade humana. Em boa verdade, a debilitação da ‘fundamentalidade’ dos direitos fundamentais acabará sempre por esvaziar o próprio conceito em causa: direito fundamental é tudo e não será nada.” (OTERO, 2006, p.182/183). Desde já, assinala-se a expressa fundamentalidade do princípio da dignidade humana e, nessa esteira, devem se direcionar todos os mecanismos penais, buscando utilizar o aparelho punitivo estatal de forma não somente repressiva, mas também pedagógica, pugnando pela melhora, reeducação e reintegração daqueles que transgrediram as normas penais. Sem isso, a lógica sancionatória se torna inócua, uma vez que o sistema se realimentará à medida de sua atuação, dada a ineficácia em oferecer, ainda que tardiamente, condições materiais de inclusão e efetiva participação nos assuntos públicos. Somente quando houver uma real “pertença” ao corpo social poder-se-á falar em igualdade e dignidade para todos. 5.3.2 O papel que se espera do direito penal no âmbito do estado democrático de direito Como já acentuado, as normas constitucionais, sobretudo as de caráter principiológico, servem de baliza, fundamento a partir do qual todas as demais normas guardam uma relação quase que umbilical, sendo desviante qualquer disfunção no processo de reprodução, interpretação ou aplicação dessas normas derivadas. Neste contexto, os princípios constitucionais fundamentais assumem uma essencial função de garantia do cidadão perante o

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poder punitivo estatal. Cezar Roberto Bitencourt (2003, p.09) chama estes princípios, agora já absorvidos pelo direito penal, de “Princípios Fundamentais de Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito”. Por certo, se a Carta de 1988 rege todo o ordenamento com inegável preponderância, aquilo que para ela pareceu fundamental não pode ser tomado como supletivo pelo jurista ou pelo cidadão, em hipótese alguma (PIOVESAN, 2003, p. 363). Apesar de a imbricação dos princípios constitucionais na seara penal ser consenso, na prática, observa-se um apego muito maior a técnicas de decisão (políticas ou judiciais) em completa desarmonia a estas normas fundamentais de cunho axiológico9. Não à toa, há quem afirme que “o direito penal brasileiro mostra-se em fase de concordata” (BULHÕES, 2001, p. 15). E assim, incursionado numa perspectiva de extrema austeridade, o direito penal está colhendo o fracasso de suas escolhas, em especial, no tocante à marginalização de alguns mandamentos nucleares da constituição. Em suma, além de não reduzir a criminalidade, gerou a sensação de impunidade, somados aos entraves da justiça criminal e ao problema penitenciário. No Brasil, diga-se de passagem, a realização do Estado Democrático de Direito encontra claros obstáculos no plano infraconstitucional. Daí a necessidade, cada vez mais reconhecida, em se estudar o direito sob o amparo das normas constitucionais. É dizer: o direito penal, e quaisquer outros ramos da ciência jurídica, não se bastam sozinhos, mas, somente numa perspectiva sistêmica, coordenada em primeiro lugar pelas normas garantistas da Lei Maior. Apesar disto, (NEVES, 2006, p. 256) “definida a Constituição como acoplamento estrutural entre política e direito ou como estrutura normativa mais abrangente do sistema jurídico, verificam-se bloqueios sociais destrutivos da sua concretização. Com maior rigor, pode-se falar de insuficiente concretização normativo-jurídica do texto constitu9

Segundo Marcelo Neves (2006, p. 254), é o problema que se relaciona com a conexão entre “legalismo” e impunidade. E completa o autor: “De um lado, a relação entre direito e seu contexto social tem sido marcada no Brasil por um fetichismo legal socialmente irresponsável. O legalismo não significa, nesse caso, autonomia operacional do sistema jurídico como condição de sua abertura para a diversidade de expectativas e interesses presentes na sociedade. (...) Não se deve confundir esta fórmula ‘autista’ de legalismo com a afirmação rigorosa do princípio da legalidade. Este exige a generalização da lei, importando o acesso de todos os cidadãos ao direito. O fetichismo da lei no Brasil é unilateralista, e funciona como mecanismo de discriminação social”.

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cional. Em outras palavras, há uma desconstitucionalização fáctica no processo concretizador do direito ou uma concretização jurídica desconstitucionalizante”. Ao que se nota, ainda hoje se vislumbra como falaciosa a idéia de uma real e efetiva superposição do direito penal ao direito constitucional, no sentido de um cumprimento intransigente dos ditames preceituados pela Carta Federal, especialmente em relação aos direitos e garantias fundamentais. O penalista espanhol Jescheck, citado por Bitencourt (2003, p. 15), chega a afirmar que a responsabilização do delinqüente pela violação da ordem jurídica “não pode ser conseguida sem dano e sem dor, especialmente nas penas privativas de liberdade, a não ser que se pretenda subverter a hierarquia dos valores morais e utilizar a pratica delituosa como oportunidade para premiar, o que conduziria ao reino da utopia (...)”. Por certo, não há como negar que o direito penal carrega, pela sua própria essência, um caráter aflitivo, ínsito da punição que se pretende aplicar. Inegável também que a sociedade contemporânea aprendeu a viver com os institutos penais e, bem ou mal, representam eles alguma tentativa – ainda que em grande parte malograda – de manter uma convivência palatável. De fato, não se busca desconstituir as bases do direito penal, pregando modelos ao qual a sociedade ainda não teria maturidade suficientemente capaz de os absorver. Quadra, isto sim, buscar alinhar o direito penal, detendo as mãos argutas do Estado que, não raras vezes, insiste em extrapolar seus poderes, imiscuindo o cidadão em face de uma segurança pública falaciosa, que de pública nada tem, e, na verdade, serve como instrumento de perpetuação do status de apenas parte diminuta da sociedade10. 10

“Um dos obstáculos que mais dificultam a realização do Estado Democrático de Direito na modernidade periférica, destacadamente no Brasil, é a generalização de relações de subintegração e sobreintegração. (...) Do lado dos subintegrados, generalizam-se situaçoes em que não tem acesso aos benefícios do ordenamento jurídico estatal, mas dependem de suas prescrições impositivas. (...) Para os subintegrados, os dispositivos constitucionais tem relevância quase exclusivamente em seus efeitos restritivos de liberdade. Os direitos fundamentais não desempenham nenhum papel significativo no seu horizonte de agir e vivenciar (...) Os sobreintegrados, em princípio, são titulares de direitos, competências, poderes e prerrogativas, mas não se subordinam regularmente à atividade punitiva do Estado no que se refere aos deveres e responsabilidades. Sua postura em relação à ordem jurídica é eminentemente instrumental: usam, desusam ou abusam-na conforme as constelações concretas e particulares de seus interesses”. (NEVES, 2006, p. 249/250)

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O direito penal que se espera no contexto de um Estado Democrático de Direitos deve andar, materialmente e não apenas formalmente, junto do direito constitucional – expressão maior da soberania popular. Neste quadro, duas questões serão levantadas, sem que ostentem qualquer preferência sobre as demais, servindo-se unicamente para demonstrar quão afastado das normas constitucionais encontra-se o direito penal: uma se refere à escolha dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, e a outra às condições atuais de execução das sanções penais aplicadas. Os bens juridicamente tuteláveis pelo direito penal já encontram devida limitação na Lex mater11. Neste sentido, a Constituição, mais do que mero repositório dos bens passíveis de criminalização, também contêm os relevantíssimos princípios de modelagem da vida em sociedade. Acerca do tema, Luiz Luisi (2005), tratou de assinalar que “é nas constituições que o Direito Penal deve encontrar os bens que lhe cabe proteger com suas sanções. E o penalista assim deve orientar-se, uma vez que nas constituições já estão feitas as valorações criadoras dos bens jurídicos, cabendo ao penalista, em função da relevância social desses bens, tê-los obrigatoriamente presentes, inclusive a eles se limitando, no processo de formação da tipologia criminal. Esse endereço é hoje dominante, notoriamente na doutrina jurídico-penal alemã e italiana”. É através do texto da Constituição Federal que se espera limitar a criminalização, levando-se em conta os valores constitucionais e os direitos fundamentais garantidos pela Carta Mãe em relação ao Direito Penal. Dessa forma, é possível deduzir que, enquanto o constituinte busca os bens jurídicos penais na sociedade, o legislador os retira da Constituição (PASCOAL, 2006, p. 49). Infelizmente não é esse o caminho seguido pelos legisladores pátrio que, exacerbando suas atribuições legais, cotidianamente se afastam dos preceitos constitucionais e, com considerável freqüência,

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“Em face da procedência das objeções, tem-se sustentado que, embora possam emergir da realidade social bens não valorados nas constituições, e supervenientes à data do início de vigência das mesmas, e que estão a exigir a proteção penal, esta há de fazer-se sem conflito com os princípios constitucionais. É de sustentar-se também que a criminalização desses bens não previstos nas constituições não só não podem entrar em conflito com essas, como nelas encontram para a criminalização limitações insuperáveis. E isso porque nos textos constitucionais a criminalização encontra proibições expressas, bem como vedações implícitas” (LUISI, ).

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dão origem à leis penais emergências, atendendo às pretensões dos espetáculos políticos. Em interessante artigo, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini afirmam que “a alteração da legislação penal em momentos de aguda crise popular (e midiática), tal como a que está ocorrendo neste momento no Brasil, tende a não atender os fins legítimos do Direito penal (de proteção fragmentária e subsidiária de bens jurídicos relevantes). Ao contrário, sempre retrata uma legislação penal simbólica e de emergência. Conceber a norma e a aplicação do Direito penal sob a égide de uma função puramente simbólica significa inegavelmente atribuir-lhe um papel “pervertido”, porque um Direito penal simbólico relega a eficaz proteção de bens jurídicos em prol de outros fins psicossociais que lhe são alheios. Não visa ao infrator potencial, para dissuadi-lo, senão ao cidadão que cumpre as leis, para tranqüilizá-lo, para acalmar a opinião pública. Um Direito penal com essas características carece de legitimidade: manipula o medo do delito e a insegurança, reage com um rigor desnecessário e desproporcionado e se preocupa exclusivamente com certos delitos e determinados infratores. Introduz um exagerado número de disposições excepcionais, sabendo-se do seu inútil ou impossível cumprimento e, a médio prazo, traz descrédito ao próprio ordenamento, minando o poder intimidativo das suas proibições. Exigir ou supor que esse meio de controle social (o Direito penal) possa cumprir funções para além do que sua atribuição social permite, pode significar a exacerbação do seu papel simbólico, com o grave risco de perda de suas reais possibilidades”. Outro ponto de elevada tensão se refere ao sistema prisional. Não restam dúvidas de que o problema da pena privativa de liberdade está na sua própria existência, historicamente concebida para segregar, aviltar e marginalizar os ofensores da ordem social. Se todos os gritos e gemidos de dor, sofrimento e angústia pudessem ser gravados e transmitidos pelas paredes das prisões, talvez ter-se-ia a efetiva representação do inferno, em contornos ainda piores do que aquele descrito por Dante (JÚNIOR, 2001, p. 467). Sendo a pena “um mal necessário” (BITENCOURT, 2001, p. 12) imperioso adaptar o cárcere, na busca de minimizar os insuperáveis gravames de seu estabelecimento. Todavia, não são poucos os relatos descrevendo a situação medieval da quase totalidade dos estabeleci-

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mentos prisionais brasileiros. Ora, além de imputar uma segregação da liberdade, o Estado acaba por atribuir uma punição ainda maior aos encarcerados, qual seja, a de ter sua condição humana diminuída à patamares de vida, por vezes, inferiores a de animais. Apesar da gritante afronta a um sem número de princípios constitucionais, dentre os quais ressoa com maior destaque a dignidade humana, não se vislumbra uma consistente vontade política em solucionar tal problema. Para uns, a inércia do Poder Público tem duas explicações: a) preso não vota, logo, não tem interesses a serem deduzidos politicamente, antes ou depois do escrutínio – se a grande maioria das promessas feitas em campanha não são lembradas após as eleições, o que dizer daquelas que sequer foram ventiladas entes do pleito; b) o preso é um transgressor, uma patologia social, e como tal, não merece tratamento melhor do que aquele que teria se estivesse solto – pensamento representativo do caráter seletivo da justiça penal, que vê nas classes menos abastadas seu público preferencial. Um sistema penitenciário somente será um “sistema” quando constituir uma rede integrada de instituições, órgãos, comandos e ações. Enquanto este “sistema” for se acoplando e se improvisando a partir de pressões de momento, do imediatismo da opinião pública, e se fixando sobre bases ecléticas a respeito de teorias e ideologias acerca do crime, sobre a violência e a criminalidade, ele estará se tornando um emaranhado de casuísmos (SÁ, 2000, p. 02). Dissertando sobre as bases conceituais do sistema prisional, o ilustre Professor Alvino Augusto de Sá (2000, p. 07) assim pronunciou: “Dizer, hoje, que a pena de prisão e o cárcere, por si mesmos, não recuperam ninguém é, simplesmente, dizer o óbvio. Igualmente, dizer que, no lugar de ‘recuperar’, a pena de prisão e o cárcere degradam a pessoa do preso, não significa hoje novidade alguma. Entretanto, nem sempre o que é obvio para todos tem reflexos na prática, ao menos da forma como deveria ter. Nem sempre o fato de ser óbvio garante que se tenha sobre a referida ‘verdade’, uma consciência necessária, uma consciência que seja transformadora”. Dessa forma, ainda que repetitivo, o problema prisional brasileiro ainda espera respostas satisfatórias e, enquanto não for minimamente equacionado, por meio de uma consciência social e política transformadora, significa que não chegou o momento de se calar, 125

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mas, inversamente, demonstra a necessária intervenção da sociedade, seja pugnando pelo respeito integral pela dignidade humana – certos da exigência aflitiva que a própria pena já carreia – seja ela mesma, a sociedade, se familiarizando com essa nova “Era dos Direitos”, momento em que o ser humano deixa de ser meio, para se tornar o fim, a meta a ser buscada por qualquer sistema social, qual seja, a promoção do ser humano pelo simples fato de o ser. Guardar vínculos indissociáveis com o direito constitucional, mais na prática do que na teoria, é o desafio para o direito penal deste novo século. Para isto, necessária se faz a abertura do direito penal para receber os influxos do qual o direito constitucional encontra-se permeado. Como exposto alhures, enquanto o óbvio não for verdadeiramente introgetado, a ponto de se tornar uma consciência transformadora, nada haverá senão uma falsa verdade mascarada por uma vã compreensão.

5.4 Referências bibliográficas ALVES, Roque de Brito. A Constituição e o direito penal. Disponível em: . Acessado em: 23.maio.07. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2002. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2006. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1998. BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretação constitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 101-135. BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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6 La positividad de los derechos sociales en el marco constitucional

Antonio-Enrique Pérez Luño*

6.1 La positividad del derecho y los derechos sociales

C

on la expresión «Derecho positivo» se designa el ius in civitate positum, es decir, el Derecho puesto o impuesto por quien ejerce el poder en una determinada sociedad, y por ello, válido en su ámbito. La idea de una distinción entre el Derecho establecido o puesto a través de las normas que expresan la voluntad de la autoridad (nómos) y las leyes que expresan la justicia de la naturaleza (physis), aparece ya en la Grecia clásica a través de los sofistas. Esta dicotomía se prolonga en las obras de Platón, Aristóteles y los Estoicos, así como reformulada en la filosofía y la jurisprudencia romana. Así, en el Digesto se utilizan los términos de ius naturale (en muchas ocasiones identificado con el ius gentium), que hace referencia a las normas que expresan exigencias éticas de justicia, necesarias, universales, emanadas en la naturaleza y la razón; y de ius civile, cuyas normas tienen por objeto lo que es útil o conveniente, son contingentes, particulares de cada pueblo y prescritas por quienes los gobiernan. La distinción será una constante en la trayectoria histórica de las teorías iusnaturalistas; mientras que tal dicotomía es negada por el positivismo jurídico, que no admite otro Derecho que el positivo, impugnando la juridicidad del Derecho natural.

* Profesor Catedrático de Filosofía del Derecho, Universidad de Sevilla, España.

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Aunque la idea del Derecho positivo, en nuestra cultura jurídica, se remonta al pensamiento clásico greco-romano, su expresión terminológica como ius positivum aparece en el siglo XII utilizado por Abelardo. A partir de entonces los términos «Derecho positivo», o «ley positiva» serán frecuentemente utilizados para designar las normas prescritas como válidas en cada sociedad. En la actualidad las distintas concepciones del Derecho positivo pueden reconducirse a tres: 1) La iusnaturalista, que lo considera necesario para concretar, clarificar o determinar y garantizar el cumplimiento de las exigencias de justicia encarnadas en el Derecho natural; éste actuará como fundamento y límite de los contenidos normativos del Derecho positivo. 2) La positivista, identificadora del Derecho in genere con el Derecho positivo y que cifra su validez en la adecuada producción formal de sus normas por el Estado con arreglo a procedimientos previstos por las normas superiores del propio ordenamiento jurídico positivo, lo que permite identificar las normas que le pertenecen y asegura la unidad, jerarquía, coherencia y plenitud de dicho ordenamiento. 3) La realista, que pone el énfasis en el poder capaz de asegurar la eficacia del Derecho positivo, y considera sus normas como imperativos sancionados por la coacción en la medida en que de hecho son aplicados por los tribunales y cumplidos por sus destinatarios1. Estas concepciones de la positividad no se excluyen entre sí. En los Estados de Derecho la producción normativa regulada por su sistema de fuentes jurídicas responde a exigencias formales expresadas en el principio de validez. Si bien, el fundamento de legitimidad inherente a esas formas políticas, exige que las garantías formales de sus normas positivas se dirijan a la tutela de determinados valores: el conjunto de los derechos fundamentales. A su vez, en los Estados sociales de Derecho, las normas positivas y los valores que las fundamental, deben ser «reales y efectivos» y no meros postulados ideales o formales carentes de fuerza vinculante. No obstante, en los Estados sociales de Derecho, cuyas Constituciones recogen junto a las libertades individuales los derechos económicos, sociales y culturales, se suscita, no pocas controversias 1

A. E. PÉREZ LUÑO, Lecciones de Filosofía del Derecho. Presupuestos para una filosofía de la experiencia jurídica, 8ª ed., 3ª ed. en Mergablum, Sevilla, 2002, pp. 192 ss.

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sobre el status positivo de la categoría de los derechos sociales. La peculiar estructura de los derechos sociales en los que predominan las remisiones expresas a valores, principios o cláusulas generales más que las reglamentaciones analíticas, hacen insuficientes los instrumentos y pautas hermenéuticas de la dogmática positivista forjada en el siglo XIX. No deja de suscitar perplejidad el hecho de que muchos derechos fundamentales, es decir, derechos humanos que han sido objeto de recepción positiva en los textos de máxima jerarquía normativa de los ordenamientos jurídicos ‑las Constituciones‑ carezcan de protección judicial efectiva. Para la dogmática positivista, los derechos públicos subjetivos, por contraste a los derechos naturales, merecían la condición de derechos en cuanto categorías normativas directa e inmediatamente invocables ante los tribunales de justicia. Por eso, desde sus premisas teóricas, que establecían una identificación entre positividad, validez y vigencia del Derecho, resulta imposible ofrecer una explicación satisfactoria de la peculiar naturaleza jurídica de determinados derechos fundamentales del presente, en particular de los derechos sociales. Los textos y las jurisdicciones constitucionales suelen reputarlos normas «programáticas» o pautas informadoras de la actuación legislativa y/o de los poderes públicos. Se trata de derechos cuya tutela efectiva se reenvía al futuro, y que más que obligaciones jurídicas estrictas enuncian compromisos políticos imprecisos. Se suscita así una paradoja fundamental en la teoría de los derechos y libertades del presente. Presque ¿cómo negar la condición de auténticos derechos, a aquellos que han sido válidamente reconocidos (positivados) en textos constitucionales? Pero, al propio tiempo, ¿cómo se pueden considerar derechos positivos enunciados normativos que no son justiciables? La jurisprudencia y la doctrina constitucionalista ha contribuido a confundir, más si cabe, la cuestión al considerar estos derechos como expectativas, pretensiones (claims) o exigencias de futuro. Se plantea así la paradoja insoslayable de unos derechos cuyo status formal es el de normas positivas que satisfacen plenamente los requisitos de validez jurídica de los ordenamientos; pero cuyo status deóntico está más próximo al de los derechos naturales o al de los derechos humanos (en cuanto exigencias humanas que deben ser satisfechas), que al de los derechos fundamentales,

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entendidos como categorías jurídico‑positivas que están dotadas de protección jurisdiccional. El propósito de este trabajo se cifra en un doble cometido: dar cuenta y analizar los principales aspectos del debate sobre la positividad de los derechos sociales; y avanzar argumentos tendentes a justificar la plena positividad y la máxima eficacia de tales derechos.

6.2 La significación de los derechos económicos, sociales y culturales uno de los grandes problemas que suscita la positivación de los derechos fundamentales a nivel constitucional es, sin duda, el que atañe al valor jurídico de los denominados derechos económicos, sociales y culturales, proclamados a escala internacional y en los ordenamientos internos en la mayor parte de las constituciones promulgadas tras la Segunda Guerra Mundial. A lo largo del siglo XIX los conflictos de clase se fueron traduciendo en una serie de exigencias de carácter socio‑económico, que pusieron de relieve la insuficiencia de los derechos individuales si la democracia política no se convertía además en democracia social. Estas reivindicaciones determinarán un cambio en la actividad del Estado que progresivamente abandonará su postura abstencionista y recabará como propia una función social. Dicha función se traduce en una serie de disposiciones socio‑económicas que a partir de la Constitución de Weimar se suelen incluir entre los derechos fundamentales. Conviene, antes que nada, advertir que la expresión «derechos sociales» no posee un significado unívoco y que lo mismo las disposiciones normativas de los ordenamientos que los acogen, que la doctrina, engloba bajo su rótulo a categorías muy heterogéneas cuyo único punto común de referencia viene dado por su tendencia a pormenorizar las exigencias que se desprenden del principio de la igualdad2. 2

Cfr. M. STASKÓW, Quelques remarques sul‑ les «droits économiques et sociaux», en la op. col. Essais sur les droits de l´homme en Europe (Deuxiéme serie), Edition de l´Institut Universitaire d’Etudes Européennes, Turín, 1961, pp. 45 ss. Para un estudio general sobre el alcance de los derechos sociales, vid. las ponencias de B. DE CASTRO y G. PECES‑BARBA en el vol. Derechos económicos, sociales v culturales (Actas de las IV Jornadas de Profesores de Filosofía del Derecho, Murcia, diciembre 1978), Publicaciones de la Universidad de Murcia, 1981; así

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La aparición de los derechos sociales ha supuesto una notable variante en el contenido de los derechos fundamentales. Principios originariamente dirigidos a poner límite a la actuación del Estado se han convertido en normas que exigen su gestión en el orden económico y social; garantías pensadas para la defensa de la individualidad son ahora reglas en las que el interés colectivo ocupa el primer lugar; enunciados muy precisos sobre facultades que se consideraban esenciales y perennes han dejado paso a normas que defienden bienes múltiples y circunstanciales?3. Existe, pues, una evidente diferencia entre la categoría de derechos tradicionales que especifican el principio de libertad, y estos nuevos derechos de signo económico, social y cultural que desarrollan las exigencias de la «igualdad»4. como el vol. col., a cargo de Mª J. AÑÓN ROIG y J. GARCÍA AÑÓN, del que también son autores: L. DE LUCAS, R. MESTRE, P. MIRAVET, J. M. RODRÍGUEZ URIBES, M. RUIZ y A. SOLANES, Lecciones de derechos sociales, Tirant lo blanch, Valencia, 2004. Cfr. también los trabajos de: J. L. CASCAJO, La tutela constitucional de los derechos sociales, Centro de Estudios Constitucionales Madrid, 1988; B. DE CASTRO CID, Los derechos económicos, sociales y culturales, Secretariado de Publicaciones de la Universidad de León, León, 1993; F. J. CONTRERAS PELÁEZ, Derechos sociales: teoría e ideología, Tecnos, Madrid, 1994; G. PECES‑BARBA, Derechos sociales y positivismo jurídico, Universidad Carlos III & Dikinson, Madrid,, 1999; A. E. PÉREZ LUÑO, Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, Tecnos, Madrid, 8ª ed., 2003; id. Los derechos fundamentales, Tecnos, Madrid, 8ª ed.,2004; L. PRIETO SANCHÍS, Estudios sobre derechos fundamentales, Debate, Madrid, 1990, p. 20 ss.; id., “Los derechos sociales y el principio de igualdad sustancial”, en el vol. col., Derechos sociales y derechos de las minorías, UNAM, México, 2000, pp. 15 ss.; A. RUIZ MIGUEL, “Derechos liberales y derechos sociales” en Doxa, 1994, n. 15-16, pp. 65 ss.; S. SASTRE ARIZA, “Hacia una teoría exigente de los derechos socials”, en REP, 2001, n. 112, pp. 253 ss.; M. VAQUER, La acción social. (Un estudio sobra la actualidad del Estado social de Derecho), Tirant lo blanch, Valencia, 2002, pp. 75 ss. 3 N. PÉREZ SERRANO, La evolución de las declaraciones de derechos, Discurso de Apertura del Curso Académico 1950‑5 1, en la Universidad de Madrid, Publicaciones de la Universidad de Madrid, 1950, pp. 86 ss. 4 Estas diferencias han sido muy bien resumidas por V. VAN DYKE, quien comentando el pareado: «Thou shalt not kill, but needst not strive Officiously to keep alive» ha escrito: «This couplet is suggestive of the conception of rights that has been dominant in the Anglo‑ American tradition. Under it the right to life is the right to the protection of a policeman, but not to the services of a doctor. lf the govermnent assures such services, it is a matter of benign policy, not a recognition of a claim of right», Human Rights, the United States, and World Community Oxford University Press, New York‑ London ‑Toronto, 1970, p. 52. En rnuchas ocasiones, se ha llegado a considerar que las libertades y los derechos sociales eran no sólo categorías diversas, sino contrapuestas y que la progresiva ampliación de la esfera de los derechos sociales implicaba necesariamente una disminución de los derechos individuales. Así, se ha creído que la implantación de los derechos sociales a la asistencia sanitaria o a la educación han supuesto, de hecho, una limitación de la libertad de elegir médico o escuela. Entiendo, sin embargo, que el nacimiento y paulatino reconocimiento de los derechos sociales no puede interpretarse como una negación de las libertades, sino como un factor decisivo para redimensionar su alcance; ya que éstas, en nuestro tiempo, no pueden concebirse como un atributo del hombre aislado que persigue fines individua-

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Los derechos sociales tienen como principal función asegurar la participación en los recursos sociales a los distintos miembros de la comunidad. Gurvitch los definió de forma que puede considerarse clásica, como: «droits de participation des groupes et des individus découlant de leur intégration dansdes ensembles et garantissant le caractére démocratique de ces derniers»5. Esta definición permite advertir los caracteres más salientes de los derechos sociales. Así pueden entenderse tales derechos en sentido objetivo como el conjunto de las normas a través de las cuales el Estado lleva a cabo su función equilibradora y moderadora de las desigualdades sociales. En tanto que, en sentido subjetivo, podrían entenderse como las facultades de los individuos y de los grupos a participar de los beneficios de la vida social, lo que se traduce en determinados derechos y prestaciones, directas o indirectas, por partes de los poderes públicos6. Desde otro ángulo conviene señalar que aunque los derechos sociales sean derechos del hombre situado en su entorno colectivo, ello no implica que estos derechos se dirijan a defender sólo intereses colectivos, tesis sostenida por Pergolesi7, o que sólo puedan ejercitarse por los grupos, según se desprende de la tesis de Kaskel8. En realidad la antítesis entre los derechos individuales y sociales no puede situarse en este plano. El derecho de un anciano o de un inválido a la asistencia se ha dicho que tiene como fin inmediato la tutela de un interés individual a la subsistencia y no el de un pretendido interés colectivo a que la categoría de los ancianos o de los inválidos pueda subsistir. La relevancia dada por los derechos sociales a quienes forman parte de determinados grupos deriva del presupuesto de que así se pueden satisfacer mejor las necesidades

5 6 7 8

les y egoístas, sino como un conjunto de facultades del hombre concreto que desarrolla su existencia en relación comunitaria y conforme a las exigencias del vivir social. Sobre el alcance significativo de los derechos sociales, vid., las interesantes observaciones de: J. L. CASCAJO, La tutela constitucional de los derechos sociales, cit., pp. 47 ss.; B. DE CASTRO CID, Los derechos económicos, sociales y culturales, cit., pp. 13 ss.; F. J. CONTRERAS PELÁEZ, Derechos sociales: teoría e ideología, cit., pp. 15 ss. G. GURVITCH, La déclaration des droits sociaux, Vrin, París, 1946, p. 79. Cfr. M. MAZZIOTTI, Diritti sociali, en Enciclopedia del Diritto, vol. XII, Giuffrè, Milano, 1964, p. 804. F. PERGOLESI, Alcuni lineamenti del diritti sociali, Giuffrè, Milano, 1953, pp. 34 ss. D. KASKEL, Begriff und gegenstand des sozialrechts als rechtsdisziplin und lehrfach, en Deutsche Juristen -Zeitung, 1918, pp. 541 ss.

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de aquellos a quienes se intenta proteger. Pero, en todo caso, no se trata de proteger a los grupos en cuanto tales, sino a los individuos en el seno de sus situaciones concretas en la sociedad9. De la misma definición de Gurvitch se desprende que estos derechos pueden satisfacer no tanto los intereses del grupo, sino los de los individuos que los componen.

6.3 Carácter programático de los derechos sociales la amplitud y heterogeneidad de esta nueva categoría de derechos, junto a la nueva significación práctica que reviste su contenido, ha impulsado a un determinado sector doctrinal a trazar una neta separación entre estos derechos y las tradicionales libertades de signo individual. Se señala que, mientras los derechos individuales se dirigen a determinar una esfera dentro de la cual los individuos pueden actuar libremente, los derechos sociales tienden a obtener la intervención del Estado para satisfacer algunas exigencias de los ciudadanos que se consideran fundamentales. A partir de esta distinción se ha pretendido negar el carácter jurídico de estos derechos. Así se ha escrito entre nosotros que «los llamados derechos sociales de las constituciones modernas, tan ampliados en las actuales Declaraciones universales o multinacionales, se mantienen con frecuencia en el terreno de lo programático»10. Esta tesis ha sido ampliamente defendida por la doctrina francesa, tendente, en muchos casos, a reservar la significación jurídico‑positiva a las libertades públicas. A tenor de sus premisas debe trazarse una nítida distinción entre las libertades públicas, cuya actuación depende únicamente de sus titulares, siendo la misión del Estado la vigilancia de su ejercicio en términos de policía administrativa; y los derechos sociales que implican una pretensión frente al Estado, la cual sólo puede ser satisfecha mediante la creación de un aparato destinado a responder a estas exigencias en términos de servicio público. De ahí que la satisfacción de estas prestaciones

9 10

Cfr. M. MAZZIOTTI, Diritti sociali, cit., pp. 804‑805. J. CASTÁN TOBEÑAS, Los derechos del hombre, Reus, Madrid, 1969, p. 126.

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implícitas en los derechos económicos y sociales deje al Estado un amplio margen de discrecionalidad sobre su organización; en tanto que las obligaciones del Estado en materia de libertades son claras y precisas, ya que se refieren a una abstención11. Se ha señalado que los derechos sociales, en tanto no se traducen en normas concretas que especifiquen poderes de hacer y queden relegados al plano de los meros poderes de exigir, no son derecho positivo. A lo sumo constituyen un programa de acción para el legislador, pero en tanto éste no organiza los servicios necesarios para su satisfacción sólo son libertades virtuales. «Ni á l’égard de l’administration ni potir le juge, ils ne peuvent prétendre au traitement dont bénéficient les libertés politiques. lis n’ont qu’une vocation á le devenir»12. De acuerdo con este planteamiento, las libertades públicas se moverían en el terreno del derecho positivo, en tanto que los derechos sociales se hallarían situados, en la mayor parte de las ocasiones, en el plano de las exigencias del derecho natural. El problema ha sido desarrollado también ampliamente por la doctrina alemana, si bien enfocándolo desde distinta óptica. La doctrina iuspublicista germana se planteó la cuestión de la positividad de los derechos sociales a partir de su formulación en la Weiniarer Verjássung. Respecto a la naturaleza jurídica de estos derechos se hizo clásica la tesis de Carl Schmitt, a tenor de la cual los derechos sociales proclamados en la Constitución de Weimar constituían una serie de principios no accionables que tenían como destinatario exclusivo al legislador13. Esta postura ha sido seguida en fecha más reciente y respecto a los principios sociales de la Bonner Grundgesetz por Forsthoff, para quien los mismos funcionan como un mero programa de actuación para el legislador y los órganos del Estado, pero sin que supongan normas jurídico-positivas en sentido estricto14.

11

Cfr. P. BRAUD, La notion de liberté publique en droit ftrancais, LGDJ, París, 1968, pp, 138 ss.; G. BURDEAU, Les libertés publiques, LGDJ, París, 3.ªed., 1965, pp. 19 ss.; C. A. COLLIARD, Libertés publiques, Dalloz, París, 5ª ed., 1975, pp. 22 ss., 41 ss. y 516 ss.; Y. MADIOT, Droits de l’homme et libertés publiques, Masson, París, 1976, pp. 52 ss.; J. RIVERO, Les libertés publiques, cit., pp. 104 ss. 12 G. BURDEAU, Les libertés publiques, cit., p. 23. 13 C. SCHMITT, Verfassungs1ehre. Duncker & Humblot, München‑Leipzig, 1928, p. 128. 14 E. FORSTHOFF, Begriff und Wesen des sozialen Rechtsstaates, Walter de Gruyter. Berlín, 1954, pp. 27 ss.

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6.4 Concepción socialista de los derechos sociales Un papel decisivo en el desarrollo de los derechos sociales le corresponde a la doctrina y la práctica normativa de los países socialistas, en cuyo seno tales derechos ocupaban un lugar primordial al constituir los principios básicos de la estructura social y presidir el ejercicio de todas las libertades, obligando para ello al gobierno y a los distintos órganos sociales15. Los autores socialistas coincidían en afirmar que estos derechos tan sólo pueden ser plenamente satisfechos en el marco político del Estado socialista, ya que tan sólo el sistema social surgido de la revolución del proletariado se halla en condiciones de hacer efectivos para la mayoría de los ciudadanos, antes oprimidos y explotados, los derechos de carácter económico, cultural y social16. La doctrina socialista consideraba el oportunismo político como principio motivador de la consagración de estos derechos en las constituciones de los países occidentales. En efecto, la progresiva actividad del movimiento obrero y las propias exigencias del capitalismo monopolista han redundado en una progresiva injerencia del Estado en el terreno económico, mediante medidas de control y planificación. Estas circunstancias han determinado que el Estado burgués debiera pronunciarse en la esfera de los derechos sociales y económicos. Los derechos sociales han sido el fruto del tránsito del Estado de Derecho liberal al sozialer Rechtsstaat. Ahora bien, lo mismo que para estos autores es dudosa la autenticidad social del Estado social de Derecho17, también resulta imprecisa y oscura su pretendida formulación de los derechos sociales que, al estar faltos de un sistema legal eficaz de medios de ejecución, se convierten en meros slogans de propaganda («mere propaganda slogaris)18. Haciéndose eco de las posturas doctrinales que en los países capitalistas niegan la naturaleza jurídico‑positiva de los derechos 15

Cfr. I. KOVACS, «General problems of rights», en el vol. col., Socialist Concept of Human Rights, Akadémiai kiado, Budapest, 1966, p. 21. 16 Cfr. K. KULCSAR, «Social factors in the evolution of civic rights», en el vol. col., Socialist Concept of Human Rights, cit., p. 161. 17 Cfr., A. E. PÉREZ LUÑO, Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., pp. 212 ss. 18 L. LÖRINCZ, «Economic, social and cultural rights», en el vol. col. Socialist Concept of Human Rights, cit., p. 203.

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sociales, la doctrina socialista llega a la conclusión de que en las constituciones burguesas «the economic and social rights were void of legal value»19. A diferencia del carácter programático que los derechos sociales revisten en estas constituciones, la doctrina socialista insistía en proclamar la naturaleza jurídica, la precisión y amplitud con que tales derechos han sido reconocidos en las constituciones de sus países, las cuales, tomando como modelo la de la U.R.S.S. de 1936, han ido perfilándolos como auténticos derechos fundamentales pertenecientes a los ciudadanos20. Característica fundamental de estos derechos en los sistemas socialistas es su estrecha dependencia de las condiciones de producción, de cuyo desarrollo se consideraban reflejo. Si bien en algunos casos se reconoce que, de hecho, la cultura, las artes y las ciencias poseían una relativa independencia respecto a los factores materiales de producción y su contenido no siempre se hallaba directamente determinado por el desarrollo de las fuerzas productivas21. De otro lado, se consideraba que tales derechos constituyen una obligación directa del Estado, que debe establecer una serie de medidas encaminadas a su disfrute efectivo. Estas medidas no sólo pueden ser de índole jurídica, sino que en gran medida son de carácter económico22. Al igual que los restantes derechos fundamentales, los derechos sociales comportan, en el sistema socialista, un deber general correlativo de ejercerlos de acuerdo con los intereses políticos y económicos del Estado y de la sociedad23. Por último, la mayor parte de juristas socialistas coincidían en afirmar que en sus sistemas jurídicos no existe diferencia entre las libertades y los derechos sociales, constituyendo ambas categorías una unidad desde el punto de vista legal. In a socialist state ‑escribe Kovács‑ there is no difference ‑as to their legal nature‑ between this group of rights (social rights) and what are described as classical liberties24.

19 20 21 22 23

K. KULCSAR, «Social factors in the evolution of civicrights», cit., p. 156. L. LÖRINCZ, «Econornic, social and cultural rights», cit., p. 205. Ibíd., p. 209. Ibíd., p. 202. Cfr. I. SZABÓ, «Fundamental questions concerning the theory and history of citizens’ rights», en el vol. col. Socialist Concept of Human Rights, cit., p. 67. 24 I . KOVACS, «General problems of rights», cit., p. 21.

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En opinión de Szabó la distinción entre libertades y derechos sociales respondían al dualismo existente en el seno de la sociedad civil, fue evidenciado por Marx, entre el hombre y el ciudadano; entre el hombre poseedor de bienes y sujeto de relaciones económicas en el ámbito de la sociedad civil y el ciudadano como miembro de la sociedad políticamente organizada. Ahora bien, esta contradicción desaparece en el sistema socialista, donde, en su opinión, existe una estrecha armonía entre lo político y lo económico y en la que el ciudadano es a un tiempo sujeto de derechos económicos y políticos25. Es más, se insiste en que en la sociedad socialista son precisamente los derechos económicos y sociales, por su conexión con el desarrollo de las fuerzas productivas de estos países, los que determinan las modalidades de ejercicio de todos los demás derechos fundamentales26. En la actualidad el interés y relevancia de la concepción socialista de los derechos sociales se han visto directamente afectados por el desmoronamiento del «bloque del Este». No obstante, estas tesis representaron un mito insoslayable en el reconocimiento del pleno Status positivo de los derechos sociales. No huelga, en todo caso, advertir que el rígido autoritarismo dominante en los sistemas socialistas, ha limitado la virtualidad emancipatoria de los derechos sociales reconocidos en ellos.

6.5 Los derechos sociales como categoría jurídico positiva es innegable que entre los derechos tradicionales de libertad y la nueva categoría de los derechos sociales se dan importantes diferencias, lo mismo respecto a su significación que en lo que se refiere a los medios jurídicos a emplear para su tutela. Ahora bien, esto no debe conducir a un desconocimiento de la profunda complementariedad que existe entre ambas categorías ni a la negación de la positividad de los derechos sociales. En el esfuerzo doctrinal por religar los derechos sociales con la tipología tradicional de los derechos fundamentales elaborada por Jellinek, debe situarsé la reciente consideración de estos 25

I. SZABÓ, , cit., p. 56. 26 L. LÓRINCZ, «Economic, social and cultural rights», cit., pp. 208 ss.

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derechos como expresión del denominado status positivus socialis. Tal status es fruto de la creciente intervención del Estado en el terreno económico y social que crea unos derechos, los cuales no pueden ya entenderse como Staatsschranken (límites de la acción estatal), sino como Staatszwecke (fines de la acción del Estado). Los derechos sociales adquieren de este modo una significación abiertamente polémica respecto a la cómoda ideología individualista del laissez faire, y a su incapacidad para evitar o corregir las tensiones sociales fruto de las desigualdades económicas27. Sin embargo, debe tenerse también presente que, ante los peligros en orden a la libertad del individuo que se derivan de esa creciente intervención estatal en el ámbito de los derechos fundamentales y ante el riesgo de que el status positivus socialis degenerara en un nuevo status subjectionis, determinados sectores de la doctrina han reivindicado bajo la fórmula del status activus processualis el reforzamiento de las garantías jurídicas individuales y la participación activa de los interesados en los procesos de formación de los actos públicos28. En todo caso, se advierte en la actual dogmática iuspublicista alemana e italiana un amplio esfuerzo doctrinal encaminado a perfilar el status jurídicopositivo de los derechos sociales. Estos nuevos derechos han sido considerados como el resultado de la planificación de la asistencia social llevada a cabo por el Estado a través de unas instituciones que, en la concepción de Luhmann, constituyen el reflejo en el plano de la positividad jurídica de determinadas expectativas reales de conductas generalizadas en conexión con determinadas funciones sociales29. 27

Cfr. O. BACHOF, Begrijff und Wesen des sozialen Rechtsstaates, Walter de Gruyter, Berlín, 1954, pp.43 ss.; G. BRUNNER, Die Problematik des sozialen Grundrechte, Mohr, Tübingen, 1971, pp. 4 ss.; P. HÄBERLE, Grundrechte im Leistungsstaat, Walter de Gruyter, Berlín, 1972, pp. 90 ss.; H. VAN IMPE, Les droits économiques et sociaux constituent‑ils une catégorie specifique de libertés publiques?, en la op. col. Perspectivas del Derecho Público en la segunda mitad del siglo XX, cit., vol. III, pp. 46 ss.; F. VAN DER VEN, Soziale Grundrechte, Bachem, Köln, 1963, pp. 51 ss. 28 Cfr. P. HÄBERLE, Grundrechte im Leistungsstaat, cit., pp. 86 SS.; S. CASSESE, «i1 privato e il procedimento amministrativo», en Archivio Giuridico, 1970, pp. 25 ss.; N. TROCKER, Processo civile e Costituzione, Giuffrè, Milano, 1974, passim. 29 N. Luhmann, Grundrechte als Institution, Duncker & Humblot, Berlín, 2ª ed., 1974, pp. 27 y 186 ss. Cfr. también los trabajos de: W. HAMEL, Die Bedeutung der Grundrechte im sozialen Rechtstaat. Eine Kritik an Gesetzgebung und Rechtsprechung, Duncker & Humblot, Berlín, 1957, pp. 16 ss.; W. SCHREIBER, Das Sozialstaatsprinzip des Grundgesetzes in der Praxis der Rechtsprechung, Duncker & Humblot, Berlín, 1972, pp. 146 ss.

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Un importante sector de la doctrina alemana ha llegado incluso a afirmar que en la compleja sociedad actual los derechos del individuo tan sólo pueden tener justificación como derechos sociales. Sin que ello signifique una negación de los valores de la personalidad, sino una superación de la imagen de unos derechos del individuo solitario que decide de forma insolidaria su destino, para afirmar la dimensión social de la persona humana, dotada de valores autónomos pero ligada inescindiblemente por numerosos vínculos y apremios a la comunidad en la que desarrolla su existencia30. A la consideración de los derechos sociales como ingredientes formales de los textos constitucionales se ha dirigido una monografía del austríaco Theodor Tomandl. En ella distingue cuatro sistemas de positivación en los que los derechos sociales aparecen sucesivamente como: principios programáticos constitucionales, normas de organización, derechos públicos subjetivos y mecanismos de garantía. Los cuatro sistemas son considerados críticamente. El primero por su falta de precisión, que compromete el principio de la seguridad jurídica. El segundo porque sitúa el problema de la realización de los derechos sociales en un terreno puramente político y no jurídico. El tercero porque la figura del derecho público subjetivo es difícil de concretar por vía constitucional, por lo que su delimitación queda al criterio del legislador. El cuarto porque sacrifica el valor ideal de los derechos sociales y los relativiza en normas sujetas a permanente evolución. De este examen concluye Tomandl la conveniencia de no utilizar la vía constitucional para la consagración de los derechos sociales, los cuales por su estrecha dependencia del desarrollo de las aspiraciones sociales y por la necesidad de ser, en todo caso, concretados por la legislación ordinaria, es mejor que se incorporen al derecho positivo por vía legislativa31. El trabajo de Tomandl incurre en algunas imprecisiones como la de considerar prototipo de la formulación constitucional de los derechos sociales como derechos públicos subjetivos el ejemplo so-

30

Cfr. E. FECHNER, Die soziologische Grenze der Grundrechte, Mohr, Tübingen, 1954, pp. 33 ss.; P. HÄBERLE, Grundrechte im Leistungsstaat, cit, pp. 95 ss.; P. SCHNEIDER, Droits sociaux et doctrine des droits de I’homme, en APD, 1967, pp. 317 ss.; H. WILLKE, Stand und Kritik der neureen Grundrechtstheorie, Duncker & Humblot, Berlín, 1975, pp. 219 ss. 31 Th. TOMANDL, Der Einbau sozialer Grundrechte in das positive Recht, Mohr, Tübingen, 1967, pp. 24 ss. y 44‑46.

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viético, cuando es notorio que la concepción socialista de los derechos fundamentales es, por principio, opuesta a los presupuestos liberales e individualistas que subyacen a la noción del derecho público subjetivo, entendido como autolimitación de la actividad estatal en favor del interés de los particulares. De otro lado, su conclusión no parece convincente, ya que sustraer los derechos sociales del marco constitucional de positivación de los derechos fundamentales implica: de un lado, consagrar la fractura entre libertades públicas y derechos sociales, propia de la lógica individualista; y de otro, privarles, con el pretexto de su mejor regulación técnica en la legislación ordinaria, de su carácter ejemplar y fundamental (de su carácter ideal como reconoce el propio Tomandl) de toda la convivencia política. Es evidente que los derechos sociales, como todos los derechos fundamentales, se hallan sujetos a una paulatina transformación en la medida en que varían las condiciones socioeconómicas sobre las que se asientan. Ahora bien, esto no es motivo para desconstitucionalizarlos, ya que ello supondría dejar al margen de la ley fundamental uno de los aspectos más importantes que, precisamente, está llamada a reglamentar. En cierto modo el estudio de Tomandl, al poner de relieve las insuficiencias de los mecanismos actuales de positivación constitucional de los derechos sociales, es un dato elocuente de los esfuerzos, cada vez más intensos, fruto de las presiones de la propia experiencia social de perfilar con mayor nitidez su status positivo. Que los resultadoa no sean hasta la fecha plenamente satisfactorios, no es razón suficiente para soslayar esta imperiosa exigencia de nuestro tiempo. Por su parte la doctrina italiana se muestra, en general, partidaria de reconocer el valor jurídico‑positivo de los derechos sociales, al ser plenamente consciente de que la Carta constitucional de 1948 suponía una profunda transformación hasta el punto de haber sido considerada como «Il símbolo a cui fanno appello i sentimenti di libertà e di giustizia»32. El principio social se halla proclamado en el artículo 3,2 de la Constitución, donde se afirma textualmente que: «É compito della 32

V. FROSINI, Costituzione e società civile, Edizioni di Comunità, Milano, 1975, p. 102. M. CAPPELLETTI ha calificado al texto constitucional italiano de: «prograrnrna sociale econornicamente rivoluzionario», «I diritti sociali di libertá nella concezione di Piero Calamandrei», en su vol. Processo e ideologie, Il Mulino, Bologna, 1969, p. 524.

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Repubblica rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale, che, limitando di fatto la libertà e di eguaglianza dei cittadini, impediscono il pieno sviluppo della persona umana e l’effettiva partecipazione di tutti... all’organizzazione política, economica e sociale del Paese». Esta disposición ha sido considerada como fuente de un deber político y jurídico para el Estado de promover una igualdad económica que sirviera de base a que todos los ciudadanos pudieran gozar de aquellos derechos fundamentales que la Constitución considera conexos con el pleno desarrollo de la personalidad humana33. Este principio se estima que no tan sólo debe servir de fundamento a todos los derechos sociales reconocidos en la primera parte del texto constitucional italiano, sino que debe servir de inspiración para el funcionamiento de todas las instituciones jurídicas públicas y privadas. De este modo la citada norma constitucional ha servido de fundamento para replantear la función de la equidad, e incluso a determinadas actitudes dentro del llamado «uso alternativo del derecho». En el sentido de que, si se parte del principio de que los ciudadanos son iguales ante la ley y poseen los mismos derechos, deben poder participar en situación de igualdad en las ventajas que dimanan de la sociedad, y que es tarea del Estado hacer que tal derecho sea respetado, evitando que los más poderosos opriman a los débiles y que la desigualdad de hecho destruya la igualdad jurídica34.

6.6 Libertades individuales y derechos sociales conviene señalar, finalmente, que, pese a las peculiaridades evidentes que distinguen la nueva categoría de los derechos tradicionales de libertad, no por ello cabe establecer una fractura tajante entre ambas, como se desprende de las tesis que niegan a los primeros la positividad. Un análisis de la estructura de los derechos sociales permite revelar que no se dan diferencias sustanciales respecto de las libertades en los planos de: 33

Cfr. M. MAZZIOTTI, Diritti sociali, cit., pp. 803‑804; C. MORTATI, Costituzione della Reppublica italiana, en Enciclopedia del Diritto, cit., vol. XI, p. 222. 34 Cfr. L’equità Atti del Convegno di studio svoltosi a Lecce (9‑11 novembre 1973), Giuffrè, Milano, 1975; y la op. col. a cargo de P. BARCELLONA, Uso alternativo del diritto, Laterza, Bari, 1973.

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a) La fundamentación, ya que es inexacta la postura doctrinal que supone un fundamento iusnaturalista en las libertades negándolo a los derechos sociales, que son considerados como una categoría contingente en la que, en la mayor parte de ocasiones, se proclaman necesidades artificiales o transitorias35. Precisamente las nuevas corrientes de pensamiento iusnaturalista insisten en apartarse de la vieja aspiración del iusnaturalismo racionalista de formular, de una vez por todas, el catálogo eterno e inmutable de los derechos del hombre, por considerar que tal actitud fue uno de los principales errores que abonaron la crítica historicista contra el derecho natural. En nuestros días diversas tendencias y corrientes iusnaturalistas se han hecho cada vez más sensibles a la historia; y bien sea en base a la tradición iusnaturalista clásica que siempre fue consciente de la necesidad de adecuar los principios del derecho natural a las circunstancias de tiempo y lugar, bien recurriendo a fundamentaciones de tipo sociológico, coinciden en propugnar una concepción abierta y dinámica de los derechos naturales. Es más, dadas las exigencias de la compleja sociedad de nuestra época, no han faltado quienes han puesto de relieve que los derechos fundamentales sólo pueden desempeñar una función para los individuos en tanto que derechos sociales: «die Grundrechte überhaupt nur als soziale Grundrechte eine Funktion für das Individuum haben körmen»36. De ahí que atendiendo a la fundamentación de estos derechos se estime que más que una categoría especial de derechos fundamentales constituyen un medio positivo para dar un contenido real y una posibilidad de ejercicio eficaz a todos los derechos y libertades37. Es evidente que en el plano de la fundamentación no puede considerarse menos «natural» el derecho a la salud, a la cultura y al trabajo que asegure un nivel económico de existencia conforme 35

Cfr. J. CASTÁN TOBEÑAs, Los derechos del hombre, cit., pp. 128 ss.; N. PÉREZ SERRANO, La evolución de las declaraciones de derechos, cit., pp. 86 ss. 36 H. WILLKE, Stand und Kritik der neueren Grundrechtstheorie, cit., p. 219. 37 Así, ha podido escribir W. ABENDROTH que: «... die Grundrechte sind aus liberalen Ausklammerungsrechten... zu demokratischen Beteilungsrechten... geworden», en su vol. Das Grundgesetz. Eine Einführung in seine politischen Probleme. Neske, Stuttgart, 1966, p. 75. En el mismo sentido se han manifestado: P. HÄBERLE, Grundrechte im Leistungsstaat, cit., p. 90 ss.; y H. VAN IMPE, Les droits éconorniques et sociaux constituent‑ils une catégorie spécifique de libertés publiques?, cit., p. 48.; vid., también, A. E. PÉREZ LUÑO, Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., pp. 90 ss. y 120 ss. ; id., Los derechos fundamentales, cit. pp. 203 ss.

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a la dignidad humana que el derecho a la libertad de opinión o el derecho de sufragio. De otra parte, resulta evidente también que de poco sirve proclamar determinadas libertades para aquellos sectores de población que carecen de medios para disfrutarlas. El realismo más elemental obliga a reconocer que las libertades puras, aquellas cuyo disfrute sólo dependería de la abstención del Estado, se hallan irremediablemente superadas por la evolución económica y social de nuestro tiempo. ¿Qué sería ‑se pregunta Burdeau‑ de la libertad de circulación, sin un código del tráfico, de la libertad de cultos sin las subvenciones para el mantenimiento de los templos, de la libertad de prensa sin privilegios fiscales para los periódicos...?38. En la coyuntura actual lo mismo el disfrute de las libertades que el de los derechos sociales exigen una política social apropiada y unas medidas económicas por parte del Estado. Sin ellas, proclamar que «la escuela o la cultura se hallan abiertas a todos» se ha dicho que sería tan ilusorio como decir que «el Hotel Ritz se halla abierto a todos»39. La complementariedad recíproca que en el terreno de la fundamentación asumen ambas categorías de derechos es corolario de la necesaria intervención estatal para su realización efectiva; intervención que ha ido aunada al progresivo reconocimiento de los derechos sociales. De ahí que si el reconocimiento de los derechos individuales supone una garantía frente al absolutismo del Estado, que si no sitúa como fin de su política social la libertad, degrada los derechos de sus ciudadanos a simples intereses objeto de protección en cuanto sean acordes con los de quienes detentan el poder; la proclamación de los derechos sociales suponen una garantía para la democracia, esto es, para el efectivo disfrute de las libertades civiles y políticas. b) En el plano de la fórmulación tampoco parece aceptable la teoría que sostiene que, mientras las libertades se hallan plenamente positivizadas en la constitución, los derechos sociales tan sólo pueden ser recogidos programáticamente, pero no adquirirán carácter jurídico‑positivo hasta no ser desarrollados por vía legislativa40. 38 39

G. BURDEAU, Les libertés publiques, cit., p. 19, nota. La frase es del Prof. CALOSSO, citada por M. STASZKÓW, Quelques rentarques sur les droits économiques et sociaux, cit., p. 55. 40 Cfr. E. FORSTHOFF, Begriff und Wesen des sozialen Rechtsstaates., cit., pp.27 ss.; D. H, SCHEUING, «La protection des droitsióndamentaux en Republique Federale d`Allemagne», en la op. col. Perspectivas del Derecho Público en la segunda mitad del siglo XX, cit., vol.III, pp. 315 ss.

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El Derecho constitucional comparado ofrece numerosas muestras de derechos sociales cuya actuación no exige la integración legislativa. Así, por ejemplo, se ha puesto de relieve que en Italia el derecho a un salario equitativo ha sido generalmente considerado por la jurisprudencia como fundado de forma inmediata en el artículo 36 de la Constitución41. En tanto que los derechos de libertad necesitan también, en muchas ocasiones, de la intervención del legislador para poder ser directamente exigibles y, en consecuencia, para poseer plena garantía. c) En relación con lo anterior, y respecto a la tutela de ambas categorías de derechos, debe también rechazarse la afirmación de que mientras los derechos de libertad se benefician de la tutela constitucional directamente los derechos sociales no pueden ser objeto inmediato de tal tutela42. Si la constitución puede formular positivamente los derechos sociales puede también tutelarlos en igual medida que a los demás derechos en ella proclamados. Así, si se proclama por vía constitucional y con carácter general para todos los trabajadores el derecho a la asistencia sanitaria podría impugnarse como anticonstitucional cualquier disposición de rango inferior que excluye a un determinado grupo de trabajadores de ese beneficio, al igual que una ley que suprimiera la libertad de culto o el derecho de sufragio43.

6.7 La eficacia de los derechos sociales en el derecho privado un problema más arduo es el que se refiere a la titularidad de los derechos sociales y su eficacia frente a terceros. Ya que, en muchas ocasiones, el Estado no realiza directamente las obligaciones que se derivan de estos derechos, sino que las impone a otros sujetos, de modo especial a los empresarios en las prestaciones que se desprenden del derecho al trabajo. Por ello se ha suscitado la cuestión de si la titularidad de estas facultades jurídicamente corresponde sólo al Estado o también es el mismo derecho social reconocido por la constitución, o bien un derecho privado surgido de la relación jurídica entre empresarios y trabajadores. El problema ha sido abordado con 41 42 43

M. MAZZIOTTI, Diritti sociali, cit., p. 806. Cfr. J. RIVERO Les libertès publiques, cit., pp. 104 ss. Cfr. M. MAZZIOTTI, Diritti sociali, cit., pp. 806‑807.

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especial atención por la doctrina y la jurisprudencia alemana en relación con la denominada Dritwirkung der Grundrechte (eficacia frente a terceros de los derechos fundamentales). Se trata, en suma, de la aplicación de los derechos fundamentales no sólo en las relaciones entre el Estado y los ciudadanos, sino también en las relaciones entre personas privadas. Se ha objetado, por algunos sectores doctrinales, que esta tesis es fruto de una ilación lógica incorrecta, que desconoce la auténtica naturaleza de los derechos fundamentales, ya que se entiende que tales derechos son derechos públicos subjetivos destinados a regular relaciones de subordinación entre el Estado y sus súbditos, pero que no pueden proyectarse «lógicamente» a la esfera de las relaciones privadas presididas por el principio de la coordinación. Desde esta óptica se conciben los derechos fundamentales como preceptos normativos surgidos para tutelar a los ciudadanos de la omnipotencia del Estado, pero que no tienen razón de ser en las relaciones entre sujetos del mismo rango donde se desarrollan las relaciones entre particulares. Es fácil advertir el carácter ideológico de este razonamiento ligado a una concepción puramente formal de la igualdad entre los diversos miembros integrantes de la sociedad. Pero es un hecho notorio que en la sociedad moderna neocapitalista esa igualdad formal no supone una igualdad material, y que en ella el pleno disfrute de los derechos fundamentales se ve, en muchas ocasiones, amenazado por la existencia en el plano privado de centros de poder, no menos importantes que los que corresponden a los órganos públicos. De ahí que se haya tenido que recurrir a una serie de medidas destinadas a superar los obstáculos que de hecho se oponen al ejercicio de los derechos fundamentales por parte de la totalidad de los ciudadanos en un plano de igualdad. La repercusión del principio de la Drittwikung en el plano del reconocimiento jurídico de los derechos sociales ha sido clara. Tales derechos han sido derivados por la doctrina y la jurisprudencia alemanas del artículo 20,1 del Grundgesetz, donde se afirma: «Die Bundesrepublik ist ein demokratischen und sozialen Bundesstaat». Se ha visto en esta cláusula general una directiva para todos los poderes públicos y órganos del Estado encaminada a corregir los desequilibrios que de hecho existen en las relaciones entre particulares. De forma explícita, y con especial referencia a los derechos sociales, ha señalado

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la Corte federal del trabajo (Bundesarbeitsgericht) que estos derechos fundamentales no garantizan sólo la libertad del individuo frente al poder público, sino que contienen principios ordenadores de la vida social (Ordnungsgrundsäzte für das soziale Leben), que tienen también relevancia inmediata para las relaciones jurídico‑privadas44. Es difícil resolver el problema de la incidencia en el derecho privado de los derechos sociales fundamentales en sentido uniforme, ya que depende de la técnica según la cual hayan sido formulados en cada sistema constitucional. En todo caso, en los sistemas en que se considere que los beneficiarios de los derechos sociales pueden asumir su titularidad, tales derechos funcionarán y deberán entenderse como auténticos derechos fundamentales y no como un mero reflejo normativo para las relaciones entre obligados y beneficiados en el ámbito privado. Debe tenerse presente que quienes impugnan el principio de la Drittwirkung parten de una supuesta identidad entre las nociones de los derechos públicos subjetivos y los derechos fundamentales que no se comparte en esta investigación. Ya que los derechos públicos subjetivos, ligados al Estado liberal de Derecho, reposaban en un acentuado 44

Cfr. la sentencia de 3 de diciembre de 1954, en Neue Juristische Wochenschrift, 1955, pp. 606 ss. La tesis de la Drittwirkung der Grundrechte fue enunciada por H. C. NIPPERDEY, Die Würde des Menschen, en el vol. col. a cargo de F. L. NEUMANN, H. C. NIPPERDEY Y U. SCHEUNER, Die Grundrechte. Handbuch der Theorie und Praxis der Grundrechte, t. II, Duncker & Humblot, Berlín, 1954, pp. 18 ss.; también ha contribuido a perfilar su alcance: J. SCHWABE, Die sogenannte Drittwirkung der Grundrechte, Goldrnann. München, 1971. En contra de ella se han pronunicado; E. FORSTHOFF, Die Umbildung des Verfassungsgesetzes, en Festchrift für Carl Schmitt, Duncker & Humblot, Berlín, 1959, pp. 44 ss.; y H PETERS, Geschichtliche Entwiklung und Grundfragen der Verfassung, Springer, Berlin‑Heidelberg‑New York, 1969, pp. 244 ss. Respecto al desarrollo, en general, de los derechos fundamentales en relaciones jurídicas de derecho privado, vid. en la doctrina italiana: P. RESCIGNO, «Il principio di eguaglianza nel diritto privato», en Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1959, pp. 1515 ss; P. VIRGA, Lbertà giuridica e diritti fondamentali, Giuffrè, Milano, 1947; en la doctrina alemana: R. ALEXY, Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt a M., 1986, de la que existe una cuidada versión cast. de E. Garzón Valdés, revisada por R. Zimmerling, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, pp. 506 ss.; W. LEISNER, Grundrechte und Privatrecht, Beck, München, 1960; L. RAISER, «Der Gleichheitsgrundsatz im Privatrecht», en ZfH, 1947, pp. 75 ss.: W. REIMERS, Die Bedeutung der Grundrechte für das Privatrecht, Broschek, Hamburg, 1958; en España, vid. los trabajos de: J. M. BILBAO UBILLOS, La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares, BOE & CEPC, Madrid, 1997; T. QUADRA‑SALCEDO, El recurso de amparo y los derechos fundamentales en las relaciones entre particulares, Cívitas, Madrid, 1981; J.GARCIA TORRES y A. JIMENEZ BLANCO, Derechos fundamentales y relaciones entre particulares, Civitas, Madrid, 1986; A. E. PÉREZ LUÑO, Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., pp.92 ss. y 312 ss.

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individualismo, que ha sido superado por la noción más amplia de los derechos fundamentales, surgida precisamente para englobar no sólo a las libertades tradicionales de signo individual, sino también a los derechos sociales. Por ello, los derechos fundamentales no limitan su esfera de aplicación a las relaciones entre el Estado y los particulares, sino que pueden dar lugar a preceptos jurídicos aplicables en el seno de las relaciones entre personas privadas, cuando sea necesario establecer un equilibrio entre situaciones marcadamente desiguales. En otras palabras, los derechos sociales, en cuanto derechos fundamentales, suponen la consagración jurídica de unos valores que por su propia significación de básicos para la convivencia política no limitan su esfera de aplicación al sector público o al privado, sino que deben ser respetados en todos los sectores del ordenamiento jurídico. Debe, por último, insistirse en que la titularidad de los derechos sociales no debe considerarse privativa de los grupos, sino que, como ya se ha indicado, puede corresponder también a los individuos. Ya que la función de los derechos sociales no es tanto la de hacer titulares de sus facultades a los grupos, sino más bien la de proyectar su titularidad al individuo que actúa y desarrolla su existencia concreta integrado en determinadas agrupaciones sin que, por tanto, sus intereses puedan marginarse por completo del bien colectivo45.

6.8 Los derechos sociales en la constitución española antes de poner fin a esta exposición conviene hacer referencia al sistema de positivación de los derechos sociales empleado en la Constitución española de 1978. Sobre esta cuestión puede afirmarse que los instrumentos de positivación empleados en el texto constitucional para formular los derechos sociales responden a la tipología anteriormente expuesta. Los derechos económicos, sociales y culturales vienen proclamados, por tanto, como: 1) Principios constitucionales programáticos. En este sentido debe entenderse la aspiración recogida en el Preámbulo de: «Garantizar la convivencia democrática dentro de la Constitución y de las 45

Cfr. G. BURDEAU, Les libertés publiques, cit., pp. 7‑8; P. SCHNEIDER, Droits sociaux et doctrine des droits de l´hommme, cit., p. 329.

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leyes conforme a un orden económico y social justo»; o de la voluntad de la Nación española de: «Promover el progreso de la cultura y de la economía para asegurar a todos una digna calidad de vida», expresada en el mismo lugar. 2) Principios constitucionales para la actuación de los poderes públicos. Este es el nivel de positivación en que se hallan formulados los artículos, ya comentados, 9,2 y 39 a 52, que se refieren a los «principios rectores de la política social y económica». 3) Normas o cláusulas generales a desarrollar por leyes orgánicas. De los derechos económicos, sociales y culturales reconocidos como normas se remiten para su concreción a la ley: el control y gestión de los establecimientos docentes de carácter público (art. 27,7); las exigencias que deben reunir los centros docentes para ser subvencionados por los poderes públicos (art. 27,9); la autonomía de las Universidades (art. 27,10); el derecho a la sindicación de militares y funcionarios (art. 28,1); el derecho a la huelga (art 28,2); el estatuto de los trabajadores (art. 25,2); y la reglamentación de convenios y conflictos laborales (art. 37). 4) Normas específicas o casuísticas. Entre los supuestos normativos formuladores de derechos económicos, sociales y culturales que pueden ser objeto de aplicación inmediata ante los tribunales o, en su caso, de recurso de amparo, pueden reseñarse: el derecho a la educación recogido en el artículo 27 (con las salvedades que establecen los apartados 7,9 y 10, ya mencionadas) y el derecho a la libre sindicación (art.28.1), excepto en lo que se refiere a militares y funcionarios. Respecto a aquellos que pueden ser objeto de aplicación mediata a través del recurso de inconstitucionalidad previsto en el art. 161,a, a), cabe hacer alusión al reconocimiento del derecho al trabajo a tenor de lo dispuesto en el artículo 35, 1. El sistema de positivación de los derechos sociales participa de las ventajas e inconvenientes de los mecanismos de positivación empleados por nuestro texto constitucional. En particular, los defectos sistemáticos que se reflejan aquí con especial intensidad. De forma que, por ejemplo, problemas tan íntimamente conexos como los referidos a la creación, organización y función de los sindicatos aparecen regulados en el Título preliminar (art. 7); en el Capítulo segundo del Título I dentro de los derechos fundamentales y las libertades públicas 150

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(art. 28, l); y en el Capítulo tercero del mismo Título encuadrados en los principios rectores de la política social y económica (art. 52). Todo ello en detrimento de la unidad estructural de los supuestos tipificados e introduciendo por la pluralidad de reglamentaciones y medios de tutela la consiguiente incertidumbre respecto a su real significación. Estimo que es la vieja lógica individualista propiciadora de la concepción de fractura entre libertades y derechos sociales la que ha gravitado, por las propias condiciones políticas en que se ha gestado el proceso constituyente, tras éste y otros ejemplos de escisión. Una escisión que marca una neta diferencia entre lo que se reputa libertad individual en cuanto esfera de interés privado cuyo disfrute se cree garantizado a través de la mera autolimitación estatal, y lo que se entiende como derecho social en cuanto esfera de interés colectivo que requiere para su ejercicio y tutela la creación de los correspondientes servicios por parte de los poderes públicos. En diversos apartados de este trabajo se ha criticado este planteamiento de fractura, así como los supuestos ideológicos a que responde. De ahí que se haya perdido una buena ocasión de haber dado rango constitucional a una concepción de los derechos fundamentales, entendidos como superación dialéctica de la bipartición libertades individuales‑derechos sociales, en cuanto compartimentos estancos recíprocamente excluyentes. Sin embargo, pienso que una lectura avanzada de determinados artículos de la Constitución tales como el 9,2 y el 10,1, que cifran en la emancipación de la persona humana por el desarrollo plenario de sus dimensiones y exigencias, una vez superados los obstáculos de orden social y económico que se oponen a ella, puede servir de criterio hermenéutico básico para una concepción constitucional de los derechos fundamentales superadora de la fractura46. Otro importante aspecto que puede resultar polémico en nuestro sistema de positivación de los derechos sociales es el de la continua remisión constitucional a las leyes para delimitar su alcance. Ello implica una desconstitucionalización práctica de los intereses colectivos reconocidos en el texto articulado como fundamentales, 46

Cfr. A. E. PÉREZ LUÑO, Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., pp. 94 ss. ; id., Los derechos fundamentales, cit. pp. 203 ss.

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pero relegados, en cuanto a la fijación de su contenido, al legislador ordinario; esto es, a la opinión de las mayorías parlamentarias. También el hecho de que se atribuyan a las Comunidades Autónomas importantes competencias en el plano económico, social y cultural, a tenor de lo dispuesto en el artículo 148, puede influir decisivamente para bien en el caso de que ello redunde en una ampliación y mayor eficacia de los instrumentos de cobertura o para mal en el supuesto de que se susciten conflictos de competencia o prácticas inhibitorias, en la configuración de nuestro sistema de derechos sociales. No obstante conviene recordar al respecto que la Constitución asigna al Estado competencia exclusiva para: «La regulación de las condiciones básicas que garanticen la igualdad de todos los españoles en el ejercicio de los derechos y en el cumplimiento de los deberes constitucionales» (art. 149,1). En nuestro sistema constitucional de positivación de los derechos sociales se dan algunas paradoja que no dejan de suscitar perplejidad. Así, por ejemplo, la Constitución garantiza que el condenado a penas privativas de libertad: «tendrá derecho a un trabajo remunerado y a los beneficios correspondientes de la Seguridad Social» (art. 25, 2); algo que no se puede hacer extensivo a los ciudadanos libres. El texto constitucional proclama, asimismo, que: «El Estado velará especialmente por la salvaguardia de los derechos económicos y sociales de los trabajadores españoles en el extranjero» (art. 42), compromiso que no se hace extensivo respecto a los trabajadores españoles en España...47. Por lo que respecta a la garantía de los derechos sociales consagrados en los artículos 39 a 52, debe advertirse que forman parte del Titulo I de la Constitución que trata «De los derechos y deberes fundamentales», si bien se integran en su Capítulo 3º referido a «los principios rectores de la política social y económica». Tales principios a tenor del artículo 53,3 informarán «la legislación positiva, la práctica judicial y la actuación de los poderes públicos». Ahora bien, «sólo podrán ser alegados ante la Jurisdicción ordinaria de acuerdo con lo que dispongan las leyes que los desarrollen». Se ha escrito, con razón, que se trata «de una expresión desgraciada, pero que claramente no 47

Cfr. J. L. CASCAJO La tutela constitucional de los derechos sociales, cit., pp. 47 ss.; B. DE CASTRO CID, Los derechos económicos, sociales y culturales, cit., pp. 183 ss.

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puede interpretarse como una prohibición de alegación, y menos de aplicación de tales principios por los Tribunales ordinarios, interpretación que sería contradictoria con el párrafo inmediatamente anterior del mismo precepto»48. En efecto, difícilmente se podría cumplir el imperativo constitucional de que esas normas informen la práctica judicial, si no pueden ser objeto de alegación o aplicación por los tribunales. Además, según se desprende del artículo 161,1,a), el Tribunal Constitucional tiene plena competencia para declarar la inconstitucionalidad de cualquier disposición legal que contradiga la Constitución, de la que todos los artículos integrados en el Capítulo 3º del Titulo I forman parte. Por otro lado, los jueces ordinarios están obligados: a remitir al Tribunal Constitucional las cuestiones referentes a la posible inconstitucionalidad de las normas legales aplicables a sus fallos (art. 163); a interpretar y aplicar todo el ordenamiento jurídico conforme a la Constitución (art. 9,1); y a tutelar el ejercicio de los derechos e intereses legítimos de todas las personas (24,1). Refuerza también la plena normatividad y la garantía, de todos los derechos integrados en el Título I, la posibilidad de denunciar sus violaciones administrativas ante el Defensor del Pueblo (art. 54 CE). De ello se induce el carácter normativo y la plena vinculatoriedad de todos los preceptos recogidos en el Capitulo 3º sin que se les pueda relegar (aunque la infeliz expresión terminológica del art. 53,3 parezca sugerirlo) a meros principios programáticos. Incluso pudiera aducirse, en favor de su normatividad, la invocación que expresamente se contiene en el artículo 10,2 para interpretar el estatuto de los derechos fundamentales «de conformidad con la Declaración Universal de los Derechos Humanos y los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por España». Es más, el artículo 96,1 proclama que: «Los tratados internacionales válidamente celebrados, una vez publicados oficialmente en España, formarán parte del ordenamiento interno». Pues bien, nuestro país ratificó en 1977 el Pacto internacional de derechos económicos, sociales y culturales de la ONU en el que se reconocen la mayor parte de los derechos sociales integrados en el Capítulo 3º de nuestra Constitución. 48

E. GARCÍA DE ENTERRÍA, La Constitución como norma jurídica, en el vol. col. La Constitución española de 1978. Estudio sistemático dirigido por los profesores A. Predieri y E, García de Enterría, Civitas, Madrid, 1980, p 118.

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La positividad de los derechos sociales en el marco constitucional

En todo caso, el carácter finalista de estos preceptos no sólo hace ilegítimas a las disposiciones que persigan fines diversos o contradictorios, sino que imponen al legislador la obligación de promulgar las leyes y actuaciones necesarias para la consecución de sus objetivos. De ahí que cualquier disposición legislativa, así como las actuaciones administrativas o judiciales que sean contradictorias a los derechos sociales deban considerarse como anticonstitucionales en nuestro sistema. Parece obligado advertir, no obstante, que la posibilidad de concebir a los derechos sociales como derechos fundamentales en el seno de nuestro ordenamiento jurídico se trata de una cuestión controvertida. El planteamiento favorable al carácter jurídicofundamental de los derechos sociales, opción que aquí se defiende, implica decantarse por un criterio material e integrador del sistema de derechos fundamentales de nuestra Constitución. Se aparta, por tanto, de la tesis predominante por la doctrina y acogida en alguna decisión del TC que circunscribe el catálogo de los derechos fundamentales a aquellos proclamados en el Capítulo II del Título I, o, incluso desde las posturas más restrictivas, a los derechos reconocidos en el art. 14 y la Sección 1ª de dicho Título I. Estas tesis, de carácter formalista y restrictivo, hallan apoyo en la protección reforzada prevista en el art. 53.1 y 2 CE para los derechos contenidos en esas respectivas sedes. Frente a ellas cabe aducir que los derechos del Capítulo III del Título I poseen todos los requisitos para ser considerados como derechos fundamentales: se trata, en efecto, de derechos humanos que han sido positivizados en la Constitución y que gozan de las garantías jurídicas anteriormente expuestas. No es ocioso recordar que la categoría de los derechos fundamentales posee un significado “cualitativo”: se trata de los derechos humanos positivizados constitucionalmente, aunque sea diversa “la cantidad” de instrumentos jurídicos previstos para reforzar su tutela. En favor de la consideración de los derechos sociales como fundamentales en la Constitución, se puede aducir su propia inserción en el Título I que trata «De los derechos y deberes fundamentales». Téngase presente que la Constitución define todos los derechos y deberes contenidos en el Título I como fundamentales y alude textualmente al rotular el Capítulo 4º, de dicho Título, a las «garantías de las libertades y derechos fundamentales», pormenori-

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zando allí los respectivos instrumentos de protección de los derechos recogidos en los distintos capítulos y secciones del Título I. En otro caso, la interpretación restrictiva conduciría el resultado paradójico de mantener que únicamente algunos de los derechos y libertades consignados en el Título I tienen el rango de fundamentales, quedando relegados los demás a la condición de accesorios o subsidiarios. Debe, por tanto, concluirse que la diferencia de medios de tutela no implica negar la condición de derechos fundamentales a todos los que integran el Título I, sino el reconocimiento realista por parte del constituyente español de los diferentes presupuestos económico‑sociales y técnico jurídicos que concurren en la respectiva implantación de las libertades individuales, para la que basta con la no injerencia del Estado o con su mera actividad de vigilancia, y de los derechos económico, sociales y culturales, que exigen una función activa del Estado a través de los correspondientes servicios públicos o prestaciones49. Conviene insistir en que la noción de los derechos fundamentales no coincide con los derechos públicos subjetivos, ligados a la concepción individualista propia del Estado liberal de Derecho, sino que engloba también a los derechos económicos, sociales y culturales. A medida que el Estado social de Derecho ha ido adquiriendo autenticidad democrática (o, en opinión de algunos, ha devenido Estado democrático de Derecho o se halla en camino de hacerlo), la propia idea de los derechos fundamentales ha perfilado su propio status significativo. Han dejado así de entenderse como Staatsschranken (límites de la acción estatal) caracterizados por una función prioritaria de defensa (Abwehrfunktion), para asumir el papel de auténticos Staatszwecke (fines de la acción estatal) a través de la garantía de la participación (Teilnahmefunktion) de los ciudadanos en las diversas esferas de la vida social, económica y cultural. Por tal motivo, cuando se impugna la posibilidad de concebir a los derechos sociales como derechos fundamentales, se incurre en el equívoco de circunscribir el ámbito de tales derechos al de las libertades tradicionales de signo individual (una de cuyas modalidades más importantes fue la de los derechos públicos subjetivos).

49

Cfr. A. E. PÉREZ LUÑO, Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., pp. 468 ss. ; id., Los derechos fundamentales, cit. pp. 61 ss.

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La positividad de los derechos sociales en el marco constitucional

En la medida en que el núcleo referencial del contenido de los derechos fundamentales se conecte con el sistema de necesidades humanas básicas, disminuye la resistencia a admitir como tales las reivindicaciones de signo económico, social y cultural que configuran la esfera de las exigencias humanas, todavía insatisfechas. Debe tenerse en cuenta que la apelación a este sistema de necesidades radicales no se basa en la imagen de una condición abstracta del hombre producto de un modelo ilusorio de la humanidad, sino que parte de las circunstancias concretas de la experiencia humana en contextos social, histórica y territorialmente determinados. De ahí que se considere un fin primordial de cualquier Estado democrático el establecer mecanismos de tutela capaces de rescatar al hombre de la presión de aquellos poderes que impiden la satisfacción de sus necesidades radicales de carácter económico, social y cultural50. En todo caso, la estrecha dependencia de los derechos sociales de las estructuras socio‑económicas sobre las que se construyen puede servir de explicación a las ambigüedades de la formulación positiva constitucional. No hay que olvidar que la persistencia en nuestro país del modo de producción neocapitalista condiciona, sin duda, el contenido de nuestro sistema de derechos económicos, sociales y culturales. Pero, aun así, debe sostenerse que incluso los derechos sociales que en la Constitución se reconocen tímidamente como «principios rectores de la política social y económica» no tienen el carácter de meros postulados ideales programáticos, sino que son auténticos principios constitucionales. Como tales suponen esferas de normatividad jurídica positiva que irán adquiriendo efectividad progresiva en la medida en que el desarrollo y transformación de las condiciones económicas permitan completar la democracia política con la democracia económica y social.

50

Sobre la fundamentación de los derechos sociales a partir de las necesidades, vid., las sugerentes observaciones de: F. J. CONTRERAS PELÁEZ, Derechos sociales: teoría e ideología, cit., pp.41 ss y 52 ss.

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7 Os vinte anos da Constituição Brasileira: da reserva do possível à proibição de retrocesso social

Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira*

7.1 Introdução

O

s direitos sociais, econômicos e culturais foram trazidos pelas Constituições que inauguraram as bases do Estado social do bem-estar, a fim aumentar a presença do Estado na sociedade, fazendo desaparecer o Estado mínimo. Tratam-se, portanto, de direitos que complementam as liberdades, ligando-se a elas de forma intrínseca, já que têm grande importância para sua viabilização e conseqüente exercício. Outro não é o entendimento da doutrina especializada: os direitos sociais “andam estreitamente associados a um conjunto de condições – econômicas, sociais e culturais – que a moderna doutrina dos direitos fundamentais designa por pressupostos de direitos fundamentais” (Gomes Canotilho, 2003, p. 473). Diante desse vínculo de dependência existente entre os direitos às liberdades e os direitos sociais são estudados dois postulados que vêm sendo constantemente tratados na doutrina: o da reserva do possível e o da proibição de retrocesso. Estudo este que não pretende esgotar a matéria, e sim despertar a reflexão e fornecer uma resposta à seguinte questão: vincular os direitos sociais à reserva do possível viola o postulado da proibição de retrocesso?

* Acadêmico do 5º ano do Curso de Direito da FDV; Editor de Panóptica; Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH).

Os vinte anos da Constituição Brasileira: da reserva do possível à proibição de retrocesso social

7.2 Os direitos sociais de aplicabilidade diferida O art. 5º, §1º, da CF/88 traz a previsão de que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, o que permite a conclusão óbvia de que todo direito fundamental é imediatamente aplicável. Todavia, é preciso que se diga, desde logo, que nem todos os direitos fundamentais têm eficácia igual: enquanto uns têm carga de aplicabilidade maior, outros a têm menor, ou seja, uns são auto-aplicáveis, outros têm aplicabilidade diferida. Assim, os direitos sociais podem ser divididos em dois grupos1: as liberdades sociais – que são direitos sociais auto-aplicáveis – e os direitos sociais programáticos – que têm aplicabilidade diferida. Enquanto os direitos sociais do primeiro grupo se enquadram perfeitamente ao preceito do art. 5º, §1º, da CF/88, prescindindo de uma atitude prestacional estatal, os do segundo grupo dependem desse tipo de atitude. Dizer que um grupo de direitos sociais tenha aplicabilidade diferida não significa, entretanto, que a atuação estatal prestacional possa ser diferida, pelo contrário, ela deverá ser imediata, por força do aludido dispositivo. Portanto, é possível dizer que o dispositivo constitucional acima referido “impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais” (Sarlet, 2006, p. 280). Como são os direitos sociais de aplicabilidade diferida que suscitam a questão da reserva do possível, desde já, por questões metodológicas, se afasta a análise dos direitos sociais auto-aplicáveis. Os direitos sociais de aplicabilidade diferida estabelecidos por enunciados prescritivos da CF/88, quando interpretados se apresentam sob a forma de normas programáticas, que “contêm disposições indicadoras de valores a serem preservados e de fins sociais a serem alcançados”, são normas que “não especificam qualquer conduta a ser seguida pelo Poder Público, apenas apontando linhas diretivas”, gerando, pois: a “exigibilidade de determinada prestação” (Barroso, 2008, p. 109); ou, até mesmo: a possibilidade de se exigir “dos órgãos estatais que se abstenham de quaisquer atos que contravenham as diretrizes traçadas” (Barroso, 2008, pp. 255-256). 1

Partilha dessa mesma idéia, embora forneça outra nomenclatura, Robert Alexy (2000, p. 67).

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Pelo que a doutrina vem entendendo sobre o conceito de normas programáticas, a melhor expressão a ser utilizada não é norma programática, e sim norma-diretriz, porque não se refere propriamente a programas, mas a normas-diretrizes que possuem eficácia limitada à atuação do Poder Público, que deve ser imediata, por imperativo constitucional, a fim de serem concretizados direitos2. Assim, as normas constitucionais instituidoras de direitos sociais de aplicabilidade diferida indicam a possibilidade de a sociedade efetuar uma cobrança em relação ao Poder Público, em suas três esferas, para que este, por meio de políticas públicas adequadas e sujeitas ao devido controle faça com que sejam concretizados esses direitos (Facchini Neto, 2006, p. 45); entendendo por adequação de políticas públicas um comportamento estatal tanto positivo (concretização) quanto negativo (não-violação de direitos). Os direitos sociais têm a ver com as oportunidades do indivíduo. Como a todos são asseguradas as mesmas liberdades, a todos devem ser dadas as mesmas liberdades. Contudo, o que se verifica é que mesmo os indivíduos tendo o direito de exercer essas liberdades, o real exercício de algumas não ocorre ou ocorre com deficiência, em virtude dos mais variados fatores, dos quais se pode citar o status social. Diante dessa deficiência ou ausência, deve haver um meio de dar oportunidades aos indivíduos para que possam chegar ao exercício das liberdades que lhes são asseguradas. Tal é o papel dos direitos sociais, procurando, pois, reduzir desigualdades sócio-econômicas.

7.3 A questão da reserva do possível É interessante que, mesmo assim, esse grupo de direitos sociais tem sido por boa parte da doutrina associado à idéia de reserva do possível, ou, como afirma a doutrina, “os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos” (Gomes 2

Interessantíssimo o exemplo que Luís Roberto Barroso (2008, pp. 170-171) traz sobre a norma do art. 37, VII, da CF/88, cuja eficácia depende de lei, que ainda não foi criada pelo Legislador, o que, contudo, não quer dizer que esse direito não possa ser exercido, “observando-se, analogicamente, princípios e leis existentes. Caso contrário, chegar-se-ia a um absurdo: a eficácia da Constituição depende de norma hierarquicamente inferior”.

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Canotilho, 2003, p. 481). Tal associação decorre, como lembra Prieto Sanchís (1995, p. 15), do fato de que ao falarmos nessa classe de direitos “nos referimos a bens ou serviços economicamente avaliáveis”. De fato, isso é o que ocorre, mas é preciso que se tenha atenção para o correto uso da idéia, ou seja, de que os direitos sociais de aplicabilidade diferida “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade” (Krell, 2002, p. 52). No entanto, ao que parece ser desatenção sobre o uso da reserva do possível, os autores que a defendem costumam afirmar que “as necessidades humanas são infinitas e os recursos financeiros para atendê-las são escassos” (Scaff, 2004, p. 148). Não se pode adotar, contudo, esse entendimento, porque “ninguém tem necessidades, porém idéias sobre as necessidades”, as pessoas têm “prioridades, graus de necessidade” (Walzer, 2003, p. 88). Assim, não se pode confundir prioridade com necessidade, as necessidades são, de fato, infinitas, mas nem por isso todas devem ser atendidas, mesmo porque há aquelas supérfluas e aquelas prioritárias. Deste modo, os recursos financeiros devem ser empregados para atender o que é prioritário, podendo, caso haja sobra, atender o que é supérfluo. Esta é, pois, a verdadeira razão de ser da reserva do possível. Ademais, as necessidades prioritárias, melhor referidas como exigências mínimas, possuem um conteúdo baseado em escolhas genéricas e objetivas, desconsiderando-se quaisquer desejos, interesses ou condições particulares, ou seja, é tudo aquilo que é imprescindível para qualquer pessoa, seja qual for seu status social (Zimmerling, 1990, p. 41; Rawls, 2002, pp. 97-98), mesmo que seja certo o fato de que alguns indivíduos tenham maior acesso aos meios necessários para atingir essas exigências básicas, ao passo que outros não tenham essa sorte (Rawls, 2002, pp. 221-222; Añón Roig, 1994, pp. 28-29). Este mesmo entendimento tem Amartya Sen (2000, p. 10) quando escreve que “o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que eliminam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente”. Utilizar um discurso baseado na reserva do possível para justificar a deficiente ou a ausente concretização de direitos sociais de aplicabilidade diferida tem sido comum. Ora, esse tipo de vincula160

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ção só pode gerar dois tipos de conclusão: ou o Estado não possui dinheiro em seus cofres ou esse dinheiro existe, sendo, porém, malempregado. Por certo que a situação se encaixa na segunda conclusão – embora ninguém confesse que a gestão estatal do dinheiro público tem sido deficiente –, de modo que aquilo que é básico e deveria ser concretizado não o está sendo (Krell, 1999, pp. 241-242). Daí se poder perguntar com Américo Bedê (2005, p. 73): quem está sujeito à reserva do possível? Por certo que não é, como no exemplo de Amartya Sen (2000, p. 95), a pessoa abastada que pode se dar ao luxo de “escolher comer bem e ser bem nutrida”, e sim a “pessoa destituída, forçada a passar fome extrema”. Isso permite que se elaborem perguntas de respostas um tanto quanto óbvias, como as seguintes: que exigência é mais básica: Melhor equipar os hospitais já existentes ou reformar rotatórias que acabaram de ser construídas? Melhorar a educação pública fundamental ou construir trincheiras que não vão desafogar o tráfego terrestre? Assim, se a reserva do possível for utilizada apenas com o propósito de justificar os erros de gestão social do Poder Público, então é um postulado de inconstitucionalidade flagrante, porque colide com o preceito constante do art. 5º, §1º, da CF/88, e nem se pode dizer que é postulado com esteio constitucional (Barreto, 2003, pp. 119-120), porque a própria CF/88 não limita os direitos sociais de aplicabilidade diferida, e sim, tomando empresada a idéia utilizada no art. 6º da CF/88, apenas os limita quanto à forma de sua efetivação. Adotar-se, portanto, a versão brasileira de que a reserva do possível justifica a não efetivação dos direitos sociais de aplicabilidade diferida é dar a oportunidade de não se dar necessária eficácia a esses direitos, e, por tabela, porque dependentes destes, as liberdades não possam ser (corretamente) exercidas por todos os indivíduos. Esse tipo de atitude é irresponsável, porque liga os direitos sociais “à ditadura dos cofres vazios, entendo-se por isso que a realização dos direitos sociais se dá conforme o equilíbrio econômico-financeiro do Estado” (Gomes Canotilho, 1998, p. 46), o que não tem cunho verídico, compartilhando-se da mesma irresignação de Américo Bedê (2005, p. 74): “é possível falar em falta de recursos para a saúde quando existem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda do governo?”. Ao que o próprio autor responde: “se os recursos não são suficientes 161

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para cumprir integralmente a política pública, não significa de per si que são insuficientes para iniciar a política pública”.

7.4 As exigências mínimas e a proibição de retrocesso social Utilizando-se os recursos disponíveis para promover as exigências mínimas da coletividade não significa que essa promoção tem de ser toda ela feita de uma só vez, o ideal é que fosse, mas como a própria expressão permite dizer, seria ideal, não real. É aí que entra a discussão sobre a vedação do retrocesso social: começa-se com pouco e faz-se com que haja um “aumento contínuo das prestações sociais” (Gomes Canotilho, 1998, p. 47). Ora, se os direitos sociais também têm de ter aplicabilidade imediata, mesmo que diferida, então não se pode admitir que eles sejam vinculados à existência de dinheiro nos cofres públicos, porque daí limitar-se-ia ainda mais sua aplicabilidade e não se daria continuidade às prestações sociais estatais de sua concretização. Como “um direito não existe se não houver uma máquina institucional para protegê-lo” (Immordino e Pagano, 2004, p. 85), então é preciso que essa máquina trabalhe ininterruptamente, para que todos os direitos fundamentais sejam basicamente garantidos e concretizados. A concretização de direitos, fundados em necessidades básicas, dá aos indivíduos, além de certa estabilidade, “a confiança nas instituições, restando por influir positivamente na sociedade e, por fim, por auxiliar na consecução dos objetivos do Estado” (De Conto, 2008, p. 56). Noutras palavras, embora partam de iniciativa do Estado, as políticas públicas são financiadas pela sociedade, e esta, na medida em que percebe que a máquina estatal está trabalhando corretamente, ou seja, empregando bem os recursos financeiros captados, auxilia na concretização de direitos e manutenção de políticas públicas. Portanto, como toda pessoa possui “um direito fundamental não escrito à garantia das condições materiais mínimas para uma existência digna” (Sarlet, 2007, p. 15), o dinheiro do erário deve ser empregado primariamente na concretização das exigências mínimas, e, com uma nova entrada de recursos financeiros, deve haver a maximização dessas prioridades básicas.

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Trabalha-se, pois, com a idéia de mínimo existencial, que, resumidamente, é a essência dos direitos fundamentais, funcionando ao mesmo tempo como sua proteção (Häberle, 2003, p. 58), independente das condições políticas, sociais e econômicas da comunidade a que se pertença. Assim, ao Estado impõe-se que se abstenha de violar esse núcleo, seja mediante atos, seja mediante omissões, a fim de não macular a dignidade humana. E é exatamente esta idéia que parece permitir a “constatação da existência de um princípio da proibição do retrocesso social” (De Conto, 2008, p. 85). Pela teoria geral do mínimo existencial3, aos indivíduos são reconhecidos direitos minimamente essenciais representados pelas exigências mínimas, que devem ser satisfeitas pelo Estado, mediante prestações sociais que efetivem os direitos sociais. É exatamente aí que se verifica o limite da justificativa a partir da reserva do possível, na medida em que esta só possa ser argüida para justificar o atendimento de preferências, isto é, de necessidades supérfluas, e nunca para justificar a inobservância do mínimo existencial. Ora, se é objetivo fundamental do Estado democrático de direito manter uma sociedade justa e igualitária, então é preciso que às pessoas seja materialmente garantia uma igualdade de oportunidades através de prestações sociais eficientes. Essas prestações sociais implantadas e oferecidas pelo Estado devem atender às exigências mínimas de todos os indivíduos, tenham eles ou não como as satisfazer de per si. Assim, independente de existirem serviços particulares de proteção à saúde, o Estado tem a obrigação de fornecer a todos os indivíduos um sistema público de saúde gratuito e que os atenda tão logo eles precisem, estejam ou não em estado grave, sem ter de esperar muito por uma consulta ou avaliação médica. O mesmo se diga quanto à educação: o Estado tem o dever de proporcionar às pessoas pleno desenvolvimento, a fim de prepará-las para exercerem a cidadania e algum trabalho que as dignifique; assim, principalmente o ensino fundamental, mas também 3

Entende-se por teoria geral do mínimo existencial aquela em que há uma vinculação entre o Poder Público e a concretização dos direitos fundamentais representados por um conjunto de exigências mínimas. Carlos Bernal Pulido (2007, pp. 408-409) destaca três principais teorias sobre o mínimo existencial: “teoria espacial-absoluta”, “teoria eclética” e “teoria temporal-absoluta”.

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os ensinos médio e superior públicos devem ter qualidade suficiente para formar indivíduos plenos de si, dignos. A proibição do retrocesso social, como todo postulado4 , relaciona-se com outras proposições deste tipo, principalmente com o postulado da proporcionalidade, que se apresenta de duas formas: “o garantismo negativo (em face dos excessos do Estado) e o garantismo positivo, no sentido de que o Estado não pode deixar de proteger determinado direito fundamental” (De Conto, 2008, p. 100). A proporcionalidade é, pois, um postulado de otimização, que se perfaz mediante observância de seus três níveis (Alexy, 1994, p. 46): adequação, necessidade e ausência de excesso. O garantismo negativo apresenta-se como a proibição de excesso, e o garantismo positivo, como a adequação e a necessidade de proteção do mínimo existencial, isto é, como a proibição de proteção deficiente. Essa relação pode-se extrair das palavras de Bernal Pulido (2007, p. 807): “na dogmática alemã já é bem conhecida a distinção entre duas versões distintas do princípio da proporcionalidade: a proibição de excesso (übermaßverbot) e a proibição de proteção deficiente (Untermaßverbot)”. Portanto, é possível explicar a proibição de retrocesso social através dos postulados da proibição de proteção deficiente e da proibição de excesso. Pela proibição de proteção deficiente tem-se que o Estado, mediante suas prestações sociais (políticas públicas) tem o dever de procurar maximizar o mínimo existencial, ou, por outra, tornar máxima a efetividade dos direitos minimamente exigíveis, de maneira que aquilo que já foi garantido ou concretizado não pode vir a ser suprimido ou limitado por qualquer ato estatal, isto é, não se podem utilizar medidas retroativas. E, pela proibição de excesso, é vedado ao Estado utilizar meios de caráter retrocessivo, que, embora não atinjam aqueles direitos que já foram concretizados, possam promover uma involução social, porque houve uma intervenção na sociedade além do que era necessário (Barnes, 1994, p. 510).

4

Entende-se como postulados as “condições a serem observadas na aplicação das regras e dos princípios, com eles não se confundindo” (Ávila, 2007, p. 71). Assim, é preciso anotar que postulados e princípios não se confundem, de maneira que, enquanto estes decorrem de normas expressas no sistema, aqueles são apenas condições para uma boa interpretação dessas normas.

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Portanto, a proibição do retrocesso social consiste em que o Estado não pode se furtar dos deveres de concretizar o mínimo existencial, de maximizá-lo e de empregar os meios ou instrumentos cabíveis para sua promoção, sob pena de a sociedade vir a experimentar uma imensa limitação no exercício de todos seus direitos fundamentais.

7.5 Os três poderes estatais e a realização dos direitos fundamentais Fala-se, então, de que devem ser efetivadas políticas públicas a fim de evitar que haja retrocesso social e conseqüente violação do mínimo existencial. Essas ações de promoção de direitos voltados para a satisfação das exigências mínimas devem ser observadas concomitantemente pelas três funções (ou poderes) do Estado, cada uma com suas peculiaridades, a fim de evitar a retrocessão social. Essa observação leva a uma pergunta crucial para o entendimento do problema aqui tratado: “em que sentido a separação de poderes protege os direitos fundamentais?” (Ackerman, 2000, p. 715). A resposta a esta questão é encontrada na prática e manutenção de políticas públicas, desde que elas sejam co-geridas pelos três poderes de forma harmônica. Ora, como sói dizer, os três poderes são autônomos, daí a separação, e, também, interdependentes, daí a harmonia, de maneira que se possa dizer haver uma separação harmônica de poderes estatais que “é elemento lógico essencial do Estado de Direito”, exatamente para haver o “controle do exercício do poder político”, atuando cada poder como “um limite ao exercício das atividades do outro” (Sundfeld, 2005, pp. 42-43). Os três poderes devem ser sempre atuantes, promovendo as finalidades do Estado, isto é, em linhas gerais, a formação de uma sociedade livre, justa, solidária e igualitária, e que tenha assegurado o seu mínimo existencial. Assim que a realização de políticas públicas tem de estar vinculada aos poderes estatais, no sentido de que estes devam promover a concretização e manutenção dos direitos fundamentais minimamente exigíveis. Nesta esteira, cabe ao Legislativo estabelecer normas jurídicas que, através do controle das condutas dos indivíduos, da sociedade e

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do Estado, reconheçam direitos e regulamentem, com fulcro na Constituição, seu exercício, a fim de que sejam garantidas as exigências mínimas inerentes à vida de quaisquer pessoas, de modo que elas fruam “a melhor vida social” (Bandeira de Mello, 2007, p. 31). Ao Executivo cabe “a realização, em concreto, de todas essas normas jurídicas” (Bandeira de Mello, 2007, p. 34), o que ocorre através do planejamento e da execução de políticas públicas, “que visem o cumprimento das promessas constitucionais” (De Conto, 2008, p. 101). Essas promessas decorrem exatamente da existência de direitos sociais que tenham aplicabilidade diferida, o que, como dito alhures, é o que ocorre à CF/88, fato este que, muito antes de funcionar como algo que vá atrapalhar o exercício dos direitos fundamentais, “torna mais transparente a vinculação dos órgãos de direção política ao fornecer linhas de atuação e direção”, já que “o sentido normativo de uma constituição concebe-se como prospectivamente orientado, sem fechar o sistema, pois não é apenas o garantidor do existente, mas deve ser o esboço do porvir” (Bercovici, 1999, pp. 38-39). E, ao Judiciário cabe o controle dos atos desses dois poderes mediante a justa e legal aplicação das normas jurídicas ao caso concreto, a fim de que se possa “garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais” (Krell, 2002, p. 22) e que não haja atuação abusiva ou excessiva, evitando-se a retroação e o retrocesso sociais. Portanto, os três poderes devem atuar como agentes capazes de transformar a realidade social, permitindo sua constante evolução, principalmente no que tange à realização de direitos fundamentais.

7.6 Conclusão Não se pode, deste modo, deixar-se levar pelo discurso de que o postulado da reserva do possível permite que se justifique a ausência de investimentos estatais em prestações sociais que concretizem ou que potencializem os direitos sociais prometidos pela Constituição à falta de dinheiro nos cofres públicos. A reserva do possível trabalha, pelo contrário, com a idéia de que a falta de recursos só pode ser argüida em relação às necessidades supérfluas dos indivíduos,

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isolada ou coletivamente considerados. No entanto, o que se vê é o caminho inverso, e a realização dos direitos fundamentais em seu mínimo essencial vai ficando cada vez distante. Ora, da leitura de dispositivos constitucionais, pode-se verificar que a cada um real arrecadado pela União em impostos por ano, pelo menos dezoito centavos de real devem ser destinados à educação, com prioridade para o ensino fundamental, que é obrigatório; no caso da seguridade social (saúde, previdência social e assistência social), o erário sempre terá dinheiro, em virtude da tríplice arrecadação (financiamento pela sociedade, recursos dos entes federados e contribuições sociais específicas). Portanto, aplicar o postulado da reserva do possível às necessidades prioritárias é possibilitar que o indivíduo não atinja o mínimo existencial, e isso é inadmissível numa sociedade que se baseia num princípio tão importante que é a dignidade humana e que objetiva a formação de uma sociedade justa e eqüitativa. De tal modo, é de se repetir oportunas palavras de Clèmerson Clève (2003, p. 21): “sob a égide da Constituição Federal de 1988 o Estado, espaço político por excelência, haverá também de ser compreendido como uma espécie de ossatura institucional desenhada pelo Constituinte para satisfazer os princípios, objetivos e direitos fundamentais através da atuação do Legislativo, buscando a concretização das disposições constitucionais, inclusive daquelas veiculando os direitos prestacionais”. Neste encalço, cabe afirmar que os direitos sociais, enquanto condições a serem satisfeitas para o exercício de algumas liberdades, devem pelo menos ter uma garantia mínima, ou seja, serem materializados num grau básico, mas que é prioritário a todo e qualquer ser humano. Todavia, não basta que sejam concretizadas as prestações que sejam suficientes para se alcançar o mínimo, é preciso que essas prestações sofram aos poucos um aumento contínuo, maximizandose o mínimo, ou, por outra, que este mínimo seja realizado da maneira mais ampla possível. O STF, na ADPF 45 MC/DF (informativo 345), apresentou entendimento acerca da reserva do possível, citando, inclusive, alguns outros precedentes. Assim, o Supremo tem partido de posicionamento que defende a aplicação do postulado da reserva do possível, mas sem que o Estado se valha dessa cláusula para justificar 167

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suas omissões: “a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”. Ora, essa decisão do STF demonstra claramente o que aqui vem de ser dito, isto é, que a reserva do possível não pode, sob hipótese alguma, ser alegada para justificar o comportamento omissivo do Estado em relação ao seu dever de prestatividade social em relação ao mínimo existencial. Os desejos, como se sabe, são ilimitados, porém as necessidades básicas, não o são, e, desta forma, faz-se preciso considerar que, sim, os direitos têm custos, mas o Estado deve despender, razoável e adequadamente, o dinheiro arrecadado para sua promoção dentro daqueles parâmetros mínimos. Aliás, como bem aponta Ana Paula de Barcellos (2008, pp. 266 e 268), “a limitação de recursos existe”, de modo que, sendo assim, “os recursos disponíveis deverão ser aplicados prioritariamente no atendimento dos fins considerados essenciais pela Constituição, até que eles sejam realizados”; e, se houver algum recurso remanescente, este poderá ser empregado “de acordo com as opções políticas que a deliberação democrática apurar em cada momento”, ou seja, poderá ser aplicado para atender a necessidades supérfluas ou para maximizar as necessidades básicas, promovendo o aumento contínuo das prestações sociais previsto pelo postulado da irredutibilidade social. A reserva do possível, portanto, do modo como tem sido utilizada – isto é, com fins de justificar a limitação de recursos para fornecer à coletividade, por exemplo, um sistema público de saúde e de educação, enquanto se vê, claramente, a interessante sobra de recursos para construir trincheiras que não vão desafogar o tráfego de carros nas grandes cidades ou para fazer propaganda massiva de programas de assistência social que não atingem suas finalidades. Portanto, e à guisa de conclusão, deve-se ter muita atenção para o fato de que as exigências mínimas de todos os indivíduos devem ser atendidas pelo Estado mediante políticas públicas, 168

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sem que se possa justificar a inércia estatal através da reserva do possível, o que, se continuar a ser admitido, fará com que nos próximos vinte anos as promessas constitucionais continuem sendo descumpridas e a dignidade humana do povo brasileira não seja nem minimamente atingida.

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8 Evolução de direitos e garantias fundamentais e vedação de retrocesso: uma abordagem da jurisprudência do STF nos vinte anos da Constituição brasileira

Adriano Sant’Ana Pedra*

8.1 Introdução

A

Constituição brasileira não é mais aquela de 1988. Nos últimos vinte anos, além das mudanças formais sofridas – através de emendas constitucionais de reforma e de revisão –, a Constituição Federal passou também por mudanças informais. Quando a Constituição é redigida de maneira inteligente, procura levar em consideração, desde o princípio, necessidades futuras por meio de mecanismos cuidadosamente colocados. Isto porque uma Constituição não é feita em um momento determinado, mas se realiza e efetiva-se constantemente. A mutação constitucional é um processo informal que cuida da atualização e concretização da Constituição. Na mutação, a norma constitucional modifica-se apesar da permanência do seu texto, pressupondo a não identificação entre a norma e o texto normativo. * Doutorando em Direito Constitucional (PUC/SP), Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais (FDV), Mestre em Física (UFES), Coordenador do Curso de Especialização em Direito Público da FDV, Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Professor da Escola da Magistratura do Espírito Santo (EMES), Procurador Federal.

Evolução de direitos e garantias fundamentais e vedação de retrocesso...

Todavia, este fenômeno não está expressamente previsto no texto constitucional, ao contrário do que acontece com a reforma e a revisão. E, sendo assim, não existem limites expressos no texto constitucional para a realização de uma mutação. Em verdade, inexiste tratamento sistemático no tocante às limitações dos processos informais de mudança da Constituição, não tendo a maioria da doutrina enfrentado o tema especificamente. Mas isto não significa que não há limites para a mutação constitucional. A mutação deve ocorrer dentro dos limites impostos pela normatividade da própria Constituição. Nesse sentido, a questão que este trabalho objetiva responder é se – e até que ponto – uma mutação na jurisprudência do Excelso Tribunal pode retroceder no que concerne à afirmação dos direitos e das garantais fundamentais. Para isto serão analisados os argumentos que justificam o princípio da vedação de retrocesso para os direitos e as garantias fundamentais. Em seguida, serão analisadas algumas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos vinte anos, onde houve mutação jurisprudencial envolvendo direitos e garantais fundamentais, a fim de verificar se esta limitação foi observada.

8.2 Mutação constitucional Uma Constituição deve estar em harmonia com a realidade, e deve se manter aberta e dinâmica através dos tempos1. Para isto, existem modos informais de alteração nas constituições, onde é modificado o conteúdo efetivo do dispositivo constitucional, sem que venha a ser modificada sua disposição expressa. Georg Jellinek2 leciona que a mutação constitucional constitui uma modificação não necessariamente consciente da Constituição e que não altera o seu texto: “Por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto sin cambiarlo formalmente 1

PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, p. 151 e seg. 2 Georg Jellinek (1851-1911) pronunciou, em 18 de março de 1906, uma conferência sobre reforma da Constituição e mutação constitucional na Academia Jurídica de Viena, de onde surgiu o trabalho Verfassungsänderung und Verfassungswandlung. Eine staatsrechtlich-politische Abhandlung, que mereceu a versão Reforma y mutación de la Constitución. Trad. Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.

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Adriano Sant’Ana Pedra

que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por la intención, o consciencia, de tal mutación3. Em relação às palavras do mestre de Heidelberg, assim se manifesta Pablo Lucas Verdú4: A nuestro juicio, la Constitución es la autoconciencia de un pueblo del Estado y de la sociedad en una época de cambios frecuentes. Por ello la doctrina de las mutaciones constitucionales es la reflexión – teorética y práctica – de tales cambios. Estos se producen cuando la normatividad constitucional se modifica por la realidad político-social que no afecta a sus formas textuales pero transmuta su contenido.

Segundo Jean Gicquel e André Hauriou5, a experiência política revela que a Constituição de um Estado pode ser modificada de maneira oblíqua ou oculta, à margem do poder reformador. A mutação constitucional é um processo informal de alteração da Constituição que cuida de sua atualização e concretização. Tal fenômeno possui a particularidade de não se encontrar expressamente prevista no próprio texto constitucional, diversamente do que ocorre com a reforma constitucional, que está prevista e há de processarse nos exatos termos e limites em que regulada na Constituição. O chinês Hsü Dau-Lin6 foi um dos primeiros a escrever sobre o tema, na Alemanha, em 1932, apoiando-se nas obras de Laband e Jellinek. Em sua definição, a mutação constitucional decorre da separação entre o preceito constitucional e a realidade7, sendo esta

3 4 5 6 7

JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Trad. Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 7. No estudo preliminar da obra Reforma y mutación de la Constitución. Ibidem, p. LXVII. GICQUEL, Jean; HAURIOU, André. Droit constitutionnel et institutions politiques. 8. ed. Paris: Montchrestien, 1985, p. 280. DAU-LIN, Hsü. Mutación de la constitución. Trad. Pablo Lucas Verdú e Christian Förster. Instituto Vasco de Administración Pública, 1998, p. 29. DAU-LIN, Hsü. Mutación de la constitución. Trad. Pablo Lucas Verdú e Christian Förster. Instituto Vasco de Administración Pública, 1998, p. 29: “Para dar un concepto que corresponda, del mismo modo a diferentes casos generalmente designados como ‘mutación constitucional’, quizás podría hacerse diciendo que se trata de la incongruencia que existe entre las normas constitucionales por un lado y la realidad constitucional por otro”.

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última mais ampla que a normatividade constitucional. Na mutação, a norma constitucional modifica-se apesar da permanência do seu texto, pressupondo a não identificação entre a norma e o texto normativo. O caráter dinâmico e prospectivo da ordem jurídica propicia o redimensionamento da realidade normativa8, com a Constituição assumindo significados novos, expressando uma temporalidade própria, caracterizada por um renovar-se, um refazer-se de soluções, que, muitas vezes, não surgem de reformas constitucionais. Na mutação constitucional, ocorre uma transformação na realidade da configuração do poder político, da estrutura social ou do equilíbrio de interesses, sem que tal transformação seja atualizada no documento constitucional, isto é, o texto da Constituição permanece intacto. Dessa forma, a mutação constitucional subtrai do órgão reformador parte da responsabilidade pela evolução da Constituição, para atribuir a outras instâncias da práxis constitucional. Segundo Karl Loewenstein9, Este tipo de mutaciones constitucionales se da en todos los Estados dotados de una constitución escrita y son mucho más frecuentes que las reformas constitucionales formales. Su frecuencia e intensidad es de tal orden que el texto constitucional en vigor será dominado y cubierto por dichas mutaciones sufriendo un considerable alejamiento de la realidad, o puesto fuera de vigor.

Referindo-se a tais mudanças informais, Jorge Miranda utiliza o termo vicissitude constitucional tácita10, enquanto José Joaquim Gomes Canotilho emprega a expressão transição constitucional para referir-se à “revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto”11. Entre nós, Anna Candida 8 9

BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 53. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1976, p. 165. 10 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996, t. II, p. 130-143. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 389-390. 11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1212.

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da Cunha Ferraz12 utiliza as expressões processos indiretos, processos não formais ou processos informais “para designar todo e qualquer meio de mudança constitucional não produzida pelas modalidades organizadas de exercício do Poder Constituinte derivado”. A interpretação constitucional judicial revela-se nas decisões que aplicam a Constituição, o que pode ocorrer tanto mediante a aplicação pura e simples da norma constitucional para resolver a lide em um caso concreto, como nos casos em que o exercício da função jurisdicional visa ao controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos. Algumas constituições reconhecem expressamente aos tribunais a missão de intérprete da Constituição, enquanto que em outras esta tarefa decorre implicitamente da natureza da função judicial. Karl Larenz destaca a importância dos precedentes judiciais, identificando um direito judicial: Existe uma grande possibilidade no plano dos factos de que os tribunais inferiores sigam os precedentes dos tribunais superiores e estes geralmente se atenham à sua jurisprudência, os consultores jurídicos das partes litigantes, das empresas e das associações contam com isto e nisto confiam. A conseqüência é que os precedentes, sobretudo os dos tribunais superiores, pelo menos quando não deparam com uma contradição demasiado grande, são considerados, decorrido algum tempo, “Direito vigente”. Assim se forma em crescente medida, como complemento e desenvolvimento do Direito estatuído, um “Direito judicial”13.

A interpretação proporciona a atualização e a vivificação constante do sentido de um dispositivo constitucional. A interpretação da Constituição pelo Poder Judiciário lhe confere considerável parcela de sua força normativa. Como leciona Konrad Hesse, o desenvolvimento da força normativa da Constituição não depende apenas de seu conte-

12

FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 12. 13 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 611-612.

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údo, mas de sua praxis, que se efetiva por uma interpretação adequada, “que é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação”14. Contendo as diretrizes superiores da organização política e jurídica de um povo, a Constituição só se consolidará e produzirá os resultados adequados à medida que for possível o seu amoldamento às novas realidades da vida social. A construção judicial15 é uma importante técnica, muito utilizada pela Suprema Corte norte-americana, que permite a construção do próprio direito em determinadas circunstâncias de premência e necessidade, a fim de suprir as deficiências ou imperfeições do ordenamento jurídico. A construction norte-americana justifica-se pela maior vagueza da tradição legislativa anglo-saxã. Graças à construção judicial, a Constituição dos Estados Unidos da América deu abrigo a novas doutrinas, novos princípios, permitindo mudanças sem qualquer alteração no texto constitucional. Isto levou Charles Evans Hughes, presidente da Corte Suprema norte-americana, a afirmar: “Vivemos sob uma Constituição, mas a Constituição é aquilo que os Juízes dizem que ela é”. Dentre as construções constitucionais da Corte Suprema que provocaram inegável mutação constitucional, são citadas, com freqüência, a construction do judicial review, na famosa decisão proferida por John Marshall, em 1803, no caso Marbury x Madison16. José Horácio Meirelles Teixeira17 considera a construção como uma modalidade de interpretação, ressaltando que não há motivo para distinção entre construção e interpretação constitucional porque, na verdade, toda autêntica, verdadeira interpretação, é construção, pois o intérprete não pode jamais ater-se exclusivamente ao texto, à letra da lei, isolando-a de outras 14

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p.22-23. 15 Cf. PEDRA, Adriano Sant’Ana. A construção judicial da fidelidade partidária no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 207-249, abr./jun.2008. 16 Cf. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 135. 17 TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 271.

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partes do ordenamento jurídico, dos princípios e valores superiores da Justiça e da Moral, da ordem natural das coisas, das contingências históricas, da evolução e das necessidades sociais, da vida, enfim.

Também não fazendo distinção entre construção e interpretação, Anna Candida da Cunha Ferraz18 entende que “a interpretação constitucional é gênero do qual ambas são espécies, que se distinguem particularmente pelos elementos ou critérios interpretativos que adotam e pelos resultados finais alcançados”. Através da construction, a Constituição dos Estados Unidos da América não ficou engessada, mas aderiu à evolução política e social e com ela evoluiu. Entre nós, entretanto, a construction constitucional não tem apresentado muito relevo, em grande parte porque o procedimento de reforma é muito utilizado em nosso país. Embora se procure dar uma certa dimensão à tarefa construtiva do Supremo Tribunal Federal, esta resume-se, em verdade, a uns poucos feitos19. Apesar disto, o Excelso Tribunal brasileiro começa a desempenhar significativo papel acerca da concretização de direitos e garantias fundamentais.

8.3 A vedação de retrocesso e os direitos e as garantias fundamentais O que se busca sustentar aqui é que a mutação constitucional que envolve direitos e garantais é um caminho de via única, ou seja, um caminho que admite apenas avanços nas mudanças informais da Constituição. Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que a dignidade da pessoa humana não exige apenas uma proteção em face de atos de cunho retroativo, mas também não dispensa “uma proteção contra medidas retrocessivas, mas que não podem ser tidas como 18

FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 47-48. 19 FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 137-138.

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propriamente retroativas, já que não alcançam as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada”20. Por isso o autor centra a sua atenção na idéia de proteção da pessoa e da própria ordem jurídica objetiva contra medidas de cunho retrocessivo, “isto é, que tenham por escopo a redução e/ou supressão de posições jurídicas (aqui tomadas em sentido amplo) já implementadas”21. A doutrina utiliza o termo entrenchment ou entrincheiramento, ou ainda princípio do não-retorno da concretização, para se referir ao aqui citado princípio da proibição do retrocesso. Entrenchment é a tutela jurídica do conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, “respaldada em uma legitimação social, evitando que possa haver um retrocesso, seja através de sua supressão normativa ou por intermédio da diminuição de suas prestações à coletividade”22. Convém destacar que o entrenchment não impede a evolução dos direitos. “Depois de garantir uma intensidade mínima, reforçando sua legitimidade na sociedade, a finalidade configura-se em expandir o entrincheiramento dos direitos fundamentais mais adiante, propiciando maiores prerrogativas à população”23. Como a mutação constitucional também pode ocorrer mediante a interpretação constitucional legislativa24, é preciso anotar que a proibição do retrocesso não é incompatível com a existência de normas constitucionais de eficácia contida ou restringível. A Constituição brasileira apresenta diversos dispositivos constitucionais que admitem ser restringidos pelo legislador infraconstitucional. E isto também acontece em outras constituições.

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21

22

23

24

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 245. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 242. AGRA, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: TAVARES, André Ramos (coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 24. AGRA, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: TAVARES, André Ramos (coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 26. Cf. PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, p. 167.

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A Constituição portuguesa estabelece que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos” nela própria (artigo 18.2), estabelecendo ainda um conjunto importante de requisitos de validade das leis restritivas: têm de revestir “carácter geral e abstracto” (artigo 18.3), “não podem ter efeitos retroactivos” (artigo 18.3), as restrições têm de “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (artigo 18.2), não podendo em caso algum “diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” (artigo 18.3). Daí que o poder de restrição do legislador é “um poder vinculado, de modo que a sua concessão não coloca os direitos fundamentais à mercê do legislador”25. Como se sabe, muitos direitos e garantias fundamentais precisam do legislador para ser concretizados. A vedação do retrocesso impede que, uma vez realizados pela lei, estes direitos sejam irrazoavelmente suprimidos. Nas palavras de Luís Roberto Barroso: Merece registro, ainda, [...] uma idéia que começa a ganhar curso na doutrina constitucional brasileira: a vedação do retrocesso. Por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido. Nessa ordem de idéias, uma lei posterior não pode extinguir um direito ou uma garantia, especialmente os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundamental na Constituição26.

No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet leciona que o legislador não pode simplesmente eliminar as normas legais concretizadoras 25

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 302. 26 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 158.

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de direitos fundamentais sociais, “pois isto equivaleria a subtrair às normas constitucionais a sua eficácia jurídica, já que o cumprimento de um comando constitucional acaba por converter-se em uma proibição de destruir a situação instaurada pelo legislador”27. Dissertando sobre as modalidades de eficácia jurídica e os princípios e regras constitucionais, Ana Paula de Barcellos afirma: A modalidade de eficácia jurídica denominada de vedativa do retrocesso pressupõe logicamente que os princípios constitucionais que cuidam de direitos fundamentais são concretizados por meio de normas infraconstitucionais, isto é, os efeitos que pretendem produzir são especificados por meio da legislação ordinária. Além disso, pressupõe também, com base no direito constitucional em vigor, que um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a progressiva ampliação dos direitos em questão. Partindo desses pressupostos, o que a eficácia vedativa do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação das normas que, regulamentando o princípio, concedem ou ampliam direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente28.

Afinal, os limites ao poder de restrição do legislador “constituem também garantias efectivas da força normativa dos preceitos constitucionais”29. Em verdade, o princípio da vedação do retrocesso atuará como limite não apenas para a mutação constitucional que se opera por via de interpretação legislativa, como foi visto nos parágrafos acima, mas

27

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 253. 28 BARCELLOS, Ana Paula de. Modalidades de eficácia jurídica e os princípios e regras constitucionais. In: PEDRA, Adriano Sant’Ana (org.). Arquivos de direito público: as transformações do Estado brasileiro e as novas perspectivas para o direito público. São Paulo: Método, 2007, p. 74. 29 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 302.

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para todas as modalidades de mudanças informais da Constituição, em especial aquelas decorrentes de evolução jurisprudencial. Dessa forma, Ingo Wolfgang Sarlet analisa a eficácia do direito à segurança jurídica na condição de força protetora contra o retrocesso em matéria de direitos fundamentais. Para o autor, “no direito constitucional brasileiro a segurança jurídica constitui princípio e direito fundamental”30. Com efeito, a doutrina constitucional contemporânea, há muito e sem maior controvérsia, no que diz respeito a este ponto, tem considerado a segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, de tal sorte que a segurança jurídica passou a ter o status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito. Assim, para além de assumir a condição de direito fundamental da pessoa humana, a segurança jurídica constitui simultaneamente princípio fundamental da ordem jurídica estatal31.

Além disso, prossegue Ingo Wolfgang Sarlet, “a idéia de segurança jurídica encontra-se umbilicalmente vinculada à própria noção de dignidade da pessoa humana”32. Também Mário de Conto entende que o princípio da proibição do retrocesso passa a ser uma garantia em face de medidas retrocessivas e “buscaria, em última análise, a consecução do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança e conferir certa estabilidade ao ordenamento constitucional”33. Ingo Wolfgang Sarlet verifica ainda que “a proibição de retrocesso, mesmo na acepção mais estrita aqui enfocada, também resulta 30

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 243. 31 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 243. 32 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 244. 33 CONTO, Mário de. O princípio da proibição de retrocesso social: uma análise a partir dos pressupostos da hermenêutica filosófica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 134.

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diretamente do princípio da maximização da eficácia de (todas) as normas de direitos fundamentais”34. Ingo Wolfgang Sarlet35, de maneira concisa, afirma que, no âmbito do direito constitucional brasileiro, o princípio da proibição do retrocesso decorre de modo implícito do sistema constitucional, designadamente dos seguintes princípios e argumentos (rol não exaustivo): (i) princípio do Estado democrático e social de Direito, (ii) princípio da dignidade da pessoa humana, (iii) princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais (art. 5º, §1º, CF), (iv) princípio da proteção da confiança e (v) auto-vinculação dos órgãos estatais em relação aos atos anteriores. Todavia, como a natureza da proibição do retrocesso é principiológica, tal vedação deve ser vista de forma relativa. Dessa forma, o reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso não pode resultar em uma vedação absoluta de qualquer medida “que tenha por objeto a promoção de ajustes, eventualmente até mesmo de alguma redução ou flexibilização em matéria de segurança social, onde realmente estiverem presentes os pressupostos para tanto”36. Com efeito, se é correto apontar a existência de elevado grau de consenso (pelo menos na doutrina e jurisprudência nacional e, de modo geral, no espaço europeu) quanto à existência de uma proteção contra o retrocesso, igualmente é certo que tal consenso (como já foi lembrado) abrange o reconhecimento de que tal proteção não pode assumir um caráter absoluto37.

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SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 255. 35 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 254. 36 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 257. 37 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 255.

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Ainda segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a partir do princípio da proteção da confiança, uma eventual intervenção restritiva no âmbito de posições jurídicas sociais exige “uma ponderação (hierarquização) entre a agressão (dano) provocada pela lei restritiva à confiança individual e a importância do objetivo almejado pelo legislador para o bem da coletividade”38. Acerca da atividade do legislador infraconstitucional, argumenta Ingo Wolfgang Sarlet: Não se pode encarar a proibição de retrocesso como tendo a natureza de uma regra geral de cunho absoluto, já que não apenas a redução da atividade legislativa à execução pura e simples da Constituição se revela insustentável, mas também pelo fato de que esta solução radical, caso tida como aceitável, acabaria por conduzir a uma espécie de transmutação das normas infraconstitucionais em direito constitucional, além de inviabilizar o próprio desenvolvimento deste39.

Mas uma medida de cunho retrocessivo, para que não viole o princípio da proibição do retrocesso, deve, “além de contar com uma justificativa de porte constitucional, salvaguardar – em qualquer hipótese – o núcleo essencial dos direitos sociais”40. No mesmo sentido está Susana Sbrogio’Galia, para quem “nenhuma mutação constitucional poderá romper a barreira do núcleo essencial, sem que sobre ela recaia a pecha de inconstitucionalidade”41. Um direito fundamental é composto de duas partes: o seu núcleo duro e a sua zona periférica. O núcleo duro 38

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 260. 39 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 256. 40 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 260. 41 SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações constitucionais e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 169 e 176.

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ou conteúdo essencial configura-se como um limite que deve ser respeitado pelo Supremo Tribunal Federal ao determinar a densidade de um direito, que, de maneira nenhuma, pode ser desrespeitado pelas decisões judiciais, proibindo-se o seu esvaziamento ou que ele se transforme em uma exceção. Esse núcleo duro é definido como a própria essência do direito, que deve ser concretizado independentemente de conjecturas fáticas. A outra parte que compõe o direito fundamental é a zona periférica, que será concretizada consonante a conjuntura fática, mas que o STF deve estipular um desenvolvimento para que a densidade do direito possa ser aumentada. O mínimo existencial ou densidade suficiente refere-se ao núcleo duro que, integralmente, não pode ser desprezado pelos órgãos estatais. A zona periférica refere-se à extensão que os direitos fundamentais devem paulatinamente evoluir, atendendo às diretrizes estipuladas pelo Supremo Tribunal Federal, sempre em sintonia com os fatores sociopolítico-econômicos42.

Dessa forma, “uma relativização do entrincheiramento pode ocorrer desde que o núcleo do direito fundamental, sua essência ontológica, seja respeitado”43. “É em primeira linha o núcleo essencial dos direitos sociais que vincula o poder público no âmbito de uma proteção contra o retrocesso e que, portanto, encontra-se protegido”44. No tópico seguinte, serão analisadas mutações na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, identificando se houve observância do princípio da vedação do retrocesso, tal como colocado nos parágrafos anteriores.

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AGRA, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: TAVARES, André Ramos (coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 37. 43 AGRA, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: TAVARES, André Ramos (coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 31. 44 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 4, p. 241-271, jul./dez. 2004, p. 258.

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8.4 A evolução da jurisprudência do stf referente a direitos e garantias fundamentais A partir de um estudo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é possível verificar a ocorrência de uma interpretação evolutiva, quando se reconstrói o direito constitucional dinamicamente, na medida das exigências mutantes da realidade social. André Ramos Tavares coloca que “a interpretação evolutiva mostra-se extremamente adequada às Constituições que, como a brasileira e a maioria das Constituições atuais, contemplam em si finalidades distintas, absolutamente diversas”45. Dessa forma, a preferência por uma ou por outra depende do momento histórico vivido. Embora um intervalo de vinte anos (1988-2008) não seja grande o suficiente para se identificar muitas mudanças significativas na realidade social brasileira, é possível registrar mudanças de interpretação constitucional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A seguir, foram analisadas seis mudanças informais da Constituição brasileira ocorridas neste período. a) Direitos fundamentais de estrangeiros não residentes O artigo 5º, caput, da Constituição de 1988 prescreve que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”. Embora não se defenda a interpretação gramatical ou literal pura e simples, “a letra da lei constitui sempre ponto de referência obrigatório para a interpretação de qualquer norma”46. Dessa forma, uma primeira leitura do caput do artigo 5º da Constituição Federal pode levar o leitor a excluir do alcance da norma os estrangeiros não residentes no Brasil. Para Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, não há explicação satisfatória para esta exclusão, “a não ser o fato de o constituinte ter-se 45 46

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 86. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 110.

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apegado à tradição da Constituição de 1891 que reconhecia os direitos individuais somente a brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil”47. Segundo José Afonso da Silva, quando a Constituição, como as anteriores, assegura tais direitos aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, indica, concomitantemente, sua positivação em relação aos sujeitos (subjetivação) a que os garante. Só eles, portanto, gozam do direito subjetivo (poder ou permissão de exigibilidade) relativamente aos enunciados constitucionais dos direitos e garantias individuais. [...] Quando o art. 1º põe a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito faz uma proclamação de valor universal, aí sim, abrangente do ser humano48.

Todavia, como a interpretação é uma operação que atribui significado a um texto, no julgamento do habeas corpus HC 74.051-1/ SC49, o Supremo Tribunal Federal expressou o entendimento de que não apenas os brasileiros e estrangeiros residentes no país, mas também os estrangeiros não residentes, estão protegidos pela norma constitucional em comento. O voto do ministro relator Marco Aurélio foi abalizado na doutrina do também ministro Celso de Mello, que disserta acerta do gozo de direitos pelos estrangeiros. A garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais, salvo as exceções de ordem constitucional, se estende também aos estrangeiros não residentes ou domiciliados no Brasil. O caráter universal dos direitos do homem não se compatibiliza com estatutos que os ignorem. A expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode

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DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2007, p. 85. 48 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 192. 49 Rel. Min. Marco Aurélio. Segunda Turma. J. 18/06/1996. DJ 20/09/1996.

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assegurar a validade e o gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro50.

A negação dos direitos humanos fundamentais para os estrangeiros em trânsito no Brasil seria contra a ideologia humanista que norteia os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, especialmente o objetivo de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CF), além do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). Todavia, uma análise isolada do texto do caput do artigo 5º da Constituição admite – embora não seja a melhor – uma interpretação excludente dos direitos fundamentais dos estrangeiros não residentes. Convém ilustrar esta situação com o caso United States v. VerdugoUrquidez51 do direito norte-americano, no qual a Suprema Corte norte-americana entendeu que Verdugo não estaria protegido pela Quarta Emenda52. Na visão do Chief Justice Willian Rehnquist, o “We the People” não compreenderia todos os membros que habitam o país, mas somente aquela fração dos indivíduos que fazem parte de uma comunidade nacional ou que tenham desenvolvido relação suficiente com o país a ponto de poderem fazer parte desta comunidade53. 50 51

MELLO, Celso de. Constituição federal anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 424. “Verdugo era um cidadão do México com status de residente legal nos USA e possuía casas em ambos os países. Em janeiro de 1986 ele foi apreendido e levado para a custódia americana. Com Verdugo preso em San Diego, os agentes da U. S. Drug Enforcement Agency (DEA) buscaram colher provas contra ele em sua residência no México a fim de ajudar os promotores do caso. Os agentes não obtiveram autorização para tanto, embora tivessem permissão por parte das autoridades mexicanas. Encontrado uma prova de remessa de maconha para a fronteira, esta fora refutada pelo conselho de defesa de Verdugo que mandara suprimir tal prova com base em que o direito de Verdugo a Quarta Emenda fora violado. A Corte Distrital da Califórnia e a Nona Corte apoiaram Verdugo, mas a Suprema Corte reverteu a decisão e a condenação de Verdugo permaneceu”. Cf. SIFFERT, Paulo de Abreu. Breves notas sobre o constitucionalismo americano. In: VIEIRA, José Ribas (Org.). Temas de direito constitucional norte-americano. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 68. 52 “Não se atingirá o direito dos cidadãos de estarem livres de busca e apreensão arbitrárias, quanto a sua pessoa, domicílio, documentos e seu patrimônio; nenhum mandado poderá ser expedido se ele não se baseia em motivos plausíveis, se não se apóia em declarações ou afirmações sob juramento e se não se menciona de forma detalhada os locais objeto de busca e as pessoas ou objetos a apreender”. 53 “Esta construção excludente dos membros do ‘We the People’ apresentada por Justice Rehnquist não era unânime em sua Corte. Em oposição, podemos citar a visão inclusiva de Justice Willian Brennan, que se baseou em seu esboço da ‘mutuality’ (mutualidade/reciprocidade) para sustentar uma leitura mais ampla de quem poderia reivindicar a proteção substantiva

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Por outro lado, uma vez assentada uma interpretação mais extensiva para o caput do artigo 5º da Constituição brasileira, alcançando também os estrangeiros não residentes no país, fica vedado qualquer retrocesso na interpretação que venha excluí-los da proteção constitucional. b) Conceito de casa O termo “casa” apresenta-se na Constituição brasileira como bem protegido contra a sua inviolabilidade. O texto constitucional estabelece que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5º, XI). Como se trata de um termo que admite diversos significados, ora interpretando-se extensivamente ora interpretando-se restritivamente54, é necessário que a interpretação atinja o fim almejado pela norma. E o que se objetiva com tal proteção é promover o respeito à privacidade bem como coibir a ocorrência de abuso de poder. No julgamento do habeas corpus HC 82.788-8/RJ55, o Supremo Tribunal Federal determinou que fosse solto o paciente porque as provas que fundamentavam a sua prisão haviam sido obtidas por meio ilícito. Isto porque entendeu o Excelso Tribunal que o escritório de contabilidade, onde as provas foram colhidas, está sujeito à proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, subsumindo do Bill of Rights. Seu entendimento deságua na compreensão de que aonde a lei americana alcança, direitos são pré-requisitos para justificar a obrigação legal”. Cf. SIFFERT, Paulo de Abreu. Breves notas sobre o constitucionalismo americano. In: VIEIRA, José Ribas (Org.). Temas de direito constitucional norte-americano. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 69. 54 No processo 91.01.09461-0/AM (Relator Des. Adhemar Maciel. Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Unanimidade. J. 04/09/1991. DJ de 23/09/1991), um motorista de embarcação e um pescador objetivavam alcançar a liberdade através de um habeas corpus. Ambos foram presos em uma lancha a motor com quinze pacotes de cocaína. Alegaram os pacientes que os agentes federais não tinham apresentado mandado de busca e apreensão para entrar na lancha, e esta estaria protegida pela inviolabilidade do domicílio. A Terceira Turma (juízes Adhemar Maciel, Vicente Leal e Tourinho Neto) negou o pedido de habeas corpus, entendendo que os agentes federais não precisavam estar munidos de mandado judicial, pois “a lancha de serviço ou passeio não pode ser conceituada como ‘domicílio’ para os fins do inciso XI do art. 5º da Constituição”. 55 Relator Min. Celso de Mello. Segunda Turma. Unanimidade. J. 12/04/2005. DJ 02/06/2006.

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assim ao conceito normativo constitucional de “casa”. Dessa forma, haveria necessidade de mandado judicial para que agentes fazendários e policiais federais apreendessem livros contábeis e documentos fiscais em escritório de contabilidade, na parte que não é acessível ao público, o que não ocorreu no referido caso. A referida decisão do STF alargou o conceito de casa para também compreender “os espaços privados não abertos ao público, onde alguém exerce atividade profissional”, valendo-se da interpretação feita pelo legislador (artigo 150, §4º, III, do Código Penal). Em outro processo, um réu chegou ao Supremo Tribunal Federal com o recurso ordinário interposto contra decisão denegatória de habeas corpus RHC 90.376-2/RJ56, para que a sua prisão fosse anulada e ainda para que a sua sentença condenatória fosse revogada em parte, já que as provas que serviram de fundamento foram obtidas pelos policiais em buscas realizadas em um quarto de hotel sem mandado judicial. Neste julgamento, o ministro relator Celso de Mello aduziu que a finalidade da proteção jurídica do artigo 5º, XI, da Constituição brasileira, a inviolabilidade do lar, deve ser vista de forma abrangente, uma vez que o conceito normativo de “casa” deve abarcar todos os compartimentos privados nos quais sejam exercidas atividades profissionais. Dessa forma, para fins de proteção jurídica do artigo 5º, XI, da Constituição, o conceito normativo de “casa” revela-se abrangente e compreende os aposentos de habitação coletiva, como, por exemplo, quarto de hotel, motel, pensão e hospedaria, desde que ocupados. O ministro relator ainda enfatizou que o conceito de “casa”, para o fim da proteção jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição, reveste-se de caráter amplo “pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade”. Como se vê, o Supremo Tribunal Federal tem dado ao termo “casa” um sentido que vai além daquele que habitualmente lhe é atribuído pelo 56

Relator Min. Celso de Mello. Segunda Turma. Unanimidade. J. 03/04/2007. DJ 18/05/2007.

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senso comum. A extensão do significado é essencial para a concretização desse direito fundamental e o princípio da vedação do retrocesso impede que lhe seja dada uma interpretação mais restritiva. c) Progressão do regime de cumprimento da pena para condenados por crimes hediondos A Lei 8.072/1990 dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal. O legislador prescreveu que a pena imposta aos condenados pela prática de crimes hediondos deveria ser cumprida integralmente em regime fechado, vedando assim a possibilidade de progressão de regime (art. 2º, § 1º)57. A constitucionalidade de dispositivo legal foi questionada em face do artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendia ser constitucional a regra do regime integralmente fechado para os crimes hediondos58. No julgamento do habeas corpus HC 69.657-1/ SP59, o STF afirmou que “não há inconstitucionalidade em semelhante rigor legal, visto que o princípio da individualização da pena não se ofende na impossibilidade de ser progressivo o regime de cumprimento da pena”. Em seu voto, o ministro Francisco Rezek consignou que se o legislador diz que no caso de determinado crime o regime da pena será necessariamente fechado, não me parece que esteja por isso sendo afrontado o princípio isonômico – mediante um tratamento igual para seres humanos naturalmente desiguais –, nem tampouco o preceito constitucional que manda seja a pena individualizada. [...] Se no caso de crime hediondo ele não tem, como os demais condenados, a esperança da progressividade, tem entretanto outra que depende rigorosamente

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Antiga redação do artigo 2º, §1º, da Lei 8.072/1990: “A pena por crime previsto neste artigo [crime hediondo] será cumprida integralmente em regime fechado”. 58 Súmula 698: “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura”. 59 Relator ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão ministro Francisco Rezek. Pleno. M. J. 18/12/1992. DJ 18/06/1993.

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de sua conduta, e que vai naturalmente influenciá-la: a da obtenção do livramento condicional depois de certo prazo de cumprimento da pena.

Votando no mesmo sentido, o ministro Celso de Mello registrou que a individualização da pena “se dá em abstrato (momento de instauração normativa ou de previsão legislativa) ou em concreto (no momento da sentença e na fase de execução da sanctio juris)”60. Afirmou ainda que razões de política criminal, fundamentadas em preceito da Carta Política que submete a tratamento penal objetivamente mais rigoroso [...] os delitos legalmente definidos como hediondos (CF, art. 5º, XLIII), justificam a norma inscrita no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. [...] A opção feita pelo legislador ordinário, consubstanciada no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, fundamenta-se em critérios cuja razoabilidade e legitimidade são inquestionáveis.

Na mesma toada, o ministro Octavio Gallotti entendeu que “a hipótese presente é, porém, de execução da pena e não de individualização. A execução está prevista pela Constituição, no inciso XLVIII do mesmo art. 5º”. Como se vê, a tese vencedora, aqui, subtraiu o momento da execução do âmbito do princípio da individualização da pena, limitando este ao ato da dosimetria. Este entendimento foi modificado a partir do julgamento do HC 82.959-7/SP61, quando o Supremo Tribunal Federal manifestou o seguinte entendimento: Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, no cumprimento da pena em

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Diferente é o entendimento do ministro Sepúlveda Pertence, no mesmo julgamento: “não conheço individualização in abstrato. A mim me parece que individualização in abstrato, data venia, é contradictio in terminis. 61 Relator ministro Marco Aurélio. Pleno. Maioria. J. 23/02/2006. DJ 01/09/2006.

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regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.

Segundo o STF, “a progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso, que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social”. O relator, ministro Marco Aurélio, repetiu o seu voto proferido no julgamento do habeas corpus HC 69.657-1/SP, quando foi vencido juntamente com o ministro Sepúlveda Pertence. Aduziu o ministro Marco Aurélio em seu voto: A progressividade do regime está umbilicalmente ligada à própria pena, no que, acenando ao condenado com dias melhores, incentiva-o à correção de rumo e, portanto, a empreender um comportamento penitenciário voltado à ordem, ao mérito e a uma futura inserção no meio social. [...] A Lei nº 8.072/90 ganha, no particular, contornos contraditórios. A um só tempo dispõe sobre o cumprimento da pena no regime fechado, afastando a progressividade, e viabiliza o livramento condicional, ou seja, o retorno do condenado à vida gregária antes mesmo do integral cumprimento da pena e sem que tenha progredido no regime. [...] Assentar-se, a esta altura, que a definição do regime e modificações posteriores não estão compreendidas na individualização da pena é passo demasiadamente largo, implicando restringir garantia constitucional em detrimento de todo um sistema e, o que é pior, a transgressão a princípios tão caros em um Estado Democrático como são os da igualdade de todos perante a lei, o da dignidade da pessoa humana e o da atuação do Estado sempre voltada ao bem comum.

O ministro Gilmar Mendes manifestou o entendimento que “o princípio da individualização da pena fundamenta um direito subjetivo, que se não se restringe à simples fixação da pena in

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abstracto, mas que se revela abrangente da própria forma de individualização (progressão)”. Também nesse sentido foi a lavra do ministro Carlos Ayres Brito: Coerente com essa crença na regenerabilidade de todo e qualquer condenado, a Constituição instituiu a garantia da individualização da pena, em dispositivo posterior àquele versante sobre crimes hediondos. Depois que a Constituição versou o tema dos crimes hediondos, passou a cuidar da garantia da individualização da pena, sinalizando que ela se aplica mesmo em dois momentos: no momento sentencial, abstrato da cominação, e no momento administrativo, concreto, da execução da pena.

O ministro Eros Grau lembrou que o paradigma anterior (habeas corpus HC 69.657-1/SP) “foi julgado em 1993, relativamente pouco tempo depois da entrada em vigor da Lei 8.072, de junho de 1990. A realidade agora é outra, totalmente diferente”. O ministro Sepúlveda Pertence restou convencido “de que esvazia e torna ilusório o imperativo constitucional da individualização da pena a interpretação que lhe reduza o alcance ao momento da aplicação judicial da pena, e dele faça abstração no momento da execução”. Diante do que foi trazido, nota-se o avanço da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que passou a observar aspectos como a igualdade de todos perante a lei, a individualização da pena e a reabilitação do condenado. Merece ser frisado que o reconhecimento da inconstitucionalidade do cumprimento da pena integralmente em regime fechado não impede que o legislador estabeleça uma progressão de regime mais rigorosa para os condenados por crimes hediondos – como, de fato, o fez62 –, e nem o princípio da vedação do retrocesso impede isto.

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A Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, deu nova redação ao artigo 2º da Lei nº 8.072/1990.

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d) Anistia e promoção de militares Devido ao período ditatorial vivido no Brasil, alguns militares foram prejudicados por motivações exclusivamente políticas, vítimas de atos de exceção. A fim de reparar esta situação, o artigo 8º do ADCT63 concedeu anistia aos militares, tendo, assim, o reconhecimento do desacerto dos atos praticados durante a ditadura militar. Segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, manifestado quando julgou o recurso extraordinário RE 141.290-9/ DF64, a norma constitucional transitória anteriormente referida não asseguraria, indiscriminadamente, todas as promoções que, em tese, seriam possíveis, mas apenas promoção por antiguidade. Entendeu a Excelsa Corte que, com base no artigo 8º do ADCT, não é possível ter como ocorrida automaticamente promoção por merecimento, pois, em se tratando de promoções sujeitas a avaliação do candidato, com atribuição de pontos e aferição de critérios objetivos e subjetivos, estes não poderiam se presumir satisfeitos. Modificando a sua própria jurisprudência, no julgamento do recurso extraordinário RE 165.438-4/DF65, o Supremo Tribunal Federal passou a ter entendimento diverso. O STF passou a entender que, quando o artigo 8º do ADCT assegurou as promoções na inatividade, ao posto ou à graduação a que teria direito, se estivesse na ativa, em verdadeira ficção jurídica, admite que o militar deveria obter as mesmas promoções conferidas aos seus colegas (paradigmas) que permaneceram na ativa. Afinal, o próprio Estado brasileiro retirou do militar excluído a possibilidade de demonstrar o seu eventual merecimento para ser promovido.

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In verbis: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos”. 64 Min. Rel. Néri da Silveira. Pleno. Maioria. J. 27/08/1992. DJ 02/04/1993. 65 Min. Rel. Carlos Velloso. Pleno. Unanimidade. J. 06/10/2005. DJ 05/05/2006.

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Além disso, o legislador constituinte não fez nenhuma ressalva no artigo 8º do ADCT no sentido de que as promoções só seriam por antiguidade. Como se sabe, as normas de anistia devem ter a interpretação mais ampla possível. Dessa forma, todas as promoções devem ser asseguradas, seja por antiguidade seja por merecimento. No mesmo sentido foi a decisão proferida nos Embargos de Declaração em Embargos de Divergência em Recurso Extraordinário 174.161-9/DF66, quando o ministro relator Gilmar Mendes ratificou o seu voto proferido no RE 165.438-4/DF “no sentido de que o pleito de caráter indenizatório há de restituir, tanto quanto possível, a posição do atingido”. Percebe-se, assim, um avanço na jurisprudência da Excelsa Corte. e) Extradição e comutação de pena de prisão perpétua O ordenamento jurídico brasileiro exige a comutação da pena de morte em pena privativa de liberdade para a concessão de extradição de estrangeiro para outro Estado em razão de delito nele praticado. A Lei nº 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro), com as modificações da Lei nº 6.964/1981, no artigo 91, III, estipula que não será efetivada a entrega do extraditando sem que o Estado requerente assuma o compromisso de comutar em pena privativa de liberdade a pena corporal ou de morte, ressalvados, quanto à última, os casos em que a lei brasileira permitir a sua aplicação67. Todavia, esta exigência não era feita quando se tratava de pena de prisão perpétua, que também é vedada no Brasil (art. 5º, XLVII, b, CF). O Supremo Tribunal Federal entendia ser desnecessária a comutação da pena de prisão perpétua em pena privativa de liberdade com prazo máximo de cumprimento. No julgamento da Extradição 507-3/Argentina68, o STF deferiu o pedido de extradição

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Min. Rel. Gilmar Mendes. Pleno. Maioria. J. 20/09/2007. DJ de 14/11/2007. Cf. artigo 5º, XLVII, a, in fine, CF. Relator original Min. Néri da Silveira. Relator para o acórdão Min. Ilmar Galvão. Pleno. Maioria. J. 25/09/1991. DJ 03/09/1993.

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sem qualquer ressalva quanto à pena de prisão perpétua, considerada descabida pela jurisprudência do STF, a partir do julgamento da Extr. 42669 (4.9.85)70 e em face da reiteração do texto legal, entre nós, por quase um século, claro e límpido no sentido da necessidade de comutação tão-somente das penas corporal e de morte.

A Extradição 507-3/Argentina cuidava da análise do pedido de extradição de um argentino acusado de crime de assalto a banco, com vítima fatal, tendo sido expedido mandado de captura por homicídio e tentativa de roubo qualificado. Acompanhando o ministro Ilmar Galvão, relator para o acórdão, o ministro Marco Aurélio entendeu não encontrar, “na legislação em vigor, qualquer preceito que autorize o deferimento de pedido de extradição com cláusula restritiva, como que a se transportar, para o direito do Estado requerente, um preceito da nossa ordem jurídica”. No mesmo sentido, assim se manifestou o ministro Moreira Alves: Sr. Presidente, embora tenha sido eu o relator do acórdão em que se restabeleceu essa restrição, devo salientar que, posteriormente, meditando sobre essa questão, cheguei à conclusão de que não podemos impor a Estado estrangeiro garantias constitucionais, relativas a penas, que dizem respeito à aplicação destas pelo nosso país.

Também deferindo a extradição sem ressalvas, o então presidente do STF ministro Sidney Sanches afirmou que “a Constituição, quando proíbe a aplicação de pena de prisão perpétua, obviamente está se referindo aos brasileiros e nacionais, quando aqui são julgados. E não aos que são julgados noutro País”. Neste julgamento foram vencidos os ministros Néri da Silveira, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Paulo Brossard, que votaram 69

Neste caso, o extraditando fugiu para o Brasil durante o cumprimento da pena de prisão perpétua. 70 A Constituição anterior (art. 150, § 11) também vedava a pena de prisão perpétua: “Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, nem de confisco. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação militar aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de função pública.”

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pelo acolhimento do parecer do Procurador-Geral da República, no sentido de ressalvar que o extraditando não poderia ser condenado à pena de prisão perpétua, devendo o Estado requerente da extradição assumir o compromisso de comutar as penas impostas para ajustá-las ao limite de trinta anos, nos termos do artigo 75 e § 1º do Código Penal brasileiro. Esse posicionamento foi alterado no julgamento da Extradição 855-2/Chile71, quando o Supremo Tribunal Federal “condicionou a entrega do extraditando à comutação das penas de prisão perpétua em pena de prisão temporária de no máximo 30 anos”. A extradição somente será deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais – considerado o que dispõe o art. 5º, XLVII, “b” da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo – estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico-normativa da Lei Fundamental brasileira. Doutrina. Novo entendimento derivado da revisão, pelo Supremo Tribunal Federal, de sua jurisprudência em tema de extradição passiva.

O extraditando chileno havia sido condenado, naquele país, a duas penas de prisão perpétua pela prática dos crimes de homicídio, de formação de quadrilha armada e de extorsão mediante seqüestro, todos eles qualificados como atos delituosos de caráter terrorista72. 71

Relator Min. Celso de Mello. Pleno. Unanimidade para deferir a extradição e maioria para condicionar a entrega do extraditando à comutação da pena. J. 26/08/2004. DJ 01/07/2005. 72 O extraditando também havia sido condenado pela Justiça do Estado de São Paulo à pena de trinta anos de reclusão, pela prática dos crimes de extorsão mediante seqüestro, de formação de quadrilha e de tortura. O ministro Celso de Mello lembrou que o Supremo Tribunal Federal tem acentuado que “compete, exclusivamente, ao Presidente da República, uma vez deferido o pedido extradicional pelo Supremo Tribunal Federal, deliberar sobre a conveniência da entrega imediata do extraditando ao Estado requerente, não obstante o súdito estrangeiro esteja sendo processado criminalmente no Brasil ou aqui sofrendo

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O voto do ministro Celso de Mello é esclarecedor a respeito do histórico da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca deste tema. Não desconheço que esta Corte, em 1985, alterou orientação jurisprudencial73 que condicionava a entrega do extraditando à existência de compromisso formal – previamente assumido pelo Estado requerente – relativo à comutação da pena de prisão perpétua em sanção temporária de privação da liberdade (RTJ 108/18 – RTJ 111/16). Com efeito, o julgamento da Ext. 426-3, requerida pelo Governo dos Estados Unidos da América, levou o Supremo Tribunal Federal, por voto majoritário, a declarar “... improcedente a alegação de ressalva para a comutação de prisão perpétua em pena limitativa de liberdade, por falta de previsão na lei ou no tratado” (RTJ 115/969). Não obstante a orientação firmada por esta Corte, não vejo – coerente com votos proferidos em anteriores processos extradicionais (Ext 486 – Ext 654 – Ext 703-ED – Ext 773 – Ext 811 – Ext 838) – como dar precedência a prescrições de ordem meramente convencional (tratados internacionais) ou de natureza simplesmente legal sobre regras inscritas na Constituição, que vedam, dentre outras sanções penais, a cominação e a imposição de quaisquer penas de caráter perpétuo (CF, art. 5º, inciso XLVII, b). Essa cogente, absoluta e incontornável proibição de índole constitucional configura, na realidade, o próprio fundamento da norma jurídica consubstanciada no art. 75 do Código Penal brasileiro que limita a trinta (30) anos o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade.

execução penal em face de condenação imposta pela Justiça brasileira. Inteligência do art. 89 do Estatuto do Estrangeiro”. 73 Merece registro que a jurisprudência anterior do STF, consolidada nos pedidos de Extradição 399 e 417, ressalvava que a prisão perpétua fosse convertida em restritiva de liberdade não superior a trinta anos.

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A Extradição 855-2/Chile demonstra a nova interpretação do artigo 5º, XLVII, b, da Constituição Federal, que amplia a sua abrangência a pessoas sob processo de extradição, afirmando a supremacia da Constituição brasileira e enaltecendo os valores da dignidade e integridade humanas. Este novo entendimento está de acordo com o princípio da prevalência dos direitos humanos, que deve reger as relações internacionais do Brasil (art. 4º, II, CF). f) Mandado de injunção O artigo 5º, LXXI, da Constituição Federal prescreve que o mandado de injunção será concedido “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. A jurisprudência que se firmou inicialmente no STF adotava uma posição não concretista, no sentido de atribuir ao mandado de injunção tão-somente a finalidade específica de ensejar o reconhecimento formal da inércia do Poder Público e dar ciência ao poder competente para que editasse a norma faltante. No julgamento do mandado de injunção MI 470-6/RJ74, o Supremo Tribunal Federal deferiu o pedido “para que se comunique ao Congresso Nacional a mora em que se encontra, a fim de que sejam adotadas as providências necessárias ao suprimento da omissão”. O referido mandado de injunção objetivava tornar efetiva a norma inscrita no artigo 192, § 3º, da Constituição, revogado pela Emenda Constitucional nº 40/2003, que estabelecia o limite das taxas de juros em doze por cento ao ano. Todavia, nos julgamentos dos mandados de injunção MI 670/ MI 708/PB76 e MI 712/PA77, o STF colocou como solução

ES75, 74 75

Relator ministro Celso de Mello. Pleno. Maioria. J. 15/02/1995. DJ 29/06/2001. Relator ministro Maurício Corrêa. Relator para o acórdão ministro Gilmar Mendes. Pleno. Unanimidade para declarar a omissão legislativa e maioria para aplicar a lei de greve do setor privado. J. 25/10/2007. Ainda não publicado. 76 Relator ministro Gilmar Mendes. Pleno. Unanimidade para declarar a omissão legislativa e maioria para aplicar a lei de greve do setor privado. J. 25/10/2007. Ainda não publicado. 77 Relator ministro Eros Grau. Pleno. Unanimidade para declarar a omissão legislativa e maioria para aplicar a lei de greve do setor privado. J. 25/10/2007. Ainda não publicado.

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para a omissão legislativa do Congresso Nacional a aplicação da Lei nº 7.783/1989, que regula a greve no setor privado, no que couber, para os servidores públicos civis. Dessa forma, enquanto perdurar a omissão legislativa para a regulamentação do direito de greve no serviço público (art. 37, VII, CF), as normas definidas para os trabalhadores em geral (art. 9º, CF) aplicam-se também para os servidores públicos civis. Em seu voto proferido o MI 712-8/PA, o ministro Celso de Mello procurou restituir ao mandado de injunção a sua real destinação constitucional, concedendo eficácia concretizadora ao direito de greve em favor dos servidores públicos civis: A jurisprudência que se formou no Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento do MI 107/DF, Rel. Min. Moreira Alves (RTJ 133/11), fixou-se no sentido de proclamar que a finalidade, a ser alcançada pela via do mandado de injunção, resume-se à mera declaração, pelo Poder Judiciário, da ocorrência de omissão inconstitucional, a ser meramente comunicada ao órgão estatal inadimplente, para que este promova a integração normativa do dispositivo constitucional invocado como fundamento do direito titularizado pelo impetrante do writ. Esse entendimento restritivo não mais pode prevalecer, sob pena de se esterilizar a importantíssima função político-jurídica para a qual foi concebido, pelo constituinte, o mandado de injunção, que deve ser visto e qualificado como instrumento de concretização das cláusulas constitucionais frustradas, em sua eficácia, pela inaceitável omissão do Congresso Nacional, impedindo-se, desse modo, que se degrade a Constituição à inadmissível condição subalterna de um estatuto subordinado à vontade ordinária do legislador comum.

A nova posição concretista geral do STF retira-o de uma situação de timidez e confere ao mandado de injunção uma dimensão digna de um verdadeiro remédio constitucional, não se tolerando mais que a inércia do legislador infraconstitucional contenha a vontade da Constituição.

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8.5 Considerações finais O texto constitucional brasileiro dispõe expressamente acerca das limitações à reforma e à revisão constitucional. O mesmo não se pode dizer quanto à mutação constitucional. Todavia, isto não significa que esta esteja a salvo de limitações, mormente em razão da força normativa da Constituição. Buscou-se demonstrar aqui que a mutação constitucional concernente a direitos e garantias fundamentais não admite retrocessos na interpretação evolutiva da Constituição. Almejou-se justificar a necessidade de se preservar os avanços conquistados e demonstrar a existência de limites à mutação constitucional que impedem o retrocesso na interpretação de direitos e garantias constitucionais. A vedação de retrocesso em direitos e garantais fundamentais adquire feições de verdadeiro princípio constitucional implícito, que assegura a manutenção dos graus mínimos de segurança alcançados. Todavia, como a natureza da proibição do retrocesso é principiológica, tal vedação deve ser vista de forma relativa. São poucas as mutações constitucionais verificadas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nestes últimos vinte anos, envolvendo este tema. Assim mesmo, constatou-se que o Excelso Tribunal brasileiro tem desempenhado um papel importante na concretização de direitos e garantias fundamentais. A partir dos casos estudados, verificou-se que houve uma expansão dos direitos e garantias fundamentais na jurisprudência evolutiva do Supremo Tribunal Federal, tal como sustentado teoricamente. Isto demonstra que a realização e a efetivação da Constituição têm alcançado os fins propostos, haja vista que o princípio da vedação do retrocesso também resulta do princípio da maximização da eficácia dos direitos fundamentais.

6. Referências AGRA, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: TAVARES, André Ramos (coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 23-41. 203

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9 Algumas notas sobre a eficácia e efetividade do direito à moradia como direito de defesa aos vinte anos da Constituição Federal de 1988*

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9.1 Observações preliminares

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inserção do direito à moradia no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (doravante apenas referida como CF), além de algumas alterações na esfera legislativa – como dá conta, em especial, a edição do assim designado estatuto das cidades – foi sucedida por um número significativo de demandas e decisões judiciais invocando o direito à moradia, na sua condição de direito fundamental social. Assim, se mesmo antes da recepção expressa do direito à moradia este já era tido, por alguns representantes na doutrina e mesmo na esfera jurisprudencial, como implicitamente contemplado pela CF (embora já expressamente consagrado em tratados internacionais * Na elaboração do presente artigo, utilizamos parte substancial de trabalhos anteriores de nossa autoria, cuidando-se, em especial, de uma revisão, atualização e ampliação significativa de artigo versando especificamente sobre a discussão em torno da penhora do imóvel do fiador, à luz da decisão do STF sobre o tema, ainda no prelo (Revista da AJURIS), mas que aqui foi aprofundada, além de vinculada a outras hipóteses que dizem respeito ao direito à moradia. ** Doutor em Direito (Munique). Estudos em nível de Pós-Doutorado em Munique (Universidade de Munique e Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional, como bolsista DAAD e Max-Planck) e Washington DC (Georgetown Center). Professor Titular da Faculdade de Direito e do Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS. Professor do Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha). Professor de Direito Constitucional e Teoria dos Direitos Fundamentais na Escola Superior da Magistratura (AJURIS). Juiz de Direito no RS.

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de direitos humanos ratificados pelo Brasil), após sua incorporação ao texto do artigo 6º passou a não ser mais possível refutar a consagração deste direito fundamental e, portanto, passou a ser cogente (pelo menos, assim o deveria ser!) a consideração das conseqüências jurídicas de tal reconhecimento. Todavia, tal não significa dizer que a respeito de tais conseqüências jurídicas não se verifiquem uma série de controvérsias, que principiam já pela discussão em torno da própria fundamentalidade do direito à moradia, passando, além disso, pelo debate em torno do seu conteúdo e significado, especialmente, contudo, no que diz com sua possível eficácia e efetividade. Dentre as aplicações correntes do direito à moradia, seja na esfera do direito internacional, seja na esfera jurídico-constitucional interna dos Estados, destaca-se a sua assim designada dimensão negativa, que diz com a tutela da moradia em face de ingerências oriundas do Estado ou de particulares. Nesta perspectiva e considerando de modo especial a experiência brasileira mais recente, acabou assumindo uma posição de destaque a discussão em torno da proteção da propriedade que serve de moradia ao seu titular ou para algum familiar. Com efeito, após uma série de decisões judiciais - inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - vedando a penhora do imóvel utilizado para fins de moradia por parte do devedor em diversas hipóteses, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou por reconhecer, por ora no âmbito do controle incidental, a constitucionalidade da previsão legal que permite a penhora do imóvel residencial do fiador de contrato de locação. Tal decisão – ainda mais se lhe for outorgada eficácia erga omnes e efeito vinculante – diz respeito a um número expressivo de situações concretas e a vida de inúmeras pessoas, sem falar na sua conexão com casos semelhantes, como ocorre com a previsão legal da penhora em se cuidando de dívidas condominiais, assim como nos casos de execuções promovidas pela fazenda pública, dentre outros. Da mesma forma, a depender da força persuasiva da decisão e das suas razões subjacentes, mesmo em outras situações envolvendo a proteção da moradia poderemos vir a experimentar alguns reflexos importantes, sem que aqui nos estejamos a posicionar (ainda!) sobre as possíveis virtudes ou defeitos da decisão ora referida, bem como de algumas outras hipóteses envolvendo o direito à moradia no Brasil. Certo é que a que a problemática específica (penhora do imó-

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vel residencial) ora referida em caráter exemplificativo, se insere no contexto mais amplo dos deveres de proteção (não exclusivamente estatais) no âmbito do direito à moradia, dizendo respeito também a todas as outras possibilidades vinculadas à condição do direito à moradia como direito de defesa (negativo), como é o caso da proteção da moradia contra despejos arbitrários ou qualquer outro modo de violação do direito à moradia por ação ou mesmo omissão. Na esteira dessas considerações, descortina-se já o nosso propósito de enfocar o direito (fundamental!) à moradia na ordem constitucional brasileira, designadamente na sua condição de direito negativo (defesa), com o que não se está a refutar nem a existência de uma dimensão positiva (prestacional) nem a sua relevância para a própria dimensão negativa (o dever de proteção estatal implica medidas positivas de cunho fático e normativo), mas apenas estabelecendo uma delimitação do objeto de nossa abordagem. Aliás, mesmo naquilo em que a moradia atua como direito negativo qualquer pretensão de completude da abordagem seria fadada à frustração, ainda mais levando em conta os limites espaciais do presente artigo. Assim, o que se pretende é acima de tudo revisitar o tema1 para efeitos de, no plano da dimensão negativa e à luz de alguns exemplos, embora com ênfase na avaliação crítica da referida decisão do STF sobre a penhorabilidade do imóvel do fiador, analisar a possível eficácia e efetividade do direito à moradia como direito fundamental (em sentido formal e material) no Brasil. Para que isto seja possível, iniciaremos com a caracterização do direito à moradia como um direito fundamental, especialmente abordando o seu conteúdo e a sua assim designada dupla dimensão (ou função) negativa e positiva. Na seqüência, explorando já a condição do direito à moradia como direito negativo (ou de defesa), que constitui a preocupação central do presente estudo, passaremos a avaliar criticamente a questão da proteção da moradia contra a penhora tal qual enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal e algumas outras questões correlatas. Além

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V. o nosso “O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia”, in: MELLO, Celso D. de; TORRES, Ricardo Lobo (Dir.), Arquivos de Direitos Humanos vol. 4, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 137-193, onde também abordamos a dimensão positiva (prestacional) e outras questões vinculadas ao direito à moradia e aos direitos sociais em geral.

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disso, antes de iniciarmos o estudo propriamente dito, vale consignar que o acesso à moradia, ainda mais uma moradia compatível com as exigências da dignidade da pessoa humana, segue constituindo um dos problemas mais relevantes a serem superados em termos de efetividade dos direitos sociais, seja no Brasil, seja em tantos outros Países marcados pela desigualdade. A considerar os rumos da doutrina e jurisprudência entre nós, nada mais oportuno do que avaliar, à luz dos desenvolvimentos mais recentes, pelo menos alguns dos aspectos jurídico-constitucionais que dizem respeito à tutela da moradia nestes vinte anos de vigência de nossa atual Constituição, no mínimo com o intuito de contribuir para o debate.

9.2 Breves notas sobre o direito à moradia como direito fundamental Muito embora o direito à moradia tenha sido incluído (expressamente) no rol dos direitos fundamentais sociais (art. 6°, da CF) por meio de emenda constitucional (EC n° 26, de 2000)2, sua condição de direito fundamental, a despeito de alguma doutrina que refuta a fundamentalidade dos direitos sociais, tem sido amplamente reconhecida na doutrina e na jurisprudência. O próprio Supremo Tribunal Federal, a despeito de ter, por maioria, chancelado a legitimidade constitucional da penhora do imóvel residencial do fiador3 (decisão que será objeto de uma avaliação crítica logo adiante), reafirmou, em termos gerais, ser a moradia direito fundamental da pessoa humana. Por outro lado, mesmo que não se pretenda aqui aprofundar a ques2

O fato de a inclusão do direito à moradia no âmbito dos direitos sociais ter ocorrido por emenda constitucional apenas no ano 2000 não significa, contudo, que a moradia não tenha recebido já alguma tutela direta na Constituição e que, além disso, não poderia já ser considerada como direito fundamental social pelo menos implicitamente positivado. Neste sentido, v. o nosso já referido “O Direito Fundamental à Moradia na Constituição...”, p. 150 e ss. A respeito do histórico do direito à moradia na ordem jurídica brasileira, v. também INÁCIO, Gilson Luiz. Direito Social à Moradia & Efetividade do Processo. Contratos do Sistema Financeiro de Habitação, Curitiba: Juruá, 2002, p.38 e ss.; SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. Análise Comparativa e Suas Implicações Teóricas e Práticas com os Direitos de Personalidade, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 104 e ss.; AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 84 e ss. e, mais recentemente, GODOY, Luciano de Souza. O Direito à Moradia e o Contrato de Mútuo Imobiliário, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 37 e ss. 3 RE 407.688-8, Relator Ministro Cezar Peluso.

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tão, há que enfatizar que a defesa intransigente da fundamentalidade de todos os direitos e garantias contidos no Título II da Constituição Brasileira, sem prejuízo da existência de outros direitos fundamentais, seja decorrentes do regime e dos princípios (portanto, direitos expressa e implicitamente consagrados na Constituição, ainda que em outras partes de seu texto) e constantes dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, tudo a teor do disposto no artigo 5°, § 2° da nossa Constituição. Embora se saiba (pelo menos é a nossa convicção) que nem todos os direitos e garantias fundamentais expressamente anunciados no elenco do Título II de nossa Constituição encontram seu fundamento direto no princípio da dignidade da pessoa humana, e que, de qualquer modo (mesmo que haja uma conexão direta com a dignidade da pessoa), diversa a intensidade do vínculo entre dignidade e direitos fundamentais, já que distinto o âmbito de proteção de cada direito em espécie, não poderíamos, por outro lado, deixar de reconhecer que é na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, o alicerce de um conceito material dos direitos fundamentais4, o que evidentemente também se aplica aos direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais em geral, bem como ao direito à moradia em particular. Tais ponderações já deveriam, por si só, afastar qualquer leitura reducionista, designadamente naquilo em que – equivocadamente – se afirma que sustentamos uma concepção estritamente formal de direitos fundamentais5. Em primeiro lugar, afirmar que são fundamentais todos direitos expressamente consagrados na Constituição com o rótulo de fundamentais não significa que não haja outros direitos fundamentais, até mesmo pelo fato de que se deve levar a sério a já referida cláusula de abertura (na condição de norma geral 4

V. por todos, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 79 e ss. Entre nós, enfatizando a ausência de uma fundamentação direta na dignidade da pessoa humana de todos os direitos consagrados na Constituição de 1988, v., em especial, o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 5ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 79 e ss. 5 Pelo menos esta a leitura da nossa obra, seguramente inadequada, realizada por MAURÍCIO JUNIOR, Alceu, “Direitos Prestacionais, Concepções de Direitos Fundamentais e Modelos de Estado”, in: MELLO, Celso D. de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (Dir.), Arquivos de Direitos Humanos vol. 7, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 4 e ss.

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inclusiva6) contida no artigo 5°, § 2°, da Constituição Federal. Vale lembrar, nesta mesma perspectiva, que sempre – mesmo antes da inclusão do polêmico § 3 ° no artigo 5° da Constituição – defendemos, acompanhando a melhor doutrina, a hierarquia constitucional e a fundamentalidade (neste caso material, vez que não incorporados ao texto constitucional) dos direitos humanos consagrados nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A sustentação da fundamentalidade de todos os direitos assim designados no texto constitucional (que alcança todo o Título II e, portanto, os direitos sociais do artigo 6° e os direitos dos trabalhadores), por sua vez, implica reconhecer pelo menos a presunção em favor da fundamentalidade também material desses direitos e garantias, ainda que possamos ter, a depender da orientação ideológica ou concepção filosófica professada, razões para questionar tal fundamentalidade. Mesmo para os direitos do Título II (que, reitere-se, não excluem outros, tanto fundamentais em sentido formal e material, quanto fundamentais em sentido apenas material) a posição adotada não está dissociada de critérios de ordem material, já que sem dúvida se cuida de posições que já de partida receberam no momento do pacto constitucional fundamente a proteção e força normativa reforçada peculiar dos direitos fundamentais pela relevância de tais bens jurídicos na perspectiva dos “pais” da Constituição (o que, aliás, aponta para uma legitimação também democrática!7), 6

Como bem lembra FREITAS , Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 206 e ss.. 7 Discutindo, ainda que não exatamente sob este ângulo, a questão da fundamentação dos direitos sociais como direitos fundamentais pelo prisma democrático (no caso, democráticodeliberativo) v., dentre outros, NETO SOUZA, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Um estudo sobre o papel do Direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.225 e ss., sustentando que os direitos sociais são (especialmente no campo do mínimo existencial) condições fundamentais para a democracia. Nesta mesma linha de abordagem (embora uma série de divergências entre o pensamento dos autores referidos e entre esses e a nossa concepção) v., ainda, entre outros, a recente e indispensável coletânea de CATONNI, Marcelo (Org). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, 2006 e, por último, a instigante contribuição de CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. O constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, especialmente o capítulo 7, onde é discutida a questão dos direitos sociais. Como contraponto, professando uma concepção de cunho mais substancialista (adotando aqui a terminologia mais habitual) v. o referencial trabalho de STRECK, Lenio Luiz, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, Rio de Janeiro: Forense, 2004 (especialmente capítulos Ia V) e, do mesmo autor , Verdade e Consenso, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, assim como SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais, Belo Horizonte: Del Rey, 2004. Embora a nossa resistência às abordagens de cunho prevalentemente procedimental, ainda mais quando fundadas na teoria discursiva

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decisão esta que não pode pura e simplesmente ser desconsiderada pelos que (na condição de poderes constituídos!) devem assegurar a esses direitos sua eficácia e efetividade. Aliás, não sendo o caso de aprofundar o debate, mas sim, espancando eventuais dúvidas, enfatizar a nossa posição a respeito do tema, verifica-se que justamente o caso específico do direito à moradia, que não tinha sido como tal diretamente previsto no artigo 6°, demonstra inequivocamente que – justamente em função de parâmetros de ordem substantiva – estamos diante de um direito fundamental, ainda que se possa controverter a respeito de sua amplitude. Com efeito, se as assim designadas “liberdades sociais” – com destaque para os direitos de greve e liberdade de associação sindical – assumiram e seguem exercendo papel relevante na contenção do exercício do poder econômico na esfera das relações sociais, os direitos fundamentais sociais em geral, notadamente na sua condição de direitos a prestações, objetivam, em primeira linha, uma compensação das desigualdades fáticas de modo a assegurar a proteção da pessoa (de qualquer pessoa) contra as necessidades de ordem material, garantindo uma existência com dignidade8. de Habermas (o que não temos condições de desenvolver aqui), não há como desconsiderar a relevância da discussão e a qualidade da doutrina produzida no Brasil nos últimos anos a respeito do tema, contribuindo para uma qualificação substancial do debate sobre a legitimidade e fundamentação dos direitos fundamentais e da própria ordem constitucional, a atuação do Poder Judiciário na defesa da Constituição e dos direitos fundamentais, entre outros temas que têm integrado a pauta acadêmica. 8 Cf. dentre outros, HÖFLING, Wolfram. “Anmerkungen zu Art. 1 Abs. 3 Grundgesetz”. In: SACHS, Michael (Org.). Grundgesetz-Kommentar. München: C.H. Beck, 1996, p. 109-110. assim como MAUNZ, Theodor & ZIPPELIUS, Reinhold. Deutsches Staatsrecht. 29ª ed. München: C.H. Beck, 1994, p. 182. Na França, a íntima ligação entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa encontra-se referida por PAVIA, Marie-Luce. “Le Principe de Dignité de la Personne Humaine: um Nouveau Principe Constitutionnel”. In: CABRILLAC, Rémy, ROCHE-FRISON, Marie-Aenne & REVET, Thierry. Droits et Libertés Fondamenteaux. 4ª ed. Paris: Dalloz, 1997, p. 109-110, valendo-se do exemplo de um direito fundamental à moradia, a partir do reconhecimento da moradia como objetivo e valor de matriz constitucional pelo Conselho Constitucional. Também na Bélgica, sustenta-se que o direito a uma existência com dignidade implica o reconhecimento de um direito aos meios de subsistência mínimos, especialmente no âmbito da assistência social. Neste sentido, v. DELPÉRÉE, Francis. “O Direito à Dignidade Humana”. In: BARROS, Sérgio R. & ZILVETI, Fernando A. (Coord.). Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 156 e seguintes. Assim também, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., v. 4, p. 186 (ao menos é o que se infere da referência a diversos direitos sociais). Entre nós, v., dentre tantos, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 329 e ss., assim como o pioneiro trabalho

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Por outro lado, útil lembrar que a intensidade da vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais é diretamente proporcional em relação à importância destes para a efetiva fruição de uma vida com dignidade, o que, por sua vez, não afasta a constatação elementar de que as condições de vida e os requisitos para uma vida com dignidade constituam dados variáveis de acordo com cada sociedade e em cada época9. No caso do direito à moradia, a íntima e indissociável vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta inequívoca pelo menos no âmbito daquilo que se tem designado de um direito às condições materiais mínimas para uma existência digna e na medida em que a moradia cumpre esta função. Nesta perspectiva, talvez seja ao direito à moradia - bem mais do que ao direito de propriedade - que melhor se ajusta a conhecida frase de Hegel, ao sustentar - numa tradução livre - que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa (Sphäre ihrer Freiheit)10. De fato, sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das circunstâncias, por vezes não terá sequer assegura-

de TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”, in: Revista de Direito Administrativo, n° 177, 1989, p. 20-49 (apontando-se aqui a existência de desenvolvimentos posteriores), NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. “O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”. Revista de Direito Administrativo 219: 247, 2000, BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. “Fundamentação e Normatividade dos Direitos Fundamentais: Uma Reconstrução Teórica à Luz do Princípio Democrático”, in: BARROSO, Luís Roberto (Org). A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, especialmente p. 308 e ss. LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo, Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, todos apontando a vinculação do mínimo existencial com a dignidade da pessoa humana, ainda que existam variações importantes sobre a fundamentação, conteúdo e eficácia do assim designado mínimo existencial que podem ser encontradas tanto nos autores referidos em caráter ilustrativo quanto nos demais que têm dado atenção ao tema. 9 Cf. a oportuna menção de MODERNE, Frank. “La Dignité de la Personne Comme Principe Constitutionnel dans les Constitutions Portugaise et Française”. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas Constitucionais – nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, v. 1, p. 220. 10 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, v. 7, p. 102.

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do o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida. Aliás, não é por outra razão que o direito à moradia, tem sido incluído até mesmo no elenco dos assim designados direitos de subsistência, como expressão mínima do próprio direito à vida11 e, nesta perspectiva (bem como em função de sua vinculação com a dignidade da pessoa humana) é sustentada a sua inclusão no rol dos direitos de personalidade12. A reforçar esta linha de pensamento, relembra-se também aqui a lição de José Reinaldo de Lima Lopes, no sentido de que o direito à moradia inclui o direito de ocupar um lugar no espaço, assim como o direito às condições que tornam este espaço um local de moradia, de tal sorte que morar, de acordo com a correta acepção do autor, constitui um existencial humano 13. Assim, o que se está a enfatizar, ao fim e ao cabo, é a direta vinculação do direito à moradia com a assim designada garantia (e direito) a um mínimo existencial, bem como com o que se tem chamado de um conteúdo existencial de outros direitos fundamentais14, como é o

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Cf. CUNHA, Sérgio Sérvulo da. “Direito à Moradia”. Revista de Informação Legislativa 127: 49, 1995. Também VIANA, Rui Geraldo Camargo. “O Direito à Moradia”. Revista de Direito Privado, abril/junho 2000, p. 9, destaca a vinculação do direito à moradia com o direito à vida e uma existência digna. Registre-se, ainda quanto a este ponto, que também pelo prisma do direito internacional, o que decorre inclusive de previsão expressa do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, incorporado pelo Brasil em 1992, o direito à moradia, assim como o direito à alimentação, integra o direito a um adequado padrão de vida. Neste sentido, dentre tantos, CRAVEN, Matthew. The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights – A Perspective on its Development. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 330. 12 Neste sentido, destacando a vinculação com os direitos de personalidade, v., entre nós, em especial SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de, op. cit., p. 145 e ss., e, mais recentemente, também GODOY, Luciano de Souza, op. cit., p. 48 e ss. 13 Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Cidadania e Propriedade: Perspectiva Histórica do Direito à Moradia”. Revista de Direito Alternativo, 1993, p. 121, igualmente sinalando a direta conexão do direito à moradia com o direito à vida (p. 133). 14 Sobre o tema, v., dentre outros, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 329 e ss. No que diz respeito à consideração do direito à moradia como sendo vinculado a uma garantia do mínimo existencial, não se irá aqui desenvolver as diversas possibilidades de fundamentação deste mínimo existencial e nem a sua conexão com as diversas teorias sobre as necessidades da pessoa humana, que também podem servir de fundamento para um direito à moradia. A respeito destas questões, v., por exemplo, PISARELLO, Gerardo. Vivienda para todos: un derecho en (de) construcción. El derecho a una vivienda digna y adequada como derecho exigible, Barcelona: Içaria, 2003, p. 23 e ss. Entre nós, no que diz com o direito à moradia e explorando esta senda (designadamente a conexão com uma teoria das necessidades)., confira-se especialmente ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos e fundamentais à alimentação e à moradia, Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003.

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caso inclusive (a depender das circunstâncias) do direito de propriedade, assim como do direito à propriedade15. Importa notar, ainda, que mesmo dentre os que, pelo menos em termos gerais, questionam a própria fundamentalidade dos direitos sociais, há quem admita o caráter fundamental (e, como tal, juridicamente exigível) de um direito à moradia, designadamente naquilo em que integra um direito às condições mínimas para uma existência humana digna, destacando-se, entre nós, o magistério de Ricardo Lobo Torres16. De qualquer sorte, não sendo o nosso intuito aprofundar a discussão a respeito da fundamentalidade dos direitos sociais, reafirmamos nossas ponderações anteriores no sentido de que, a exemplo dos demais direitos sociais expressa e implicitamente consagrados na Constituição, o direito à moradia comunga do pleno estatuto jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, ou seja, integra o elenco dos limites materiais à reforma constitucional e, na condição de norma de direito fundamental, é sempre diretamente aplicáveis, a teor do que dispõe o artigo 5°, parágrafo 1°, da CF, muito embora se possa discutir a respeito das exatas dimensões de sua eficácia e efetividade17, o que precisamente irá ser objeto da nossa atenção nos próximos segmentos. 15

Cf., por todos, FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 16 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”. Revista de Direito Administrativo 177: 29, 1989, que, em paradigmático e pioneiro estudo sobre o mínimo existencial, destaca que este carece de um conteúdo específico, já que pode abranger qualquer direito, ainda que não originariamente fundamental, desde que considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não obstante neste primeiro estudo o ilustre doutrinador Fluminense não tenha feito menção expressa ao direito à moradia como exemplo de direito fundamental, tal veio a ocorrer, recentemente, em outro texto de crucial relevância para a discussão da problemática dos direitos fundamentais, admitindo que no concernente aos indigentes e às pessoas sem-teto a moradia é direito fundamental, integrando-se ao mínimo existencial e tornando obrigatória até mesmo a sua prestação pelo Estado (cf. TORRES, Ricardo Lobo. “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”. In: TORRES, Ricardo Lobo. (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 289). Por outro lado, nem todos os autores incluem (pelo menos não explicitamente e como dimensão autônoma) a moradia no âmbito do mínimo existencial, como é o caso, entre nós, de BARCELLOS, Ana Paula de., A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais..., p. .289 e ss., embora a autora, ao sustentar a necessidade de uma assistência aos desamparados como concretização do mínimo existencial, ali tenha incluído a oferta pelo Estado de abrigos para passar a noite, o que em parte (mas apenas em parte!) contempla as exigências de um direito à moradia numa perspectiva mais alargada do que seja um mínimo existencial. 17 Para maiores desenvolvimentos v. o nosso já citado A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 88 e ss.

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9.3 O direito à moradia como complexo heterogêneo de direitos (e deveres) negativos e positivos Ainda que se possa estabelecer, a depender dos critérios adotados, uma distinção entre o direito à moradia e o direito à habitação18, e iniciando a abordagem com algumas anotações sobre a questão terminológica, verifica-se que a nossa Constituição, ao referir-se ao direito à moradia no artigo 6°, o fez de forma genérica (que será também aqui seguida), desacompanhado de qualquer adjetivo. Tendo em conta a previsão, na esfera dos tratados internacionais, de um direito à moradia adequada (a exemplo do que ocorre com o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966), ou mesmo, como é o caso da Constituição da Bélgica, de um direito a uma moradia decente, entre outros muitos exemplos que poderiam ser colacionados, a ausência de qualquer adjetivação não autoriza que o direito à moradia tenha o seu conteúdo esvaziado, no sentido daquilo que se tem designado de um mínimo vital (ou meramente fisiológico), portanto, situado aquém das exigências da dignidade da pessoa humana e do correspondente mínimo existencial. De qualquer modo, convém levar em consideração que a adjetivação tem o mérito inquestionável de afastar interpretações demasiadamente restritivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à moradia ou (o que poderia dar no mesmo) deixá-lo na completa dependência do legislador infraconstitucional. Na definição do conteúdo do direito à moradia, cumpre, ainda em caráter preliminar, traçar (dentre outras diferenciações possíveis) a sua distinção em relação ao direito de propriedade e ao direito à propriedade. Muito embora a evidência de que a propriedade possa servir também de moradia ao seu titular e que, além disso, a moradia acaba, por disposição constitucional expressa – e em determinadas circunstâncias - assumindo a condição de pressuposto para a aquisição do domínio (como no caso do usucapião especial constitucional urbano e rural), atuando, ainda, como elemento indicativo da apli18

Neste sentido v. especialmente SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes. Direito à Moradia e de Habitação, cit. p. 141 e ss., destacando a vinculação entre ambos os institutos e, em termos gerais, compreendendo o direito de habitação (como o direito real de habitação, por exemplo) como uma possibilidade específica de assegurar a moradia, que assume contornos mais amplos.

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cação da função social da propriedade, o direito à moradia – convém frisá-lo - é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios, o que não elide a sua maior ou menor vinculação com outros bens (e correspondentes direitos e deveres) fundamentais. Ademais, adiantando já aspectos da discussão a ser travada na última parte, onde será examinada, entre outras, especialmente a questão da penhora do imóvel que serve de moradia ao fiador, a conexão com o direito a uma existência digna implica (como se irá desenvolver mais adiante) que em diversas situações o direito à moradia ocupe uma posição preferencial em relação ao direito de propriedade ou mesmo outros direitos. No mínimo há que admitir como justificadas uma série de restrições ao direito de propriedade, que, de resto (de acordo com previsão constitucional expressa!) encontra-se limitado pela sua função social, de tal sorte que já de há muito expressiva doutrina sustenta que apenas a propriedade socialmente útil é tutelada constitucionalmente19, o que evidentemente (especialmente naquilo em que estaria completamente afastada a tutela da propriedade que não cumpre uma determinada função social) é altamente controverso e não poderá aqui ser mais desenvolvido. De outra parte, é preciso considerar, ainda mais levando em conta o direito constitucional positivo brasileiro, que se é verdade que mesmo sem a propriedade sobre um bem imóvel a pessoa, por si só, não estará necessariamente privada de uma vida digna, o que, por outro lado, inevitavelmente ocorrerá em não dispondo de uma moradia com padrões compatíveis com uma vida saudável, tal não significa que o direito de propriedade não assuma a condição de direito fundamental. Pelo menos não se poderá desconsiderar, a 19

Entre nós, vale lembrar a lição do saudoso Professor e Desembargador Gaúcho RUY RUBEN RUSCHEL, Direito Constitucional em Tempos de Crise, Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1997, p. 145-155, alertando para a necessidade de uma releitura (à luz da Constituição e do princípio da função social da posse da propriedade) do art. 524 do Código Civil (de 1916) e da própria definição de posse, sustentando a necessidade do uso e gozo do bem secundum beneficium societatis. Também adotando esta linha de entendimento, convém lembrar, entre outros, os preciosos ensinamentos de FACHIN, Luiz Edson. “Novas Limitações ao Direito de Propriedade: do Espaço Privado à Função Social”. Revista de Direito da Universidade de Santa Catarina 11: 33-46, 1999; TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999; ARONNE, Ricardo. Por uma Nova Hermenêutica dos Direitos Reais Limitados: das Raízes aos Fundamentos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, todos convergindo no sentido de uma necessária interpretação dos institutos jurídicos sobre a posse e propriedade à luz da Constituição, da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais.

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exemplo do que tem enfatizado Luiz Edson Fachin, que a propriedade, quando conectada com as exigências de uma vida digna, acaba sendo merecedora de uma tutela na medida em que cumpre precisamente uma função existencial e não meramente patrimonial20. Tal enfoque, em verdade, acaba por remeter-nos novamente à discussão em torno do caráter fundamental do direito de propriedade, que, visto sob prisma eminentemente patrimonial, poderia ser – como há quem sugira - considerado direito fundamental em sentido apenas formal21. De qualquer sorte, independentemente da discussão a respeito de qual a extensão da tutela jurídico-constitucional da propriedade, não se poderá olvidar aqui a necessidade de levar a sério a concepção constitucional de direitos fundamentais vigente, que, como já apontado anteriormente, contempla todos (mas não apenas estes) os direitos e garantias do Título II. Estabelecidas estas primeiras diretrizes, verifica-se que, especialmente em função do silêncio da nossa Constituição no que diz com uma definição direta e mínima do conteúdo do direito à moradia, há que construir tal definição a partir de outros parâmetros normativos contidos na própria Constituição e extraídos de outras fontes normativas, de tal sorte que também para este feito assumem lugar de destaque as disposições contidas nos diversos tratados e documentos internacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno. Com efeito, naquilo em que versam sobre direitos fundamentais da pessoa humana, os tratados internacionais – pelo menos de acordo com a doutrina majoritária - possuem hierarquia 20

Cf. a notável contribuição de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 21 A respeito de uma possível distinção entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, v. a interessante contribuição de FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias. La Ley del más Débil. Madrid: Ed. Trotta, 1999, p. 45-50. Desde logo, para não quedarmos omissos, destacamos que - compreendida pela perspectiva de seu conteúdo socialmente útil e de sua possível dimensão existencial - a propriedade constitui direito fundamental na sua dupla vertente formal e material, não apresentando necessariamente caráter exclusivamente patrimonial. De qualquer modo, considerando a ausência de hierarquia formal entre as normas constitucionais e tendo em conta a conhecida e prestigiada tese de JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, vol. II2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 40 e ss., no sentido de que, pelo menos em princípio, as normas constitucionais em sentido formal são também materialmente constitucionais, de tal sorte que eventual decisão em prol da relativização da propriedade, deverá ocorrer mediante uma cuidadosa ponderação de bens e levar em conta a maior ou menor conexão da propriedade com outros valores essenciais, notadamente, com a dignidade da pessoa humana.

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constitucional, na condição de direitos fundamentais pelo menos (naquilo que não contemplados no texto constitucional) em sentido material, integrando aquilo que se costuma também denominar – com inspiração na tradição jurídico-constitucional francesa - de um bloco de constitucionalidade22. Mesmo que assim não fosse, pelo menos – o que já seria de extrema utilidade em diversas circunstâncias – os tratados de direitos humanos devidamente incorporados são equivalentes à legislação ordinária federal e como tal devem ser aplicados. Além disso, em face da sua íntima conexão com a dignidade da pessoa humana e o próprio direito à vida, verifica-se, desde logo, que na identificação (construção) do conteúdo de um direito à moradia, há que considerar os parâmetros mínimos indispensáveis para uma vida saudável, nos termos das exigências postas pela Organização Mundial da Saúde, no sentido de um completo bem-estar físico, mental e social, já que uma vida com dignidade em hipótese alguma poderá ser menos do que uma vida com saúde, à evidência não restrita à mera existência e sobrevivência física23. O que se constata, portanto, é que o conteúdo do direito à moradia (em outras palavras, o seu âmbito de proteção ou de aplicação) há de ser identificado também mediante uma interpretação simultaneamente tópica e sistemática24, que, além de observar a necessidade de um diálogo entre as diversas fontes do Direito (interno e internacional25) dialogue com os diversos direitos e 22

Cf., por todos, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43 e ss. 23 Tal entendimento guarda coerência com a conceituação da dignidade da pessoa humana por nós apresentada em trabalho anterior, sustentando que “a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (Cf. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988., 5ª ed., p. 62). 24 Sobre o tema, remetemos ao já clássico FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004. 25 Também ao direito à moradia, como de resto a todos os direitos humanos e fundamentais, aplica-se, portanto, a noção da observância necessária de uma juridicidade em rede, marcada por uma interpenetração normativa crescente e cada vez mais inclusiva das normas internacionais, mas também do recurso ao direito comparado. Neste sentido, explorando a questão em relação ao direito à saúde, v. a recente manifestação de LOUREIRO, João Carlos. “Direito à (Protecção) da Saúde”, in: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor

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deveres fundamentais que com ele guardam conexão. É que também o direito à moradia, da mesma forma como ocorre com o direito à saúde e uma série de outros direitos (e bens) fundamentais, embora seja sempre um direito autônomo, encontra-se “marcado por zonas de sobreposição com esferas que são autonomamente protegidas”26, como é o caso, dentre outras, da vida, da alimentação, da saúde, da privacidade e intimidade, do meio ambiente e da propriedade, tudo a reforçar a idéia de que o Estado Democrático de Direito contemporâneo deve ser compreendido como sendo sempre um Estado Socioambiental, o que aqui não será explorado. Neste contexto, complementando e iluminando os critérios já veiculados pelo direito (constitucional, legal e jurisprudencial) interno, há que ter presente os padrões internacionais desenvolvidos e difundidos pela Comissão da ONU para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, naquilo que enunciam uma série de elementos básicos a serem atendidos em termos de um direito à moradia27: a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem, incluindo um conjunto de garantias legais e judiciais contra despejos forçados;

Marcello Caetano. Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 667 e ss. 26 Cf., novamente, LOUREIRO, João Carlos. “Direito à (protecção) da saúde”, in: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, op. cit., p. 666. Especificamente cuidando da relação entre o direito à moradia e outros direitos humanos e fundamentais v. PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 25 e ss. Entre nós, v. SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de., op. cit., p. 198 e ss., explorando a relação do direito à moradia com os direitos de personalidade. 27 Tal como disposto no parágrafo 8º do Comentário-Geral nº 4 a respeito de um direito à moradia adequada editado pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. A síntese ora efetuada foi extraída do relatório elaborado por SACHAR, Rajindar, “The Right to Adequate Housing: The Realization of Economic, Social and Cultural Rights, p. 17-18, apresentado em 1993 pelo autor, à época relator da ONU para o direito à moradia, para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, acessado pela internet no seguinte endereço: http://www.undp.org/um/habitat/rights/s2-93-15.html. No âmbito da literatura especializada, confira-se, ainda e de modo especial, PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 81 e ss., aprofundando a problemática do conteúdo normativo do direito à moradia também tendo em conta os parâmetros construídos no âmbito das relatorias especiais da ONU, bem como, mais recentemente, a relação de critérios apresentada por TEDESCHI, Sebastián, “El derecho a la vivienda a diez años de la reforma de la Constitución”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org), Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 216 e ss., reproduzindo, em termos gerais, a listagem referida acima, mas com importantes comentários e acréscimos.

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b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento básico, etc.). c) As despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação de outras necessidades básicas. d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitação, notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes. e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência. f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde, educação e outras serviços sociais essenciais. g) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população.

Tais diretrizes, que não são exaustivas e que também desafiam uma exegese adequada e contextualizada, desnudam de modo emblemático aquilo que já havia sido anunciado, no sentido de que um direito à moradia digna não pode ser interpretado como sendo apenas um “teto sobre a cabeça” ou “espaço físico” para viver, pressupondo a observância de critérios qualitativos mínimos. Que a efetivação dos padrões estabelecidos pela ordem jurídica internacional reclama, por outro lado, uma exegese afinada com as peculiaridades de cada País e de cada região (já que é na realidade concreta de quem mora e onde se mora que é possível aferir a compatibilidade da moradia com uma existência digna), por sua vez, constitui premissa igualmente já destacada. De outra parte, resulta evidente a conexão do direito à moradia (na sua dimensão compreensiva e complexa já indiciada) com o que já

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se tem designado de um direito à cidade, visto que, como bem averba Gerardo Pisarello, quando se abandona o âmbito restrito da unidade habitacional concreta, a vinculação da moradia com seu entorno e com o desenho urbanístico em geral é cogente28. Tal premissa, por sua vez, inequivocamente inspirou o legislador brasileiro na elaboração da Lei n° 9.257/2001 (o assim designado Estatuto da Cidade) que contempla todo um conjunto de princípios e diretrizes, além de prever uma série de instrumentos específicos, que não apenas objetivam a promoção e tutela da moradia das pessoas individualmente consideradas, mas busca avançar no que diz com uma inserção da moradia no espaço urbano como um todo, na perspectiva de um desenvolvimento sustentável29. Assim, já a partir do exposto e de modo especial considerando o conjunto de obrigações que têm sido vinculadas à tutela e promoção da moradia no plano internacional e nacional, verifica-se também que são múltiplas as formas pelas quais podem os Estados efetiva o direito à moradia, aspecto que guarda conexão com o próximo segmento e que voltará a ser objeto de menção. Portanto, como bem demonstra o elenco de diretrizes que concretizam o conteúdo do direito à moradia, também a este se aplica a noção de que se cuida de um direito fundamental com um todo, de cunho compreensivo, e que, como já de há muito demonstrou Robert Alexy30, abrange um conjunto complexo e heterogêneo de posições (direitos e deveres) fundamentais, o que, por sua vez, guarda relação com a já consagrada lição de que o texto (dispositivo=enunciado semântico) não se confunde com a norma e

28

Cf. PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 84 e ss. Importa registrar que também no Brasil tem crescido o número dos que discutem a noção de um direito (humano e fundamental) à cidade, em especial no que diz respeito à concepção de uma “cidade sustentável”, o que apenas reforça a já apontada necessidade de se ampliar os horizontes e inserir a questão do direito à moradia no contexto mais amplo e afinado com as exigências do conjunto dos direitos humanos e fundamentais, na perspectiva de um Estado Socioambiental de Direito. Dentre os diversos títulos que poderiam ser colacionados e que se inserem nesta perspectiva destacamos aqui a recente coletânea de PRESTES, Vanêsca Buzelato (Org), Temas de Direito Urbano-Ambiental, Belo Horizonte: Fórum, 2006. 29 Apenas em caráter exemplificativo, considerando já o expressivo número de publicações produzido nos últimos anos, v. ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org), Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. 30 Cf. ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997, p. 240 e ss.

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nem esta com os direitos (e deveres) que possa vir a atribuir31. Assim, sem que aqui se vá aprofundar este aspecto, importa ter presente que também o direito à moradia abrange um complexo de posições jurídicas, visto exercer simultaneamente a função de direito de defesa e de direito a prestações (de cunho normativo e/ou material) e que, nesta dupla perspectiva, vincula as entidades estatais e, em princípio, também os particulares, sem que se pretenda aqui discutir se a eficácia nas relações entre particulares opera de forma exclusivamente indireta ou se há como aderir (como é o nosso caso e o da maioria da doutrina nacional e ao que parece do próprio Supremo Tribunal Federal) a uma eficácia em princípio direta32. Muito embora se possa controverter a respeito do modo e intensidade desta vinculação (seja em relação aos órgãos estatais, seja em relação a particulares), assim como das possíveis conseqüências jurídicas a serem extraídas a partir de cada manifestação do direito à moradia, o que importa, por ora e para efeitos deste estudo, é que cientes da dupla dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais em geral (e não apenas dos assim designados direitos sociais), tal

31

Neste sentido v. novamente ALEXY, Robert. op. cit., p. 47 e ss. (especialmente p. 62 e ss.); entre nós, notadamente no que diz com a distinção entre texto e norma, vale lembrar o já clássico texto de GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 164 e seguintes, assim como a relevante contribuição de STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 16, que, dialogando com autores como José Joaquim Gomes Canotilho, Friedrich Müller e outros, acabaram influenciando toda a evolução doutrinária brasileira subseqüente. 32 Sobre o tema v. o nosso “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org), A Constituição Concretizada: construindo pontes para o Público e o Privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora: 2000, p. 107-163, onde sustentamos a tese de uma eficácia direta prima facie dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas. Na seqüência, limitando-nos aqui às monografias exclusivamente dedicadas ao tema, especialmente as teses de doutoramento de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, STEINMETZ, Wilson, Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. Especificamente versando sobre a eficácia dos direitos sociais nas relações privadas (tema abordado também em algumas das monografias citadas) v. o nosso “Direitos Fundamentais Sociais, Mínimo Existencial e Direito Privado”, in: Revista de Direito do Consumidor n° 61, janeiromarço de 2007, 90-125. No âmbito jurisprudencial, refere-se aqui a paradigmática decisão proferida pelo STF no RE 2201818-RJ, com destaque para o voto do Ministro Gilmar Mendes. Refutando a posição majoritária em prol de uma eficácia direta (embora não absoluta) e sustentando uma eficácia indireta v., entre nós, a despeito de se tratar apenas de um tópico da obra, DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 108 e ss.

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circunstância não altera o fato (e nem as conseqüências que disso se pode e se deve extrair!) de que na sua condição de direito (subjetivo) de defesa o direito à moradia tem por objeto em primeira linha a sua não-afetação por parte do Estado, ao passo que na sua condição de direito a prestações, o direito à moradia terá por objeto a criação e estruturação de órgãos, a edição de normas que estabeleçam procedimentos de tutela e promoção dos direitos, o fornecimento de bens e serviços ou outras ações comissivas33. É também nesta perspectiva que optamos por utilizar a expressão direito à moradia no seu sentido mais amplo possível, abarcando todo o conjunto de posições jurídicas e garantias que – mesmo que tenham alguma autonomia quando considerados individualmente – são todas vinculadas à garantia (positiva e negativa) de uma moradia digna para a pessoa humana. É por essa razão que mesmo que se possa sempre falar genericamente do direito à moradia, este abrange um conjunto de direitos de e à moradia (de tutela e promoção da moradia) ou de direitos habitacionais como também já tem sido referido, com o que não se está a excluir a existência de deveres fundamentais (conexos e autônomos) em matéria de moradia, que, por sua vez, não se confundem com os assim chamados deveres de proteção (ou imperativos de tutela) que incumbem aos órgãos estatais. Cientes, portanto, desta dupla dimensão positiva e negativa do direito à moradia e levando em conta os propósitos do presente trabalho, passa-se a explorar um pouco mais a assim designada dimensão negativa, já que é nesta perspectiva que também se irá, na última parte priorizar a análise crítica do entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da penhora do imóvel residencial do fiador, ainda que tal questão também guarde conexão com a dimensão positiva do direito à moradia e de outros direitos fundamentais. Aliás, justamente no caso da penhora é que se percebe claramente a conexão entre a dimensão negativa e positiva, visto que em primeira linha o que está em causa é se tanto o legislador (ao prever a possibilidade da penhora do imóvel do fiador) quanto o Supremo Tribunal Federal (ao decidir pela legitimidade constitucional da opção legislativa) 33

Desenvolvendo o tópico v. especialmente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 182 e ss.

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desincumbiram-se do seu dever de tutela em relação ao direito à moradia e se o fiador que teve o imóvel penhorado possui um direito subjetivo (negativo) de impugnar com eficácia esta medida, por se tratar de uma ingerência constitucionalmente insustentável.

9.4 O direito à moradia na condição de direito de defesa: algumas possíveis manifestações No âmbito da assim denominada dimensão negativa ou daquilo que também tem sido chamado de uma função defensiva dos direitos fundamentais, verifica-se que a moradia, como bem jurídico fundamental, encontra-se, em princípio, protegida contra toda e qualquer sorte de ingerências indevidas. O Estado, assim como os particulares, tem o dever jurídico de respeitar e de não afetar (salvo no caso de ingerências legítimas) a moradia das pessoas, de tal sorte que toda e qualquer medida que corresponda a uma violação do direito à moradia é passível, em princípio, de ser impugnada também pela via judicial. É precisamente esta a dimensão – a função defensiva do direito à moradia – a que se referem as diretrizes internacionais acima mencionadas, quando utilizam os termos “respeitar” e “proteger”,34 embora a proteção também envolva ações concretas (normativas e fáticas) de tutela da moradia contra ingerências oriundas do Estado ou de particulares, tudo a reforçar a nunca suficientemente lembrada conexão entre a dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais. Na sua condição de direito (subjetivo) negativo ou de defesa, também ao direito à moradia é aplicável, em termos gerais, a lição de Robert Alexy, especialmente quando demonstra que a dimensão negativa abrange: a) direitos ao não-impedimento de ações; b) direitos à não-afetação de propriedades ou situações (em suma, não-afetação de determinados bens jurídicos); c) direitos à não-eliminação de posições

34

Fica o registro de que o dever de proteção do Estado, para além da imposição de um dever de respeito e não-violação (dimensão negativa propriamente dita) abrange a necessidade de praticar atos concretos no sentido de alcançar uma proteção minimamente eficaz do direito à moradia, que, por sua vez, pode ocorrer pela edição de atos normativos ou mesmo outros atos concretos destinados a salvaguardar a moradia (direitos a prestações normativas e fáticas), aspecto este que será considerado logo a seguir e que diz com a dimensão prestacional (positiva).

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jurídicas35. Da mesma forma, assume destaque a assim designada proibição de retrocesso em matéria de concretização dos direitos sociais, que igualmente acaba sendo referida à dimensão negativa, não sendo o caso aqui de analisar se há ou não uma equivalência entre a proibição de retrocesso e as situações mencionadas por Alexy, especialmente quando se cuida de direitos à não-eliminação de posições jurídicas, onde também melhor se insere a figura do direito adquirido, apenas para citar um possível exemplo adicional36. Sem que se pretenda neste estudo explorar todas as possíveis facetas de cada uma destas manifestações da dimensão ou função negativa, percebe-se, desde logo, que mesmo como direito de defesa (negativo) há todo um complexo de situações a ser levado em conta, que não podem ser pura e simplesmente equiparadas. De outra parte, resulta evidente que a dimensão negativa (com as posições jurídico-fundamentais que lhe são inerentes) atua visivelmente como indispensável meio de tutela da própria dimensão positiva, pois de nada adiantará assegurar (positivamente) o acesso a uma moradia digna, se esta moradia não estiver protegida (negativamente) contra ações do Estado e de terceiros. Importa frisar, nesta quadra, que justamente aos direitos fundamentais considerados na sua dimensão negativa, não se costuma refutar sua direta aplicabilidade e o correspondente reconhecimento de posições subjetivas, o que, como bem se sabe, não é exatamente incontroverso quando se trata da dimensão positiva. Tendo por objeto ações negativas (exigindo o respeito e a não-ingerência na esfera da autonomia pessoal ou no âmbito de proteção do direito fundamental) não se verifica, em regra, a dependência direta (vale enfatizar este aspecto!) da realização destes direitos subjetivos negativos de prestações fáticas ou normativas por parte do sujeito passivo, o que, como já frisado, não afasta a dupla dimensão positiva e negativa 35 36

Cf. ALEXY, Robert., op. cit., p. 186 e ss. A respeito da proibição de retrocesso v. especialmente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 442 e ss., assim como a recente monografia de DERBLI, Felipe. O Princípio da Proibição de Retrocesso Social na Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Renovar, 2007. No âmbito da doutrina estrangeira, v., por último a coletânea de COURTIS, Christian (Compilador), Ni Un Paso Atrás. La Prohibición de Regresividad en Matéria de Derechos Sociales, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2006, com contribuições de vários autores sobre as experiências de diversos Países e também a aplicação da proibição de retrocesso na esfera internacional.

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dos direitos fundamentais. Com efeito, a posição subjetiva (direito subjetivo) negativa tem por objeto imediato a resistência a uma intervenção, por tanto, uma exigência de não-intervenção, ao passo que o direito subjetivo positivo tem por objeto direto um exigência de atuação, de prestação fática ou normativa. Nesta linha de entendimento, vale a pena consignar o ensinamento de Vieira de Andrade, para quem, em se cuidando de direitos, liberdades e garantias (direitos de defesa, em última análise, há que acrescentar) e em ocorrendo a falta ou insuficiência de lei, “o princípio da aplicabilidade direta vale como indicador de exeqüibilidade imediata das normas constitucionais, presumindo-se sua perfeição, isto é, a sua auto-suficiência baseada no caráter líquido e certo do seu conteúdo de sentido. Vão, pois, aqui, incluídos o dever dos Juízes e dos demais operadores jurídicos de aplicarem os preceitos constitucionais e a autorização de para esse fim os concretizarem por via interpretativa.”37 Ainda que a dimensão negativa dos direitos fundamentais não exclua a existência de conceitos mais ou menos indeterminados – como é o caso justamente do direito à moradia - nada impede (ainda mais em se levando a sério o disposto no artigo 5°, parágrafo 1°, da Constituição Federal de 1988) que tais conceitos não possam ter seu conteúdo definido pela via da intervenção judicial, quando for o caso, não podendo sua aplicação ser pura e simplesmente colocada na dependência de uma intermediação pelo legislador. Que todos os direitos fundamentais (inclusive os direitos sociais) desencadeiam efeitos diretos e que não podem estar condicionados à prévia regulação legal, pelo menos no sentido de que geram para seu titular um direito subjetivo de cunho negativo, no sentido de situações prontamente desfrutáveis e que são, em primeira linha, dependentes apenas de uma abstenção por parte do sujeito passivo, também entre nós já tem sido sustentado há muito38. Sintetizando, podemos afirmar que, especialmente em se tratando de direitos de defesa (posições subjetivas negativas), a lei não se revela indispensável à fruição do direito, já que, de acordo com a concepção desenvolvida por Celso 37

Cf. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 1987, p. 256-257. 38 É o que, de há muito, advoga BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 5ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 106.

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Antônio Bandeira de Mello, correspondem àquelas situações em que a norma constitucional outorga ao particular uma situação subjetiva ativa (um poder jurídico), cujo desfrute imediato independe de qualquer prestação alheia, bastando, para tanto (como também refere Luís Roberto Barroso), uma abstenção por parte do destinatário da norma39. Por outro lado, resulta evidente que, para além de uma posição jurídico-subjetiva (que, consoante já demonstrado, pode manifestar-se de formas diferenciadas), as normas constitucionais definidoras de direitos de defesa podem gerar uma série de outros efeitos, inclusive na esfera jurídico-objetiva, efeitos que, de resto, são comuns a todas as normas de direitos fundamentais40. Que com o exposto não estamos a recusar uma eficácia plena e aplicabilidade direta aos direitos fundamentais na sua dimensão positiva (de direitos subjetivos a prestações) é bom fique registrado e apenas não será objeto de desenvolvimento em virtude do enfoque do presente trabalho41. Por outro lado, dizer que o direito à moradia (em outras palavras, o conjunto de posições jurídicas que lhe são inerentes) é, no plano normativo, diretamente aplicável, não significa dizer, a exemplo dos demais direitos fundamentais, que o direito à moradia possa ser considerado (mesmo na sua dimensão negativa) como sendo um direito absoluto, no sentido de completamente imune

39

Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. “Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”. Revista de Direito Público 57/58: 242,1981. 40 É neste contexto, entre outros aspectos que poderiam ser citados, que a doutrina e jurisprudência germânicas passaram a reconhecer uma assim designada (e a terminologia não restou imune a críticas) eficácia irradiante dos direitos fundamentais, considerados também como elementos integrantes de uma ordem de valores objetiva, sobre o restante do ordenamento jurídico. Para uma compreensão da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, v. dentre outros, HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C.F. Müller, 1995, p. 133 e ss. Entre nós, v., a respeito da dimensão objetiva e seus desdobramentos, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 167 e ss., bem como BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; “Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais”, in: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 152 e ss., SARMENTO, Daniel. “A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria”, in: MELLO, Celso Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (Org.), Arquivos de Direitos Humanos, vol. IV, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 63-102, e, mais recentemente, DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 116 e ss. 41 Sobre o problema da eficácia e aplicabilidade das normas de direitos fundamentais em geral, mas explorando com detalhes a questão dos direitos a prestações como direitos subjetivos, remetemos ao nosso já citado A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 268 e ss.

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a restrições42. Assim, apenas para mencionar um entre tantos exemplos que poderiam ser referidos, a desocupação de área de proteção ambiental, estribada, portanto, em outro valor constitucional fundamental, poderá levar à desocupação e afetar o direito à moradia não apenas de uma pessoa ou família, mas de uma coletividade inteira, sem que tais objetivos possam ser alcançados de modo arbitrário, de tal sorte a impor um sacrifício do direito à moradia dos atingidos pelas medidas, já que haverá de se assegurar uma realocação das pessoas e um acesso a uma moradia digna. É também por esta razão que a normativa internacional (de modo especial a Agenda Habitat) e as diretrizes fixadas pelos organismos de controle impõem aos Estados a garantia de uma segurança jurídica efetiva da posse utilizada para moradia, seja pela edição de legislação regulamentando os desapossamentos,seja pela observância do devido processo legal e assegurando uma proteção adequada contra medidas arbitrárias, entre outros aspectos a serem considerados43. Nas relações entre particulares, onde o direito à moradia, notadamente (mas não exclusivamente) na sua dimensão defensiva, também alcança eficácia e aplicabilidade, igualmente são comuns as situações de conflito entre o direito à moradia e outros bens fundamentais salvaguardados pela Constituição, destacando-se o direito de propriedade, como pode ocorrer precisamente numa ação movida pelo locador proprietário contra o inquilino. Justamente nesta perspectiva (embora a ressalva de que se trata também e mesmo em primeira linha de uma hipótese de vinculação do Estado) se enquadra, por exemplo, a discussão em torno da possibilidade (ou não) da penhora do imóvel que serve de moradia para o devedor e/ou sua família, que constitui justamente o tópico principal a ser enfrentado no próximo e último segmento.

42

Com efeito, o fato de estarmos diante de normas de eficácia plena, capazes de gerarem todos os seus efeitos, inclusive na esfera subjetiva, não afasta a potencial restringibilidade destes efeitos, notadamente no que diz com o exercício dos direitos subjetivos, de tal sorte que a possibilidade de sofrer restrições não se constitui, em absoluto, um “privilégio” das assim denominadas normas de eficácia contida, consagradas no direito pátrio pela obra de José Afonso da Silva. 43 Cf. aponta CRAVEN, Matthew, op. cit., p. 335 e seguintes, consignando que o direito à moradia inclui o direito a não ser privado arbitrariamente da moradia

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9.5 A discussão de alguns exemplos, com destaque para o problema da possibilidade (ou não) de penhora do imóvel residencial do fiador A despeito da evolução jurisprudencial precedente, que, especialmente a partir da inclusão do direito à moradia no artigo 6° da Constituição, passou a tutelar cada vez mais a moradia na condição de bem fundamental, notadamente nas hipóteses em que estava em causa a proteção da propriedade imobiliária utilizada para fins de moradia contra uma penhora (seja ampliando o âmbito de proteção do assim chamado bem de família, seja por aplicação direta do direito à moradia, hipótese, todavia, menos comum), o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 08 de fevereiro de 2006 (Recurso Extraordinário n° 407.688-8, relator Min. Cezar Peluso), acabou por considerar constitucionalmente legítima a penhora do imóvel residencial do fiador, tal qual autorizada pela legislação que excepcionou a regra geral da impenhorabilidade do bem de família (art. 3°, inciso VII, da Lei Federal n° 8009/90, na versão que lhe deu a Lei Federal n° 8.245/91). Considerando que a penhora do imóvel residencial constitui uma possível forma de violação do direito à moradia (pois se cuida de uma afetação do bem constitucionalmente tutelado e, portanto, de uma restrição e não mera regulamentação) coloca-se a questão do acerto da posição atualmente vencedora no Supremo Tribunal Federal, especialmente no que diz com a penhora do imóvel residencial do fiador, inclusive pela sua relevância em relação às demais exceções estabelecidas pela legislação e que têm sido objeto de maior ou menor dissídio doutrinário e jurisprudencial. Embora não se pretenda adentrar todos os possíveis aspectos ventilados na decisão sobre a penhora do imóvel do fiador, alguns pontos chamam particularmente a atenção e reclamam uma avaliação crítica. Para tanto, faz-se necessária uma breve resenha dos principais argumentos colacionados tanto no voto do relator, Ministro Cezar Peluso, quanto nos demais votos proferidos. Iniciando pelo que disse o ilustre relator na sua fundamentação, verifica-se que boa parte das premissas que sustentam as conclusões podem ser facilmente ratificadas. Com efeito, após ter reconhecido que o direito à moradia é direito social e que constitui direito subjetivo que “compõe o

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espaço existencial da pessoa humana”, o relator, igualmente com acerto, averbou serem “várias, se não ilimitadas, as modalidades ou formas pelas quais o Estado pode, definindo-lhe o objeto ou o conteúdo das prestações possíveis, concretizar condições materiais de exercício do direito social à moradia”. Mais adiante, na esteira da doutrina e dos parâmetros normativos acima apresentados, destaca o voto vencedor que o direito à moradia não se confunde, necessariamente, com o direito à propriedade imobiliária ou o direito de ser proprietário de bem imóvel, salientando, todavia (e neste passo já principia o encaminhamento da conclusão), que o direito à moradia pode, “sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóveis para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores”. Na seqüência, ao afirmar que a ratio legis da exceção legal à regra da impenhorabilidade reside justamente na garantia do acesso à moradia pela via da locação de imóveis, obstaculizada pela falta, insuficiência ou onerosidade de garantias contratuais licitamente exigíveis pelos proprietários ou possuidores de imóveis de aluguel, o Ministro relator lança sua conclusão, no sentido de que a salvaguarda da exceção legal, por assegurar o acesso à moradia de uma classe ampla de pessoas interessadas na locação há de prevalecer em face do dano menor resultante para os fiadores proprietários de um só imóvel, ainda mais não sendo estes obrigados a prestar fiança. Para finalizar, averba o relator que “castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia”. Em face do arcabouço argumentativo esgrimido no voto condutor da decisão, impõe-se uma série de considerações, parte delas ventilada no bojo dos outros votos proferidos, muito embora em boa parte sem maior desenvolvimento. Desde logo, como bem lembrou o Ministro Eros Grau, autor de um dos três votos divergentes, é preciso considerar que a penhora recaiu sobre o único bem imóvel de propriedade do fiador, no caso, o imóvel que lhe serve de moradia, recordando, ainda, que a im-

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penhorabilidade do imóvel residencial “instrumenta a proteção do indivíduo e de sua família quanto a necessidades materiais, de sorte a prover à sua subsistência”. Além disso, após enfatizar o vínculo entre a tutela do imóvel residencial e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, evoca simultânea violação do princípio isonômico, visto que o afiançado, que não pagou os alugueres, estaria beneficiado pela impenhorabilidade, ao passo que ao fiador estaria subtraído o benefício. Mais adiante, já no embate direto com o Ministro-Relator, refuta o caráter programático das normas constitucionais, afirmando o seu efeito vinculante, bem como afastando o argumento de que a impenhorabilidade do bem de família causará forte impacto no mercado de locações, já que políticas públicas deverão assegurar este mercado de modo apropriado. Muito embora não se possa imputar ao Ministro-Relator ter outorgado ao direito à moradia a condição de norma programática e a despeito de ter aquele esclarecido que a intenção é justamente proteger os que não são proprietários, já que estes constituem uma minoria no Brasil, seguem em aberto algumas questões vinculadas à argumentação do Ministro Eros Grau e que merecem reflexão mais detida. A primeira diz respeito ao fato de que em se cuidando do único imóvel do fiador e servindo este de residência para aquele e/ou sua família, em princípio, não se pode simplesmente admitir o sacrifício do direito fundamental (e, no caso, possivelmente até mesmo uma violação da própria dignidade da pessoa humana) por conta de uma alegação genérica e ainda por cima desacompanhada até mesmo de dados comprobatórios, de uma tutela do direito à moradia de um conjunto maior de pessoas. A dignidade da pessoa humana, assim como o núcleo essencial dos direitos fundamentais de um modo geral, não pode ser pura e simplesmente funcionalizada em prol do interesse público, mesmo que este seja compreendido como interesse socialmente relevante de uma comunidade de pessoas. Importa recordar, nesta quadra, que embora legítimas, em determinadas circunstâncias, restrições a direitos fundamentais, estas devem respeitar os critérios da proporcionalidade e, acima de tudo, preservar o núcleo essencial do direito restringido. Aliás, é justamente no exame dos critérios da proporcionalidade que reside uma das lacunas da decisão ora comentada. Se aos órgãos estatais incumbe um permanente dever

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de proteção de todos os bens fundamentais e a restrição de algum direito encontra fundamento na tutela de outro, impõe-se, de qualquer modo, sempre a observância dos critérios da proporcionalidade na sua dupla acepção, pois tanto está vedado ao Estado intervir excessivamente na esfera de proteção de bens fundamentais quando atuar de modo manifestamente insuficiente (ou o que é pior, sequer atuar) na tutela do mesmo ou de outros bens fundamentais44. Mesmo que aqui não se vá adentrar nas possíveis distinções entre os institutos da proibição de excesso e de proteção insuficiente, importa pelo menos lançar algumas indagações em relação a esta perspectiva de abordagem do problema ora discutido. Assim, se de fato é plausível aceitar, a exemplo do que argumentou o MinistroRelator, que a possibilidade da penhora do imóvel do fiador, por constituir garantia do contrato de locação, acaba também sendo um meio de assegurar o acesso à locação e, portanto, à moradia para quem não é proprietário, já no que diz com o critério da necessidade as coisas não parecem tão simples, pois, em havendo outros meios disponíveis, a opção deveria recair no meio menos gravoso, considerado como tal o que menos restringe o direito fundamental colidente, no caso, o direito à moradia do fiador e de sua família, pois sequer se está aqui argumentando com a tutela da propriedade na sua dimensão meramente patrimonial. O argumento de que não existem outras garantias para o crédito em execução é evidentemente falho, visto que não foi examinada a possibilidade de se lançar mão de outros meios, como, por exemplo, a exigência de fiador proprietário de imóvel que não seja residencial ou mesmo a utilização do seguro fiança, que, se fosse mais difundido e submetido a controle 44

A respeito desta dupla perspectiva (proibição de excessos e de proteção insuficiente ou deficiente) v., entre nós, especialmente SARLET, Ingo Wolfgang. “Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência”, in: Revista Brasileira de Ciências Criminais n° 47, março-abril de 2004, p. 60-122, assim como STRECK, Lenio Luiz. “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”, in: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica n° 2 (2004), p. 243 e ss. Dentre a literatura estrangeira, notadamente no que diz com a aplicação da proibição de insuficiência e dos imperativos de tutela no âmbito do Direito Privado, v. o pioneiro e paradigmático CANARIS, Claus-Wilhelm, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Coimbra: Almedina, 2003, tradução da edição alemã de 1999, onde o autor retoma e desenvolve seus estudos sobre o tema, que remontam já ao início dos anos 1980.

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rigoroso, poderia inclusive gerar a total desnecessidade da utilização de garantias reais45. A não-utilização das alternativas referidas (ou mesmo de outras, que, de resto, também incumbe ao Estado disponibilizar no âmbito dos seus deveres de proteção!) não significa que não estejam disponíveis e que, portanto, não possam ser levadas em conta. Assim, vista a questão sob este viés, no mínimo haverá de se considerar a possibilidade de considerar, nas circunstâncias do caso, que a penhora do imóvel residencial (único imóvel do fiador) como violação da proporcionalidade. De outra parte, mesmo superado o exame do critério da necessidade, haveria de se avaliar a violação da assim designada proporcionalidade em sentido estrito ou, para quem assim o preferir, a ingerência no núcleo essencial do direito fundamental, que, quando detectada, implica a manifesta inconstitucionalidade do ato. Sem que se vá aqui avançar mais neste exame, inclusive para fins de análise do atendimento das exigências também da proibição de proteção deficiente, a crítica mais contundente que possivelmente poderá ser direcionada é que tais questões, a despeito de sua relevância (pois inequivocamente este em causa uma restrição de direito fundamental) não chegaram a ser minimamente desenvolvidas na decisão. Seguindo já outra linha de raciocínio, tanto o Ministro Joaquim Barbosa quanto o Ministro Gilmar Mendes, ambos secundados pelo Ministro Sepúlveda Pertence (este alegando que se poderia estar até mesmo chancelando a incapacidade civil do fiador!) enfatizaram, em síntese, que a regra legal que excepciona a impenhorabilidade não constitui violação do direito à moradia pelo fato de que o fiador voluntariamente, portanto, no pleno exercício da sua autonomia de vontade. Por mais que se deva admitir que a própria liberdade contratual expressa uma manifestação da mesma dignidade da pessoa humana que serve de fundamento ao conteúdo existencial da propriedade, quando, por exemplo, serve de moradia ao seu titular, não se pode olvidar que a ordem jurídica impõe limites significativos à autonomia privada, especialmente quando se cuida de hipóteses de renúncia a direitos fundamentais. A própria alienação voluntária

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V. também as referências de AINA, Eliane Maria Barreiros, O Fiador e o Direito à Moradia..., op. cit., p. 127 e ss., embora a necessidade de maior desenvolvimento do assunto.

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da integralidade do patrimônio, em havendo herdeiros necessários ou eventualmente outros interesses a serem tutelados encontra limites em determinadas circunstâncias, sendo, se resto, no mínimo parcialmente equivocada a apontada identidade entre a venda e a prestação de fiança46, tal como afirmou o Ministro Cezar Peluso ao intervir no voto do Ministro Carlos Britto, que justamente invocou a indisponibilidade do direito à moradia. Se de fato é correta a tese, de resto sufragada por expressiva doutrina e inclusive acatada pelo voto do Relator, de que a moradia constitui um existencial humano, sendo, pelo menos naquilo em que revela uma conexão com a dignidade da pessoa humana, um direito de personalidade, não se pode deixar de reconhecer também a existência de um dever de proteção da pessoa contra si mesma, pelo menos no âmbito em que prevalece a indisponibilidade do direito, o que ocorre justamente no plano da sua dimensão existencial47. Da mesma forma, se em princípio se poderá afastar a existência de coação, também é correto que em muitas hipóteses resulta praticamente inexigível a negativa da prestação da fiança, especialmente nos casos de garantias prestadas por familiares próximos. Embora as hipóteses não sejam idênticas, a referência à difundida decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha48, que versava justamente sobre a liberação da responsabilidade por parte da filha (na fase da execução) que havia “espontaneamente” afiançado um 46

No mínimo, há que levar em conta que a venda do patrimônio resulta em benefício patrimonial para próprio vendedor (alienante) e que tal situação não pode ser pura e simplesmente equiparada à dação em garantia que poderá resultar na expropriação do imóvel! 47 A respeito do tópico v. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p.115 e ss. Sobre as possibilidades e limites das renúncias em matéria de direitos fundamentais, no âmbito da literatura em língua portuguesa, v. especialmente NOVAIS, Jorge Reis. “Renúncia a Direitos Fundamentais”, in: MIRANDA, Jorge (Org). Perspectivas Constitucionais, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 263-335. Cuidando da temática na perspectiva dos direitos de personalidade, v., dentre outros, MOTA PINTO, Paulo, “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61-84. Entre nós, v., por exemplo, MELLO, Cláudio Ari. “Contribuição para uma teoria híbrida dos direitos de personalidade”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org). O Novo Código Civil e a Constituição, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.92 e ss. 48 Cf. BVerfGE vol. 89, p. 214 e ss., onde prevaleceu justamente a tese de que a autonomia privada não pode ser entendida apenas num sentido formal, de tal sorte que, em determinadas circunstâncias, a pessoa pode e deve ser tutelada em face de disposições contratuais que lhe são desvantajosas.

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contrato de mútuo bancário do pai não nos parece impertinente. De outra parte, resulta evidente que a invocação da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial como fundamento para impedir a penhora do imóvel residencial deve ser aferida cuidadosamente à luz das circunstâncias do caso concreto, evitando-se uma utilização meramente retórica do argumento da dignidade e afastando-se a sua banalização, inclusive para que se evite uma equiparação entre a tutela da propriedade na sua dimensão eminentemente patrimonial e na sua dimensão existencial49. Mesmo que seja, para efeitos de argumentação, possível aceitar o argumento de que, em princípio, houve livre (e informada?!) concordância com a disposição do imóvel residencial dado em garantia, também aqui não houve maior consideração das circunstâncias do caso concreto, pelo menos para investigar o efetivo caráter existencial da moradia ou mesmo a existência de alternativas viáveis de acesso a uma moradia decente para o fiador e sua família (por exemplo, pelo menos um trabalho com certa estabilidade e com remuneração compatível com o aluguel de uma moradia adequada), já que, convém sempre reiterar este aspecto, o direito à moradia não se confunde necessariamente com o direito de propriedade, o que não significa que este (ainda que não comprovada uma violação do direito à moradia) não possa merecer tutela jusfundamental autônoma, a depender da hipótese. O que importa nesta quadra é que não tendo sido efetuada uma avaliação mais detida do caso (para discutir os limites da renúncia) e em se tratando do único imóvel do fiador e sendo este utilizado para fins residenciais, haveria, por certo, de prevalecer pelo menos uma presunção (ainda que relativa) em favor da indisponibilidade e, portanto, também em prol da impenhorabilidade, no sentido de uma vedação prima facie da penhora. Às ponderações tecidas, soma-se o argumento - também ventilado na decisão do STF (especialmente no voto do Ministro Celso de Mello) ora comentada - de que a possibilidade de penhora do imóvel residencial do fiador o coloca numa situação de desvantagem em 49

Neste sentido, referindo-se precisamente ao caso da penhora do imóvel residencial, as ponderações de ANDRADE, Fábio Siebeneichler de, “Considerações sobre a tutela dos direitos de personalidade no Código Civil de 2002”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org), O Novo Código Civil e a Constituição, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 106 e ss.

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face do devedor principal (locatário), pois este, caso titular de um bem de família, não poderia ter seu imóvel penhorado, visto que não abrangido pelas exceções à regra geral da impenhorabilidade estabelecida pela Lei n° 8.009/90, de tal sorte que verificada também uma ofensa ao princípio isonômico, tal como, aliás, já vinha sendo sustentado por alguma jurisprudência e doutrina50. Neste sentido, aliás, já se havia posicionado o Ministro Carlos Velloso, relator de decisão anterior contrária à penhora,51 cuidando-se, portanto, de mais um aspecto a ser cuidadosamente ponderado. Com efeito, embora as hipóteses não sejam idênticas (devedor e fiador), um tratamento distinto, ainda mais levando em conta as conseqüências da penhora, reclama justificação racional e razoável. Por outro lado, mesmo que se possa partir da premissa de que não sendo idênticas as hipóteses, legítima, em princípio, a distinção no tratamento (é possível, por exemplo, alegar que o fiador, ciente da exceção legal, livremente deu o imóvel em garantia) a superação do argumento fundado na violação do princípio da isonomia não afasta a necessária discussão em torno da violação direta e autônoma do direito à moradia do fiador ou mesmo da violação de sua dignidade da pessoa humana. Ainda no que diz com a legitimidade da penhora do único imóvel residencial, embora as razões não sejam exatamente idênticas, visto haver outras variáveis a ponderar, assume relevo a discussão em torno da legitimidade constitucional das demais exceções previstas no artigo 3° (incisos I a VI) da Lei n° 8009/90. Como bem apontou o Ministro Gilmar Mendes, “cada uma dessas exceções contém uma valoração, uma ponderação realizada pelo legislador”, colocando-se a questão se em relação à opção legislativa efetuada em cada uma das hipóteses podem ser aplicadas as ponderações ora tecidas no que diz com a penhora do imóvel do fiador. Embora não seja o nosso intento adentrar a discussão de cada um dos casos, certo é que não se poderá, em face do demonstrado conteúdo existencial da propriedade sujeita à constrição e alienação forçada, pura e simplesmente chancelar uma presunção absoluta em favor da legitimidade constitucional da opção legislativa, já que esta – notadamente quando resultar em restrição

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Neste sentido v. AINA, Eliane O Fiador e o Direito à Moradia..., op. cit., p. 126. V. RE n° 352.940-SP.

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de direito fundamental - há de ser testada à luz de cada hipótese e das circunstâncias do caso ao qual se refere. Registre-se, nesta quadra, que a blindagem (absoluta ou relativa) contra uma penhora ou outra forma de constrição que resulte em expropriação do imóvel residencial constitui apenas uma das modalidades de tutela da moradia, no caso, da propriedade que serve à moradia. Com efeito, ainda que se possa admitir – em alguns casos e bem sopesadas as circunstâncias - a legitimidade da penhora e da conseqüente alienação forçada, isto não significa que não se deva ainda assim lançar mão de outra forma de proteção da moradia, por exemplo, suspendendo-se a execução até que tenha sido assegurada a colocação do devedor (ou fiador) em outro local, compatível com as exigências mínimas estabelecidas pelos parâmetros internacionais acima referidos. Não se deve olvidar que propriedade e moradia não se confundem necessariamente e que também a moradia fundada em posse aparentemente obtida sem justo título (e aqui não se poderá discutir o que significa justo título) pode resultar em posições jusfundamentais que exigem tutela e promoção. Que tal linha de raciocínio se aplica também a outras hipóteses em que esteja em causa a tutela da moradia, resulta evidente e não poderia pura e simplesmente ser desconsiderado. Justamente nesta perspectiva assume relevo a discussão da proteção da moradia (mesmo que não vinculada a um título de propriedade) contra despejos e desapossamentos arbitrários, igualmente objeto de acirrado debate doutrinário e jurisprudencial, além dos inúmeros projetos legislativos versando sobre o tema. Aqui se verifica que está em causa uma confluência da dimensão positiva e da dimensão negativa do direito à moradia, visto que é em primeira linha o Estado o principal responsável (no âmbito dos seus deveres de tutela) de editar um conjunto de atos normativos e outras medidas eficientes e que possam resultar em efetiva proteção da moradia, tanto contra ingerências por parte do próprio Estado, quanto por parte de particulares. Assim, para ilustrar algumas questões polêmicas e relevantes nesta seara, seguem alguns exemplos, que, embora não possam ser individualmente discutidos de modo pormenorizado, somam-se às considerações precedentes.

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Na esfera jurisprudencial, vale colacionar decisão proferida pela 2ª Câmara Cível do TJRS na Apelação Cível n° 7000757571813, relatada pelo Des. Roque Volkweiss (27.09.2006), no bojo de demanda onde embora reconhecida a irregularidade da edificação promovida pelo requerido em ação demolitória, a execução da demolição (que foi reconhecida como necessária) somente poderia ocorrer se o Município, na condição de autor da demanda, garantisse às famílias ali residentes a colocação em outro local, assegurando-lhes moradia digna na mesma localidade. Dentre os argumentos manejados pelos julgadores, assume relevo a alegação de que houve também uma violação dos requisitos da proporcionalidade, notadamente por afetação do núcleo essencial do direito à moradia, especialmente em função de sua vinculação com a própria dignidade da pessoa humana. Embora não isolada, tal decisão certamente não corresponde à prática majoritária, mas guarda sintonia com os objetivos estipulados pela agenda internacional dos direitos humanos na seara da moradia, que reclama um determinado nível de segurança na posse e o acesso a meios alternativos de assegurar uma moradia digna, preocupação também presente em diversas propostas legislativas em trâmite atualmente no Brasil e que constitui elemento nuclear do direito à moradia como direito fundamental. Neste sentido, destacam-se os estudos sobre eventuais alterações na legislação processual vigente, que, no campo da proteção da posse socialmente útil e da moradia, encontra-se em flagrante descompasso, ainda mais considerando a evolução normativa na esfera internacional, a Constituição Federal de 1988 e até mesmo o Código Civil de 2002. Neste sentido, dentre outras propostas apresentadas, refere-se aqui a sugestão da ouvidoria agrária no sentido de condicionar a concessão de mandado de reintegração de posse à prova do cumprimento da função social do imóvel rural ou urbano no caso de litígios coletivos (inclusão deste requisito no inciso IV do artigo 927 do Código de Processo Civil) ou a necessária intervenção do Ministério Público e intimação da Defensoria Pública nos litígios coletivos sobre imóveis rurais e urbanos (§ 2° do artigo 928 do Código de Processo Civil). Da mesma forma, como, aliás, vem sendo discutido há muito tempo, necessários ajustes legislativos na seara da proteção da moradia nas ações de despejo residencial, especialmente para o

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efeito de limitar de algum modo a própria possibilidade da propositura da demanda, mas especialmente no que diz com a execução do mandado de despejo compulsório52. Seguindo com a referência a alguns exemplos extraídos da jurisprudência, constata-se a existência tanto de avanços quanto de retrocessos. Assim, se é correta a exigência da prova segura de que o imóvel efetivamente serve de moradia à entidade familiar, não bastando a mera alegação como matéria de defesa53, é de se refutar o entendimento de que, uma vez confessado o inadimplemento dos locativos, pobreza e direito à moradia não são argumentos idôneos a justificarem uma modificação da sentença de procedência de ação de despejo54. Com efeito, neste último caso, embora se possa até admitir a procedência da ação, a depender das circunstâncias (embora não se possa concordar com a ausência de idoneidade dos argumentos fundados na pobreza e no direito à moradia), no mínimo deveria haver uma preocupação com a execução da sentença e a eventual garantia de uma moradia alternativa para a pessoa ou família despejada, tal como ocorreu no exemplo mencionado acima. Igualmente desconsiderando as exigências de tutela vinculadas ao direito à moradia como direito fundamental e, o que é ainda mais preocupante, afirmando a sua dimensão eminentemente programática, registram-se decisões que, além de atribuir às exceções legais à regra da impenhorabilidade do bem de família natureza processual (sob o argumento de que apenas se aplica em demanda judicial), considerando-as aplicáveis aos contratos de locação prorrogados por prazo indeterminado, sustentam que mesmo a previsão constitucional expressa do direito à moradia não enseja o afastamento da previsão legal55. 52

Sobre o tema, vale consultar as diversas propostas disponibilizadas e discutidas pelo COHRE (Centre of Housing Rights and Evictions), com representação bastante ativa no Brasil. 53 Cf., por exemplo, a decisão prolatada na apelação cível n° 70012124871, julgada pela nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (24.08.2005), relatatora Desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi. 54 Neste sentido v. decisão na apelação cível n° 70005724158, julgada pela segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (18.03.2003), relatada pela Juíza Cláudia Maria Hardt. 55 Este o caso, por exemplo, da decisão na Apelação Cível n° 70017188434, julgada pela 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (14.02.2007), relatada pelo Des. Otávio Augusto de Freitas Barcelos, onde, de resto, houve adesão à orientação do Supremo Tribunal Federal, no que diz com a legitimidade constitucional da penhora do imóvel residencial do fiador. Da mesma Câmara Cível, aliás, colaciona-se outra decisão

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Que a atribuição de caráter meramente programático ao direito à moradia, refutando até mesmo uma eficácia negativa da norma constitucional, representa um flagrante retrocesso em relação ao entendimento atualmente majoritário de que qualquer norma constitucional (mesmo quanto de cunho programático) é apta a gerar efeitos diretamente aplicáveis, dentre os quais o efeito negativo de impedir atos que lhe sejam manifestamente contrários. Aliás, convém frisar que nem o Supremo Tribunal Federal (do que dá conta o voto do Relator, Ministro Cezar Peluso), mesmo chancelando a legitimidade constitucional da penhora, o fez invocando o caráter programático do direito à moradia, visto que a sua condição de direito fundamental e direito subjetivo foi sempre ressalvada, e a decisão, como já demonstrado, não se pautou por esta linha argumentativa, mas em função especialmente da necessidade (já questionada) de tutela da moradia em um contexto mais amplo e da livre disposição do imóvel por parte do fiador.

9.6 Considerações finais Por mais que se possa avançar na discussão e avaliar outros argumentos, tenham sido, ou não, ventilados na decisão do Supremo Tribunal Federal e demais decisões referidas e comentadas, já é possível perceber o quanto uma solução constitucionalmente adequada em termos de tutela do direito à moradia, não só, mas especialmente nos casos de penhora do imóvel residencial do devedor ou fiador, reclama maior investimento argumentativo. Da mesma forma, verifica-se que se está apenas diante de mais uma dentre tantas questões decididas pelos Tribunais Superiores onde resta escancarado o quão falaciosa (ou, pelo menos, artificial) é a distinção entre matéria de fato e matéria de Direito. Além disso, a desconsideração de importantes dimensões do caso concreto aponta para a possibilidade de equívocos

que, além de afirmar o caráter programático do direito à moradia, nega-lhe a condição de direito individual (direito subjetivo), afastando inclusive a sua condição de direito subjetivo negativo, como se a moradia não correspondesse a uma necessidade concreta da pessoa individualmente considerada e a dignidade da pessoa humana não implicasse em direitos subjetivos individuais (v. Apelação Cível n° 70017624842, julgada em 14.02.2007, igualmente relatada pelo Des. Otávio Augusto de Freitas Barcelos).

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significativos no processo decisório e, o que é pior, de um resultado que pode implicar flagrante violação de princípios fundamentais e do próprio núcleo essencial de direito fundamental, somente evitáveis mediante uma exegese simultaneamente tópica e sistemática, como necessariamente há de ser toda a interpretação56. A situação, todavia, acaba sendo ainda mais grave se à decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da legitimidade constitucional da penhora do único imóvel residencial for outorgada eficácia erga omnes e efeito vinculante, mormente se impeditiva pelo menos de uma divergência justificável à luz das circunstâncias do caso concreto, sem que se possa aqui adentrar a discussão em torno da legitimidade constitucional do efeito vinculante em decisões que sequer respeitam a maioria qualificada de votos exigida para a edição de uma súmula vinculante, sob o equivocado pretexto de uma mutação constitucional. Tão fundado é o receio, que já se verifica uma tendência, mesmo por parte de órgãos judicantes que antes consideravam inconstitucional a exceção legal permissiva da penhora, de, sem qualquer reflexão adicional (sequer para justificar minimamente as razões da alteração de seu convencimento e mesmo sem qualquer olhar para as circunstâncias do caso concreto) pura e simplesmente alterarem o seu posicionamento, afinando-o com a orientação ora imprimida pelo Supremo Tribunal Federal. Importa enfatizar, nesta quadra, que não se trata aqui de fazer coro com os que pregam uma espécie de resistência teimosa e irrefletida às decisões do Supremo Tribunal Federal ou mesmo do Superior Tribunal de Justiça, pois a crítica que aqui se formula também abarca decisões que, igualmente sem maior reflexão e conexão com as circunstâncias do caso concreto (e da dignidade concreta das pessoas às quais dizem respeito os casos!) em várias hipóteses transformaram o discurso legítimo em prol do direito à moradia em instrumento de tutela de propriedades de luxo, como se propriedade e moradia fossem direitos idênticos e como se fossem direitos absolutamente blindados a qualquer limite ou restrição. 56

Sobre o tema v. as indispensáveis lições de FREITAS, Juarez, A Interpretação Sistemática do Direito, 4ª d., São Paulo: Malheiros, 2004, bem como de PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico – Uma Introdução à Interpretação Sistemática do Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

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O que se buscou problematizar neste ensaio, foi justamente a necessidade de se exercer uma resistência em relação a soluções simplistas e generalizadas, e que a busca da melhor resposta implica avaliação criteriosa não apenas de algumas questões de ordem normativa e formal e não se coaduna com argumentos fixados de modo prévio e absoluto. O que se espera é que o Supremo Tribunal Federal, assim como já o fez em matéria de saúde e até mesmo em relação a possíveis temperamentos do efeito vinculante na hipótese da vedação de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, siga de portas abertas, se não para uma reformulação radical do seu entendimento expresso pelo voto da maioria dos seus Ministros, pelo menos para uma possível flexibilização à luz das circunstâncias do caso concreto, pena de, no limite, acabar chancelando situações de extrema injustiça, postura que também se espera seja adotada pelos demais órgãos do Poder Judiciário, pela doutrina e também pelo legislador, na busca de parâmetros normativos constitucionalmente adequados e afinados com os deveres de proteção dos direitos fundamentais. Tendo em conta todo o exposto e a despeito das criticas que se pode endereçar ao julgado do STF sobre a penhorabilidade do único imóvel residencial do fiador, parece correto afirmar que, transcorridos vinte anos da promulgação da nossa CF, as questões que envolvem a garantia de uma moradia digna passaram a ser cada vez mais discutidas na doutrina e na jurisprudência, isto sem falar em alguns desenvolvimentos importantes na esfera legislativa, como dá conta o assim designado Estatuto da Cidade, que, embora ainda distante de ser concretizado na extensão desejável, igualmente tem sido fator propulsor para um conjunto de medidas da mais diversa natureza e que, no seu conjunto, permitem que se adote uma postura mais otimista em relação ao futuro do direito a moradia no Brasil.

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10 O acesso à justiça na perspectiva dos direitos humanos

Carlos Henrique Bezerra Leite*

10.1 introdução

U

m sistema judiciário eficiente e eficaz deve propiciar a toda pessoa um serviço público essencial: o acesso a justiça. É preciso reconhecer, nesse passo, que a temática do acesso à justiça está intimamente vinculada ao modelo político do Estado. Há, pois, estreita relação entre o Estado, a sociedade, o processo e os direitos humanos. Procuraremos, assim, sem a pretensão de esgotar a temática, apresentar algumas respostas às seguintes indagações: quais os valores mais importantes segundo a ideologia de Estado? Como o Estado-Juiz pode contribuir na promoção da liberdade, igualdade e dignidade das pessoas? Como proteger o meio ambiente (incluído o do trabalho), o consumidor e os grupos vulneráveis (mulheres, negros, homo-afetivos, crianças, idosos, trabalhador escravo, os sem-terra, os indígenas)?

* Desembargador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região/ES. Mestre e Doutor em Direito (PUC/SP). Ex-Procurador Regional do Ministério Público do Trabalho/ ES. Professor Adjunto do Departamento de Direito (UFES). Professor de Direitos Metaindividuais do Mestrado (FDV). Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho. Medalha do Mérito Judiciário do Trabalho (Comendador). Ex-coordenador Estadual da Escola Superior do MPU/ES. Autor de Livros e Artigos Jurídicos.

O acesso à justiça na perspectiva dos direitos humanos

10.2 O acesso à justiça no estado liberal O Estado Liberal, que emerge das Revoluções Burguesas dos séculos XVII e XVIII, caracteriza-se pela sua subordinação total ao direito positivo editado pela burguesia, pois sua atuação deveria estar em conformidade aos exatos limites prescritos na lei. O direito posto pela classe dominante, portanto, constitui um limitador da ação estatal, ao mesmo tempo em que se apresenta como um conjunto de garantias individuais oponíveis ao próprio Estado, cuja função seria apenas a de proteger/garantir a liberdade e a propriedade (como direito natural e absoluto) sob uma perspectiva individualista e nutrida pelo dogma da igualdade formal perante a lei, o que implica a supremacia do Legislativo perante o Executivo e o Judiciário. No Estado Liberal, que só reconhece os chamados direitos humanos de primeira dimensão (direitos civis e políticos), o processo é caracterizado pelo tecnicismo, legalismo, positivismo jurídico acrítico, formalismo e “neutralismo” do Poder Judiciário. A ação, no Estado Liberal, nada mais é do que a derivação do direito de propriedade em juízo. Daí a supremacia, quase que absoluta, do princípio dispositivo. Outra característica do processo no Estado Liberal é o conceitualismo, onde todos são tratados em juízo como sujeitos de direito (Tício X Caio), independentemente de suas diferentes condições sociais, econômicas, políticas e morais. De tal arte, crianças e adultos, ricos e pobres, empresários e trabalhadores são conceitualmente tratados como iguais. No Brasil, desde o descobrimento até meados do século XX foram destinatários do direito civil e processo civil os ricos e os brancos; para os negros e pobres, direito penal e processo penal. Em conseqüência, o Estado Liberal assegurava apenas o acesso à justiça civil aos ricos e brancos; aos pobre e negros, acesso apenas à justiça penal. Como bem registra Doglas César Lucas, A jurisdição estatal foi afastada da política e conduzida a um isolamento das questões sociais importantes. Foi tomada como reprodutora da racionalidade legislativa,

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Carlos Henrique Bezerra Leite

constituindo uma operacionalidade dogmática alienante, incapaz de pensar o conteúdo do direito, tornando-se fiel promotora da ordem jurídica e econômica liberal.1

Esse quadro de injustiças e desigualdades sociais propiciou o acúmulo de riqueza para uns poucos e bolsões de pobreza e miséria para muitos. Com o passar dos anos, o modelo político liberal perdeu a capacidade de organizar uma sociedade marcada pelas diferenças sociais decorrentes da Revolução Industrial.

10.3 O acesso à justiça no estado social Surge, então, o chamado Estado Social, que é compelido a adotar políticas públicas destinadas à melhoria das condições de vida dos mais pobres, especialmente da classe trabalhadora, como forma de compensar as desigualdades originadas pelos novos modos de produção. São características do Estado Social, o constitucionalismo social (México, 1917, e Alemanha, 1919), a função social da propriedade, a participação política dos trabalhadores na elaboração da ordem jurídica, o intervencionismo (dirigismo) estatal na economia mediante prestações positivas (status positivus) por meio de leis que criam direitos sociais. O Estado social, pois, visa ao estabelecimento da igualdade substancial (real) entre as pessoas, por meio de positivação de direitos sociais mínimos (piso vital mínimo ou mínimo existencial). No Estado Social, o Poder mais fortalecido deixa de ser o Legislativo e passa a ser o Executivo, ao qual é reconhecida a competência para editar políticas públicas de intervenção na economia que dependem da legitimação do direito, a fim de que este passe a ser “instrumento de intervenção e assistencialismo, resultando na politização do jurídico e sua dependência, além da política, das relações econômicas e culturais.”2

1

LUCAS, Doglas Cesar. A crise functional do estado e o cenário da jurisdição desafiada. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (org.). O estado e suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 178. 2 Ibidem, p. 181.

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O acesso à justiça na perspectiva dos direitos humanos

O processo, no Estado Social, sofre algumas transformações importantes, pois o seu objeto passa a ser a jurisdição, e não apenas a ação, havendo, assim, relativização do princípio dispositivo, com vistas a permitir o acesso do economicamente fraco à Justiça (isenção de custas, escritórios de vizinhança, etc.). No Brasil, a criação da Justiça do Trabalho (1939), a assistência judiciária (Lei 1060/50) aos pobres, o ius postulandi e a coletivização do processo trabalhista (Dissídio coletivo e ação de cumprimento) caracterizam o processo brasileiro no Estado Social. Leciona Celso Fernando Campilongo que o desafio do Judiciário, no campo dos direitos sociais, era e continua sendo conferir eficácia aos programas de ação do Estado, isto é, às políticas públicas, que nada mais são do que os direitos decorrentes dessa ‘seletividade inclusiva’. Altera-se significativamente a relação entre os Poderes do Estado, e a independência política do Poder Judiciário torna-se um grande dilema. O Judiciário é constitucionalmente obrigado a intervir em espaços tradicionalmente reservados ao Executivo para garantir direitos sociais e a se manifestar sobre um novo campo de litigiosidade, marcadamente coletivo e de orientação fortemente política”.3

Lamentavelmente, o Estado Social brasileiro recebeu forte influência do positivismo jurídico, o que impediu a politização da justiça e a judicialização da política. No campo do ensino jurídico, por exemplo, a ênfase continuou sendo direito civil e processo civil, inexistindo, inclusive, em diversas faculdades de direito a disciplinas direitos humanos e direito processual do trabalho.

10.4 A crise do estado social A partir dos dois choques do petróleo na década de 70, o Estado Social (ou Welfare State) entra em crise, colocando em xeque a lógica 3

CAMPILONGO, Celso Fernandes. O judiciário e a democracia no Brasil. In: Revista USP. Dossiê do Judiciário, n. 21, São Paulo: USP, mar/abr., 1994.

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do dirigismo estatal. A expansão desordenada do Estado, a explosão demográfica e o envelhecimento populacional decorrentes dos avanços na medicina e no saneamento básico geraram perigosa crise de financiamento na saúde e na previdência, que são os dois pilares fundamentais do Estado Social. A par disso, com a globalização econômica, o Estado vai perdendo o domínio sobre as variáveis que influenciam sua economia. Nota-se claramente a perda da capacidade estatal de formular e implementar políticas públicas, comprometendo o seu poder de garantir os direitos sociais. Com a queda do modelo socialista da União Soviética, o capitalismo abandona as concessões que fez aos mais fracos e surge uma Nova Direita que ganha força com os governos de Margareth Tatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América. 4 Surge o G-7 e o neoliberalismo, cuja ideologia, estabelecida no Consenso de Washington, consiste em diminuição do tamanho do Estado, abertura dos mercados internos, rígida disciplina fiscal, reforma tributária, redução drástica dos gastos públicos na área social, desconstrução dos direitos fundamentais sociais por meio de desregulamentação do mercado, flexibilização e terceirização das relações de trabalho. Adverte Noam Chomsky que os grandes arquitetos do Consenso (neoliberal) de Washington são os senhores da economia privada, em geral empresas gigantescas que controlam a maior parte da economia internacional e têm meios de ditar a formulação de políticas e a estruturação do pensamento e da opinião.5

Enfim, o neoliberalismo enfraquece o Estado, gerando alarmante e progressiva exclusão social. Segundo dados das ONU, em 1994, os 20% mais ricos da população mundial detinham patrimônio 60 vezes 4

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 27. 5 CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem social. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 22.

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superiores aos dos 20% mais pobres. Em 1997, esse número aumentou para 74 vezes.6 Será isso mera fatalidade decorrente do mercado? Na verdade, lembra Daniel Sarmento, no contexto do neoliberalismo globalizado, a exclusão é ainda mais cruel que no Estado Liberal, pois naquele as forças produtivas necessitavam da mão-de-obra para produção da mais-valia. Hoje, com os avanços da automação, o trabalhador desqualificado não tem mais nenhuma utilidade para o capital, e torna-se simplesmente descartável.7

Além da exclusão social, fome e miséria, há a preocupação com a sobrevivência da família humana. Nessa quadra, indaga-se: como promover a liberdade, a igualdade e dignidade das pessoas? Em outros termos: como proteger o meio ambiente (incluído o do trabalho), o consumidor e os grupos vulneráveis (mulheres, negros, homo-afetivos, crianças, idosos, trabalhador escravo, os sem-terra, os indígenas)?

10.5 O acesso à justiça no estado democrático de direito Surge, então o Estado Democrático de Direito, também chamado de Estado Constitucional, Estado Pós-Social ou Estado da Pós-Modernidade, cujos fundamentos se assentam não apenas na proteção e efetivação dos direitos humanos de primeira (direitos civis e políticos) e segunda (direitos sociais, econômicos e culturais) dimensões, mas também dos direitos de terceira dimensão (direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos). Podemos dizer, portanto, que o Estado Democrático de Direito tem por objetivos fundamentais a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, a correção das desigualdades sociais e regionais, promoção do bem-estar e justiça sociais para todas as pessoas, o desenvolvimento sócio-ambiental, a paz e a democracia. 6

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 29. 7 SARMENTO, Daniel, op. cit., mesma página.

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O problema não é apenas justificar os direitos sociais como direitos humanos, mas sim garanti-los.8 Daí a importância do Poder Judiciário (e do processo) na promoção da defesa dos direitos fundamentais e da inclusão social, especialmente por meio do controle de políticas públicas. Afinal, o nosso tempo é marcado por uma sociedade de massa, profundamente desigual e contraditória. Logo, as lesões aos direitos humanos, notamente os sociais, alcançam dezenas, centenas, milhares ou milhões de cidadãos. São lesões de massa (macrolesões) que exigem um novo comportamento dos atores jurídicos em geral e do juiz em particular para tornarem efetivos os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, cujos conceitos são extraídos do CDC (art. 81 par. Único), verdadeiro código de acesso à justiça da pós-modernidade.9 A jurisdição passa a ser a gênese do sistema pós-moderno de acesso individual e coletivo à justiça (CF art. 5º, XXXV). Logo, o Judiciário torna-se o poder mais importante na “era dos direitos”. A luta não é mais criação de leis, e sim manutenção dos direitos. Na verdade, a luta é por democracia e direitos. Ciente de que o direito processual tradicional (civil e trabalhista), que é pautado no liberalismo individualista do século XIX, mostravase insuficiente e inadequado para solucionar esses novos conflitos de massa, o legislador brasileiro, preocupando-se com a instrumentalidade substancial e com a questão da efetividade do processo, assumiu uma posição de vanguarda, digna de encômios. Para tanto, criou novos instrumentos jurídicos e aperfeiçoou os já existentes, além de estruturar (e reestruturar) instituições especialmente destinadas à promoção do acesso coletivo de grandes contingentes humanos a um moderno sistema integrado de tutela jurisdicional dos direitos ou interesses metaindividuais.10 O Processo, pois, no Estado Democrático de Direito, passa a ser compreendido a partir dos princípios constitucionais de acesso à justiça 8 9

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992, passim. CASTELO, Jorge Pinheiro. O direito material e processual do trabalho e a pós-modernidade: a CLT, o CDC e as repercussões do novo código civil. São Paulo: LTr, 2003, passim. 10 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação civil pública na perspectiva dos direitos humanos. 2.ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 94.

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insculpidos no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, especialmente: o da indeclinabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), o do devido processo legal (idem, incisos LIV e LV), ampla defesa (autor e réu) e contraditório, duração razoável do processo (idem, inciso LXXVIII). Trata-se do fenômeno conhecido como constitucionalização do processo, o qual, como lembra Cassio Scarpinella Bueno, convida o estudioso do direito processual civil a lidar com métodos hermenêuticos diversos – a filtragem constitucional de que tanto falam alguns constitucionalistas –, tomando consciência de que a interpretação do direito é valorativa e que o processo, como método de atuação do Estado, não tem como deixar de ser, em igual medida, valorativo, até como forma de realizar adequadamente aqueles valores: no e pelo processo. A dificuldade reside em identificar adequadamente estes valores e estabelecer parâmetros os mais objetivos possíveis para que a interpretação e aplicação do direito não se tornem aleatórias, arbitrárias ou subjetivas. A neutralidade científica de outrora não pode, a qualquer título, se aceita nos dias atuais”.11

A constitucionalização do processo, que tem por escopo a efetividade do acesso, tanto individual quanto coletivo, ao Poder Judiciário brasileiro, caracteriza-se: a) pela inversão dos papéis da lei e da CF, pois a legislação deve ser compreendida a partir dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais; b) pelo novo conceito de princípios jurídicos, que passam a ser normas de introdução ao ordenamento jurídico, e não mais meras fontes subsidiárias como previa a Lei de Introdução ao Código Civil;

11

BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil; vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 71.

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c) pelos novos métodos de prestação da tutela jurisdicional, que impõem ao juiz o dever de interpretar a lei conforme a Constituição, de controlar a constitucionalidade da lei, especialmente atribuindo-lhe novo sentido para evitar a declaração de inconstitucionalidade, e de suprir a omissão legal que impede a proteção de um direito fundamental. d) pela coletivização do processo por meio de instrumentos judiciais para proteção do meio ambiente, patrimônio público e social e outros interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores, aposentados, mulheres, negros, pobres, crianças, adolescentes, consumidores etc.), como a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo, a ação popular, o mandado de injunção coletivo; e) pela ampliação da legitimação ad causam para promoção das ações coletivas reconhecida ao Ministério Público, aos corpos intermediários (associações civis, sindicais etc.) e ao próprio Estado (e suas descentralizações administrativas); f) pela ampliação dos efeitos da coisa julgada (erga omnes ou ultra pars) e sua relativização secundum eventum litis (segundo o resultado da demanda) para não prejudicar os direitos individuais; g) pelo ativismo judicial (CF, art. 5º, XXXV; CDC 84; LACP 12; CPC 273 e 461). h) pela supremacia das tutelas alusivas à dignidade humana e aos direitos da personalidade sobre os direitos de propriedade, o que permite, inclusive, tutelas inibitórias e específicas, além de tutelas ressarcitórias nos casos de danos morais individuais e coletivos; i) pela possibilidade de controle judicial de políticas públicas, conforme previsto no art. 2º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais-PIDESC, ratificado pelo Brasil em 1992, etc.

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Em suma, o processo pode ser definido como o “direito constitucional aplicado”, e o acesso à justiça passa a ser, a um só tempo, em nosso ordenamento jurídico direito humano e direito fundamental. É direito humano, porque previsto em tratados internacionais de direitos humanos e tem por objeto a dignidade, a liberdade, a igualdade e a solidariedade entre as pessoas humanas, independentemente de origem, raça, cor, sexo, crença, religião, orientação sexual, idade ou estado civil. Com efeito, o art. 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispõe textualmente: “Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela Lei”.

O acesso à justiça é também direito fundamental em nosso País, porquanto catalogado no rol dos direitos e deveres individuais e coletivos constantes do Título II da Constituição da República de 1988, cujo art. 5º, inciso XXXV, prescreve: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

10.6 Pela formação de uma nova mentalidade É preciso que as inteligências tenham como norte a efetivação do acesso - individual e metaindividual - dos fracos e vulneráveis, como consumidores, trabalhadores, crianças, adolescentes, idosos, os excluídos em geral, não apenas ao aparelho judiciário e à democratização das suas decisões, mas, sobretudo, a uma ordem jurídica justa. Para tanto, é condição necessária a formação de uma nova mentalidade, que culmine com uma autêntica transformação cultural não apenas dos juristas, juízes e membros do Ministério Público e demais operadores jurídicos, mas, também dos governantes, dos empresários, dos ambientalistas e sindicalistas.

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A efetivação do acesso coletivo à justiça exige, sobretudo, um “pensar coletivo”, que seja consentâneo com a nova ordem política, econômica e social implantada em nosso ordenamento jurídico a partir da Carta Magna de 1988. Quanto ao Ministério Público, o art. 127 da Constituição de 1988 deixa evidente o seu novo papel político no seio da sociedade brasileira, pois a ele foi cometida a nobre missão de promover a defesa não apenas do ordenamento jurídico e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, mas também do regime democrático. Deixa, pois, o Ministério Público a função de mero custos legis, para se transformar em agente político, cuja função institucional é zelar pela soberania e representatividade popular; pelos direitos políticos; pela dignidade da pessoa humana; pela ordem social (valor social do trabalho) e econômica (valor social da livre iniciativa); pelos princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil; pela independência e harmonia dos Poderes constituídos; pelos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência relativos à Administração Pública; pelo patrimônio público e social; pelo meio ambiente em todas as suas formas, inclusive o do trabalho etc. É preciso substituir a velha e ultrapassada expressão custos legis pela de custos iuris, pois esta abrange não apenas a lei em sentido estrito, mas, também, os princípios, os valores e os objetivos fundamentais que se encontram no vértice do nosso ordenamento jurídico. As transformações e a complexidade das relações sociais, o aumento da pobreza e do desemprego, a banalização da violência, a generalização do descumprimento da legislação, a flexibilização do Direito do Trabalho, a criação de novos institutos jurídicos e a massificação dos conflitos estão a exigir um aperfeiçoamento técnico multidisciplinar e permanente dos membros do Ministério Público. Não basta, contudo, o aperfeiçoamento técnico. É preciso, paralelamente, que as escolas do Ministério Público incluam entre as suas finalidades, a exemplo do que se dá com o Ministério Público nas modernas democracias sociais, a formação prévia e constante dos seus membros a respeito dos valores da ética republicana e democrática consagrada na nossa Constituição de 1988.

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No que concerne aos juízes, decididamente, a Constituição cidadã, como foi batizada por Ulisses Guimarães, também lhes atribui o papel político de agente de transformação social. Não é por outra razão que o art. 93, inciso IV, da CF determina que o Estatuto da Magistratura nacional deverá observar, como princípio, “a previsão de cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistrados como requisitos para ingresso e promoção na carreira”. E nem poderia ser diferente, pois a crescente complexidade das relações sociais; as transformações sociais rápidas e profundas; a criação assistemática de leis que privilegiam mais a eficácia de planos econômicos do que a eqüidade e a justiça das relações jurídicas; a crescente administrativização do direito que é utilizado como instrumento de governo e da economia de massa a gerar intensa conflituosidade; a configuração coletiva dos conflitos de interesses relativos a relevantes valores da comunidade, como o meio ambiente e outros interesses difusos, exigem o recrutamento mais aprimorado de juízes e seu permanente aperfeiçoamento técnico e cultural. Trata-se de aperfeiçoamento multidisciplinar, que abrange não apenas o direito, como também a sociologia, a economia, a psicologia, a política, enfim, “um aperfeiçoamento que propicie a visão global do momento histórico e do contexto sócio-econômico-cultural em que atuam os juízes”.12 Somente assim, salienta Kazuo Watanabe, teremos uma Justiça mais rente à realidade social e a necessária mudança de mentalidade pelos operadores do Direito, que torne factível o acesso à ordem jurídica mais justa.13

A par do aperfeiçoamento dos juízes, faz-se necessário um apoio decisivo aos mesmos pelos órgãos de cúpula do Judiciário, tal como 12

WATANABE, Kazuo. Apontamentos sobre tutela jurisdicional dos interesses difusos (necessidade de processo dotado de efetividade e aperfeiçoamento permanente dos juízes e apoio dos órgãos superiores da justiça em termos de infra-estrutura material e pessoal). In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação civil pública - Lei 7.347/85 - reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 327-328. 13 Idem, mesma página.

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ocorre atualmente no seio do Ministério Público, que vem criando Coordenadorias Especializadas de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos, além de outros órgãos destinados à pesquisa permanente, à orientação e ao apoio material a seus membros. Atualmente, a ENAMAT vem cumprindo tal papel na preparação inicial para o exercício da magistratura trabalhista. Em seu discurso de posse no cargo de Presidente do STF, a Ministra Ellen Gracie destacou, com razão, que a difusão e fortalecimento dos juízos de primeiro grau deva ser priorizado. Que todos os cidadãos tenham acesso fácil a um juiz que lhes dê resposta pronta é o ideal a ser buscado. Que o enfrentamento das questões de mérito não seja obstaculizado por bizantino formalismo, nem se admita o uso de manobras procrastinatórias. Que a sentença seja compreensível a quem apresentou a demanda e se enderece às partes em litígio. A decisão deve ter caráter esclarecedor e didático. Destinatário de nosso trabalho é o cidadão jurisdicionado, não as academias jurídicas, as publicações especializadas ou as instâncias superiores. Nada deve ser mais claro e acessível do que uma decisão judicial bem fundamentada. E que ela seja, sempre que possível, líquida.

10.7 Conclusão Como síntese das principais conclusões lançadas neste ensaio, invocamos as palavras de Paulo Bonavides: “Há em nosso tempo duas categorias de juristas: os da legalidade e os da legitimidade, os tecnocratas e os retóricos, os das normas e regras e os dos princípios e valores, os juristas do status quo e os juristas da reforma e da mudança. Eu me inscrevo nas fileiras do segundo grupo, porque sendo ambos ideológicos, um pertence à renovação e ao porvir ao passo que o outro se filia na corrente conservadora e neutralista. Mas este último, sem embargo de apregoar neutralidade, professa, em derra-

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O acesso à justiça na perspectiva dos direitos humanos

deira instância, uma falsa e suposta isenção ideológica e, pelo silêncio e abstinência, acaba por fazer-se cúmplice do sistema e das suas opressões sociais e liberticidas”.14

Referências BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992. BONAVIDES, Paulo. Democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 66. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil; vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2007. CAMPILONGO, Celso Fernandes. O judiciário e a democracia no Brasil. In: Revista USP. Dossiê do Judiciário, n. 21, São Paulo: USP, mar/abr., 1994. CASTELO, Jorge Pinheiro. O direito material e processual do trabalho e a pós-modernidade: a CLT, o CDC e as repercussões do novo código civil. São Paulo: LTr, 2003. CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem social. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação civil pública na perspectiva dos direitos humanos. 2.ed. São Paulo: LTr, 2008. LUCAS, Doglas Cesar. A crise functional do estado e o cenário da jurisdição desafiada. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (org.). O estado e suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. WATANABE, Kazuo. Apontamentos sobre tutela jurisdicional dos interesses difusos (necessidade de processo dotado de efetividade e aperfeiçoamento permanente dos juízes e apoio dos órgãos superiores da justiça em termos de infra-estrutura material e pessoal). In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação civil pública - Lei 7.347/85 - reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 327-328. 14

BONAVIDES, Paulo. Democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 66.

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11 Ensino jurídico, direitos humanos e a construção de ambientes digitais voltados à aprendizagem colaborativa

Bruno Costa Teixeira*

11.1 Introdução

E



ducar é substancialmente formar” (FREIRE, 2002, p.37). O papel formador – e transformador – da educação é evidente e adquire maior relevância quando associado ao ensino de Direitos Humanos. Isto porque caberá ao professor educar-se a si mesmo e, por conseguinte, conduzir os demais com fulcro na tolerância, na diversidade e na compreensão das múltiplas realidades sociais (TAVARES, 2007, p.500). Na mesma esteira, Piaget (1972, pp.60-71) amplia o potencial da educação quando afirma que esta também contempla o Direito que todo indivíduo tem de se desenvolver e de obter da sociedade possibilidades empíricas para tornar tal desenvolvimento minimamente possível. Como se infere, o educador em Direitos Humanos assume uma responsabilidade grandiosa: a um só tempo, deve promover uma cultura humanizada, bem como “desenvolver nos indivíduos

* Acadêmico do 5º ano do Curso de Direito da FDV; acadêmico do 4º ano do Curso de Economia da UFES; Editor de Panóptica – http://www.panoptica.org. Esse texto não seria o mesmo sem os apurados olhares femininos de Virgínia Luna Smith, Jamili Abib Lima Saade e Adriana Gonzaga Bisi. Também foram muito proveitosas as considerações de: José Carlos David Junior e Julio Faro. Obviamente, quaisquer equívocos que o presente trabalho possa trazer são de inteira responsabilidade do autor.

Ensino jurídico, direitos humanos e a construção de ambientes digitais...

e nos povos suas máximas capacidades como sujeito de Direitos e proporcionar as ferramentas e elementos para fazê-los efetivos” (MAGENDZO, 2006, p.23). Entretanto, duas décadas após a promulgação da Carta Magna pátria, o ensino jurídico, principalmente no que concerne aos Direitos supramencionados, continua nutrido de um espírito coimbrão, pelo menos quando o termo é associado ao ensino linear, baseado na auto-suficiência teórica e na simples leitura da lei. Por outro lado, nos mesmos vinte anos, as novas formas de comunicação mediadas por veículos de telemática fizeram emergir diversos mecanismos de interação social, transformando os meios de produção e de disseminação do conhecimento. Justamente por isso, não é muito arriscado afirmar que, ora ou outra, a poeira de séculos passados que ainda jaz sobre a maioria dos métodos pedagógicos contemporâneos será agitada. Nesse sentido, o escopo do trabalho que se segue é apresentar, em face das problemáticas inerentes ao ensino jurídico e, em especial no que se referem ao estudo dos Direitos Humanos, as novas possibilidades de construção de conhecimento coletivo por meio de tecnologias voltadas a ambientes colaborativos.1

11.1 Educação em direitos humanos e ensino jurídico Será que o ensino jurídico pode se furtar à sua inerente responsabilidade de preparar para a cidadania? (BITTAR, 2007, p.57)

A formação cultural em Direitos Humanos ganhou maior espaço no meio acadêmico com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, que, por sua vez, permitiu um olhar mais plural sobre as várias identidades culturais e minorias excluídas. Entretanto, a efetivação de tal cultura ainda encontra barreiras em um ensino jurídico que parece ter atravessado os séculos sem significativas modificações. Para perceber como isso ocorreu, propõe-se uma rápida viagem histórica. 1

Adotou-se a expressão “ambientes colaborativos” para designar os aplicativos aqui apresentados, quais sejam: o weblog, o wiki, o fórum, as redes sociais e o Moddle.

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Demasiadamente influenciadas pelo idealismo liberal e pela formação de autoridades, as primeiras Faculdades de Direito do Brasil apresentavam um discurso retórico, dogmático e auto-suficiente, desconsiderando, em absoluto, as vias interdisciplinares de construção cognitiva da realidade social2. As aulas de Direito do começo do século XX refletiam uma modesta proposta de leitura in verbis do texto da legislação em vigor e exigiam ao máximo a capacidade de interpretação literal da textualidade da lei (BITTAR, 2007, p.5). Por certo que rememorar o passado do ensino jurídico no Brasil seria mais saudoso se não fosse constatado, em seguida, que “boa parte das identidades culturais, das práticas pedagógicas, das instituições e formas de ensinar, construídas dentro desta lógica, são transferidas quase sem modificações ao século XX e se preservam mesmo na aurora do século XXI” (BITTAR, 2007, p.7). Dentre os principais entraves pedagógicos comuns ao ensino de Direito no novo século estão: reprodução oral do conhecimento; obscuridade da linguagem jurídica; apresentação vertical e linear do conteúdo educativo3; rendição à primazia do conhecimento especializado exigido pelo mercado de trabalho4; pesquisas superficiais; e “a idéia da carreira jurídica como uma linha de produção de autoridades” (BITTAR, 2007, p.5). Por tudo isso, corre-se o risco de legitimar no meio social a preocupante máxima do “você sabe com quem está falando?”. É inegável, por outro lado, que tais elementos não podem coexistir com o ideal de educação em Direitos Humanos, sobretudo quando é levada em conta a necessidade de superação dos traços da escravidão e do colonialismo ainda existentes na sociedade 2

De acordo com Edgar Morin (2005, p.43), a “inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjunta e reducionista rompe o complexo com o mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido e torna unidimencional o multidimensional”. 3 Dentro de uma “concepção bancária da educação”, “o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacificamente, memorizam e repetem” (FREIRE, 1987, p.58). 4 “Por trás de todas as discussões atuais sobre as bases do sistema educacional, se oculta em algum aspecto mais decisivo a luta dos ‘especialistas’ contra o tipo mais antigo de ‘homem culto’. Essa luta é determinada pela expansão irresistível da burocratização de todas as relações públicas e privadas de autoridade e pela crescente importância dos peritos e do conhecimento especializado”. (RODRIGUES, 2007, p.1, ao citar Max Weber - “A Burocracia”).

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brasileira. Conforme aduzido por Eduardo Bittar (2007, p.40), a cultura do diálogo “que deve ser veiculada para a responsabilidade social passa pela autoconsciência do povo sobre a sua própria realidade enquanto tal”. Em toda a América Latina, a educação em Direitos Humanos ainda é uma área nova e pouco explorada, não obstante o fato de alguns instrumentos normativos já tratarem de sua implementação. No Brasil, o campo legislativo relacionado ao tema pode ser jungido nos seguintes documentos: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; Programa Nacional de Direitos Humanos de 2002; Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos de 2006; Parâmetros Curriculares da Educação de 1997; e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (TAVARES, 2007, p.490). Como se pode perceber, ainda que diante de um campo normativo recente, educadores e aprendentes já possuem um rol de diretrizes jurídicas e pedagógicas voltadas às práticas educativas coerentes com os valores intrínsecos à temática em voga. E cuidar de metodologias que lhe são compatíveis significa: fomentar a interdisciplinaridade, de modo a proporcionar olhares sob várias perspectivas, e ampliar os espaços de poder e participação de todos os envolvidos, com base no diálogo. Para tanto, deve haver, em última instância, a formação de sujeitos aptos a identificar problemas emergentes em um mundo dinâmico, propositivo e lingüisticamente experimentado por meios de comunicação mais fluidos, sem perder a capacidade de agir sobre as dificuldades locais e ouvir os excluídos, respeitando a diversidade étnica, de comportamento e cultural. Neste encalço é lançado o desafio para o ensino jurídico: preparar os educandos para o exercício da cidadania ativa, sem sustentar vícios pedagógicos ainda vigentes. Ou antes, os arcaísmos presentes no Ensino do Direito, “são-lhe a causa de sua modificação” (BITTAR, 2007, p.5). Não é por outro motivo que aqui se quer apresentar o potencial emancipador trazido pela propagação de informação e do conhecimento por meio de redes digitais. Especialmente porque esse mesmo potencial pode ser direcionado à criação de “ambien-

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tes cognitivos que favoreçam a capacidade de formular e resolver perguntas, a reflexão crítica, a ampliação da liberdade e criem novas e complexas características para as interações entre os seres humanos” (DELCIN, 2005, p.71). Não se trata, portanto, de um ingênuo elogio à razão instrumental ou à tecnologia enquanto solução para os problemas apresentados. Trata-se, na verdade, de uma pequena mostra de aplicação dos diversos ambientes colaborativos disponíveis na web, com ênfase naqueles caracterizados pela interlocução entre os participantes e pelo potencial educativo. Tendo-se mencionado, sinteticamente, os entraves ao ensino jurídico mais dinâmico e interdisciplinar, se propõe para a seqüência identificar os novos perfis assumidos, ou carentes de imediata assunção, pelos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem na sociedade informacional.

11.2 Os novos perfis do professor e do aluno: do enfoque linear ao paradigma cooperativo do conhecimento Só se educa em Direitos Humanos quem se humaniza e só é possível investir completamente na humanização a partir de uma conduta humanizada. (Ricardo Ballestreri).

O cultivo da técnica teve, ao longo do tempo, papel fundamental na formação e na transformação das maneiras de pensar, agir e sentir. À época do feudalismo, por exemplo, as noções de espaço eram pouco flexíveis e a carência de controle sobre o tempo influenciava significativamente os meios de vida das pessoas. Com o pioneirismo inglês na condução da primeira revolução industrial, contudo, o domínio sobre a técnica não só transformou a produção econômica, como também redesenhou as formas de organização social. De qualquer modo, foi com o advento da era da informação que a tecnologia associou-se à primazia do conhecimento, este produzido, transmitido e captado velozmente. É deveras interessante como, no processo histórico, o homem cria a técnica e, em conseqüência,

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a técnica recria o homem. De acordo com Manuel Castells (1999, p.54), essa transformação qualitativa da experiência humana, que é a formação de redes, permeia toda a ordem social por meio de canais mais flexíveis, remodelando as esferas do comportamento e da comunicação simbólica.5 A nova geração vive “um novo espaço-tempo de interações sociais e de troca de saberes” (DELCIN, 2005, p.24). O distante está cada vez mais perto e o perto é cada vez o mais distante, pelo menos em termos geográficos. E essa releitura de temporalidade – em estado real ou diferido – e da concepção espacial, agora extraterritorial, fragmentada e não-condicionante, foi proporcionada pelo desenvolvimento da grande rede mundial de computadores, fenômeno peculiar da sociedade da informação e do conhecimento. Ocorre, em outro giro, que a mesma revolução informacional criou gerações de alunos muito distantes do perfil de meros receptores de estímulos e de conteúdo programático. Além de permitir o acesso a poderosos recursos de pesquisa, a web remodelou os meios de produção de subjetividade e de relacionamento interpessoal, de modo que os indivíduos possam, finalmente, produzir e disseminar o conhecimento em rede. E, nesse espaço, a educação vertical, com enfoque na figura da unilateralidade da verdade professoral não é mais tão interessante; talvez nem seja mais possível. Entretanto, ainda há resistência por parte de muitos professores no sentido de não abandonar o papel de única fonte do conhecimento. “Oficialmente ele[s] sabe[m] e seus alunos desconhecem” (RUSSELL, 2008, p.173). Além disso, em se tratando de tecnologia, é possível que o mestre tenha algo a aprender com seus estudantes e isso pode abalar substancialmente o jogo formal de relações entre ambos. Quando se olha por outro ângulo, contudo, o quê é perdido quando se permite que isso aconteça? 5

De toda sorte, é importante deixar claro o perfil pejorativo do uso de tecnologias em constante atualização. A era da informação também pode operar o fenômeno da exclusão digital, uma vez que o restrito acesso aos meios de difusão do conhecimento acaba por dividir a sociedade em infoexcluídos e infoinseridos (ASSMANN, 2007, p.17). Essa questão tem sido discutida constantemente nos círculos acadêmicos e, de fato, merece atenção especial por parte daqueles que promovem políticas públicas de inclusão. Contudo, em razão do recorte metodológico que delimitou o presente estudo, não cabe aqui qualquer aprofundamento do tema. Feita a ressalva, pode-se prosseguir com mais cautela.

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Coisa alguma. Afinal, a função mediadora e condutora do conhecimento exercida pelo professor não será, de modo algum, substituída pelos recursos tecnológicos; ao revés, ganhará destaque ainda maior. Como sempre ocorreu, caberá ao educador selecionar, organizar e disponibilizar de maneira adequada o conteúdo-objeto de estudo, de modo a “convidar os estudantes a reconhecer o que sabem, atender à própria curiosidade e ensinar os outros” (SPYER, 2007, p.173). Outrossim, a abertura para a colaboração não significa abandonar o controle dos velhos métodos educacionais, mas na verdade, “ter objetivos internos bem desenvolvidos e bem entendidos para guiar as estratégias de participação externa” (TAPSCOTT & WILLIANS, 2007, p.348). Outro entrave comum é a dificuldade operacional que parte dos docentes apresenta quando da utilização dos mecanismos de informática, especialmente nos casos em que há larga diferença etária em relação aos discentes. A explosão dos meios informáticos e de comunicação deu cabo a um duelo intelectual entre duas frentes: os tecnocratas – ávidos pelo avanço, porém muitas vezes ingênuos quanto ao seu resultado – e os tecnofóbicos,6 movidos pelo “rechaço medroso da técnica” (ASSMANN, 2007, p.14). É razoável destacar, desde logo, que os ganhos na educação são maiores quando se assume uma posição mais ponderada entre as duas posturas ideológicas. O importante, em verdade, é que o uso de instrumentos tecnológicos na educação fomente a cidadania ativa e dialógica, e que isso se dê não somente “pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos” (FREIRE, 2002, p.69-70). Nesse contexto é que o diálogo7 ganha relevância. E para que ele exista não é necessária grande mudança de comportamento por parte do corpo docente, desde que este esteja apto a compreender as necessidades de seus alunos e disposto a saná-las. Assumir a posição de curioso e apaixonado pela produção do saber pode ser um primeiro grande passo. 6

Especialmente para os que se encaixam no segundo grupo, vale conferir o excelente artigo de Gérard Lebrun, presente em obra infra-referenciada. O texto é instrutivo e pode ajudar no engajamento tecnológico daqueles educadores que ainda se sentem dinossauros pós-modernos. 7 “No antidiálogo quebra-se aquela relação de ‘simpatia’ entre seus pólos, que caracteriza o diálogo. [...] o antidiálogo não comunica, faz comunicados” (FREIRE, 2002, p.116).

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E na caminhada que se propõe para a seqüência, há que se tomar a colaboração enquanto flecha-guia. Desde já, vale saber que o compartilhamento de informações pode criar comunidades, reduzir custos e maximizar as descobertas, de modo que todos os envolvidos possam, juntos, 8 desenvolver suas habilidades sociais e, por meio destas, (re) construir suas identidades (TAPSCOTT & WILLIANS, 2007, p.349). Ora, qualquer prática de ensino norteada por tais objetivos será capaz de intensificar o relacionamento entre os participantes, além de gerar e manter processos contínuos de construção do conhecimento. Também não é necessário ser um altruísta nato para colaborar. Basta lembrar que muitos dos estudantes contemporâneos cresceram à base de mensagens instantâneas, grupos de bate-papo e videogames para diversos jogadores. Ademais, o compartilhamento também é o padrão na maioria das redes sociais com que estão familiarizados, tais como o My Space, o Facebook e o Youtube.9 Em suma, a viabilidade da colaboração só “depende de que os envolvidos no projeto tenham interesse pelo assunto e acreditem que o conhecimento coletivo reunido vale mais do que cada um tem a oferecer individualmente” (SPYER, 2007, p.168). O próprio sistema de avaliação utilizado pelo professor poderá levar em conta, além do valor do desempenho individual, “a liderança, a solidariedade, a capacidade de negociação em situações de conflito, a sensibilidade diplomática”, assim como a articulação verbal para fins de mediação e a capacidade de síntese e de se fazer entender (SPYER, 2007, p.172). Outro não é o entendimento de Maria Victoria Benevides (1998, p.101-102): “a educação para a cidadania democrática [...] passa pelo aprendizado da cooperação ativa e da subordinação do interesse pessoal ou de um grupo ao interesse geral, ao bem comum”. Destarte, uma vez incorporados o espírito colaborativo e a ética da participação,

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“Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina a aprender” (FREIRE, 1996, p. 25). Afinal, “a participação do professor em condição de igualdade com qualquer outro membro do grupo é a chave para o resultado eficaz” (DELCIN, 2005, p.78). 9 Disponíveis em, respectivamente: http://www.myspace.com; http://www.facebook.com; e http://www.youtube.com. Acesso em: 20 de agosto de 2008.

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educadores e aprendentes podem assumir o ofício da produção e, sobretudo, da condução da experiência educativa.

11.3 Tecnologias de ambientes colaborativos aplicadas ao ensino jurídico: breves relatos de expriências pedagógicas Se por um lado, o ciberespaço10 condiz com um futuro preocupante e inorgânico denunciado por certos filmes de ficção científica, por outro pode refletir um universo virtual voltado para a inteligência coletiva, no qual é possível “desvendar inéditas galáxias de linguagem” e enriquecer a consciência democrática (LÉVY, 2007, p.103). Mais próximo do segundo aspecto, o termo web 2.011 foi criado, e sintetiza a “segunda geração” de aplicativos on-line – como blogs, wikis e fóruns, caracterizados pelo alto grau de interação entre os usuários. “Na verdade Web 2.0 se refere a uma relação de características que supostamente diferenciam novos sites daqueles que naufragaram com o estouro da BOLHA DA INTERNET na virada do século XX para o século XXI” (SPYER, 2007, p.28). O quadro abaixo demonstra, sumariamente, as principais distinções entre a velha e a nova rede: Web 1.0 (1995-2000)

Web 2.0 (2001-)

Enciclopédias dinâmicas e em Enciclopédias prontas e estáticas constante construção Páginas pessoais Páginas coletivas Páginas visualizadas por todos Páginas editadas por todos Criação off-line e publicação on-line Criação, edição e publicação on-line Conteúdo organizado em diretórios Conteúdo organizado em tags (taxonomia) (folksonomia*) Produtor-Consumidor Produtor-Consumidor-Produtor *A folksonomia é uma forma de classificação de conteúdo em ambientes colaborativos por parte dos usuários e com a utilização de recursos como os tags (etiquetas digitais). É contraposto, em essência, ao estilo taxonômico de classificação. Fonte: quadro construído a partir de dados expostos por Cleuton Sampaio, em obra infrarelacionada.

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Neologismo utilizado originalmente por William Gibson em 1984, no romance Neuromancien. Termo cunhado pela empresa O’Rilley Media em 2004. Mais informações em: http:// pt.wikipedia.org/wiki/Web_2.0. Acesso em: 20 de agosto de 2008.

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A principal diferença em relação à velha web está na forma como o conteúdo é produzido e, principalmente, no público que o produz. Pode soar estranho, mas é o público quem produz a informação destinada a ele mesmo. A Internet tornou-se, dentro dessa perspectiva, um mundo de natureza emergente, social e orgânica (SPYER, 2007, p.17). Aliás, os efeitos da web 2.0 também chegam a outras mídias. Programas televisivos, como o Manhattan Conection, transmitido pelo canal GNT, fomentam a participação direta do telespectador, à medida que criam áreas de interação por meio de fóruns e blogs. Já no programa de entrevistas do portal Uol,12 entrevistadores e entrevistados interagem com o telespectador por meio de um chat em tempo real. Até aqui não há algo muito inovador, mas quando se percebe que as perguntas direcionadas ao entrevistado são feitas pelos participantes do chat, não fica difícil concluir: isto é web 2.0. Quer dizer, o entrevistador apenas conduz os questionamentos feitos pelos usuários do chat ao entrevistado que, por sua vez, responde de imediato. A riqueza do método utilizado está na abertura de espaço para os maiores interessados na entrevista, ou seja, os telespectadores. Foi também nessa conjuntura que grandes empresas de e-commerce prosperaram nas últimas décadas. Nas maiores lojas virtuais os recursos de interação social são indispensáveis. Assim, quando o consumidor deseja comprar um produto, além de conferir as informações fornecidas pelo vendedor (como o preço) e as informações fornecidas pelo produtor (a descrição do produto, por exemplo), também está interessado nas avaliações de consumidores que já compraram o mesmo item. Ou seja, pessoas como ele, que olham o objeto de desejo sob a mesma óptica, imparcial e crítica.13 Já passou o tempo em que o conteúdo dos sítios de Internet era reservado à produção de webmasters e especialistas em programação. Muitas páginas da nova rede são coletivas e editadas por todos os interessados.14 A informação é organizada por quem a acessa.15 12 13

Disponível em: http://tvuol.uol.com.br. Acesso em: 20 de agosto de 2008. Ver como isso funciona nos sítios: http://www.submarino.com e o http://www.mercadolivre.com. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 14 O Igoogle – http://www.igoolge.com é dos melhores exemplos disso. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 15 “Há, de fato, uma confusão entre as antigas distinções estabelecidas entre produtores e receptores de informação” (LÉVY, 2007, p.106).

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Os mecanismos de telemática podem ser muito mais do que fazer download de arquivos e jogos eletrônicos. Podem conectar pessoas por maneiras nunca vistas antes e os impactos dessas possibilidades na educação já são percebidos. Cada vez mais, escolas e Universidades estão conectadas à Internet. Mas, imagine-se um espaço no qual ambas estão conectadas entre si: professores, estudantes, pesquisadores, organizações não-governamentais e demais interessados, reunidos em uma mesma interface de aprendizagem. Um ambiente no qual os educandos também possam produzir conhecimento e disponibilizar seus arquivos. E, o que é mais interessante, de qualquer lugar do mundo. Isso é conectividade social; é aprendizagem criativa; é um novo sentido de aprender e ensinar. Todavia, antes que o entusiasmo tome conta desse texto, vale recorrer à ponderação de Delcin (2005, p.79): “a interação com as novas tecnologias intelectuais não é uma revolução metodológica em si mesma, mas potencializa o distanciamento de um ensino tradicional e a aproximação de um ensino alternativo”. Desta forma, o que aqui deve ser destacado é o caráter emancipatório das redes digitais, porque mais amplas, mais informais e dispostas para que as pessoas sejam atores16 do seu próprio aprendizado (CANTO, 2005, p.93).17 A quantidade de ambientes colaborativos virtuais é enorme e, diariamente, outros são criados em ritmo exponencial.18 Nesse artigo, apenas cinco deles serão apresentados: o blog, o wiki, as redes sociais, o fórum de discussão e o Moodle.19

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Talvez o melhor exemplo seja o LiveMocha (http://www.livemocha.com): uma revolução no ensino compartilhado de línguas. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 17 “[...] cabe principalmente a nós, professores e alunos, sejamos reais ou virtuais, demonstrar que sem uma formação educacional que tenha como meta, como diz Weber, ‘a qualidade da posição do homem na vida’, o incomensurável volume de informações disponíveis na internet terá para nós a mesma utilidade do controle-remoto para um troglodita” (RODRIGUES, 2007, p.126). 18 Conferir uma pequena lista delas em: http://www.ensinolivre.net/tecnologias.htm. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 19 Registre-se também que a maioria deles é distribuída em regime de licença de código aberto – GNU (General Public License) open source – o que não cria a dependência por parte dos usuários em relação ao autor do software. Em outros termos, as modificações estruturais são mais flexíveis e o código pode ser acessado, alterado e compartilhado por qualquer pessoa. Mais informações em: http://creativecommons.org. Acesso em: 20 de agosto de 2008.

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11.3.1 Weblog: muito além de um diário de bordo Os weblogs – neologismo que associa web com log, registro em inglês – evoluíram a partir da publicação de diários pessoais na Internet em 1994. Mais de dez anos depois, seu poder de disseminação de informações conquistou jornalistas não contaminados pelo tradicionalismo da imprensa atual (SPYER, 2007, p.55). Ademais, o aplicativo é de fácil utilização, tanto para quem publica, quanto para quem lê e comenta.20 Muitos pesquisadores e professores já optaram por publicar suas anotações de aulas, seus resultados de pesquisas, ou ainda, suas impressões sobre a vida nesses ambientes. E não é por mera coincidência que um dos maiores weblogs da América pertence a um professor de Direito: Glenn Reynolds mantém o Instapundit.21 Professores e profissionais da área jurídica aderiram com facilidade à blogosfera, guardadas as devidas proporções, porque já desenvolveram habilidades de pesquisa e apresentação do conteúdo, o que enriquece os comentários (HEWITT, 2007, p.180). O Jurist (http://www.jurist.law.pitt.edu), por exemplo, é um famoso weblog mantido pelo professor Bernard Hibbittis da Faculdade de Direito de Pittsburg. Conta com a ajuda de 30 estudantes e funciona como uma versão on-line dos estágios, vez que tem por objetivo o atendimento gratuito à comunidade. O trabalho dos estudantes consiste em rastrear notícias e documentos de interesse jurídico e apresentá-los de maneira “objetiva e inteligível” (SPYER, 2007, p.183).22 Nos Estados Unidos da América, muitos juristas acompanham o desempenho de parlamentares. Advogados experientes produzem matérias, apresentam artigos dos indicados e discutem seus discursos públicos disponibilizados no Youtube.23 “Cada marca eletrônica deixada pelo candidato será encontrada na grande rede, organizada 20

O funcionamento do blog é simples e quem está habituado a editar textos no Microsoft Word não terá dificuldades. 21 Disponível em: http://www.instapundit.com. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 22 No mesmo sentido é a proposta do blog CaioeTicio.com (http://www.caioeticio.com/blog) que pretende aproximar interessados em Direito Penal e “a vida como ela é”. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 23 A mídia tradicional (rádio, jornal e televisão) sempre teve o poder de decisão sobre quando a notícia seria notícia. Os blogs revolucionaram esse papel da imprensa (HEWITT, 2007, p.53). Para saber como a blogosfera influenciou a última eleição estadunidense, conferir obra de Hugh Hewitt, infra-referenciada.

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nos blogs e discutida à exaustão” (HEWITT, 2007, p.135). É um bom exercício mental imaginar como isso funcionaria aqui no Brasil, tendo como palco o atual cenário político. Quem acessa blogs interessantes diariamente é um cidadão melhor, já que vive em um mundo de idéias e debates configurado em ritmo pulsante (HEWITT, 2007, p.126). Quer dizer, recebe notícias não-filtradas e passa a decidir, de forma crítica,24 o que pensa sobre o assunto. Os blogs mais modernos possuem ferramentas que fazem a diferença. Com o Feed-RSS25 é possível receber as últimas atualizações dos seus sítios preferidos, sem precisar olhar, cada um, todo dia. Já com o uso de tags, pode-se organizar o conteúdo de uma página de Internet conforme o número de acesso dos usuários, em vez de criar pastas e categorias pré-definidas para escolha. Com isso, é possível encontrar pessoas com interesses em comum, além de novos sítios relacionados ao mesmo assunto.26 Por fim, o mashup pode combinar, em um mesmo sítio, dados provenientes de fontes distintas. Imagine-se um blog sobre Direito Constitucional que receba as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e da Suprema Corte dos EUA, tudo na mesma página. Com o mashup, isso é possível. Basta escolher quais sítios serão os fornecedores e qual é a informação de interesse. Além disso, blogs podem conter podcast e videostream, que são tecnologias de, respectivamente, áudio27 e vídeo. Esses formatos podem ser muito úteis no processo de ensino-aprendizagem, na medida em que tornam a exposição do conteúdo – antes exclusivamente apresentado sob a forma escrita – mais interessante. 24

“E é precisamente a criticidade a nota fundamental da mentalidade democrática” (FREIRE, 2002, p.103). Justamente por isso que “o educador democrático não pode negar-se o dever de [...] reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão” (FREIRE, 1996, p.28-29). 25 RSS - Really Simple Syndication ou “Web syndication”. Ver mais sobre em: http://pt.wikipedia. org/wiki/Rss. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 26 Mais informações sobre tags em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tags. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 27 As Universidades de Berkeley e de Stanford, por exemplo, permitem o acesso a seus cursos sobre Educação, Arte, Política, Ciência e Tecnologia na forma de mp3 (formato de arquivos em áudio). Conferir em: http://itunes.berkeley.edu e http://itunes.stanford.edu. Acesso em: 20 de agosto de 2008.

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Em síntese, a plataforma aqui apresentada, do ponto de vista pedagógico, pode funcionar enquanto ferramenta de ampliação dos temas discutidos em sala de aula e como espaço para publicação dos resultados de pesquisas realizadas por alunos e professores, além da possibilidade de exposição de datas e eventos importantes. Vale reiterar, finalmente, que a temática jurídica tem futuro na blogosfera. Especialmente em virtude da constante promulgação de leis e decretos normativos, além da exposição – muitas vezes tecnicamente equivocada e sensacionalista – de casos polêmicos pela mídia tradicional. Esse conteúdo pode ser apresentado e comentado em blogs de especialistas e professores de Direito. Os alunos, por seu turno, podem acompanhar as notícias e leis, comentá-las e, quem sabe, publicar seus próprios textos. 11.3.2 Wiki: memória coletiva, espírito democrático e participação O uso em massa dos blogs e wikis se dá, em grande medida, pela liberdade de ação que proporcionam. O wiki, em especial, traz em si algo que muito interessa aos profissionais da área jurídica: um espaço público e deliberativo que promove a expansão da democracia. A tecnologia wiki foi disseminada na rede mundial a partir da publicação da Wikipédia,28 uma enciclopédia muito distinta das coletâneas de verbetes idealizadas por Diderot e D’Alambert. Diferentemente dos sítios tradicionais, que funcionam como uma “vitrine de informações” (SPYER, 2007, p.56), a Wikipédia é construída de forma coletiva por milhares de pessoas e quase não apresenta limitações para a inserção de novos verbetes e descrições. O texto escrito, portanto, pode ser alterado pelo estudante disposto a acrescentar mais algum dado ao ambiente,29 o que torna possível a “redação colaborativa” (SPYER, 2007, p.59).

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Acessada diariamente por cerca de 66 milhões de pessoas. Disponível em: http://www. wikipedia.org. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 29 Essa possibilidade poderia trazer problemas em termos de segurança, visto que “vândalos” da web poderiam, por diversão, apagar certo conteúdo publicado. Ocorre, todavia, que o wiki possui um histórico capaz de registrar todas as ações nele realizadas, além da indicação do número ip ou do nome do usuário correspondente. Também é possível “voltar no tempo” até o ponto em que o vandalismo não ocorreu.

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No entanto, as aplicações da ferramenta em tela não se encerram em uma enciclopédia virtual. Dentre as inúmeras possibilidades de utilização, destacam-se: código jurídico anotado – por alunos inclusive; caderno de conteúdo dinâmico; calendário de atividades; meio de ampliação das aulas para a web, com sugestões de leituras complementares acerca dos assuntos tratados em classe, além da possibilidade de colocar links de bons conteúdos; publicação de arquivos de texto, vídeo, áudio e imagem. Além disso, os participantes recebem notificações de qualquer atualização feita no wiki para que não seja preciso visitar a página todos os dias. Essas diversificadas vias de implementação também podem auxiliar o professor de Direito; afinal, em razão das reformas legislativas e da publicação de reportagens com teor jurídico, ambas veiculadas em grande quantidade e em ritmo acelerado, fica cada vez mais complexo reunir e apresentar tais conteúdos na sala de aula. Noutro giro, é possível que o estudante tenha acesso, por meio da Internet ou do estágio, a informações que, caso não fossem expostas na classe, passariam despercebidas pelo resto da turma e pelo próprio mestre. Assim sendo, a abertura para a participação do corpo discente, além de enriquecer a discussão acadêmica, poderá estimular talentos contidos e gerar meios para o desenvolvimento da autonomia intelectual. Nesta esteira e com o objetivo de construir conhecimento de forma mais ampla, surgiu a proposta de criação de um Código Penal que possa ser anotado colaborativamente.30 A idéia ganhou concretude no primeiro semestre do corrente ano e na data de elaboração desse escrito, mais de 200 alunos – de 6 turmas diferentes da Faculdade de Direito de Vitória – estão a editar um Código de forma dinâmica.31 O rol de informações adicionadas a priori foi reduzido aos dispositivos legais, porém, em poucos dias, dezenas de estudantes passaram a inserir informações provenientes de diversas fontes. A lógica da escrita hipertextual é a base do funcionamento desse ambiente. Do ponto de vista histórico, o hipertexto representa “a passa30

O Código foi publicado no seguinte endereço: http://www.meucodigo.com, domínio no qual o leitor poderá encontrar mais informações sobre a experiência. Acesso em: 20 de agosto de 2008. 31 Em 17 de setembro de 2008, a página inicial do Código conta com mais de 3.000 visitas.

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gem da linearidade da escrita para a sensibilização de espaços dinâmicos”. Do ponto de vista técnico, trata-se de um emaranhado de textos interconectados. No “interior de cada hipertexto, deparamo-nos com um conjunto de nós interligados por conexões nas quais os pontos de encontrada podem ser palavras, imagens, ícones e tramações de contatos multidimensionais (links)” (ASSMANN, 2007, p.21). Quando se cria um hipertexto a partir da expressão “motivo torpe”, por exemplo, surge uma nova página em branco, cujo título é a referida expressão. Em seguida, os alunos poderão preencher tal página com posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, bem como com artigos jornalísticos e científicos que envolvem o tema. Como o wiki possui ferramenta de busca, aquele que estiver interessado nessa gama de dados poderá encontrá-la ao alcance de um clique. A seu modo, temáticas que dão cabo a desenfreadas discussões são tratadas em área específica, disponível por meio da aba “Discussão”, que está presente em cada artigo/página criado(a) . No âmbito do Código Virtual, foi o que ocorreu nas páginas referentes ao tema “aborto criminalizado”. Nelas, foram inseridas correntes ideológicas conflitantes e estabelecidas seqüências argumentativas de natureza crítica. Como na sala de aula convencional não existia muito espaço para a exposição de idéias, os estudantes encontraram na plataforma wiki um proveitoso veículo para o debate. Apesar de o Código Penal anotado colaborativamente ser um projeto em fase experimental, alguns resultados já foram percebidos de imediato, dentre eles: permitiu o intercâmbio de saberes; ajudou a romper com a unidirecionalidade dos processos comunicativos; possibilitou a expansão da experiência pedagógica para além dos muros da sala de aula; criou os sentidos de inteligência e de memória coletivas (cada ação dos participantes fica registrada no wiki); também preparou o estudante para um mercado de trabalho emergente que já preza pela capacidade de utilização de ferramentas sociais; e, por fim, poderá servir enquanto futura fonte de pesquisas para as novas gerações. Alguns problemas também foram constatados, já que nem todos os alunos estavam habituados ao trabalho com instrumentos digitais. Entretanto, o Código Virtual não é e nem será um projeto acabado e, nesse sentido, é possível que os egressos das disciplinas de Direito Penal, com maior experiência na utilização do wiki, auxiliem os demais. 274

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Ambientes voltados à colaboração, como o wiki, evoluem, quantitativa e qualitativamente, a cada dia. Por coincidência ou mais do que isso, o ensino jurídico de Direitos Humanos, quando da utilização desses serviços, também poderá encontrar resultados positivos em constante desenvolvimento, principalmente porque o processo de formação cultural desses Direitos é o seu maior objetivo e, nessa perspectiva, está em imanente renovação (TAVARES, 2007, p.487). 11.3.3 Redes sociais, fórum de discussão e Moodle: um novo convite à interdisciplinaridade As redes sociais disponíveis no ciberespaço são, em resumo, um sistema de agrupamentos de indivíduos, baseado em núcleos temáticos ou grupos de contatos. Uma vez organizados, os assinantes (dispostos segundo perfis individuais) podem tornar públicos arquivos de texto, vídeo,32 áudio e imagens. Outro recurso interessante é o compartilhamento das coletâneas de referências bibliográficas e sítios favoritos.33 Não é muito difícil imaginar a proporção que isso toma no mundo acadêmico. Contudo, para reforçar a idéia, passe-se à exposição de alguns exemplos. O H2O (http://www.h2obeta.law.harvard.edu) é uma plataforma educativa desenvolvida pelo Berkman Center for Internet & Society e destinada à aproximação de professores, estudantes e pesquisadores. Oferece, basicamente, dois serviços: (a) compartilhamento de referências bibliográficas; e (b) organização de indivíduos em áreas de debate temático (SPYER, 2007, p.180). Pesquisadores podem publicar listas de livros utilizados e entrar em contato uns com os outros, visto que o sistema aproxima os usuários que escolheram as mesmas referências bibliográficas. Duas outras iniciativas semelhantes surgiram no MIT – Instituto Tecnológico de Massachusetts: o Think Circle (http://www.thinkcircle. 32

No tocante ao tema Direitos Humanos, vale a pena conferir a iniciativa chamada The Hub em http://hub.witness.org. Movida pelo slogan “See it, Film it, Change it”, essa plataforma promove a disponibilização coletiva de filmagens que denunciam o desrespeito aos seres humanos. Qualquer indivíduo pode publicar seus vídeos, os quais serão vistos, compartilhados e discutidos por toda a comunidade. Do mesmo modo, o projeto fomenta a participação ativa de organizações responsáveis pela proteção dos referidos Direitos. 33 Dentre os sítios que permitem esse compartilhamento estão: Delicious (http://del.icio.us), Technorati (http://technorati.com) e Digg (http://digg.com). Acesso em: 20 de agosto de 2008.

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org) e o Design That Matters (http://www.designthatmatters.org). Ambos consistem em ambientes colaborativos destinados a acadêmicos, organizações não-governamentais e empresas que têm por finalidade melhorar a qualidade de vida nos países em desenvolvimento; além de os participantes ganharem experiência ao passo que interagem com especialistas de sua área, têm a oportunidade concreta de resolver questões de interesse público (SPYER, 2007, p.182-183).34 Outra ferramenta social que aqui não poderia passar despercebida é o fórum de discussões. Esse serviço funciona como um mural35 de debate, no qual existem tópicos, subtópicos e mensagens. A forma hierárquica de organizar a informação é ideal para pessoas interessadas em discutir assuntos de interesse comum.36 Também pode ser útil para grupos de estudos mantidos por instituições geograficamente distantes que pretendam registrar discussões on-line, bem como levantar debates em horários alternativos aos limitados pela Instituição de ensino. De fato, trata-se de um espaço amplo para que o professor exerça o papel de moderador do conteúdo proposto por ele mesmo, ou por seus alunos. Finalmente, o Moodle - Modular Object Oriented Dynamic Learning Environment (http://www.moodle.org). Esse veículo revela um sistema de gestão de conteúdo educativo (LMS – Learn Management System), desenvolvido pelo australiano Martin Dougiamas em 1999; é indicado para manter on-line repositórios de pesquisa e cursos em geral.37 Os recursos disponíveis para o desenvolvimento das 34

Conferir também: Studitious (http://stu.dicio.us/): serve para o estudante publicar suas anotações de aula. Além desse conteúdo, o perfil do estudante fica disponível para acesso. O sítio faz link direto para o verbete respectivo da Wikipédia. Desta forma, além de anotar e organizar as informações, o usuário pode indicar o que ainda falta ser pesquisado. Possui sistema de busca por matéria, professor, classe ou Instituição de ensino. Library Thing (http://www.librarything.com): esse sítio mistura o poder das redes sociais com a organização de referências bibliográficas. Quer dizer, além da possibilidade de organização de bibliotecas on-line, o ambiente colaborativo aproxima usuários com preferências literárias em comum, o que pode facilitar a vida de pesquisadores (SPYER, 2007, p. 186). Acesso em: 20 de agosto de 2008. 35 “Postar uma mensagem em um fórum é, de certa forma, como escrever um e-mail, até os campos de publicação são parecidos: título, autor e texto. Mas ao invés dessa informação ser transmitida para a caixa postal de pessoas previamente definidas, a discussão do mural fica disponível à comunidade de usuários” (SPYER, 2007, p. 49). 36 Grandes jornais como CNN, New York Times, The Gardian e Le Monde utilizam fóruns para ampliar a comunicação com seus leitores. 37 Universidades como a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e a Universidade

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atividades são: publicação de documentos; avaliação do curso; chat; fórum; mensagens pessoais; diário e calendário coletivos; glossário; lições; pesquisas de opinião; questionários; tarefas; wiki, dentre outras funcionalidades. É, sem dúvida, o aplicativo mais completo dentre aqueles até aqui apresentados. Ante todo o exposto já é possível perceber que a “caixa de ferramentas sociais” encontrada na nova web proporciona condições reais e potenciais para a melhoria da práxis pedagógica. Escolher qual delas terá proveitosa aplicação ao ensino de Direito fica a critério do educador mais empenhado e criativo. A título de última exemplificação, imagine-se um grupo de estudos acerca de Direitos Humanos que envolva pesquisadores de países cuja língua-mãe é o português. As possibilidades de troca de conhecimento e experiências em um locus que englobe especialistas do Brasil, Portugal, Moçambique, Angola e Timor Leste são enormes. Uma vez instalado um fórum ou um wiki, o diálogo e a riqueza da troca de vivências podem ser os melhores condutores desse debate global.

11.4 Considerações finais O respeito pela personalidade humana é o início da sabedoria, em todas as questões sociais, mas acima de tudo em educação. (RUSSELL, 2008, p.185).

A formação de educadores e estudantes empenhados “na promoção de uma conduta fundada em princípios éticos de valorização dos direitos e deveres fundamentais da pessoa deixou de ser um assunto restrito a especialistas e profissionais da educação para se constituir em uma questão de interesse público”. (CARVALHO, 2007, p.302). Deste modo, é imprescindível oportunizar a “formação do educador em Direitos Humanos, em consonância com os valores que lhe são intrínsecos e desde uma abordagem interdisciplinar e multidimensional”. (TAVARES, 2007, p.501).

Nacional de Brasília já optaram pelo Moodle. Conferir em: http://www.moodle.pucsp.br e http://www.aprender.unb.br. Acesso em: 20 de agosto de 2008.

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No decorrer desse texto, procurou-se demonstrar em que medida as tecnologias de ambientes colaborativos podem aproximar os corpos docente e discente. E, com o escopo de tornar tal interação mais estreita, também foi afirmado que é possível construir, coletivamente, um espaço de ensino-aprendizado caracterizado pelo diálogo multilateral e pela participação. Registrou-se, em conseqüência, que os frutos colhidos com o referido processo condizem com os principais valores comuns ao ensino de Direitos Humanos. Nesse passo e diante do que foi exposto, pode-se concluir que tecnologias como o blog, o wiki e o Moodle, desde que utilizadas de forma coerente com objetivos de ensino bem delineados, permitem o estímulo ao potencial criativo de um grupo de estudantes, assim como podem fazer despertar talentos individuais ainda contidos. Também foi demonstrado que fomentar a criação de novos espaços na web não inviabiliza a dinâmica tradicional de ensino, mas, na verdade, enriquece o desempenho acadêmico e a sensibilidade de todos os envolvidos. Cabe, portanto, ao educador mais atento ao seu perfil formador e condutor do conhecimento, compreender como as tecnologias supramencionadas podem fomentar a participação democrática, solidificar a cidadania ativa e transformar, por derradeiro, a sala de aula. Por fim, ainda há tempo para um último alerta: em face do crescimento do uso das redes sociais por parte dos estudantes, a escolha que está diante das Instituições de ensino hodiernas não é se elas “interagirão e colaborarão com comunidades virtuais, mas determinar quando e como isso acontecerá”. E, “tendo em vista a velocidade com que estas comunidades se mexem, o momento para agir é agora” (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007, p.333). Sua Instituição está preparada para isso?

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12.1 Introdução

C

omo compreender os direitos sociais sob a perspectiva da concepção contemporânea de direitos humanos e do valor da dignidade humana? Em que medida merecem os direitos sociais o mesmo grau de importância conferido aos direitos civis e políticos? Qual é a principiologia aplicável aos direitos sociais? Qual é o alcance de sua proteção nas esferas global, regional e local? Quais são os principais desafios para a sua efetiva implementação? A partir de um diálogo global, regional e local, quais são as perspectivas para avançar na proteção dos direitos sociais? São estas as questões centrais a inspirar o presente estudo, que tem por objetivo maior enfocar a proteção dos direitos sociais sob

* Um especial agradecimento é feito ao Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg) pela fellowship que tornou possível este estudo. ** Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg - 2007 e 2008), procuradora do Estado de São Paulo, membro do CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e membro da SUR – Human Rights University Network.

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os prismas global, regional e local, com ênfase no valor da dignidade humana -- referência ética maior a orientar a ordem jurídica interna e internacional.

12.2 Dignidade humana, Direitos Humanos e os direitos econômicos, sociais e culturais Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquin Herrera Flores1, compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana. No mesmo sentido, Celso Lafer2, lembrando Danièle Lochak, realça que os direitos humanos não traduzem uma história linear, não compõem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida de antemão, mas a história de um combate. Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas3. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução4. Considerando a historicidade dos direitos 1

Joaquín Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência, mimeo, p.7. 2 Celso Lafer, prefácio ao livro Direitos Humanos e Justiça Internacional, Flávia Piovesan, São Paulo, ed. Saraiva, 2006, p.XXII. 3 Norberto Bobbio, Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988. 4 Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. A respeito, ver também Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, Cia das Letras, São Paulo, 1988, p.134. No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos”. (Ignacy Sachs, Desenvolvimento, Direitos Humanos e Cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. (…) O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso presente.” (Allan Rosas, So-Called Rights of the Third Generation, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e

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humanos, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. Nas palavras de Thomas Buergenthal: “O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas vio­lações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção inter­nacional de direitos humanos existisse”.5 Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Para Andrew Hurrell: “O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacional

Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 243). 5 Thomas Buergenthal, International human rights, op. cit., p. 17. Para Henkin: “Por mais de meio século, o sistema internacional tem demonstrado comprometimento com valores que transcendem os valores puramente “estatais”, notadamente os direitos humanos, e tem desen­volvido um impressionante sistema normativo de proteção desses direitos”. (International law, op. cit., p. 2). Ainda sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos, observa Celso Lafer: “Configurou-se como a pri­meira resposta jurídica da comunidade internacional ao fato de que o direito ex parte populi de todo ser humano à hospitabilidade universal só começaria a viabilizar-se se o “direito a ter direitos”, para falar com Hannah Arendt, tivesse uma tutela internacional, homologadora do ponto de vista da humanidade. Foi assim que começou efetivamente a ser delimitada a “razão de estado” e corroída a competência reservada da soberania dos governantes, em matéria de direitos humanos, encetando-se a sua vinculação aos temas da democracia e da paz”. (Prefá­cio ao livro Os direitos humanos como tema global, op. cit., p. XXVI).

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é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democracia, com base na idéia de que as relações entre governantes e governados, Estados e cidadãos, passam a ser suscetíveis de legítima preocupação da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domésticas são politicamente ordenadas”6. Neste contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana, incorporado pela Declaração Universal de 1948, constitui o norte e o lastro ético dos demais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Todos eles introjetam, no marco do positivismo internacional dos direitos humanos, a dignidade humana como um valor fundante. Sob o prisma jurídico, percebe-se que a primazia da pessoa, fundada na dignidade humana, é resposta à aguda crise sofrida pelo positivismo jurídico. Tal crise é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Estes movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro da legalidade e promoveram a barbárie em nome da lei, como leciona Luis Roberto Barroso7. Basta lembrar que os principais acusados em Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a 6

Andrew Hurrell, Power, principles and prudence: protecting human rights in a deeply divided world, In: Tim Dunne e Nicholas J. Wheeler, Human Rights in Global Politics, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p.277. 7 Luis Roberto Barroso. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. www.direitopublico.com.br

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ordens emanadas da autoridade competente. Neste mesmo sentido, ressalta-se o julgamento de Eichmann em Jerusalém, em relação ao qual Hannah Arendt desenvolve a idéia da “banalidade do mal”, ao ver em Eichmann um ser esvaziado de pensamento e incapaz de atribuir juízos éticos às suas ações. Neste contexto, ao final da 2a Guerra Mundial, emerge a grande crítica e repúdio à idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, captado pela ótica meramente formal. Intenta-se a reaproximação da ética e do Direito e, neste esforço, surge a força normativa dos princípios, especialmente, do princípio da dignidade humana. Há um reencontro com o pensamento kantiano, com as idéias de moralidade, dignidade, Direito cosmopolita e paz perpétua. Para Kant, as pessoas e, em geral, qualquer espécie racional, devem existir como um fim em si mesmo e jamais como um meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propósito. Os objetos têm, por sua vez, um valor condicional, enquanto irracionais, por isso, são chamados “coisas”, substituíveis que são por outras equivalentes. Os seres racionais, ao revés, são chamados “pessoas”, porque constituem um fim em si mesmo, têm um valor intrínseco absoluto, são insubstituíveis e únicos, não devendo ser tomados meramente como meios8. As pessoas são dotadas de dignidade, na medida em que têm um valor intrínseco. Deste modo, ressalta Kant, deve-se tratar a humanidade, na pessoa de cada ser, sempre como um fim mesmo, nunca como um meio. Adiciona Kant que a autonomia9 é a base da dignidade humana e de qualquer criatura

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A teoria moral kantiana exerceu enorme influência nos fundamentos de diversas teorias sobre direitos. A respeito, consultar Jeremy Waldron (ed.), Theories of Rights, Oxford/ New York, Oxford University Press, 1984. 9 Significativas teorias sobre direitos humanos tendem a enfatizar a importância e o valor da autonomia pessoal. Para J. Raz: “Uma pessoa autônoma é aquela que é autora de sua própria vida. Sua vida é o que ela faz dela. (...) Uma pessoa é autônoma somente se tem uma variedade de escolhas aceitáveis disponíveis para serem feitas e sua vida se torna o resultado das escolhas derivadas destas opções. Uma pessoa que nunca teve uma escolha efetiva, ou, tampouco, teve consciência dela, ou, ainda, nunca exerceu o direito de escolha de forma verdadeira, mas simplesmente se moveu perante a vida não é uma pessoa autônoma”. (J. Raz, Right-Based Moralities, In: Jeremy Waldron (ed.), Theories of Rights, Oxford/New York, Oxford University Press, 1984, p.191.). J. Raz, em crítica ao enfoque moral individualista da autonomia pessoal, acentua que: “A existência de diversas escolhas consiste, em parte, na existência de certas condições sociais. (...) O ideal da autonomia pessoal é incompatível com o individualismo moral.” (J. Raz, op. cit. p.192-193).

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racional. Lembra que a idéia de liberdade é intimamente conectada com a concepção de autonomia, por meio de um princípio universal da moralidade, que, idealmente, é o fundamento de todas as ações de seres racionais10. Para Kant, o imperativo categórico universal dispõe: “Aja apenas de forma a que a sua máxima possa converterse ao mesmo tempo em uma lei universal”11. Além de afirmar a universalidade dos direitos humanos, a Declaração Universal acolhe a idéia da indivisibilidade dos direitos humanos, a partir de uma visão integral de direitos. A garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. Para Asbjorn Eide: “The term “social rights”, sometimes called “socio-economic rights”, refers to rights whose function is to protect and to advance the enjoyment of basic human needs and to ensure the material conditions for a life in dignity. The foundations of these rights in human rights law is found in the Universal Declaration of Human Rights, Article 22: “Everyone, as a member of society, has the right to social security and is entitled to realisation, through national effort and international cooperation and in accordance with the organisation and resources of each state, of the economic, social and cultural rights indispensable for his dignity and the free development of his personality”12. 10

A respeito, ver Immanuel Kant, Allen W. Wood (ed.), Fundamental Principles of the Metaphysicas of Morals, In: Basic Writings of Kant, New York, The Modern Library, 2001, p.185-186; p. 192-193. 11 A respeito, ver Immanuel Kant, Fundamental Principles of the Metaphysicas of Morals, In: Basic Writings of Kant, Allen W. Wood ed., New York, The Modern Library, 2001, p.178. 12 Asbjorn Eide, Social Rights, In: Rhona K.M. Smith e Christien van den Anker. The essentials of Human Rights, Londres, Hodder Arnold, 2005, p.234. Para Asborn Eide: “Economic, social and cultural rights constitute three interrelated components of a more comprehensive package. The different components also have links to civil and political rights. At the core of social rights is the right to an adequate standard of living. The enjoyment of this right requires, at a minimum, that everyone shall enjoy the necessary subsistence rights - adequate food and nutrition rights, clothing, housing and necessary conditions of care. Closely related to this is the right of families to assistance (…). In order to enjoy these social rights, there is also a need to enjoy certain economic rights. These are the right to property, the right to work and

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Ao examinar a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, leciona Hector Gros Espiell: “Só o reconhecimento integral de todos estes direitos pode assegurar a existência real de cada um deles, já que sem a efetividade de gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais. Inversamente, sem a realidade dos direitos civis e políticos, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem, por sua vez, de verdadeira significação. Esta idéia da necessária integralidade, interdependência e indivisibilidade quanto ao conceito e à realidade do conteúdo dos direitos humanos, que de certa forma está implícita na Carta das Nações Unidas, se compila, se amplia e se sistematiza em 1948, na Declaração Universal de Direitos Humanos, e se reafirma definitivamente nos Pactos Universais de Direitos Humanos, aprovados pela Assembléia Geral em 1966, e em vigência desde 1976, na Proclamação de Teerã de 1968 e na Resolução da Assembléia Geral, adotada em 16 de dezembro de 1977, sobre os critérios e meios para melhorar o gozo efetivo dos direitos e das liberdades fundamentais (Resolução n. 32/130)”.13 A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de diversos instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartithe right to social security. (…) The notion of cultural rights is more complex. (…) cultural rights contain the following elements: the right to take part in cultural life, the right to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, the right to benefit from the protection of the moral and material interests resulting from any scientific, literary or artistic production of which the beneficiary is the author, and the freedom indispensable for scientific research and creative activity”. (Asborn Eide, Economic, Social and Cultural Rights as Human Rights, In: Eide, A, C. Krause and A. Rosas (eds), Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition, Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p.17-18). 13 Hector Gros Espiell, Los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema interamericano, San José, Libro Libre, 1986, p. 16-17.

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lhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos - do “mínimo ético irredutível”. Neste sentido, cabe destacar que, até agosto de 2007, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 160 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 157 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 145 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 173 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 185 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 193 Estados-partes14. Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteçåo, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na Europa, América e África. Adicionalmente, há um incipiente sistema árabe e a proposta de criação de um sistema regional asiático. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Os sistemas global e regional nåo såo dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos - garantindo os mesmos direitos - é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção, e, por isso, deve ser aplicada a norma que, no caso concreto, melhor proteja a vítima. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e a principiologia 14

A respeito, consultar Human Development Report, UNDP, New York/Oxford, Oxford University Press, 2007.

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próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos, todo ele fundado no princípio maior da dignidade humana. A concepção contemporânea de direitos humanos caracterizase pelos processos de universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos sob o prisma de sua indivisibilidade15. Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5o, afirma: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.” Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por 171 Estados, endossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando o lastro de legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração de 1948. Note-se que, enquanto consenso do “pós Guerra”, a Declaração de 1948 foi adotada por 48 Estados, com 8 abstenções. Assim, a Declaração de Viena de 1993 estende, renova e amplia o consenso sobre a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos. A Declaração de Viena afirma ainda a interdependência entre os valores dos direitos humanos, democracia e desenvolvimento. Não há direitos humanos sem democracia e nem tampouco democracia sem direitos humanos. Vale dizer, o regime mais compatível com a proteção dos direitos humanos é o regime democrático. Atualmente, 140 Estados, dos quase 200 Estados que integram a ordem internacional, realizam eleições periódicas. Contudo, apenas 82 Estados (o que representa 57% da população mundial) são considerados plenamente democráticos. Em 1985, este percentual era de 38%, compreendendo 44 Estados16. O pleno exercício dos direitos políticos pode implicar o “empoderamento” das populações mais 15

Note-se que a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias contemplam não apenas direitos civis e políticos, mas também direitos sociais, econômicos e culturais, o que vem a endossar a idéia da indivisibilidade dos direitos humanos. 16 Consultar UNDP, Human Development Report 2002: Deepening democracy in a fragmented world, New York/Oxford, Oxford University Press, 2002.

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vulneráveis, o aumento de sua capacidade de pressão, articulação e mobilização políticas. Para Amartya Sen, os direitos políticos (incluindo a liberdade de expressão e de discussão) são não apenas fundamentais para demandar respostas políticas às necessidades econômicas, mas são centrais para a própria formulação destas necessidades econômicas17. Além disso, em face da indivisibilidade dos direitos humanos, há de ser definitivamente afastada a equivocada noção de que uma classe de direitos (a dos direitos civis e políticos) merece inteiro reconhecimento e respeito, enquanto outra classe de direitos (a dos direitos sociais, econômicos e culturais), ao revés, não merece qualquer observância. Sob a ótica normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos sociais, econômicos e culturais não são direitos legais. A idéia da não-acionabilidade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade, generosidade ou compaixão. Como aludem Asbjorn Eide e Allan Rosas: “Levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério implica, ao mesmo tempo, um compromisso com a integração social, a solidariedade e a igualdade, incluindo a questão da distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e culturais incluem como preocupação central a proteção aos grupos vulneráveis. (…) As necessidades fundamentais não devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas estatais, mas devem ser definidas como direitos”. 18 A compreensão dos direitos econômicos, sociais e culturais demanda ainda que se recorra ao direito ao desenvolvimento. Para desvendar o alcance do direito ao desenvolvimento, importa realçar, como afirma Celso Lafer, que, no campo dos valores, em matéria de direitos humanos, a consequência de um sistema internacional de polaridades definidas – Leste/Oeste, Norte/Sul – foi a batalha ide17

Amartya Sen, Foreword ao livro “Pathologies of Power”, Paul Farmer, Berkeley, University of California Press, 2003. 18 Asbjorn Eide e Alla Rosas, Economic, Social and Cultural Rights: A Universal Challenge. In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p.17-18.

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ológica entre os direitos civis e políticos (herança liberal patrocinada pelos EUA) e os direitos econômicos, sociais e culturais (herança social patrocinada pela então URSS). Neste cenário surge o “empenho do Terceiro Mundo de elaborar uma identidade cultural própria, propondo direitos de identidade cultural coletiva, como o direito ao desenvolvimento”. 19 É, assim, adotada pela ONU a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, em 1986, por 146 Estados, com um voto contrário (EUA) e 8 abstenções. Para Allan Rosas: “A respeito do conteúdo do direito ao desenvolvimento, três aspectos devem ser mencionados. Em primeiro lugar, a Declaração de 1986 endossa a importância da participação. (…) Em segundo lugar, a Declaração deve ser concebida no contexto das necessidades básicas de justiça social. (…) Em terceiro lugar, a Declaração enfatiza tanto a necessidade de adoção de programas e políticas nacionais, como da cooperação internacional.”20 O artigo 2o da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, consagra que: “A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser ativa participante e beneficiária do direito ao desenvolvimento.” Adiciona o artigo 4o da Declaração que os Estados têm o dever de adotar medidas, individualmente ou coletivamente, voltadas a formular políticas de desenvolvimento internacional, com vistas a facilitar a plena realização de direitos, acrescentando que a efetiva cooperação internacional é essencial para prover aos países em desenvolvimento meios que encorajem o direito ao desenvolvimento. O direito ao desenvolvimento demanda uma globalização ética e solidária. No entender de Mohammed Bedjaqui: “Na realidade, a dimensão internacional do direito ao desenvolvimento é nada mais que o direito a uma repartição equitativa concernente ao bem estar social e econômico mundial. Reflete uma demanda crucial de nosso tempo, na medida em que os quatro quintos da população mundial não mais aceitam o fato de um quinto da população mundial 19

Celso Lafer, Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática, São Paulo, Paz e Terra, 1999. 20 Allan Rosas, The Right to Development, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 254-255.

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continuar a construir sua riqueza com base em sua pobreza.”21 As assimetrias globais revelam que a renda dos 1% mais ricos supera a renda dos 57% mais pobres na esfera mundial22. Como atenta Joseph E. Stiglitz: “The actual number of people living in poverty has actually increased by almost 100 million. This occurred at the same time that total world income increased by an average of 2.5 percent annually”.23 Para a World Health Organization: “poverty is the world’s greatest killer. Poverty wields its destructive influence at every stage of human life, from the moment of conception to the grave. It conspires with the most deadly and painful diseases to bring a wretched existence to all those who suffer from it.”24 O desenvolvimento, por sua vez, há de ser concebido como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas podem usufruir, para adotar a concepção de Amartya Sen25. Acrescente-se 21 22 23

24

25

Mohammed Bedjaqui, The Right to Development, in M. Bedjaoui ed., International Law: Achievements and Prospects, 1991, p. 1182. A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 19. Joseph E. Stiglitz, Globalization and its Discontents, New York/London, WW Norton Company, 2003, p.06. Acrescenta o autor: “Development is about transforming societies, improving the lives of the poor, enabling everyone to have a chance at success and access to health care and education.” (op.cit.p.252). Paul Farmer, Pathologies of Power, Berkeley, University of California Press, 2003, p.50. De acordo com dados do relatório “Sinais Vitais”, do Worldwatch Institute (2003), a desigualdade de renda se reflete nos indicadores de saúde: a mortalidade infantil nos países pobres é 13 vezes maior do que nos países ricos; a mortalidade materna é 150 vezes maiores nos países de menor desenvolvimento com relação aos países industrializados. A falta de água limpa e saneamento básico mata 1,7 milhão de pessoas por ano (90% crianças), ao passo que 1,6 milhão de pessoas morrem de doenças decorrentes da utilização de combustíveis fósseis para aquecimento e preparo de alimentos. O relatório ainda atenta para o fato de que a quase totalidade dos conflitos armados se concentrar no mundo em desenvolvimento, que produziu 86% de refugiados na última década. Ao conceber o desenvolvimento como liberdade, sustenta Amartya Sen: “Neste sentido, a expansão das liberdades é vista concomitantemente como 1) uma finalidade em si mesma e 2) o principal significado do desenvolvimento. Tais finalidades podem ser chamadas, respectivamente, como a função constitutiva e a função instrumental da liberdade em relação ao desenvolvimento. A função constitutiva da liberdade relaciona-se com a importância da liberdade substantiva para o engrandecimento da vida humana. As liberdades substantivas incluem as capacidades elementares, como a de evitar privações como a fome, a sub-nutrição, a mortalidade evitável, a mortalidade prematura, bem como as liberdades associadas com a educação, a participação política, a proibição da censura,… Nesta perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansão destas e de outras liberdades fundamentais. Desenvolvimento, nesta visão, é o processo de expansão das liberdades humanas.” (Amartya Sen, op. cit. p.35-36 e p.297). Sobre o direito ao desenvolvimento, ver também Karel Vasak, For Third Generation of Human Rights: The Rights fo Solidarity, International Institute of Human Rights, 1979.

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ainda que a Declaração de Viena de 1993, enfatiza ser o direito ao desenvolvimento um direito universal e inalienável, parte integral dos direitos humanos fundamentais. Reitere-se que a Declaração de Viena reconhece a relação de interdependência entre a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos. Feitas essas considerações a respeito da concepção contemporânea de direitos humanos, do valor da dignidade humana e o modo pelo qual se relacionam com os direitos econômicos, sociais e culturais, transita-se à análise da proteção internacional a estes direitos, com ênfase no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no Protocolo Adicional à Convenção Americana em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais (“Protocolo de San Salvador”).

12.3 A proteção dos direitos sociais nos sistemas global e regional Preliminarmente, faz-se necessário ressaltar que a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a concepção contemporânea de direitos humanos, foi o marco de criação do chamado “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, que é um sistema jurídico normativo de alcance internacional, com o objetivo de proteger os direitos humanos. Após a sua adoção, em 1948, instaurou-se uma larga discussão sobre qual seria a maneira mais eficaz em assegurar a observância universal dos direitos nela previstos. Prevaleceu o entendimento de que a Declaração deveria ser “juridicizada” sob a forma de tratado internacional, que fosse juridicamente obrigatório e vinculante no âmbito do Direito Internacional. Esse processo de “juridicização” da Declaração começou em 1949 e foi concluído apenas em 1966, com a elaboração de dois distintos tratados internacionais no âmbito das Nações Unidas - o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - que passavam a incorporar, com maior precisão e detalhamento, os direitos constantes da Declaração Universal, sob a forma de preceitos juridicamente obrigatórios e vinculantes.

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O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), que até 2007 contemplava a adesão de 157 Estadospartes, enuncia um extenso catálogo de direitos, que inclui o direito ao trabalho e à justa remuneração, o direito a formar e a filiar-se a sindicatos, o direito a um nível de vida adequado, o direito à moradia, o direito à educação, à previdência social, à saúde, etc. Como afirma David Trubek: “Os direitos sociais, enquanto social welfare rights implicam na visão de que o Governo tem a obrigação de garantir adequadamente tais condições para todos os indivíduos. A idéia de que o welfare é uma construção social e de que as condições de welfare são em parte uma responsabilidade governamental, repousa nos direitos enumerados pelos diversos instrumentos internacionais, em especial pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ela também expressa o que é universal neste campo, na medida em que se trata de uma idéia acolhida por quase todas as nações do mundo, ainda que exista uma grande discórdia acerca do escopo apropriado da ação e responsabilidade governamental, e da forma pela qual o social welfare pode ser alcançado em específicos sistemas econômicos e políticos.“26 Se os direitos civis e políticos devem ser assegurados de plano pelo Estado, sem escusa ou demora - têm a chamada auto-aplicabilidade -, os direitos sociais, econômicos e culturais, por sua vez, nos termos em que estão concebidos pelo Pacto, apresentam realização progressiva. Vale dizer, são direitos que estão condicionados à atuação do Estado, que deve adotar todas as medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais27, principalmente nos planos 26

David Trubek, Economic, social and cultural rights in the third world: human rights law and human needs programs. In: MERON, Theodor (Editor). Human rights in international law: legal and policy issues. Oxford: Claredon Press, 1984. p. 207. A respeito, ainda afirma David Trubek: “Eu acredito que o Direito Internacional está se orientando no sentido de criar obrigações que exijam dos Estados a adoção de programas capazes de garantir um mínimo nível de bem-estar econômico, social e cultural para todos os cidadãos do planeta, de forma a progressivamente melhorar este bem-estar.” (op.cit. p.207). Sobre o tema, consultar ainda A. Chapman and S. Russell (eds), Core Obligations: building a framework for economic, social and cultural rights, Antwerp, Intersentia, 2002 e M. Craven, The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights: a perspective on its development, Oxford, Clarendon Press, 1995. 27 “O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais consagra três previsões que podem ser interpretadas no sentido de sustentar uma obrigação por parte dos Estadospartes ricos de prover assistência aos Estados-partes pobres, não dotados de recursos para

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econômicos e técnicos, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente a completa realização desses direitos (artigo 2º, parágrafo 1º do Pacto)28. No entanto, cabe realçar que tanto os direitos sociais, como os direitos civis e políticos demandam do Estado prestações positivas e negativas, sendo equivocada e simplista a visão de que os direitos sociais só demandariam prestações positivas, enquanto que os direitos civis e políticos demandariam prestações negativas, ou a mera abstenção estatal. A título de exemplo, cabe indagar qual o custo do aparato de segurança, mediante o qual se assegura direitos civis clássicos, como os direitos à liberdade e à propriedade, ou ainda qual o custo do aparato eleitoral, que viabiliza os direitos políticos, ou, do aparato de justiça, que garante o direito ao acesso ao Judiciário. Isto é, os direitos civis e políticos não se restringem a demandar a mera omissão estatal, já que a sua implementação requer políticas públicas direcionadas, que contemplam também um custo. Sobre o custo dos direitos e a justiciabilidade dos direitos sociais, compartilha-se da visão de David Bilchitz: “Whilst a number o writers accept the legitimacy of judicial review for final decisions concerning civil and political rights, they object to it where decisions concerning social and economic rights are concerned. One of the most important objections that has been made concerning the envolvement satisfazer as obrigações decorrentes do Pacto. O artigo 2 (1) contempla a frase “individualmente ou através de assistência internacional e cooperação, especialmente econômica e técnica. A segunda é a previsão do artigo 11 (1), de acordo com a qual os Estados-partes concordam em adotar medidas apropriadas para assegurar a plena realização do direito à adequada condição de vida, reconhecendo para este efeito a importância da cooperação internacional baseada no livre consenso. Similarmente, no artigo 11 (2) os Estados-partes concordam em adotar “individualmente ou por meio de cooperação internacional medidas relevantes para assegurar o direito de estar livre da fome.” (Philip Alston e Gerard Quinn, The Nature and Scope of Staties Parties’ obligations under the ICESCR, 9 Human Rights Quartley 156, 1987, p.186, apud Henry Steiner e Philip Alston, International Human Rights in Context: Law, Politics and Morals, second edition, Oxford, Oxford University Press, 2000, p.1327). 28 A expressão “aplicação progressiva” tem sido frequentemente mal interpretada. Em seu “General Comment n.03” (1990), a respeito da natureza das obrigações estatais concernentes ao artigo 2o, parágrafo 1o, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais afirmou que, se a expressão “realização progressiva” constitui um reconhecimento do fato de que a plena realização dos direitos sociais, econômicos e culturais não pode ser alcançada em um curto período de tempo, esta expressão deve ser interpretada à luz de seu objetivo central, que é estabelecer claras obrigações aos Estados-partes, no sentido de adotarem medidas, tão rapidamente quanto possível, para a realização destes direitos. (General Comment n.3, UN doc. E/1991/23).

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of judges in decisions relating to socio-economic rights has been that it is inappropriate for judges to decide how the budget of a society is to be allocated. (…) Judges are not traditionally experts on economic policy or on the complex issues involved in determining a budget. It is clamed that they are no therefore best placed to make determinations concerning the overall allocation of resources. In response, judicial review in a number of countries has for many years involved judges making determinations on civil and political rights. The realization of many of these rights also requires massive expenditure, which has an impact on the overall distribution of resources. (…) Yet, judges have generally acquitted themselves well in interpreting and enforcing these rights, and their role in this regard has not generally met with accusations that they are unqualified for the job, despite the resource implications of their decisions. (…) The rationale for this distinction seems to lie in the fact that the critics regard socio-economic rights are in some way inferior to civil and political rights and as not warranting equal protection. (…) there is no justifiable normative basis for this contention and the same normative foundations support both types of rights”.29 Acrescenta o mesmo autor: “(…) if a society is justified in recognizing fundamental rigths, and has good reasons for granting judges review powers, then the society is justified in allowing its judges to ensure that resources are allocated in accordance with the demands of fundamental rights. (…) Judges are given the power to review such decisions as to their conformity with the set of priorities mentioned in the Constitution. Judges are thus required to evaluate the allocation of resources against an area in which they have expertise: the application of human rights standards”30. O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais apresenta uma peculiar sistemática de moni­toramento e implementação dos direitos que contempla. Essa sistemática inclui o mecanismo dos relatórios a serem encami­nhados pelos Estados-partes. Os relatórios devem consignar as medidas legislativas, administrativas e judiciais adotadas pelo Estado-parte no sentido de conferir observância aos direitos reconhecidos pelo Pacto. Devem ainda expressar os fatores e as 29

David Bilchitz, Poverty and Fundamental Rights: The Justification and Enforcement of SocioEconomic Rights, Oxford/NY, Oxford University Press, 2007, p.128-129. 30 David Bilchitz, op. cit. p. 132.

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dificuldades no processo de implementação das obrigações decorrentes do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Diversamente do Pacto dos Direitos Civis, o Pacto dos Direitos Sociais não estabelece o mecanismo de comunicação interestatal e nem tampouco, mediante Protocolo Facultativo, permite a sistemática das petições individuais. Atente-se que mediante as comunicações interestatais um Estado-parte pode alegar haver um outro Estadoparte incorrido em violação aos direitos humanos enunciados no tratado, enquanto que por meio do direito de petição, na hipótese de violação de direitos huma­nos e respeitados determinados requisitos de admissibilidade (como o esgotamento prévio dos recursos internos e a inexistência de litispendência internacional), é possível recorrer a instâncias internacionais competentes, que adotarão medidas que restaurem ou reparem os direitos então violados. O mecanismo internacional de proteção dos direitos sociais, econômicos e culturais continua a se restringir à sistemática dos relatórios. Em face da insuficiência deste mecanismo, a Declaração e o Programa de Ação de Viena de 1993 são enfáticos em reco­mendar a incorporação do direito de petição a esse Pacto, me­diante a adoção de protocolo adicional — projeto que está em fase de elaboração nas Nações Unidas. A respeito, observa Antônio Augusto Cançado Trindade que “já existe um intenso debate internacional em curso sobre como assegurar uma prote­ção internacional mais eficaz dos direitos econômicos, sociais e culturais. No plano global, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, órgão de supervisão do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, tem se pronunciado a respeito. Far-se-á uma reunião de peritos para discutir a elaboração de um anteprojeto de Protocolo Adicional àquele Pacto, a fim de dotá-lo de um sistema de peti­ções ou comunicações ou denúncias, e desse modo reduzir as disparidades de procedimentos de implementação entre os direitos civis e políticos, por um lado, e os direitos econômicos, sociais e culturais, por outro. A preocupação básica é no sentido de assegurar a justiciabilidade ou exigibilidade dos direitos eco­nômicos e sociais, ou ao menos de alguns desses direitos. Isto poderia ademais gerar uma jurisprudência em matéria de direi­tos econômicos e sociais. Esta possibilidade já está contemplada no Protocolo Adicional à Convenção Americana

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sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Cultu­rais (Protocolo de San Salvador de 1988), em relação ao direito de associação e liberdade sindical e ao direito à educação”.31 A respeito do monitoramento dos direitos sociais e seu impacto na justiciabilidade destes direitos, afirma Martin Scheinin: “The intimate relationship between the existence of a functioning system of international complaints, giving rise to an institutionalized practice of interpretation, and the development of justiciability on the domestic level, has been explained very accurately by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights: “As long as the majority of the provisions of the Convenant are not subject of any detailed jurisprudential scrutiny at the international level, it is most unlikely that they will be subject to such examination at the national level either”32. Além disso, para fortalecer a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, a Declaração de Viena também recomenda o exame de outros critérios, como a aplicação de um sistema de indicadores, para medir o progresso alcançado na realização dos direitos previstos no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Para Katarina Tomasevski: “The creation of indicators for economic and social rights provides an opportunity to extend the rule of law, and thereby international human rights obligations, to the realm of economics which has thus far remained by and large immune from demands of democratization, accountability and full application of human rights standards. Indicators can be conceptualized on the basis of international human rights treaties because these lay down obligations for governments”33. Recomenda ainda a Declaração de Viena seja empreendido um esforço harmonizado, visando a garantir o reconhecimento 31

.CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos Econômicos e Sociais, In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto (Editor). A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. San José da Costa Rica/ Brasília: Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996. p. 710-711. 32 Martin Scheinin, Economic and Social Rights as Legal Rights Eide, A, C. Krause and A. Rosas (eds), Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition, Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p.49. Ver também UN doc A/CONF.157/ PC/62/Add.5/, para. 24. 33 Katarina Tomasevski, Indicators, In: Eide, A, C. Krause and A. Rosas (eds), Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition, Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p. 531-532.

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dos direitos econômicos, sociais e culturais nos planos nacional, regional e internacional. Além do Pacto, há que se mencionar o Protocolo de San Salvador, em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, que entrou em vigor em novembro de 1999. Tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, este tratado da OEA reforça os deveres jurídicos dos Estados-partes no tocante aos direitos sociais, que devem ser aplicados progressivamente, sem recuos e retrocessos, para que se alcance sua plena efetividade. O Protocolo de San Salvador estabelece um amplo rol de direitos econômicos, sociais e culturais, compreendendo o direito ao trabalho, direitos sindicais, direito à saúde, direito à previdência social, direito à educação, direito à cultura,…. Este Protocolo acolhe (tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) a concepção de que cabe aos Estados investir o máximo dos recursos disponíveis para alcançar, progressivamente, a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. Este Protocolo permite o recurso ao direito de petição a instâncias internacionais para a defesa de dois dos direitos nele previstos – o direito à educação e o direitos sindicais.

12.4 A principiologia dos direitos sociais Extraí-se da jurisprudência internacional, fomentada especialmente pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, relevantes princípios a orientar a hermenêutica concernente aos direitos sociais. Dentre os princípios relacionados aos direitos sociais, destacam-se: a) o princípio da observância do minimum core obligation; b) o princípio da aplicação progressiva; do qual decorre o princípio da proibição do retrocesso social; c) o princípio da inversão do ônus da prova; e d) os deveres dos Estados em matéria de direitos sociais. a) princípio da observância do minimum core obligation no tocante aos direitos sociais A jurisprudência internacional, fomentada pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, tem endossado o dever dos Estados de observar um minimum core obligation no tocante aos

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direitos sociais. Como explica David Bilchitz: “The Committee found that a minimum core obligation to ensure the satisfaction of, at the very least, minimum essential levels of each of the rights is incumbent upon every State party (…) Minimum core obligations are those obligations to meet the “minimum essential levels of a right”34. O dever de observância do mínimo essencial concernente aos direitos sociais tem como fonte o princípio maior da dignidade humana, que é o princípio fundante e nuclear do Direito dos Direitos Humanos. b) princípio da aplicação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais, do qual decorre o princípio da proibição do retrocesso social O General Comment n.03 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais afirma a obrigação dos Estados de adotar medidas, por meio de ações concretas, deliberadas e focadas, de modo mais efetivo possível, voltadas à implementação dos direitos sociais. Por consequência, cabe aos Estados o dever de evitar medidas de retrocesso social. Para o Comitê: “Any retrogressive meausures would involve the “most careful consideration and would need to be fully justified by reference to the totality of the rights provided for in the Convenant in the context of the full use of the maximum available resources”. Cabe reafirmar que o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece a obrigação dos Estados em reconhecer e progressivamente implementar os direitos nele enunciados, utilizando o máximo dos recursos disponíveis. Da aplicação progressiva dos econômicos, sociais e culturais resulta a cláusula de proibição do retrocesso social em matéria de direitos sociais. Para J.J. Gomes Canotilho: “O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e 34

David Bilchitz, Poverty and Fundamental Rights: The Justification and Enforcement of SocioEconomic Rights, Oxford/NY, Oxford University Press, 2007, p.185.

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simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado”35. Ainda no General Comment n.03, como destaca David Bilchitz: “The UN Committee has provided various categorizations of the obligations imposed by socio-economic rights on state parties. In General Comment 3, it recognized the distinction between obligations of conduct and obligations of result. Obligations of conduct require the taking of action “reasonably calculated to realise the enjoyment of a particular right”. Obligations of result require “states to achieve specific targets to satisfy a detailed substantive standard. (…) socio-economic rights typically impose both obligations of conduct and obligations of result”.36 Note-se que há medidas de aplicação imediata concernente aos direitos sociais, como é o caso da cláusula da proibição da discriminação. Como realçam os princípios de Limburg: “Some obligations under the Covenant require immediate implementation in full by the State parties, such as the prohibition of discrimination in article 2(2) of the Covenant. (…) Although the full realization of the rights recognized in the Convenant is to be attained progressively, the application of some rights can be made justiciable immediately while other rights can become justiciable over time”.37 c) princípio da inversão do ônus da prova Nos termos do artigo 2 (1) do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os Estados têm a obrigação de ado35

José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Livraria Almedina, Coimbra, 1998. 36 David Bilchitz, Poverty and Fundamental Rights: The Justification and Enforcement of SocioEconomic Rights, Oxford/NY, Oxford University Press, 2007, p.183-184. 37 The Limburg Principles on the implementation of the International Convenant on Economic, Social and Cultural Rights, paragraph 22 (UN doc.E/CN.4/1987/17). Como observa Asborn Eide: “State obligations for economic and social rights were elaborated by a group of experts, convened by the International Commission of Jurists, in Limburg (the Netherlands) in June 1986. The outcome of the meeting is the so-called Limburg Principles, which is the best guide available to state obligations under de CESCR. (…) A decade later, experts on economic, social and cultural rights met in Maastricht to adopt a set of guidelines on violations of human rights (The Maastricht Guidelines on Violations of Economic, Social and Cultural Rights).” (Asborn Eide, Economic, Social and Cultural Rights as Human Rights, In: Eide, A, C. Krause and A. Rosas (eds), Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition, Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p.25)

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tar todas as medidas necessárias, utilizando o máximo de recursos disponível, para a realização dos direitos sociais. É com base neste dever que emerge o princípio da inversão do ônus da prova. Como leciona Asborn Eide: “A state claiming that it is unable to carry out its obligation for reasons beyond its control therefore has the burden of proving that this is the case and that is has unsuccessfully sought to obtain international support to ensure the availability and accessibility to the right”38. d) deveres dos Estados O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu General Comment n.12, realça as obrigações do Estado no campo dos direitos econômicos, sociais e culturais: respeitar, proteger e implementar. Quanto à obrigação de respeitar, obsta ao Estado que viole tais direitos. No que tange à obrigação de proteger, cabe ao Estado evitar e impedir que terceiros (atores não-estatais) violem estes direitos. Finalmente, a obrigação de implementar demanda do Estado a adoção de medidas voltadas à realização destes direitos39. Na visão de Katarina Tomasevski: “The obligations to respect, protect and fulfill each contain elements of obligation of conduct and obligation of result. The obligation of conduct requires action reasonably calculated to realize the enjoyment of a particular right. The obligation of result requires States to achieve specific targets to satisfy a detailed substantive standard. (…) The obligation to protect includes the State’s responsibility to ensure that private entities or individuals, including transnational corporations over which they exercise jurisdiction, do not deprive individuals of their economic, social and cultural rights. States are responsible for violations of economic, social and

38

Asborn Eide, Economic, Social and Cultural Rights as Human Rights, In: Eide, A, C. Krause and A. Rosas (eds), Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition, Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p.27 39 Observe-se que: “In some of the general comments, the committee has split the obligation to fulfil into two parts: in obligation to facilitate and an obligation to provide.” (David Bilchitz, Poverty and Fundamental Rights: The Justification and Enforcement of Socio-Economic Rights, Oxford/NY, Oxford University Press, 2007, p.184).

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cultural rights that result from their failure to exercise due diligence in controlling the behaviour of such non-state actors.”40 Além destes princípios atinentes especificamente aos direitos sociais, observa-se que os direitos humanos, concebidos em sua integralidade, demandam uma lógica e principiologia próprias a orientar a interpretação destes direitos no âmbito global, regional e local. Quanto à hermenêutica dos direitos humanos, compreendendo os direitos econômicos, sociais e culturais, quatro princípios gerais merecem realce por sua relevância. O primeiro deles é o princípio da interpretação teleológica, que traduz a busca de realizar os objetivos e propósitos consagrados nos comandos constitucionais e internacionais afetos à proteção destes direitos. Como estabelece o artigo 31 da Convenção de Viena: “Um tratado deve ser interpretado de boa fé, de acordo com o significado a ser dado aos seus termos, à luz de seu contexto e considerando seus objetivos e propósito”41. Isto é, faz-se necessário obter a interpretação mais apropriada com o fim de implementar os objetivos e alcançar os propósitos dos parâmetros constitucionais e internacionais vocacionados à proteção de direitos, a partir de uma lógica material, afastando leituras interpretativas que restrinjam o alcance das obrigações assumidas pelos Estados no tocante à realização dos direitos sociais. A busca da interpretação teleológica deve pautar-se pelo princípio da dignidade humana, na medida em que os direitos humanos inspiramse na afirmação da dignidade e na prevenção do sofrimento humano. Isto é, a leitura interpretativa de preceitos enunciadores de direitos há de ser desenvolvida de forma a permitir a defesa e a promoção da dignidade humana, bem como a prevenção ao sofrimento. O princípio da interpretação efetiva assume também especial importância, endossando a importância de conferir às previsões concernentes aos direitos sociais a maior efetividade possível. Neste sentido, destaque-se o princípio da “interpretação ótima” da Constituição. Cabe ao intérprete maximizar e potencializar o alcance das 40

Katarina Tomasevski, Indicators, In: Eide, A, C. Krause and A. Rosas (eds), Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition, Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p.729 e 732. 41 Ver Clare Ovey e Robin White, European Convention on Human Rights, 3th ed., Oxford, Oxford University Press, 2002, p.27.

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normas veiculadoras de direitos humanos, evitando interpretações restritivas e reduzidas afetas a estes direitos. Outro relevante princípio é o atinente à interpretação dinâmica e evolutiva dos dispositivos pertinentes aos direitos sociais. É tarefa do intérprete considerar as mudanças ocorridas nos planos social e político para a adequada interpretação dos direitos previstos nos planos constitucional e internacional. O alcance e o significado dos direitos não podem restar confinados e estagnados às concepções do momento em que foram elaborados os instrumentos normativos, devendo ser estes concebidos como living instrument, a ser interpretado à luz das condições dos dias presentes. Cabe aos intérpretes proteger e salvaguardar os direitos sociais, desenvolvendo o alcance e o sentido destes direitos à luz do contexto e dos valores contemporâneos. Aos intérpretes cabe o desafio de “vitalizar” os instrumentos protetivos e não “fossilizá-los”, deixando-os reféns do passado. Os parâmetros internacionais e constitucionais não podem ser considerados estáticos, mas devem refletir as transformações sociais. A interpretação evolutiva demanda sejam consideradas realidades e atitudes contemporâneas e não a situação existente ao tempo em que os textos foram elaborados. O princípio da proporcionalidade é também recorrente na interpretação dos direitos humanos. A respeito, merece menção jurisprudência da Corte Européia no caso Soering v. UK (1989): “inerente a toda Convenção é a busca por um justo equilíbrio entre as demandas do interesse geral da comunidade e as demandas de proteção de direitos fundamentais individuais. O alcance deste balanço requer necessariamente uma perspectiva baseada em considerações de proporcionalidade. Este princípio é ainda mais relevante em áreas nas quais a Convenção expressamente permite restrições de direitos”42. O princípio da proporcionalidade pressupõe três dimensões: a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito (evitando qualquer excesso na restrição de direitos).

42

David Harris, Michael O’Boyle e Chris Warbrick. Law of the European Convention on Human Rights, London, Dublin, Edinburgh, Butterwoths, 1995, p.11-12. Para uma análise de casos decididos pela Corte Européia envolvendo restrições de direitos com fundamento no argumento da razão de Estado, ver Mireille Delmas-Marty (editor), The European Convention for the Protection of Human Rights: International Protection versus National Restrictions, Dordrecht, Boston, London, Martinus Nijhoff Publishers, 1992.

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Enfatize-se que estes quatro princípios de alcance geral, que orientam a hermenêutica própria dos direitos humanos, aplicamse aos direitos sociais, somando-se aos princípios específicos já enfocados. Por fim, à luz deste contexto, transita-se à reflexão da proteção dos direitos sociais na experiência brasileira.

12.5 Proteção dos direitos sociais na Constituição Brasileira de 1988 A Constituição Brasileira de 1988 simboliza o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país. O texto constitucional demarca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático “pós ditadura”. Após vinte e um anos de regime autoritário, objetiva a Constituição resgatar o Estado de Direito, a separação dos poderes, a Federação, a Democracia e os direitos fundamentais, à luz do princípio da dignidade humana. O valor da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1o, III da Constituição), impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação do sistema constitucional. Introduz a Carta de 1988 um avanço extraordinário na consolidação dos direitos e garantias fundamentais, situando-se como o documento mais avançado, abrangente e pormenorizado sobre a matéria, na história constitucional do país. É a primeira Constituição brasileira a iniciar com capítulos dedicados aos direitos e garantias, para, então, tratar do Estado, de sua organização e do exercício dos poderes. Ineditamente, os direitos e garantias individuais são elevados a cláusulas pétreas, passando a compor o núcleo material intangível da Constituição (artigo 60, parágrafo 4o). Há a previsão de novos direitos e garantias constitucionais, bem como o reconhecimento da titularidade coletiva de direitos, com alusão à legitimidade de sindicatos, associações e entidades de classe para a defesa de direitos. De todas as Constituições brasileiras, foi a Carta de 1988 a que mais assegurou a participação popular em seu processo de ela-

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boração, a partir do recebimento de elevado número de emendas populares. É, assim, a Constituição que apresenta o maior grau de legitimidade popular. A Constituição de 1988 acolhe a idéia da universalidade dos direitos humanos, na medida em que consagra o valor da dignidade humana, como princípio fundamental do constitucionalismo inaugurado em 1988. O texto constitucional ainda realça que os direitos humanos são tema de legítimo interesse da comunidade internacional, ao ineditamente prever, dentre os princípios a reger o Brasil nas relações internacionais, o princípio da prevalência dos direitos humanos. Trata-se, ademais, da primeira Constituição Brasileira a incluir os direitos internacionais no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos. Quanto à indivisibilidade dos direitos humanos, há que se enfatizar que a Carta de 1988 é a primeira Constituição que integra ao elenco dos direitos fundamentais, os direitos sociais e econômicos, que nas Cartas anteriores restavam pulverizados no capítulo pertinente à ordem econômica e social. Observe-se que, no Direito brasileiro, desde 1934, as Constituições passaram a incorporar os direitos sociais e econômicos. Contudo, a Constituição de 1988 é a primeira a afirmar que os direitos sociais são direitos fundamentais, tendo aplicabilidade imediata. Nesse passo, a Constituição de 1988, além de estabelecer no artigo 6º que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, ainda apresenta uma ordem social com um amplo universo de normas que enunciam programas, tarefas, diretrizes e fins a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade. A título de exemplo, destacam-se dispositivos constitucionais constantes da ordem social, que fixam, como direitos de todos e deveres do Estado, a saúde (artigo 196), a educação (artigo 205), as práticas desportivas (artigo 217), dentre outros. Nos termos do artigo 196, a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal igualitário às

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ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação43. No campo da educação, a Constituição determina que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, acrescentando que o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. Para os direitos sociais à saúde e à educação, a Constituição disciplina uma dotação orçamentária específica44, adicionando a possibilidade de intervenção federal nos Estados em que não houver a observância da aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (artigo 34, VII, e). A ordem constitucional de 1988 acabou por alargar as tarefas do Estado, incorporando fins econômico-sociais positivamente vinculantes das instâncias de regulação jurídica. A política deixa de ser concebida como um domínio juridicamente livre e constitucionalmente desvinculado. Os domínios da política passam a sofrer limites, mas também imposições, por meio de um projeto material vinculativo. Surge verdadeira configuração normativa da atividade política. Como afirma J.J.Gomes Canotilho: “A Constituição tem sempre como tarefa a realidade: juridificar constitucionalmente esta tarefa ou abandonála à política, é o grande desafio. Todas as Constituições pretendem, implícita ou explicitamente, conformar o político.”45

43

A respeito, observa Varun Gauri: “A review conducted for this paper assessed constitutional rights to education and health care in 187 countries. Of the 165 countries with available written constitutions, 116 made reference to a right to education and 73 to a right to health care. Ninety-five, moreover, stipulated free education and 29 free health care for at least some population subgroups and services. Brazil offers a compelling example of the force of human rights language. The Brazilian Constitution of 1988 guarantees each citizen the right to free health care. Although the constitutional guarantee has not eliminated shortages and inequalities in the sector, that provision had real “bite” in 1996, when a national law initiated a program of universal access to highly active anti-retroviral therapy (HAART) for Aids patients, free of charge.” (Varun Gauri, Social Rights and Economics: Claims to Health Care and Education in Developing Countries, World Development, vol.32, n.3, 2004, p.465). 44 Quanto ao direito à educação, dispõe o artigo 212 da Constituição: “A União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e no desenvolvimento do ensino”. Quanto ao direito à saúde, os recursos orçamentários serão dispostos em conformidade com os critérios estabelecidos no artigo 198 da Constituição. 45 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Livraria Almedina, Coimbra, 1998.

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Cabe ainda mencionar que a Carta de 1988, no intuito de proteger maximamente os direitos fundamentais, consagra dentre as cláusulas pétreas, a cláusula “direitos e garantias individuais”. Considerando a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, a cláusula de proibição do retrocesso social46, o valor da dignidade humana e demais princípios fundamentais da Carta de 1988, conclui-se que esta cláusula alcança os direitos sociais. Para Paulo Bonavides: “os direitos sociais não são apenas justiciáveis, mas são providos, no ordenamento constitucional da garantia da suprema rigidez do parágrafo 4o do art.60.”47 São, portanto, direitos intangíveis, direitos irredutíveis, de forma que tanto a lei ordinária, como a emenda à Constituição que afetarem, abolirem ou suprimirem os direitos sociais, padecerão do vício de inconstitucionalidade. Desde o processo de democratização do país e em particular a partir da Constituição Federal de 1988, os mais importantes tratados internacionais de proteção dos direitos humanos foram ratificados pelo Brasil48, destacando-se, no âmbito dos direitos sociais e econômicos, a ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 1992 e do Protocolo de San Salvador em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, em 1996. 46

A respeito da necessária aplicação progressiva dos direitos sociais e econômicos e da consequente cláusula da proibição do retrocesso social, ver artigo 2o , parágrafo 1o do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, bem como o General Comment n.03 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (General Comment n.3, UN doc. E/1991/23). 47 Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, Ed. Malheiros, São Paulo, 2000. 48 Dentre eles, destacam-se: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos Ci­vis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradi­ car a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995; h) o Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte, em 13 de agosto de 1996; i) o Protocolo à Convenção Americana em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), em 21 de agosto de 1996; j) o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, em 20 de junho de 2002; k) o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, em 28 de junho de 2002; e l) os dois Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da Criança, referentes ao envolvimento de crianças em conflitos armados e à venda de crianças e prostituição e pornografia infantis, em 24 de janeiro de 2004. A estes avanços, soma-se o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em dezembro de 1998.

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Além dos significativos avanços decorrentes da incorporação, pelo Estado Brasileiro, da normatividade internacional de proteção dos direitos humanos, o pós-1988 apresenta a mais vasta produção normativa de direitos humanos de toda a história legislativa brasileira. A maior parte das normas de proteção aos direitos humanos foi elaborada após a Constituição de 1988, em sua decorrência e sob a sua inspiração. A Constituição Federal de 1988 celebra, deste modo, a reinvenção do marco jurídico normativo brasileiro no campo da proteção dos direitos humanos, em especial dos direitos sociais e econômicos.

12.6 conclusão Ao enfocar a proteção dos direitos sociais nos planos global, regional e local, este estudo permitiu avaliar o processo de construção dos direitos humanos, culminando na concepção contemporânea destes direitos, que afirma a visão integral a compor direitos civis e políticos e direitos sociais, econômicos e culturais, tendo como fundamento ético o valor da dignidade humana. Sob esta perspectiva integral, identificam-se dois impactos: a) a interrelação e interdependência das diversas categorias de direitos humanos; e b) a paridade em grau de relevância de direitos sociais e de direitos civis e políticos. Aplica-se, pois, aos direitos sociais o regime jurídico dos direitos humanos, com sua lógica e principiologia próprias. A adequada hermenêutica dos direitos sociais requer princípios específicos atinentes a estes direitos e princípios gerais aplicáveis aos direitos humanos. Dentre os princípios relacionados aos direitos sociais, destacam-se: a) o princípio da observância do minimum core obligation; b) o princípio da aplicação progressiva; do qual decorre o princípio da proibição do retrocesso social; c) o princípio da inversão do ônus da prova; e d) os deveres dos Estados em matéria de direitos sociais. A esta principiologia específica conjuga-se a principiologia geral afeta aos direitos humanos, a contemplar os princípios da interpretação teleológica, efetiva, dinâmica e evolutiva, bem como o princípio da proporcionalidade.

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No que se refere ao aparato protetivo dos direitos sociais, destacam-se, no plano global, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e, no plano regional, o Protocolo de San Salvador. Ambos enfrentam o desafio de assegurar uma maior e mais efetiva garantia aos direitos sociais, no marco de sua justiciabilidade. Reitere-se que o Pacto apenas estabelece o sistema de relatórios, enquanto que o Protocolo somente prevê o sistema de petição para os direitos à educação e à liberdade sindical. A fragilidade e a debilidade destes mecanismos de monitoramento impactam desfavoravelmente a justiciabilidade dos direitos sociais no âmbito interno. Neste contexto, é fundamental endossar que os direitos sociais são exigíveis, acionáveis e justiciáveis, demandando um instrumento adequado e efetivo para a sua proteção. Também essencial é avançar no princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais que, em momento algum, pode significar não aplicação, extraindo-se maximamente seus efeitos. Em direção similar, no âmbito interno, há que se afastar a equivocada idéia de normas sociais programáticas destituídas de qualquer eficácia. Há que se fortalecer a perspectiva integral dos direitos humanos, que tem nos direitos sociais uma dimensão vital e inalienável, aprimorando os mecanismos de sua proteção e justiciabilidade, dignificando, assim, a racionalidade emancipatória dos direitos sociais como direitos humanos, nacional e internacionalmente garantidos.

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13 Por uma jurisdição constitucionalmente adequada ao paradigma do estado democrático de direito – reflexões acerca da legitimidade das decisões judicias e da efetivação dos direitos e garantias fundamentais

Alexandre de Castro Coura*

13.1 Introdução

O

núcleo temático de Hermenêutica e Jurisdição Constitucional da Faculdade de Direito de Vitória é atividade de pesquisa que integra alunos da graduação e do mestrado, sob a coordenação de dois Professores do Programa. O contato entre alunos, com vivências e objetivos distintos, viabiliza uma produtiva interlocução entre os participantes e gera interessantes questões para análise e discussão acadêmica. Como exemplo, um aluno da graduação me procurou, no intervalo de uma aula, para conhecer o projeto de pesquisa do núcleo, a fim de entender a proposta de trabalho e se decidir sobre o seu ingresso no grupo. Ao contrário dos demais, ele informou que preferia decidir definitivamente a questão antes mesmo de assistir a qualquer reunião.

* Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Programa de Mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Promotor de Justiça (MP-ES).

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Durante a conversa, o aluno demonstrou hesitação em ingressar no núcleo de pesquisa e, após alguns minutos de conversa, esclareceu o motivo. Segundo ele afirmou, desejava se aprimorar em “processo” e não entendia como poderia extrair algum proveito prático de um aprofundamento em Interpretação Constitucional para tal fim. Como uma espécie de resposta a tal questionamento, o presente artigo foi elaborado. Nesse sentido, interpretação constitucional, jurisdição e processo foram correlacionados, sob a ótica contemporânea do Direito Constitucional e da Filosofia do Direito. Dessa forma, será possível perceber em que sentido a interpretação de qualquer norma de direito processual é sempre fruto de uma Interpretação Constitucional, ao menos no paradigma do Estado Democrático de Direito.

13.2 Desafios para jurisdição no estado democrático de direito: direito versus justiça, um falso dilema em face da noção de interpretação constitucional O significado de Constituição e a garantia dos direitos fundamentais dependem do processo hermenêutico que atribui sentido aos textos normativos em cada contexto de aplicação, à luz do paradigma sob o qual se constrói a jurisdição constitucional. Como o controle de constitucionalidade é incumbência funcional de todos os juízes e tribunais no Brasil, o que inclui não apenas negar aplicação às normas inconstitucionais, como também interpretar conforme a Constituição, promovendo ativamente a efetivação dos direitos e garantias fundamentais a cada decisão, toda jurisdição é jurisdição constitucional.1 Portanto, nessa seara, tudo é uma questão de interpretação, mas não de qualquer interpretação. 2 A interpretação será válida se realizada de acordo com a Constituição, aferição que exige uma reflexão acerca dos paradigmas subjacentes à própria decisão jurisdicional,

1

Como ressalta CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 206-207. 2 Conferir CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sobre o paradigma do Estado Democrático de Direito. In Revista de Direito Comparado, vol. 03. Belo Horizonte: Mandamentos: 2000.

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ou seja, das pré-compreensões do intérprete acerca do seu sentido de Constituição. Afinal, um texto jurídico é interpretado segundo a antecipação de sentido que o intérprete tem da própria Constituição, e não de forma supostamente neutra ou isolada. 3 Com efeito, a Constituição filtra a interpretação do conjunto de regras e princípios que integram o ordenamento jurídico, ao mesmo tempo em que a aplicação do ordenamento, constitucionalmente interpretado, densifica e efetiva a própria Constituição.4 Nesse sentido, forma-se um sistema de proteção aos direitos fundamentais, que parte da Constituição e se estende a todo o ordenamento jurídico, a partir da interpretação constitucional, não mais restrita ao texto da Constituição. Enfim, assim como toda jurisdição é jurisdição constitucional, toda interpretação só deve ser considerada válida se for uma interpretação constitucionalmente adequada, isto é, uma Interpretação Constitucional. Todavia, em muitos casos, os problemas atribuídos às respostas proferidas pelos juízes e tribunais na tarefa de julgar decorrem dos pressupostos tendenciosos que conformam e informam inclusive a questão que se apresenta. Como exemplo, destaca-se o seguinte dilema: entre o direito e a justiça, o que deve ser privilegiado no momento de julgar? Segundo pesquisa do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp), a “politização do Judiciário”, no sentido de descomprometimento dos juízes com o direito vigente, em prol de alcançarem, cada qual por meio das sentenças que profere, o que lhes pareça “o socialmente justo”, tem aumentado consideravelmente nos últimos anos. Tal discussão, que atrai cada vez mais a atenção da opinião pública, foi tratada no artigo “Sentenças Políticas”, publicado pela Revista Época5, que divulgou os seguintes dados da pesquisa: 3

Nesse sentido: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 22; CATTONI E OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito: um ensaio da teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In Jurisdição e Hermenêutica Constitucional (Org.: Marcelo Cattoni). Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 51. 4 Para conhecer o sentido originalmente atribuído à expressão filtragem constitucional, conferir SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional: contribuindo para uma dogmática jurídica emancipatória. 1. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. 5 Revista Época nº 272, de 4 de agosto de 2003, p. 42.

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“Questionados se suas decisões são baseadas mais na visão política pessoal que numa interpretação rigorosa da lei, 50,9% dos juízes pesquisados responderam que isso ocorria ocasionalmente, 20,2% disseram que era freqüente e 3,9% que era muito freqüente, quase que uma norma. Já em 1995 a professora Maria Tereza Sadek, ouvindo 570 juízes, constatara que 38% deles acreditavam que ‘o compromisso com a justiça social deve preponderar sobre a estrita aplicação da lei’. De lá para cá esse entendimento só se fez aumentar. À questão se ‘o juiz tem um papel social a cumprir e a busca da Justiça social justifica decisões que violem os contratos’, em contraponto à interpretação de que ‘os contratos devem ser respeitados independentemente de suas repercussões sociais’, 73,1% dos magistrados consultados pelo Idesp cravaram a primeira opção” (grifos não constam no original).

Se, por um lado, o resultado da pesquisa indica um aumento da preocupação dos juízes e tribunais para com as “questões de justiça”, por outro, evidencia a idéia de que o Direito vigente pode configurar empecilho à solução de tais questões. Analisando a preocupação social com a “questão da fidelidade” dos juízes às normas da comunidade, bem como se a decisão é uma criação ou apenas a descoberta de um direito já posto, Ronald Dworkin concluiu que a maior parte da população, na Inglaterra e nos Estados Unidos, entende que cabe ao juiz aplicar a lei e não tentar aperfeiçoá-la.6 Entretanto, tal discussão, adverte Dworkin, se o juiz deve ou não ser fiel ao direito, depende, antes de tudo, de uma questão geralmente camuflada na análise do problema, mas indispensável para a resolução 6

Conferir: DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999; DWORKIN, Ronald M. The model of rules. In Law, Reason and Justice, Essays in Legal Philosophy. New York: New York University Press, 1969; DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Havard Uniresity, 1986; DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Traduzido do original em inglês por Marta Guastavino. Barcelona: Editorial Ariel, 1984 (1 ed) y 1995 (2ª reimpressão).

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do dilema apresentado e para definição dos limites e possibilidades do Judiciário em prol da busca pela Justiça: o que é o direito? Ao apresentar a tese do “Direito como Integridade”, Dworkin utiliza a indeterminação dos princípios jurídicos, não mais vista como um problema, para compatibilizar o direito vigente e as questões de justiça. Segurança jurídica e justiça são conciliadas pela abertura hermenêutica do processo de interpretação do direito ao contexto de aplicação normativa, demonstrando que a questão apresentada anteriormente constitui um falso dilema. Dessa forma, juízes e tribunais, conscientes da indeterminação estrutural do Direito, podem assumir o compromisso de preservar e conciliar dois pilares no processo decisório, quais sejam: a observância do direito vigente e a busca pela justiça da decisão. A solução proposta parte da reconstrução do próprio dilema e da pergunta que o traduz, na medida em que uma concepção mais sofisticada de direito é apresentada como condição para a afirmação da legitimidade da decisão judicial e, portanto, para a efetivação do ideal de justiça, sem descumprimento do ordenamento jurídico. Em outros termos, são redefinidas e compatibilizadas a noção de segurança jurídica (que requer decisões consistentemente tomadas, não apenas em relação ao tratamento anterior de casos análogos, mas também de acordo com o quadro da ordem jurídica vigente) e a pretensão de legitimidade e justiça da decisão (o que requer, de forma complementar à observância do Direito vigente, decisões racionalmente fundadas nos elementos do caso concreto, de forma que os co-associados possam considerá-las decisões racionais).7 Com efeito, no que se refere à nova postura do Judiciário, em que se busca a realização de justiça, considerar o contexto e os fatos que integram a situação de aplicação normativa, nada mais correto. Contudo, a pretendida justiça igualmente depende de que tais decisões sejam tomadas de acordo com o sistema jurídico vigente, concebido de forma mais aberta, e não apenas como um sistema fechado de regras. 8 7

HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Trad. William Rehg. Cambrigde: The MIT Press, 1996, p. 198-199. 8 Cf. GOTTLIEB, Stephen E. Morality Imposed – The Rehnquist Court and Liberty in America.

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Nesse passo, o reconhecimento de que há paradigmas jurídicos que informam e conformam a prática jurídica revela a existência de uma disputa não só teórico-jurídica, mas também política, sobre qual dentre eles constituirá a compreensão do direito no exercício da tarefa de julgar.9 Em razão disso, a redefinição dos limites e possibilidades do Judiciário em face de um direito cuja indeterminação estrutural torna-se amplamente reconhecida (como sistema aberto de regras e princípios) é um processo cujos riscos devem ser democraticamente discutidos e enfrentados. Para tanto, o desenvolvimento de uma argumentação jurídica racional e constitucionalmente adequada na fundamentação da decisão torna-se condição de legitimidade para a tutela jurisdicional. 10 Nesse contexto, não mais se sustenta a frágil presunção de que as decisões judiciais sejam sempre adequadas ao atual paradigma constitucional, mesmo que proferidas pelos tribunais superiores. Independentemente do órgão de origem, deve ser observado o modo como as decisões judiciais são tomadas, num constante processo de reflexão acerca das pré-compreensões que as informam e conformam. Como a garantia dos direitos fundamentais não pode ser simplesmente depositada nas expectativas de virtude do juiz e de idoneidade moral e qualidade técnica de um tribunal, ganham relevo as razões que fundamentam a decisão judicial e as garantias processuais atribuídas às partes, como o contraditório, a ampla

New York and London: New York University Press, 2000. Prefácio, p. IX e seguintes. Ao tratar da jurisdição constitucional norte-americana, Gottlieb analisa se a Suprema Corte dos EUA tem realmente fundado suas decisões no Direito e nos fatos que integram a situação de aplicação (“we like to think of judges and justices as deciding cases on the facts and the law”). 9 Nesse sentido, ver: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação e garantia processual jurisdicional dos direitos fundamentais. In Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 88. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte – MG, Dezembro de 2003, p. 124. 10 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica – a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Traduzido por Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 25 e 34. Segundo Alexy: “a questão do que seja argumentação racional ou argumentação jurídica racional não é, portanto, um problema que deva interessar somente aos teóricos ou aos filósofos do Direito. Esse problema é colocado com a mesma urgência para o jurista prático, e interessa ao cidadão que participa da coisa pública. Que seja possível uma argumentação jurídica racional depende não só o caráter científico da Jurisprudência, como também a legitimidade das decisão judiciais.”

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defesa e o devido processo legal, para a efetivação de um controle social também em face da jurisdição. A idéia de respeito ao sistema jurídico-constitucional, vista agora como meio para a realização da justiça, reflete-se também no processo e requer a preservação de condições de participação discursiva dos cidadãos na formação da decisão, por meio da institucionalização de procedimentos que, em última análise, permitam conceber a decisão como uma (auto) imposição da sociedade. 11 Diferentemente da prática atualmente consolidada, juízes e tribunais devem levar em consideração os argumentos levantados pelas partes e seus advogados, especialmente no caso de refutação, exigência que se garante pela análise e controle da fundamentação de cada decisão. 12 Trata-se de decorrência do direito dos afetados de 11

Conferir: HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms, op. cit., p. 287 e seguintes; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito: um ensaio da teoria da interpretação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In Jurisdição e Hermenêutica Constitucional (Org.: Marcelo Cattoni). Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 48. 12 Todavia, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA tem afirmado (conforme pesquisa jurisprudencial de Felipe Cola, discente do Programa de Mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória): “Quanto à apreciação de violação dos artigos 5º, caput, e incisos LXXVIII, XXXV, 3º, III da Constituição Federal, cumpre asseverar que é cediço, neste Tribunal, que o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu.” (EDcl no AgRg no Ag 852.215/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 05.08.2008, DJe 20.08.2008); “A jurisprudência desta Casa é pacífica ao proclamar que, se os fundamentos adotados bastam para justificar o concluído na decisão, o julgador não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos utilizados pela parte.” (AgRg no Ag 771.406/DF, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05.08.2008, DJe 22.08.2008); “O órgão julgador não é obrigado a se manifestar sobre todos os pontos alegados pelas partes, mas somente sobre aqueles que entender necessários para o julgamento do feito, de acordo com seu livre convencimento fundamentado, utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso.” (EDcl no Ag 942.007/RS, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 05.08.2008, DJe 25.08.2008); Não há omissão no acórdão recorrido quando o Tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos, assentando-se em fundamentos suficientes para embasar a decisão. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte. (REsp 1053381/AM, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 26.06.2008, DJe 01.09.2008); A jurisprudência desta Casa é pacífica ao proclamar que, se os fundamentos adotados bastam para justificar o concluído na decisão, o julgador não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos utilizados pela parte. (REsp 1037208/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 25.06.2008, DJe 20.08.2008); Ademais,

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conhecer e discutir as bases da decisão, contribuindo para a construção democrática da tutela jurisdicional, exigência constitucional que depende não somente da atuação do juiz, mas também da participação do Ministério Público, das partes e de seus advogados no processo.13 Dessa maneira, uma “sociedade aberta de intérpretes da Constituição”14 poderá analisar criticamente os pressupostos subjacentes à tutela jurisdicional, o que produzirá uma produtiva abertura entre perspectivas jurídicas distintas, como os discursos liberal e de bem-estar social, associados aos paradigmas de maior destaque na Modernidade, agora desvelados e encarados como estratégias argumentativas concorrentes a cada decisão.15 Só assim as respostas judiciais, juridicamente consistentes e racionalmente fundadas também na ótica dos afetados pela decisão, serão construídas sem o aniquilamento da Constituição. 16

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o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. (REsp 940.552/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24.06.2008, DJe 07.08.2008); Em nosso sistema processual, o juiz não está adstrito aos fundamentos legais apontados pelas partes nem está obrigado a responder a todos os questionamentos. Exige-se, apenas, que a decisão seja fundamentada, aplicando o magistrado ao caso concreto a legislação considerada pertinente. (EDcl no REsp 666.183/RN, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 19.06.2008, DJe 05.08.2008); A jurisprudência desta Corte é uníssona no sentido de que o órgão julgador não está obrigado a responder a todos os argumentos das partes, desde que fundamente a solução empregada. (AgRg no Ag 1024910/RJ, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03.06.2008, DJe 23.06.2008); Quanto à apreciação de violação do artigo 5º, II, XXXV e LV da Constituição Federal, cumpre asseverar que é cediço, neste Tribunal, que o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu. (EDcl no AgRg no Ag 690.602/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22.04.2008, DJe 05.05.2008). Conferir CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito: um ensaio da teoria da argumentação enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica. In Jurisdição e Hermenêutica Constitucional (Org. Marcelo Cattoni). Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 48. HARBELE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. São Paulo: Nova Fronteira, 1999, p. 74 e seguintes. Nesse sentido, ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 84. Como afirma Carvalho Netto, empregando expressão de Pablo Lucas Verdú, “o aniquilamento do sentimento de Constituição é certamente conseqüência direta da continuidade de práticas jurídicas típicas da ordem autocrática anterior” (CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sobre o paradigma do Estado Democrático de Direito. In Revista de Direito Comparado, vol. 03. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 473-486).

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13.3 A diferenciação entre regras e princípios como estratégia para efetivação da Constituição no paradigma do estado democrático de direito: para uma análise crítica da interpretação e aplicação do Artigo 452, Inciso II, do Código de Processo Civil Para ilustrar o que chamamos de Interpretação Constitucional, analisaremos o enunciado e a aplicação do artigo 452, inciso II, do Código de Processo Civil, segundo o qual “o juiz tomará os depoimentos pessoais, primeiro do autor e depois do réu”. Considerando as hipóteses gerais de aplicação dessa norma, é fácil relacioná-la aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que se densificam no ordenamento jurídico processual também por intermédio do disposto no art. 452, II, CPC. Nesse sentido, imaginemos uma ação de alimentos ajuizada por Maria contra João. Primeiramente, Maria (autora) deporá acerca dos fatos subjacentes à demanda deduzida em juízo, que se relacionam ao seu pedido e à causa de pedir. Após isso, João (réu) será ouvido e poderá, se for o caso, “rebater” as alegações de Maria. Dessa forma, o réu terá melhores condições de defesa, esclarecendo, inclusive, questões vinculadas às afirmações feitas pela autora em seu depoimento. Portanto, tal ordem de depoimentos cria uma “condição de precedência” em favor do demandado, estabelecendo que “o juiz tomará depoimentos pessoais primeiro do autor e depois do réu”, como conseqüência lógica dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. No nosso exemplo, como a autora será ouvida primeiramente, o advogado de João, presente ao interrogatório de Maria, poderá não apenas ouvir e sugerir perguntas a serem dirigidas à autora, como também esclarecer e demonstrar eventuais incongruências do depoimento de Maria, por meio das perguntas que indicará no depoimento de seu cliente, em seguida. Com isso, conforme art. 5º, inciso LV, da Constituição da República, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recurso a ela inerentes”. No mesmo passo, como norma para oitiva das partes em juízo, há de se observar também o disposto no art. 344, parágrafo único, do 319

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Código de Processo Civil, que estabelece: “É defeso, a quem ainda não depôs, assistir ao interrogatório da outra parte”. A proibição dirigida àquele que ainda não depôs, de assistir ao interrogatório da outra parte, tem como finalidade preservar a qualidade da prova a ser produzida na audiência. Evita-se, com tal vedação, que a parte altere o seu depoimento por ter ouvido as informações prestadas pelo seu adversário no processo. Por isso, quem ainda não depôs não poderá assistir ao interrogatório da outra parte, o que contribui para o desenvolvimento regular do feito e, portanto, se alinha aos princípios constitucionais do processo (conforme art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República). No exemplo da investigação de paternidade, embora João (que ainda não depôs) não possa estar pessoalmente presente no depoimento de Maria, ele será representado por seu advogado. Dessa forma, o advogado de João, conhecedor por excelência da situação de seu cliente, poderá, já naquele ato, sugerir perguntas importantíssimas para defesa do réu, que será ouvido posteriormente. Portanto, consubstanciando o devido processo legal e regulando o depoimento das partes em juízo, as regras do art. 452, II, e art. 344 do Código de Processo Civil deverão ser observadas no curso da instrução processual, mas não sem uma interpretação constitucionalmente adequada para cada caso concreto. Afinal, o legislador cria a norma pensando na generalidade das situações, não sendo possível prever e antecipar todas as situações concretas que se apresentarão aos juízes e tribunais, no exercício da tarefa de julgar. Com efeito, não se pode acreditar que as regras sejam capazes de (auto)regular todas as suas hipóteses de aplicação ou dispensar uma atividade de mediação, a ser realizada pelo intérprete, entre as normas gerais e abstratas e os casos concretos. Para demonstrar a necessidade de uma interpretação constitucional, não apenas do texto da Constituição, mas também de cada norma do ordenamento jurídico, basta retomar o exemplo da ação de alimentos proposta por Maria contra João. Desta vez, no entanto, acrescentaremos um dado peculiar à questão, para analisarmos o que seria uma interpretação constitucionalmente adequada da regra processual em face do caso concreto.

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Imaginemos que João, advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, pretenda se auto defender no processo decorrente da ação de alimentos proposta por Maria.17 Na hipótese, constatou-se não haver defensor público ou outro advogado no Fórum que pudesse ser nomeado para a defesa de João, que insistiu em advogar em causa própria no momento dos depoimentos pessoais. Segundo o enunciado do art. 452, inciso II, do Código de Processo Civil, “o juiz tomará os depoimentos pessoais, primeiro do autor e depois do réu”. Todavia, o disposto no art. 344, parágrafo único, do mesmo diploma legal, também determina que aquele que não depôs está proibido de assistir ao interrogatório da outra parte. Para solução da questão, João requereu a inversão da ordem de oitiva das partes, para que prestasse o seu depoimento primeiramente e, em seguida, sem qualquer prejuízo para Maria, participasse do interrogatório da autora, sugerindo as perguntas necessárias para a defesa de seus interesses. Ora, na situação, como o réu da ação de alimentos advoga em causa própria, impedir quem não depôs de assistir ao interrogatório da outra parte significaria sacrificar a participação do próprio advogado do réu no depoimento de Maria, autora da ação. Com efeito, a aplicação irrefletida do disposto no art. 452, II, do CPC, criado para materializar a ampla defesa e o contraditório no processo, acabaria por prejudicar o próprio contraditório e a ampla defesa de João. Nesse passo, a realização da audiência para oitiva de Maria sem a participação do advogado do réu prejudicaria a qualidade da prova produzida e dificilmente poderia ser justificada à luz dos princípios do art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição. Com fundamento na idéia de interpretação constitucionalmente adequada e sem qualquer descumprimento do direito vigente (desde que interpretado à luz da Constituição), é possível justificar a inversão requerida por João, em face das peculiaridades do caso

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O caso utilizado como exemplo, julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, via recurso de apelação cível nº 380/85, publicada em Paraná Judiciário 18/51, encontra-se em: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Volume I. 10 edição. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p. 412-413.

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concreto. Destaque-se, entretanto, que a validade da decisão judicial, na hipótese, dependerá dos fundamentos apresentados, reflexo de uma pré-concepção de Constituição que deve ser sustentável à luz do atual paradigma constitucional. Partindo da noção de que o dilema Justiça versus Direito é uma falsa questão à luz da idéia de Interpretação Constitucional, o juiz deverá, ainda, evitar a afirmação de uma (falsa) contradição interna no ordenamento jurídico. Isso quer dizer que, no caso concreto, a decisão judicial deverá afirmar uma relação de coerência entre as normas do código de processo civil (artigos 344 e 452, II, do CPC) e os princípios constitucionais que elas densificam, como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV e LV, da CF/88). Para tanto, é necessário compreender que o enunciado do art. 452, II, do CPC, como qualquer texto legal, não se confunde com a norma, fruto da interpretação. Como afirma Friedrich Müller, o texto é apenas a “ponta do iceberg normativo”, visto que o interprete poderá extrair múltiplos sentidos de um mesmo enunciado, devendo adotar aquele que represente melhor expressão dos princípios constitucionais, à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito. 18 Essa tensão entre uma interpretação prima face do artigo 452, II, do CPC, e os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa pode ser solucionada pelo processo hermenêutico no caso concreto, sem afirmação de qualquer contradição. Tudo dependerá de uma interpretação constitucionalmente adequada da norma do CPC, que não deve ser confundida com o texto legal, ou melhor, com uma interpretação generalizante do enunciado, inadequada àquela situação específica por força dos princípios constitucionais. Afinal, a idéia de interpretação constitucional requer a afirmação da coerência do sistema jurídico, à luz da Constituição, no 18

Friedrich Müller, professor de Direito Constitucional, Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito, na Universidade de Heidelberg, Alemanha, considera o texto de um preceito jurídico positivo apenas a parte descoberta do iceberg normativo, que, após interpretado, transforma-se no programa normativo. Com efeito, o texto é o ponto de partida para a concretização da norma, razão pela qual não deve ser confundido com esta. Portanto, a norma, não mais reduzida a texto, deverá ser concretizada em cada processo individual de decisão jurídica, à luz da Constituição. (Muller, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005).

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julgamento de cada caso concreto. Por isso, a decisão judicial que refutar, para a situação específica, o sentido geral e comumente atribuído ao artigo 452, II, do CPC (primeiro o autor depõe, depois o réu) poderá se respaldar no própria artigo 452, II, desde que seu sentido hermenêutico seja construído em face das peculiaridades do caso e à luz da Constituição. Em outras palavras, a idéia de Interpretação Constitucional requer uma interpretação das regras de direito (e não descumprimento) à luz do sistema constitucional e atenta às peculiaridades de cada situação de incidência normativa (também objeto e fruto de interpretação), de forma que o provimento seja (auto) imposição da sociedade, em consonância com as normas democraticamente estabelecidas. Vale destacar que importa, nesse viés, não apenas o conteúdo da decisão, que poderá agradar alguns e desagradar outros. Para afirmação da validade da decisão, o que dependerá de um controle social e democrático da fundamentação, deverão ser analisados criticamente os pressupostos do juiz acerca do seu papel, especialmente em relação ao seu sentido de direito e de Constituição, refletidos na decisão. Tais pressupostos respaldarão ou não a decisão, permitindo considerá-la um provimento racionalmente sustentável ou uma decisão inválida, conforme os fundamentos apresentados na motivação, exigência do art. 93, inciso IX, da nossa Constituição. Portanto, é possível considerar a oitiva do réu João antes de autora Maria medida coerente com o disposto no art. 452, inciso II, do Código de Processo Civil, segundo o qual “o juiz tomará os depoimentos pessoais, primeiro do autor e depois do réu”, desde que o sentido da norma seja construído à luz do sistema constitucional, e não apenas de um texto isoladamente considerado. Nesse plano, o intérprete deve tratar a diferenciação entre regras e princípios como uma ferramenta ou estratégia para a efetivação da Constituição, e não como um limite supostamente imposto pelo texto normativo. Para muitos, essa distinção seria morfológica (de acordo com a forma do texto) e estanque (natural ou ontológica), com base na idéia de que regras são normas com enunciados detalhados, que explicam minuciosamente suas hipóteses de aplicação, enquanto

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princípios são normas de enunciado genérico e abrangente, que admitem um balanceamento em face do caso concreto. 19 Todavia, com base no exemplo em tela, percebe-se que um mesmo texto pode ensejar a identificação tanto de regras, quanto de princípios, conforme a interpretação realizada no caso concreto. Para explicar, basta lembrar que, na instrução processual, a generalidade dos casos exige a oitiva do autor antes do réu, decorrência da regra extraída do art. 452, II, do CPC. Em condições gerais, esta é a interpretação constitucionalmente adequada daquele enunciado, como na hipótese em que Maria move ação de alimentos em face de João e este não advoga em causa própria. Nessa hipótese, a aplicação da ordem ordinária de oitiva das partes (primeiro o autor e depois o réu) se impõe como exigência da regra extraída do art. 452, inciso II, do CPC, na medida em que nenhuma particularidade do caso justifique outra interpretação, à luz do sistema constitucional. Por outro lado, na hipótese em que João advoga em causa própria, o mesmo texto enseja a identificação de princípios, que justificam a inversão da ordem de oitiva das partes em juízo. Por isso, no caso, a 19

À margem da diferenciação funcional proposta no texto, vários critérios são tradicionalmente apontados para distinção entre regras e princípios, consideradas duas espécies normativas distintas de forma estaque. Segundo J.J. Gomes Canotilho, os principais critérios são: “a) Grau de Abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida; b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras, enquanto as regras são susceptíveis de aplicação direta; c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico; d) Proximidade da idéia de direito: os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ ou na ‘ideia de direito’; as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional; e) Natureza Normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituiem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentadamente” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1995, pp. 166-167). O jurista Robert Alexy chega a afirmar que “os princípios tendem a ser relativamente gerais porque não estão referidos às possibilidades do mundo real ou normativo” (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos Y Constitucionales, 2001, p. 103) Contudo, segundo Alexy, embora as regras tenham um grau de generalidade tendencialmente menor do que os princípios, a tese da generalidade não pode ser considerada decisiva para distinção entre regra e princípio. Nesse sentido, afirma que tal critério reduz as relevantes diferenças existentes a uma questão apenas de grau (ALEXY, Robert. Sistema juridico, principios juridicos y razon practica. In Derecho y Razon Practica. México: Distribuciones Fontamara, 1993, p. 11).

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inversão da ordem ordinária de depoimentos pode ser realizada sem que a validade do artigo 452, inciso II, do Código de Processo Civil, fosse afetada. Em outros termos, a interpretação constitucional do enunciado permitiu a extração de princípios que fundamentaram a inversão, sem qualquer descumprimento do direito ou sem o recurso à invalidação da norma processual estabelecida no CPC. Logo, o suposto grau de abrangência ou indeterminação da norma não poderá ser utilizado como critério para que ela seja aplicada como regra ou princípio. De outra forma, a noção de Interpretação Constitucional exige que toda norma, independentemente do seu grau de detalhamento, tenha o seu sentido estabelecido de forma alinhada os princípios constitucionais, cuja observância assegurará a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, seja aplicada como regra ou como princípio. Em última análise, a interpretação de qualquer texto normativo, mesmo quando ensejar aplicação de uma regra, deve passar pela filtragem constitucional, o que requer a análise de todo o ordenamento jurídico, a cada situação de aplicação.20 Só após esse processo hermenêutico, o intérprete poderá tratar a norma ou como regra (por exemplo, afirmando que o réu deporá depois do autor) ou como princípio (afirmando que a ordem comum de depoimentos contraria o sentido constitucional da norma em face da particularidade da situação de aplicação, pois, ao invés de consagrar a ampla defesa e o contraditório, acaba prejudicando tais princípios constitucionais no caso concreto). A interpretação correta será a que expressar a efetivação dos direitos e garantias fundamentais no caso concreto, para o que os textos legais existem. Logo, se a particularidade do caso justificar, para o fim de efetivação do sistema constitucional (ônus argumentativo que deverá ser assumido pelo juiz na fundamentação da decisão), o sentido geral da regra poderá ser alterado, para preservação dos princípios que ela densifica, o que, em última análise, significa observar às máximas da norma, e não descumpri-la.

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Para conhecer o sentido em que a expressão “filtragem constitucional” foi originalmente empregada, conferir SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional: contribuindo para uma dogmática jurídica emancipatória. 1. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999.

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Assim, o caminho aberto pela idéia de Interpretação Constitucional é uma via de mão dupla, na medida em que a Constituição filtra a interpretação das normas infraconstitucionais ao mesmo tempo em que a aplicação dessas normas configura instrumento para a efetivação da Constituição, com a afirmação do sistema de direitos e garantias fundamentais a cada decisão. Nessa esteira, a inversão da ordem dos depoimentos das partes no processo civil, conforme as peculiaridades do caso concreto, pode ser considerada exigência do art. 452, inciso II, do Código de Processo Civil, e não o seu descumprimento. Tudo dependerá de uma interpretação do dispositivo legal alinhada aos princípios constitucionais e adequada à situação de aplicação, à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito.

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CARVALHO NETTO, Menelick de. A interpretação das leis: um problema metajurídico ou uma questão essencial do Direito? De Hans Kelsen a Ronald Dworkin. In: Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 5, jan./jun. de 1997; __________. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sobre o paradigma do Estado Democrático de Direito. In Revista de Direito Comparado, vol. 03. Belo Horizonte: Mandamentos: 2000; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; __________. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001; __________. Teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação e garantia processual jurisdicional dos direitos fundamentais. In Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 88. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte – MG, Dezembro de 2003; __________. (Org.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004; CHAI, Cássius Guimarães. O controle de constitucionalidade como justiça e identidade constitucionais; a alteração do perfil constitucional a (des) serviço do povo; o discurso de justificação aos vetos dos art. 2°, inciso II, e art. 9° da lei federal 9882/99. Dissertação (mestrado) – Programa de pós-graduação, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, 2002. Orientação: Prof. Dr. Menelick de Carvalho Netto; DWORKIN, Ronald M. The model of rules. In Law, Reason and Justice, Essays in Legal Philosophy. New York: New York University Press, 1969; __________. A Matter of Principle. Cambridge: Havard Uniresity, 1986; __________. Los derechos en serio. Traduzido do original em inglês por Marta Guastavino. Barcelona: Editorial Ariel, 1984 (1 ed) y 1995 (2ª reimpressão); __________. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999; FAZZALARI, Elio. Istituzione di Dirito Processuale. 7. ed., Padova: CEDAM, 1994;

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14 Da segurança nacional à segurança jurídica: armadilha pós-ditadura em favor da emergência do fundamentalismo jurídico

Eneá de Stutz e Almeida*

14.1 Contextualização: da segurança nacional à segurança jurídica

N

este ano de 2008 se comemora vinte anos de Constituição Cidadã. É caso de comemoração? Esta Carta nasceu num momento histórico em que o Brasil precisava livrar-se do fantasma do regime militar, assim como dos entraves inerentes a um regime de Segurança Nacional. O período entre o golpe e a redemocratização marcou a vida brasileira de forma indelével, e seus influxos ainda permanecem. Nos últimos vinte anos, como era de se esperar, verificaram-se muitas transformações, quer na legislação constitucional quer na infraconstitucional. Como não poderia deixar de ser, no contexto de ansiada redemocratização, ocorreram intensos debates acerca de questões políticas, econômicas e jurídicas. Porém, enquanto nas esferas política e econômica a direção das reflexões e consensos alcançados eram no sentido de uma liberalização, flexibilização, ou ainda outra

* A autora é graduada e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É professora da graduação e do mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Integra as diretorias do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e da Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-Graduação (ANDHEP).

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palavra que significasse menor controle e intervenção estatal, simultaneamente, verificou-se uma elevada convergência quanto à busca de segurança jurídica, ou seja, um anseio por maior controle jurídico. Observando-se por outro ângulo deve-se levar em conta que a tão almejada liberdade chegava num momento de profunda crise dos valores, o que suscitou a necessidade de se obter uma sensação de estabilidade e segurança em algum escaninho do “conhecimento”; e se o Estado brasileiro começava a vivenciar as crises inerentes à globalização, qual mais indicada esfera do saber que o Direito? O resultado desse processo, hipótese que orienta o presente estudo, é o fenômeno aqui denominado fundamentalismo jurídico. Vale recapitular brevemente a trajetória da luta pela construção da Constituição Cidadã, retornando ao final dos anos de 1960. Muitos foram os juristas que se manifestaram contra os absurdos e atrocidades que estavam ocorrendo, e entidades como o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fizeram questão de se manifestar publicamente contra as diretrizes autoritárias do regime, e apelaram no sentido do retorno do Estado Democrático de Direito.1 Mas os ânimos estavam por demais exaltados e, como soe acontecer, o ordenamento jurídico permaneceu durante muito tempo sendo utilizado apenas para legitimar formalmente a Doutrina de Segurança Nacional. Um incidente entre os militares e o Congresso, provocou tanto o fechamento deste como a decretação do AI-5, em dezembro de 1968. 2 Pela primeira vez um Ato Institucional não tinha a sua vigência estipulada (vigorou até 1979). Este episódio veio a ser denominado “um golpe dentro do golpe”, posto que efetivamente consagrou a lógica da assim chamada “linha-dura” e mergulhou o País num regime ditatorial, pois até mesmo o instituto do habeas corpus foi relativizado no tocante aos atos considerados “crimes contra a segurança nacional”. 1

Para aprofundamento da temática da participação do IAB durante a ditadura militar, cf. ALMEIDA, Eneá de Stutz e. Ecos da Casa de Montezuma. O Instituto dos Advogados Brasileiros e o pensamento jurídico nacional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. 2 Trata-se do episódio do mal-estar que causou nas Forças Armadas o discurso do deputado Márcio Moreira Alves do então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), proferido na Câmara Federal.

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Sob a proteção do AI-5 um ciclo de perseguições foi iniciado contra parlamentares, intelectuais, e funcionários públicos. Foi ampliada a censura à imprensa, a prática da tortura tornou-se corriqueira, e multiplicaram-se os seqüestros pelas mãos de grupos paramilitares. Em contrapartida, a luta armada de esquerda intensificou suas ações. Para coroar o discurso ditatorial, em 1969, uma Junta Militar assumiu o poder, em substituição ao presidente Costa e Silva, supostamente acometido de uma grave enfermidade. A Junta chegou mesmo a produzir uma legislação que incluía banimento e outras penas de exceção para as pessoas consideradas nocivas ao regime. Entrementes, se verificava no País um ciclo de prosperidade macroeconômica, de queda da inflação, e de crescimento do PIB. Este ciclo de prosperidade perdurou até 1976 aproximadamente, e ficou conhecido como “milagre brasileiro”. O presidente militar, general Emílio Garrastazu Médici, que assumiu o governo em 1969, comandou a fase mais repressiva da ditadura – capaz até mesmo de desbaratar a luta armada – como também a de maior crescimento econômico. Assim, a oposição foi reduzida a uma expressão mínima; sendo a propaganda estatal em grande parte responsável pelo clima reinante de ufanismo e nacionalismo (auxiliada pela ascensão da Rede Globo e pela introdução da TV colorida a partir de 1970). Em março de 1974, pela via indireta, assumiu a presidência da República o general Ernesto Geisel, algo distanciado das posições da “linha-dura”. Ele teria sido o primeiro agente da abertura do regime em direção à redemocratização. A necessidade de distensão foi percebida pelo principal ideólogo do regime da segurança nacional, o general Golbery do Couto e Silva, plenipotenciário criador e chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), e que se tornou chefe do Gabinete Civil de Geisel. Chegara o momento inclusive de se restaurar a hierarquia militar, seriamente comprometida pelas ações dos chamados “paramilitares”, autônomos em relação aos altos escalões da oficialidade. O momento histórico, social, econômico, político, e jurídico que o País hoje vivencia é bastante distinto. Contudo, persiste como tema recorrente, tanto na mídia quanto nos ambientes acadêmicos, a ques-

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tão da segurança. Seja a segurança pública seja a segurança jurídica. 3 Vale ressaltar que não existe uma correlação mecânica entre as duas questões, mas essa persistência no que concerne à segurança, se afigura como uma das preocupações centrais da população e dos juristas. No caso da segurança pública, quer-se manter um mínimo de ordem e controle social, de modo a garantir o direito fundamental de ir e vir sem o sobressalto de confrontos policiais, ataques do crime organizado, e assim por diante. No caso dos juristas, se deseja o estabelecimento de regras para ditar a ordem pública e o controle social.

14.2 Do fundamentalismo jurídico Essa inclinação pela segurança jurídica parece ter induzido muitos juristas a uma postura que se poderia chamar de fundamentalismo jurídico. Originalmente, o termo fundamentalismo foi cunhado pelo pastor batista norte-americano Curtis Lows, editor do jornal Watchman Examiner, a fim de identificar um movimento religioso iniciado no estado do Tennessee no século XIX. A designação nasceu dos objetivos do movimento, que pretendia divulgar os fundamentos da fé cristã evangélica numa série de textos (princípios e idéias básicas de uma determinada doutrina religiosa antiliberal). Entretanto, a partir de 1978, com a Revolução Islâmica no Irã o termo vem sendo aplicado num outro sentido, não raro de modo pejorativo, para designar um “fundamentalismo islâmico”; em regra como sinônimo de intransigência, fanatismo e conservadorismo. O vocábulo inicialmente localizado no tempo e no espaço para designar uma comunidade específica, transformou-se num conceito com muitas conotações possíveis. Uma das facetas do que hoje se denomina fundamentalismo religioso pode ser explicada pela interpretação literal do texto sagrado. Leonardo Boff, numa página da Internet especialmente dedicada ao tema, explica que o fundamentalismo é uma 3

A idéia de segurança jurídica é central para garantir a manutenção do sistema jurídico: os contratos; o equilíbrio das relações econômicas; o casamento; as disposições sobre os bens; a regulação das relações, enfim, trazendo embutidas as idéias de ordem e de certezas, que deverão prevalecer para todas as relações jurídicas. Outra expressão sinônima é a da “estabilidade jurídica”. Chega-se a afirmar, eventualmente, que seria um “super-princípio jurídico”, tamanha a sua importância.

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tendência de fiéis, pregadores e teólogos que tomavam as palavras da Bíblia ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé protestante é a Bíblia). Se Deus consignou sua revelação no Livro Sagrado, então tudo, cada palavra e cada sentença, devem ser verdadeiras e imutáveis. Em nome do literalismo, esses fiéis opunham-se às interpretações da assim chamada teologia liberal. Esta usava e usa os métodos histórico-críticos e hermenêuticos para interpretar textos escritos há 2-3 mil anos. Supõe-se que a história e as palavras não ficaram congeladas. Precisam ser interpretadas para resgatar-lhes o sentido original. Esse procedimento para os fundamentalistas é ofensivo a Deus. Por razões semelhantes, eles se opõem aos conhecimentos contemporâneos da história, das ciências, da geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bíblica.4

De semelhante modo, outros fundamentalismos, como o judeu e o muçulmano, entendem que são portadores e possuidores da única verdade absoluta, e quem deles discordar deve ser eliminado; o consectário é a intolerância. Novamente Boff, no mesmo texto, esclarece: Todos os fundamentalismos, não obstante o variado matiz, possuem as mesmas constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do arco-íris, em que a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra indissoluvelmente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos.5

Outra possibilidade de analisar o fundamentalismo é encará-lo não como uma forma de leitura e interpretação literal do texto sagrado (qualquer que seja a religião, a saber, cristã, muçulmana ou judaica), 4

BOFF, Leonardo. Fundamentalismo. In: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/ boff/boff_fundamen.htm. Acessado em 12 de agosto de 2008. 5 Boff, Leonardo, op. cit.

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mas sim como uma postura, uma atitude em face do mesmo texto. A diferença básica entre uma conotação e outra, decorre do fato de que, na primeira, imagina-se um fiel desconectado da realidade presente e, portanto, indiferente às conjunturas, cultural, política, econômica e social que o circundam. Daí, a busca de refúgio numa verdade doutrinária apriorística e supostamente imutável. Na segunda hipótese, tem-se o mesmo fiel situado no tempo e espaço presentes, carregado de informações, posturas e preconceitos virtualmente inconscientes, munido de crenças que compõem uma única e linear mundividência e que utilizará o texto sagrado como argumento para reforçar um dado conjunto de crenças. Não é difícil se constatar em ambas as alternativas, uma postura nitidamente ideológica. A questão que aqui se coloca é que o mesmo raciocínio pode ser utilizado na hermenêutica jurídica. Assim é que, como bem demonstra Lenio Streck “o pensamento jurídico dominante continua acreditando que o jurista primeiro conhece (subtilitas intelligendi), depois interpreta (subtilitas explicandi), para só então aplicar (subtilitas aplicandi)”. 6 Em outras palavras, a norma jurídica teria um único sentido verdadeiro e absoluto, a ser desvendado pelo intérprete com os clássicos métodos: gramatical, lógico, teleológico, sistemático e histórico. Esse fundamentalismo “cai como uma luva” para os tempos pós-modernos, ou de modernidade líquida, no dizer de Bauman,7 nos quais vivemos. E é perfeitamente adequado para criar a sensação de um “mundo seguro, estável, previsível”, e, por tudo isso, sem qualquer autonomia dos indivíduos. Segundo Warat, o saber jurídico da modernidade “mobilliza o social negando as incertezas e o novo, impede a inscrição do Direito na temporalidade”. 8 Seria uma espécie de versão atualizada e revista da segurança nacional! 6

STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In ESTUDOS JURÍDICOS. 38 (1): 22-36 janeiro-abril 2005. São Leopoldo: UNISINOS, p 30 7 A este respeito, ver BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 8 WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p 72.

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Lenio Streck salienta que a existência de uma Constituição capaz de influenciar e condicionar a legislação, doutrina e jurisprudência, é quem proporciona o surgimento de ordenamentos jurídicos constitucionalizados. É esta maneira de enxergar, e interpretar/aplicar a Constituição que torna possível o sonho de um Direito transformador da realidade para a melhoria da qualidade de vida de uma sociedade.9 Retomando a idéia inicial que percebe a busca pela segurança (jurídica, inclusive) como um dos maiores anseios contemporâneos, faz-se necessário desvendar qual realidade se pretende transformar. Em outras palavras, além de não existir mais lugar para um Direito calcado única e exclusivamente nas relações intersubjetivas, mas sim, que inclua a dimensão coletiva, outros dois aspectos relativos da sociedade contemporânea devem ser levados em conta: 1) o ritmo das relações e; 2) a carência de autonomia. Quanto ao primeiro aspecto, Bauman esclarece: A “vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada à frente numa sociedade líquidomoderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo. Numa sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, num piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades. As condições de ação e as estratégias de reação envelhecem

9

STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In ESTUDOS JURÍDICOS. 38 (1): 22-36 janeiro-abril 2005. São Leopoldo: UNISINOS, pg 25-26

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rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente. (...) Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante.10 (grifou-se).

Uma crítica extremamente pertinente feita ao modo de produzir o Direito no Brasil – que leva em conta preferencialmente os conflitos interindividuais, olvidando o modelo de sociedade de consumo em que vive – atende ao requisito da massificação. Assiste razão a Lenio Streck, quando afirma: A crise do modelo (modo de produção de Direito) se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade transmoderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos (civil, comercial, penal, processual penal e processual civil, etc). Esta é a crise de modelo (ou modo de produção) de Direito, dominante nas práticas jurídicas de nossos tribunais, foruns e na doutrina. [grifos no original]. 11

O segundo aspecto – falta de autonomia de vontade – encontrase também vinculado à questão da massificação e da sociedade de consumo. Parte significativa das relações privadas converteu-se em relações de consumo. A propósito, preleciona Bauman A sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação. Uma forma de causar esse efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido alçados ao universo dos desejos do consumidor. Uma outra forma, ainda mais eficaz, no entanto, se esconde da ribalta: o método de satisfazer toda necessidade/desejo/vontade de uma forma que não pode deixar de provocar novas necessidades/de10 11

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2007, pg 7-8. STRECK, Lenio Luiz. Hermeneutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 2ª ed. rev. ampl.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, pg 36

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sejos/vontades. O que começa com necessidade deve terminar como compulsão ou vício.12

Deste modo, parte importante do problema é continuar produzindo o Direito como no século XIX. Ademais, além fato de que os conflitos jurídicos contemporâneos são majoritariamente de natureza coletiva, a velocidade com que ocorrem na “vida líquida”, no dizer de Bauman, torna o Direito ainda mais anacrônico. Warat “profetizou”, escrevendo em 1984, quando Tancredo Neves estava prestes a assumir a Presidência da República no Brasil: A democracia não pode ser uma coisa tão incolor como a sonham Alfonsin e Tancredo. Que pouco radical é o destino radical! Que velha me parece a nova república! É a comodidade do lugar comum.13

Uma democracia incolor, ou seja, uma democracia sem vida, apenas formal, apenas legal, apenas “garantida” na legislação, sem correspondência no mundo da vida, no cotidiano real, pode ser uma tradução política do fundamentalismo jurídico. Em síntese, o fundamentalismo jurídico se revela nesta postura anacrônica, formal, e supostamente ascética, com um discurso retórico, vazio, e distanciado da realidade.

14. 3. Segurança com liberdade e autonomia de vontade? Até a Idade Média, os seres humanos mantinham uma relação singular com a natureza que incluía temor, respeito, contemplação e mesmo reverência religiosa. A mundividência (Weltanschauung) desse período tinha como elemento constitutivo uma sensação de proteção, em virtude da fé que as comunidades depositavam nos seres sobrenaturais. Tal proteção era percebida sobremodo por intermédio da constância cíclica das ocorrências naturais benfazejas. Por seu turno, as intempéries destrutivas eram interpretadas como 12 13

BAUMAN, Zygmunt. Id. Ibid. pg 106-107 WARAT, Luis Alberto. Op cit, 84.

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expressões da ira divina. Com o declínio do mundo medieval e o avanço da ciência e da técnica, as pessoas foram transferindo parte daquela confiança para o desenvolvimento da técnica, esta identificada como a expressão máxima do progresso humano.14 Aos poucos as condições estavam criadas para o surgimento da noção de indivíduo, com sua autonomia e particularidades. Curioso é notar que a preocupação com o destaque, a diferenciação, a individualidade é bastante presente nos dias atuais. Entretanto, as relações que se estabelecem são cada vez mais massificadas, e a trajetória desta aparente contradição não é simples de acompanhar. A análise dessa temática pode tomar como base uma das obras de Richard Sennett. Afirma este autor: As sociedades ocidentais estão mudando a partir de algo semelhante a um estado voltado para o outro para um tipo voltado para a interioridade – com a ressalva de que, em meio à preocupação consigo mesmo, ninguém pode dizer o que há dentro. Como resultado, originou-se uma confusão entre vida pública e vida íntima: as pessoas tratam em termos de sentimentos pessoais os assuntos públicos, que somente poderiam ser adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal.15

Sennett procura demonstrar que as relações humanas foram alteradas no plano do chamado domínio público. As definições no Antigo Regime16 eram muito claras: por exemplo, no domínio privado prevalecia a informalidade: para todas as classes sociais os trajes deviam ser folgados e simples; ao passo que no âmbito público os trajes usados tinham a função de assinalar de modo reconhecível “o lugar de quem os vestia – e as roupas tinham de ser imagens corporais conhecidas e habituais, para que a demarcação fosse bem sucedida”.17

14

A este respeito, cf. PAPPENHEIM, Fritz. “A alienação do homem moderno: uma interpretação baseada em Marx e Tönnies”. In: Tecnologia e alienação. S. Paulo: Brasiliense, s/d. 15 SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p 18. 16 Denomina-se Antigo Regime ao período anterior à Revolução Francesa. 17 Id. ibid., p 91.

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A questão do espaço também foi apreciada por Sennett. Escreve ele: (...) aquilo que fez “a cidade” foi um sistema administrativo, financeiro, jurídico e de escopo internacional. A urbanização no século XIX consistia em algo mais do que a difusão de hábitos urbanos; significava uma difusão mais geral de forças “modernas”, antitradicionais. E, assim mesmo, não se dava de um só golpe: a cidade era ainda uma cultura distintiva, especialmente a capital. Sua vida pública era difundível, mas havia aí um ponto específico a partir do qual se iniciava a difusão. (...) Uma situação urbana foi identificada como aquela em que estranhos irão provavelmente se encontrar de modo rotineiro.18

Em outro trecho, ainda mais elucidativo, o autor revela como no Antigo Regime o domínio público era efetivamente público, ou seja, pertencia a todos do povo. As diferenças eram marcadas pelos gestos, roupas, falas e comportamentos. Mas as pessoas de quaisquer classes podiam circular livremente dentro da cidade. O bairrismo e a vizinhança em pequena escala, pois traduziriam uma simplificação econômica do território urbano no século passado [XIX]. A pessoa que pertencesse à classe trabalhadora da cidade do Antigo Regime, presa a grilhões diferentes, mas, ao mesmo tempo igualmente pesados, não achava que eles haviam confinado seus movimentos – para o prazer, para a emoção ou para o trabalho – dentro da cidade.19

No século XIX, com o advento do capitalismo industrial, uma nova cultura pública foi gerada que, segundo Sennett, produziu efeitos: A ordem capitalista tinha o poder de atirar os materiais de aparências para dentro de um estado permanente18 19

Id., ibid.., p. 163. Id. ibid., p 174.

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mente problemático, permanentemente “mistificador”, para usarmos o termo de Marx. (...) O capitalismo industrial tem um segundo efeito sobre o domínio da vida pública, além do efeito de mistificação. Ele mudou a natureza da privacidade; isto é, afetou o domínio que era a contrapartida do domínio público.20

Uma nova personalidade emergiu no século XIX em função de uma nova Weltanschauung. As pessoas se viam mais, se encontravam mais nas ruas das cidades, mas estavam separadas “por paredes invisíveis”. 21 A intimidade e a privacidade eram exercitadas apenas na vida privada no Antigo Regime, mas a partir do século XIX, a pretexto da experiência pessoal, a intimidade começou a invadir o domínio público; ainda segundo Sennett, foi o preparo necessário para a “sociedade intimista” que acabou por criar a “personalidade coletiva”. É oportuno ponderar que o conceito que o autor desenvolve de “sociedade intimista” está diretamente vinculado à formação da subjetividade que hoje é possível identificar nos centros urbanos. O autor esclarece que a sociedade intimista está organizada em torno de dois princípios: um que denomina como “narcisismo” e outro que é a “comunidade (Gemeinschaft) destrutiva”. Explicando: O que emerge nos últimos cem anos, quando comunidades de personalidade coletiva começaram a se formar, é que o imaginário compartilhado se torna um freio à ação compartilhada. Do mesmo modo como a própria personalidade coletiva havia se tornado uma idéia anti-social, a personalidade coletiva se torna identidade de grupo em sociedade hostil e difícil de se traduzir em atividade de grupo. A comunidade se torna um fenômeno de ser coletivo, mais do que de ação coletiva, com uma exceção. A única transação que poderia engajar o grupo era a purificação, a rejeição e o castigo daqueles que não são “como” os outros. Uma vez que os materiais simbólicos para se formar a personalidade coletiva eram instáveis, a purificação comunal 20 21

Id. ibid., pp 184 e 186. Id., ibid. p 268.

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é infindável, uma busca contínua pelo leal americano, pelo ariano autêntico, pelo “genuíno” revolucionário. A lógica da personalidade coletiva é o expurgo. Seus inimigos são todos os atos de aliança, de cooperação, de Frente Unida. De um modo mais abrangente, quando as pessoas de hoje tentam ter um relacionamento emocional pleno e aberto com as outras, conseguem apenas ferir-se umas às outras. Esta é a conseqüência lógica dessa Gemeinschaft destrutiva que surge quando a personalidade faz sua aparição na sociedade.22

Com o fim da vida pública, tal como se conformava no século XIX, e com a entrada em cena da personalidade coletiva, as relações sociais se tornam mais adversas, as transformações se tornam quase impossíveis, e a comunidade caminha para a destruição. Este é o principal fato que desestabiliza o sistema jurídico fechado. A idéia de ordem jurídica equilibrada, proporcionando justiça e paz social necessita ser superada. Como afirma Roberto Aguiar, “a justiça para ser exercida há de ser desequilibrada, pois nenhuma sociedade é equilibrada”.23 Com a personalidade coletiva e o modo de produzir Direito tomando como foco as relações transindividuais, haverá sempre um abismo entre a produção de conhecimento jurídico e a solução dos conflitos sociais. A dissolução da comunidade resta patenteada neste texto de Sennett: Ora, quanto mais as pessoas conceberem o domínio político como a oportunidade para se revelarem umas às outras, compartilhando uma personalidade comum, coletiva, tanto mais serão desviadas do uso de sua fraternidade para transformarem as condições sociais. Manter a comunidade se torna um fim em si mesmo; o expurgo daqueles que realmente não pertencem a ela se torna a atividade da comunidade. Um princípio para se recusar a negociar, para se expurgar continuadamente os 22 23

Id., ib., p. 276. AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito, poder e opressão, Brasília: Ed. Alfa e Ômega, 1990, p. 67.

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forasteiros, resulta do desejo supostamente humanitário de apagar a impessoalidade nas relações sociais. E, na mesma medida, esse mito é autodestrutivo. A procura pelos interesses comuns é destruída pela busca de uma identidade comum.24

A análise de Sennett encontra-se bastante próxima da reflexão de Pappenheim sobre os dois tipos de associação humana, denominadas Gemeinschaft e Gesellschaft. A primeira seria uma verdadeira comunidade, no sentido original da palavra, ou seja, um grupamento humano vivendo em comunhão, por inteiro, como se todos pertencessem a um lar; nesta hipótese a unidade sempre prevaleceria, a despeito de conflitos ocasionais. Já no caso da Gesellschaft, os indivíduos participariam da associação humana apenas com uma fração de seu ser; ou seja, neste caso, os integrantes do grupamento teriam em comum apenas o propósito específico da organização. O exemplo dado por Pappenheim é o da associação de pessoas que possuem ações numa certa companhia. Estas se relacionam entre si não como pessoas inteiras, mas apenas com aquela parte interessada em ser acionista. Se na Gemeinschaft prevalece a união a despeito dos conflitos, na Gesellschaft prevalece o insulamento a despeito de consórcios ocasionais. Nesta última, o mundo é hostil, e o potencial de conflito inerente às relações humanas. Pappenheim, baseando-se em Marx, afirma: Nossa existência pública e nossa existência particular estão separadas por um abismo que também separa nossos papéis de cidadão do de membro particular de uma sociedade. Há contraste pronunciado entre o céu das doutrinas políticas e a lei constitucional por um lado e a realidade terrestre da sociedade na qual vivemos e agimos como indivíduos particulares e levamos avante nossas ocupações diárias, por outro lado. O primeiro expressa a comunidade do Homem enquanto que a segunda é indiferente à relação do Homem para o Homem e está baseada em relações fragmentárias, (...) Assim, a 24

SENNETT, Richard. Op. cit., p. 319.

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sociedade capitalista não abrange a Gemeinschaft mas sim um estado de separação e discórdia, de egoísmo irrestrito, do qual emerge o bellum omnium contra omnes. (...) Marx interpretou a história de seu tempo e, num sentido mais amplo, a história do capitalismo, como a história da alienação do homem.25

A Gesellschaft, também carrega consigo as condições propícias para o processo de alienação. Esta conclusão decorre de uma observação histórica. Na Idade Média a cidade era concebida como um espaço adequado para o exercício da liberdade, uma vez que viver nela significava uma forma de negação do regime de sujeição vigente no feudalismo. O meio urbano, mais do que nunca, passava a simbolizar a ruptura com o modo de vida consagrado pelas tradições. É interessante notar, à guisa de curiosidade, que foi o meio urbano quem possibilitou o desenvolvimento das regras jurídicas, e ao mesmo tempo, foi a lei que regulamentou a convivência na cidade. Assim, meio urbano e ordem jurídica encontram-se entrelaçados desde sempre. Vale reiterar que a liberdade de ação e movimento, a comunicação mais ampla e o sentido de comunidade (Gemeinschaft) eram as principais propagandas da cidade medieval. Com o passar do tempo e as mudanças nas relações sociais, o meio urbano vem se tornando exatamente o cemitério daquilo que propiciava naquele momento histórico. Este processo da Gesellschaft, que comporta a alienação, é assim explicado por István Mészáros: Nas primeiras fases do desenvolvimento capitalista a ênfase recaía, inevitavelmente, no aspecto universal da liberdade. A adoção da “liberdade igual” como princípio da sociedade econômica é a preocupação comum do “Terceiro estado”, em oposição aos interesses dos “estados” predominantes da sociedade feudal. Além disso, para fortalecer as pretensões morais do princípio

25

PAPPENHEIM, Fritz. Op. cit., pp. 60s..

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defendido, ressalta-se que a “liberdade” é a preocupação universal de todos os homens. Não há, portanto, nenhum sinal de uma concepção de liberdade como “autonomia individual” em oposição “à autonomia universal e igual”. Mais tarde, porém, quando a “igualdade” envolvida na “liberdade universal” se revela oca – uma igualdade puramente formal – e o princípio da liberdade se realiza na forma de uma desigualdade econômica e social gritante, bem como na universalização da “escravidão à mercadoria” (isto é, a total negação da liberdade humana pelas relações sociais de produção reificadas; a dominação dos homens por uma “lei natural” que predomina cegamente, e de sua própria criação), então, mas só então, o conceito de “autonomia individual” é colocado em primeiro plano. Agora que as relações de poder da sociedade estão solidificadas e estruturalmente protegidas pela reificação capitalista das relações sociais de produção, o conceito da “liberdade universal e igual” só pode representar um desafio e uma ameaça de “subversão”. A direção dos “assuntos públicos” é, portanto, atribuída aos especialistas dos órgãos burocráticos de repressão estabelecidos - (...) - e a “interiorização” é glorificada como o único modo de vida “autêntico”. O culto da privacidade e da autonomia individual realiza, com isso, a dupla função de proteger objetivamente a ordem estabelecida contra o “desafio pela ralé” e proporcionar objetivamente a realização espúria de uma interiorização escapista para o indivíduo isolado e impotente, que é mistificado pelos mecanismos da sociedade capitalista que o manipula.26

Assim é que a autonomia da vontade alienada é uma contradição em termos, e acaba por significar o aniquilamento da autonomia da vontade. Criticar a mitigação da autonomia da vontade pode representar uma resistência, um ato de “contracultura” para diminuir a ânsia pela segurança das relações massificadas, que oprimem sem fornecer nem liberdade, nem igualdade. As negociações e as 26

MÉSZÁROS, István. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p 236.

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flexibilizações têm sido apresentadas também de uma forma massificada, sem possibilidade de real negociação tomando-se em conta a autonomia da vontade individual. E em regra, dão a sensação de que estão contra os indivíduos e a favor do capital financeiro. Um dos princípios jurídicos mais importantes para balizar essa equação e ao mesmo tempo enfrentar a alienação crescente, é justamente o princípio da liberdade. A palavra alienação vem de alienatio, que no latim significa passar para outro. Donde alienatus é “aquele que não se pertence”. Originariamente o termo era utilizado apenas em seu sentido jurídico, isto é, a transferência de uma coisa ou direito a outrem. Posteriormente, Hegel e em seguida Marx, introduziram no vocabulário filosófico os conceitos alienação e alienado. É importante frisar que para Marx a alienação era um processo relacionado diretamente com a atividade humana produtiva. Como a concepção de “atividade humana produtiva” não é nada simples e não raro causa polêmica, tanto entre os adversários quanto entre os partidários do pensamento marxiano, é prudente estabelecer um ponto de partida, e para tanto se deve socorrer à lição de Mészáros: Na concepção dialética de Marx, o conceito-chave é a “atividade humana produtiva”, que nunca significa simplesmente “produção econômica”. Essa atividade é, desde o início, muito mais complexa do que a produção econômica, como as referências de Marx à ontologia indicam.27

Portanto, é perceptível que Marx associava o fenômeno da alienação a um processo histórico, processo este que produziria condições reais e concretas, capazes de conduzir à alienação. Novamente Pappenheim é quem ensina que Marx “insiste em que o indivíduo reduzido a tal ‘estado de pobreza absoluta’, a um mero fragmento de ser humano, tornou-se incapaz de se aproximar do mundo com liberdade interior e não pode portanto experimentar sua plenitude e riqueza”.28

27 28

Id., ibid., p. 103. PAPPENHEIM, Fritz. Op. cit., pp 64s.

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Mészáros trata dessa relação entre liberdade e alienação num texto que, além de ser uma explanação sucinta da teoria da alienação em Marx, bem pode ser uma outra leitura da hipótese de Gesellschaft ou até mesmo aludindo às mudanças relatadas por Sennett. Explicando melhor: Quando, porém, o trabalho é desumanizado e subordinado como simples do meio ao fim, que é a perpetuação das relações sociais de produção reificadas, a “preocupação comum” torna-se uma palavra vazia, e a “auto-realização” através do trabalho como atividade vital do homem é inimaginável. O que resta, depois da “desvalorização do mundo do homem” é simplesmente a ilusão desumanizada de uma realização através da “interiorização”, através da ociosidade “contemplativa”, através do culto da privacidade, da “irracionalidade” e do “misticismo” - em suma através da idealização da “autonomia individual” como aberta ou implicitamente oposta à “liberdade universal”.29

Deve ser ressaltado que o ser humano não somente se perde no processo produtivo, como também o seu próprio mundo se desfaz. Este lhe é ocultado, esterilizado, banalizado e desencantado pela tecnologia, com tudo o que isso acarreta em termos de sensações subjetivas: de absurdo, de anomia, de isolamento de si, de falta de comunicação, e congêneres. O que leva cada um de nós a buscar incessantemente a sensação de segurança em todos os lugares. Em outras palavras, é perfeitamente possível querer aniquilar a democracia e a autonomia da vontade em nome da segurança nacional, da segurança dos contratos, da segurança jurídica, e assim por diante. Sennett, em outra obra, revela esta sensação a partir da sua própria biografia: O filósofo do Renascimento Picollo della Mirandola, em sua Oração sobre a dignidade do homem, formulou a máxima “o homem como seu próprio Criador”, o que 29

MÉSZÁROS, Istvan. Op. cit, p. 237.

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significa a formação pessoal como uma exploração em vez de obediência a uma receita. A religião, a família, a comunidade, afirmou Picollo, montam o cenário, mas devemos escrever o roteiro sozinhos. Minha geração afirmou vagamente esta visão, mas ignorou em sua própria vida o alerta que Picollo lançara: é necessário criar uma história de vida coerente. “Retirarse” pode ser um símbolo de honra, mas nada resolvia sobre o que fazer da vida. Depois de vagar livre aos vinte, aos trinta anos muitos da minha geração sentiram que tinham perdido alguma coisa: a narrativa de vida não tinha avançado. Embora tenha nadado alegremente nas correntes sexuais da década de 1960, eu não era fundamentalmente uma alma liberada; na escola, eu queria segurança, e não aventura.30 (grifou-se) A autonomia privada sempre foi vinculada aos interesses particulares, porquanto era concebida para uma sociedade com relações e conflitos transindividuais. Com vistas à transformação da realidade, uma tarefa a ser iniciada é o resgate da temática da autonomia da vontade dentro da nova configuração social em que se vive.

Produzir o Direito com vistas à emancipação dos sujeitos é a realização do anseio maior por segurança, justamente porque a segurança jurídica buscada incidirá não no cumprimento formal de uma regra desvinculada da realidade, mas sim, numa contextualização histórica e biográfica, tanto para os indivíduos, quanto para as coletividades. E sob este aspecto, a Constituição da República poderá, finalmente, ser chamada de Constituição Cidadã sem que isto seja considerado uma ironia. Retomar a autonomia da vontade na “modernidade líquida” também pode significar o cumprimento desta promessa não realizada da modernidade: a da liberdade e da igualdade para decidir a própria vida, ou, no dizer de Sennett, para que cada qual escreva seu próprio roteiro de vida. As balizas normativas já estão dadas. 30

SENNETT, Richard. Respeito: a formação do caráter em um mundo desigual. Rio de Janeiro: Record, 2004, pg 44-45

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Um dos marcos limitadores é a solidariedade humana, que também poderia ser traduzida por uma ética do cuidado. Quando se afirma a urgência do resgate da autonomia da vontade, trata-se de interpretar/aplicar o direito que já se tem. A Constituição Cidadã quis que cada brasileiro e brasileira decidisse livre e autonomamente, entre outras questões importantes, qual a opção sexual, qual a opção religiosa, sem que por tais decisões fosse discriminado. Tal raciocínio só pode prevalecer para além do que aqui foi denominado fundamentalismo jurídico, uma vez que se pretendia demonstrar a carência de genuína segurança (política, jurídica, econômica e social), que ainda oprime e aprisiona a sociedade brasileira, e produz a incômoda sensação de anacronismo do Direito.

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